Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LUIZ HENRIQUE SAMPAIO JUNIOR O CURRÍCULO COMO ARTEFATO TÉCNICO: contribuições críticas de Andrew Feenberg à formação ARARAQUARA (SP) 2025 LUIZ HENRIQUE SAMPAIO JUNIOR O CURRÍCULO COMO ARTEFATO TÉCNICO: contribuições críticas de Andrew Feenberg à formação Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto sensu, em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras (FCL/Ar), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. Ari Fernando Maia. Bolsa: CAPES/DS, Código 001. ARARAQUARA (SP) 2025 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Espera-se que essa pesquisa possua impacto regional, devido à análise teórica e às entrevistas realizadas com os professores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, realizadas em Araraquara e Matão. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH We expect this research will have regional impact, considering the theorical analysis and the interviews with teachers from the Federal Institute of Education, Science and Technology of Sao Paulo, carried out in Araraquara and Matão. IMPACTO POTENCIAL DE ESTA INVESTIGACIÓN Se espera que esta investigación tenga impacto regional, debido al análisis teórico y a las entrevistas realizadas a docentes del Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de São Paulo, realizadas en Araraquara y Matão. LUIZ HENRIQUE SAMPAIO JUNIOR O CURRÍCULO COMO ARTEFATO TÉCNICO: CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS DE ANDREW FEENBERG À FORMAÇÃO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto sensu, em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras (FCL/Ar), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. Ari Fernando Maia. Bolsa: CAPES/DS. Data da defesa: 11/3/2025. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Ari Fernando Maia Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Membro Titular: Prof.ª Dra. Deborah Christina Antunes Universidade Federal do Cariri. Membro Titular: Prof. Dr. Luiz Roberto Gomes Universidade Federal de São Carlos. Membro Titular: Prof.ª Dra. Renata Peres Barbosa Universidade Federal do Paraná. Membro Titular: Prof.ª Dra. Sueli Soares dos Santos Batista Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza. Local: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Faculdade de Ciências e Letras (FCL/Ar). UNESP – Campus de Araraquara. Dedico estas páginas à minha irmã Andrea R. Sampaio, apoio seguro nos momentos mais adversos e ouvido amigo nas melhores discussões sobre a vida acadêmica e suas possibilidades. AGRADECIMENTOS Agradeço, inicialmente, à Sabedoria Divina. Agradeço também à minha mãe: Rosangela Ap. Benatti de Almeida, fonte de vida e de afeto; ao meu pai de coração: Jonas de Almeida, um exemplo seguro de dedicação e de trabalho; ao meu pai: Luiz Henrique Sampaio, cuja morte prematura não adulterou as lições aprendidas; ao meu orientador: Ari Fernando Maia, a palavra certa nos momentos de imprecisão; aos meus irmãos: Andrea R. Sampaio e Eduardo de Almeida, fontes inesgotáveis de carinho; aos meus irmãos de coração: Altamir de Almeida e Flávio de Almeida, dois presentes divinos; a todos os familiares, educadores da vida; aos participantes da pesquisa; ao Diretor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Araraquara: Fábio José Justo dos Santos, cuja receptividade abriu- me as portas para dar seguimento à pesquisa; ao Diretor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Matão: Claudemir Mariotti Júnior, amigo que permitiu o “retorno” ao ambiente familiar; aos discentes e docentes do IFSP, pelos ensinamentos; aos meus avós maternos: Eurides Costa Benatti e Waldemar Benatti – in memorian, dois exemplos de perseverança; aos meus avós paternos: Isabel Corteze Sampaio e João Luiz Sampaio – in memorian, exemplos de dedicação; aos meus avós de coração: Eulalia Baptista de Almeida e Altino de Almeida – in memorian, duas pessoas maravilhosas que Deus colocou em meu caminho; aos amigos, em ordem alfabética para evitar hierarquias: Beatriz Zanichelli Sonego; Daniela Kitawa Oyama; Douglas de Magalhães Ferreira; Estéfani Lima Longhini; Gisleine de Fátima Durigan; Jéssica Raquel Rodeguero Stefanuto; Juliana Pires da Silva; Lara Hellen Mendonça Gonçalves; Maria Andrea Armenine Chaine; Maria Luisa Funes; Michele Rodrigues Teixeira; Patricia Helena Schmidt; Wiliam Garcia, seres humanos que deixaram marcas indeléveis nessa pesquisa e me ajudaram a manter a integridade psíquica; ao meu cunhado: Luis Henrique Paccagnella, companheiro de devaneios esclarecedores; aos professores das disciplinas de Doutorado: Prof.ª Dra. Márcia Lopes Reis; Prof. Dr. José Luís Bizelli; Prof. Dr. Luiz Antônio Calmon Nabuco Lastória; Prof. Dr. Sebastião Sousa Lemes; Prof. Dr. Vitor Machado, que ministraram, além das aulas, lições salutares em nossas vidas de estudantes; aos professores da banca examinadora: Profª. Dra. Deborah Christina Antunes, Prof. Dr. Luiz Roberto Gomes, Profª. Dra. Renata Peres Barbosa e Profª. Dra. Sueli Soares dos Santos Batista, pela disponibilidade e colaboração; a todos os mestres que passaram por minha vida; aos alunos do estágio de docência de Ciências Sociais, Letras e Pedagogia; aos colegas da CLAI (Comissão Local de Acessibilidade e Inclusão); ao psicólogo: Marcos Vinicius Bueno Trindade, cujo apoio incondicional nos momentos mais adversos permitiu-me manter o ânimo e o equilíbrio; ao Dr. Wolme Cardoso Alves Neto, relação duradoura, sem a qual certamente eu sequer seria capaz de escrever essas linhas; ao meu amigo e advogado: Dr. Paulo César Talarico, cujo trabalho me propiciou a segurança necessária; ao Grupo de Estudos e Pesquisas Teoria Crítica: Tecnologia, Cultura e Formação (CNPq); à Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão (CPAI). O presente trabalho foi realizado com apoio da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) – Brasil – Código de Financiamento 001. Mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que inteligência precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes a vida será de violência e tudo estará perdido. (Charles Chaplin, O grande ditador, 1940) RESUMO A temática ‘tecnologia’ está presente nos mais variados espaços, no cotidiano e no imaginário popular. Seus sentidos estão relacionados às facilidades e às melhorias que os artefatos técnicos proporcionam. Esse modo reducionista de compreender a realidade tecnológica está presente no ambiente escolar, influenciando os comportamentos e os pensamentos dos docentes, discentes e demais atores escolares. Partindo dessas premissas, nossa tese objetiva: compreender a relação entre tecnologia, política e currículo; verificar como professores da Educação Profissional Tecnológica apreendem e relacionam essas concepções; posicionar o currículo na mesma esfera de análise em que se situam os artefatos técnicos. Realizamos uma Análise de conteúdo de sete entrevistas com docentes, que representam o Curso Técnico em Informática, do IFSP Campus Araraquara e do Curso Técnico em Açúcar e Álcool, do IFSP Campus Matão. Constatamos que os participantes possuem visões similares às expressas no cotidiano não-escolar, as quais sustentam que a tecnologia facilita demandas e promove desenvolvimento social, porém, compreendem haver uma intrínseca relação entre a tecnologia, a política e o currículo. Entendemos que os Institutos pesquisados possuem potencial democrático para a formação, à medida que neles há variedades de concepções políticas. Finalmente, compreendemos o currículo como um artefato técnico, à medida que seu design pode ser democratizado a partir de seus ‘usos’, destarte esse ‘objeto’ é um instrumento político. Palavras-chave: Educação; Educação Profissional Tecnológica; IFSP; Tecnologia; Teoria Crítica. ABSTRACT The theme of ‘technology’ is present in the most varied spaces, in everyday life and in the popular imagination. Its meanings are related to the facilities and improvements that technical artifacts provide. This reductionist way of understanding technological reality is present in the school environment, influencing the behaviors and thoughts of teachers, students and other school actors. Based on these premises, our thesis aims to: understand the relationship between technology, policy and curriculum; verify how teachers of Professional Technological Education understand and relate these concepts; position the curriculum in the same sphere of analysis in which technical artifacts are situated. We conducted a Content Analysis of seven interviews with teachers, who represent the Technical Course in Computer Science, from IFSP Campus Araraquara and the Technical Course in Sugar and Alcohol, from IFSP Campus Matão. We found that the participants have views similar to those expressed in non-school daily life, which maintain that technology facilitates demands and promotes social development, however, they understand that there is an intrinsic relationship between technology, policy and curriculum. We understand that the researched institutes have democratic potential for educational formation, as there are a variety of political conceptions within them. Finally, we understand the curriculum as a technical artifact, as its design can be democratized based on its ‘uses’, thus this ‘object’ is a political instrument. Keywords: Critical Theory; Education; IFSP; Technological Professional Education; Technology. RESUMEN El tema de la ‘tecnología’ está presente en los espacios más variados, en la vida cotidiana y en el imaginario popular. Sus sentidos están relacionados con las facilidades y mejoras que proporcionan los artefactos técnicos. Esta forma reduccionista de entender la realidad tecnológica está presente en el ámbito escolar, influyendo en los comportamientos y pensamientos de docentes, estudiantes y otros actores escolares. Partiendo de estas premisas, nuestra tesis pretende: comprender la relación entre tecnología, política y currículo; verificar cómo los docentes de Educación Profesional Tecnológica comprenden y relacionan estos conceptos; situar el currículo en la misma esfera de análisis en la que se sitúan los artefactos técnicos. Realizamos un Análisis de Contenido de siete entrevistas con docentes, representativos del Curso Técnico en Informática, del IFSP Campus Araraquara y del Curso Técnico en Azúcar y Alcohol, del IFSP Campus Matão. Encontramos que los participantes tienen visiones similares a las expresadas en la vida cotidiana no escolar, que sostienen que la tecnología facilita las demandas y promueve el desarrollo social, sin embargo, entienden que existe una relación intrínseca entre tecnología, política y currículo. Entendemos que los Institutos investigados tienen potencial democrático para la formación, pues contienen una variedad de concepciones políticas. Finalmente, entendemos el currículo como un artefacto técnico, pues su diseño puede democratizarse a partir de sus ‘usos’, siendo por tanto este ‘objeto’ un instrumento político. Palabras-clave: Educación; Educación Profesional Tecnológica; IFSP; Tecnología; Teoría crítica. LISTA DE FIGURAS Figura 1 Distribuição do plantio da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo e valor da produção em Mil Reais 85 Figura 2 Destino dos ex-trabalhadores rurais após processo de mecanização da colheita de cana-de-açúcar em Ituiutaba (MG) 95 Figura 3 Mapa das instituições que compõem a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica 162 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 Cursos técnicos oferecidos pela Rede Federal (por Instituição) 156 Gráfico 2 Cursos técnicos oferecidos pela Rede Federal (por eixo) 157 Gráfico 3 O curso técnico em informática no eixo “Informação e Comunicação” 158 Gráfico 4 O Curso Técnico em Açúcar e Álcool no eixo “Produção Industrial” 160 Gráfico 5 Proporção de cidades abrangidas pela Rede Federal 162 Gráfico 6 Modalidade de atuação dos participantes da pesquisa 195 Gráfico 7 Formação dos professores participantes (quanto à Licenciatura) 196 Gráfico 8 Formação dos professores participantes (quanto à Pós- graduação) 196 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Itinerários Formativos de Aprofundamento 128 Tabela 2 Itinerários Formativos do Novotec expresso 129 Tabela 3 Itinerários Formativos do Novotec (900h) 130 Tabela 4 Os 10 (dez) cursos técnicos mais ofertados pela Rede Federal 161 Tabela 5 Relação entre cidades abrangidas pelo IF e Unidades da Federação 165 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Dez competências gerais segundo a BNCC 135 Quadro 2 Dez novas competências para ensinar 136 Quadro 3 Sete saberes necessários à educação do futuro 145 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANP Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis BNCC Base Nacional Comum Curricular CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CBIOs Créditos de Descarbonização CBO Classificação Brasileira de Ocupações CEFET Centro(s) Federal(is) de Educação Tecnológica CNCT Catálogo Nacional de Cursos Técnicos CNPE Conselho Nacional de Política Energética CONDETUF Conselho Nacional de Dirigentes das Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais COP21 Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas E2G Etanol de segunda geração EaD Educação a distância EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária ENEM Exame Nacional do Ensino Médio EPT Educação Profissional e Tecnológica FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FCL/Ar Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara FIES Fundo de Financiamento Estudantil FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica FUNDEF Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério IA Inteligência Artificial IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFB Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília IFCE Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará IFES Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo IFMA Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão IFMG Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais IFPB Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba IFPI Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí IFRN Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte IFSC Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina IFSP Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IVC Índice de Verticalização LDB Lei de Diretrizes e Bases LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDI Lousa Digital Interativa MEC Ministério da Educação NEA Núcleo Estruturante Articulador NEC Núcleo Estruturante Comum NEM Novo Ensino Médio NET Núcleo Estruturante Tecnológico ODS Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ONU Organização das Nações Unidas PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PEC Projeto de Emenda Complementar PIB Produto Interno Bruto PL Projeto de Lei PNP Plataforma Nilo Peçanha Proálcool Programa Nacional do Álcool Pronatec Programa Nacional de acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego RenovaBio Política Nacional de Biocombustíveis STD Sistema Tecnológico Digital STS Science and Technology Studies [Estudos de Ciência e Tecnologia] TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TDIC Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação TIC Tecnologias da Informação e da Comunicação UFP Universidade Federal da Paraíba UFPI Universidade Federal do Piauí UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco UFSM Universidade Federal de Santa Maria UFTM Universidade Federal do Triângulo Mineiro UFV Universidade Federal de Viçosa UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UTFPR Universidade Tecnológica Federal do Paraná 18 SUMÁRIO PREÂMBULO .............................................................................................................. 19 1 APRESENTAÇÃO DOS ELEMENTOS ESSENCIAIS DA TESE ...................................... 21 2 SOBRE O MÉTODO: DO CARTESIANISMO À TEORIA CRÍTICA................................. 31 2.1 ASPECTOS QUANTITATIVOS DA PESQUISA ........................................................................ 37 2.2 ASPECTOS QUALITATIVOS DA PESQUISA .......................................................................... 38 2.2.1 Entrevistas ............................................................................................................... 38 2.2.2 Da ideia de transcrição à prática da transcriação ................................................... 44 2.2.3 Análise de conteúdo ................................................................................................. 45 2.3 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ........................................................................... 47 3 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: APROXIMAÇÃO DO OBJETO ....................................... 58 3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO NO BRASIL ................................................ 58 3.2 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: TRABALHO, POLITECNIA E VERTICALIZAÇÃO ................................. 59 3.2.1 Conceituando trabalho ............................................................................................. 60 3.2.2 O ideal de politecnia ................................................................................................ 65 3.2.3 A verticalização do ensino como política .................................................................. 73 3.3 TECNOLOGIAS DE AÇÚCAR E ÁLCOOL NO BRASIL .............................................................. 84 3.3.1 O Curso Técnico em Açúcar e Álcool no CNCT ......................................................... 99 3.4 TECNOLOGIAS DIGITAIS NO CONTEXTO ATUAL ................................................................ 101 3.4.1 O Curso Técnico em Informática no CNCT ............................................................. 112 3.5 O ‘NOVO’ ENSINO MÉDIO REGULAMENTADO PELA LEI N.º 13.415/2017 ............................ 117 3.6 REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA ....................... 155 3.7 INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA ........................................... 164 4 CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS DE ANDREW FEENBERG À FORMAÇÃO ..................... 170 4.1 O ARTEFATO CURRICULAR: UMA ABORDAGEM FEENBERGUIANA ......................................... 176 4.2 TEORIAS CURRICULARES HODIERNAS ........................................................................... 184 4.3 REFORMAS DO DESIGN EDUCACIONAL NO BRASIL ........................................................... 191 5 AS ENTREVISTAS COM PROFESSORES DO IFSP ................................................... 194 5.1 CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA ....................................................... 195 5.2 ANALISANDO OS CONTEÚDOS DAS ENTREVISTAS ............................................................. 197 5.2.1 Professor α (alfa) .................................................................................................... 197 5.2.2 Professor β (beta) ................................................................................................... 201 5.2.3 Professor γ (gama) .................................................................................................. 203 5.2.4 Professor δ (delta) .................................................................................................. 206 5.2.5 Professor ε (épsilon) ............................................................................................... 209 5.2.6 Professor ζ (dzeta) .................................................................................................. 212 5.2.7 Professor η (eta) ..................................................................................................... 215 6 DISCUTINDO CATEGORIAS E CONCEPÇÕES ......................................................... 218 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 231 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 234 GLOSSÁRIO .............................................................................................................. 247 REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES ......................................................................... 251 APÊNDICES .............................................................................................................. 257 APÊNDICE A — CURSOS TÉCNICOS OFERTADOS PELA REDE FEDERAL .................................. 258 APÊNDICE B — TRANSCRIAÇÕES DAS ENTREVISTAS .......................................................... 264 19 PREÂMBULO O meu interesse pela expressão ‘tecnologia’ surgiu durante o período em que atuei como psicólogo escolar no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, no Campus Matão. Nessa instituição, fiz amigos com os quais discuti o assunto das mais variadas formas, compreendendo haver divergências relacionadas mais a questões políticas que técnicas. Destarte, em minha mente, surgiram diversas questões: existiria uma relação estreita entre tecnologia e política? Especialistas estão mais aptos a discutir tecnologia? Os alunos de cursos técnicos de Ensino Médio compreendem a dimensão política envolvida na ‘simples utilização’ de aparatos tecnológicos? Afinal, o que seria a tecnologia? Visando aprofundar meus conhecimentos, recebendo apoio institucional do IFSP – redução da jornada de trabalho e auxílio financeiro –, matriculei-me no programa de mestrado em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Araraquara, na linha de pesquisa Teorias pedagógicas, trabalho educativo e sociedade. Nesses anos, iniciei minha aproximação dessa que é uma das temáticas mais complexas da atualidade: a tecnologia. Minha dissertação, intitulada “A escola e as tecnologias digitais: aspectos políticos e ideológicos em teses de doutorado a partir da Teoria Crítica da Tecnologia”, realizada a partir de uma análise documental de teses defendidas em universidades estaduais paulistas entre 2014 e 2018, permitiu-me compreender que posturas adotadas diante do tema envolvem ideologias. A pesquisa foi transformada em artigo científico, publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, com o título: “A Teoria Crítica da Tecnologia de Andrew Feenberg: reflexões sobre a inserção de novos elementos tecnológicos no ambiente escolar” (Sampaio Junior, 2022a). Conviver com pessoas de instituições bastante distintas como o IFSP e a UNESP, permitiu-me refletir sobre o processo social denominado tecnologia e a política. Essa compreensão se deu essencialmente a partir de leituras de teóricos críticos brasileiros, além de estrangeiros, como Herbert Marcuse e Andrew Feenberg, somadas às observações e aos diálogos com servidores, 20 alunos, pais de alunos e professores. Fazer parte do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia ressaltou as contradições e, ademais, aumentou os meus questionamentos sobre o que seria essa entidade ubíqua denominada tecnologia. Apartado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, matriculei-me no programa de doutorado Stricto sensu em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Araraquara, na linha de pesquisa Teorias pedagógicas, trabalho educativo e sociedade, com apoio do CNPQ, através da Bolsa Capes/DS, oportunizando-me experiências como estágios de docência, fixação de residência em Araraquara e apoio financeiro, o que resultou na tese que apresentamos a seguir: 21 1 APRESENTAÇÃO DOS ELEMENTOS ESSENCIAIS DA TESE arte sf. ‘engano, malícia’ ‘conjunto de preceitos para a execução de qualquer coisa’ XII. Do lat. ars, artis | artefacto adj. sm. Do lat. art factus ‘feito com arte’ (Cunha, 2010, p. 60). Na contemporaneidade, não há como se esquivar da ubiquidade do termo tecnologia. Seu uso é irrefreado, seja nos reclames televisivos, nos anúncios publicitários da Internet, ou na linguagem vulgar cotidiana. Seu sentido está relacionado com as facilidades e as melhorias que os aparatos proporcionam: diminuindo as distâncias físicas, favorecendo a comunicação e rompendo as barreiras. Essa concepção não deve ser considerada errônea per se, mas há de se destacar que se trata de uma visão limitada. Adotaremos uma diferenciação entre o vocábulo tecnologia, no singular, e tecnologias, no plural: o primeiro se refere a um processo social que subjaz as relações humanas; o segundo, aos aparatos, às ferramentas que ampliam braços, olhos, membros e órgãos do ser humano. Essa diferenciação deve ser compreendida como didática, tendo-se em vista que não há tecnologia sem os instrumentos que ampliam o campo de atuação dos seres humanos, como não se podem conceber as tecnologias isoladas de um conjunto de ações sociais que as produziram e que as mantêm ativas no cotidiano. Deter-nos-emos à noção de tecnologia, compreendendo-a como processo social indissociável da categoria trabalho (Marx, 1867/2017). A discussão sobre a Educação passa pela contradição entre a formação para a democracia e a preparação para o trabalho. De acordo com Marcuse (19991): A tecnologia, como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação (Marcuse, 1999, p. 73). 1 Os textos reunidos por Douglas Kellner em Tecnologia, guerra e fascismo são post mortem e foram publicados, no Brasil, no ano de 1999. 22 Mesmo considerando os aspectos facilitadores das tecnologias em nossa vida cotidiana, Marcuse (1999) nos ajuda a pensar que a tecnologia resulta na administração, na vigilância, no controle e na dominação dos indivíduos. Essa dominação se expressa nos usos que fazemos dos aparatos que temos disponíveis. Ainda que acreditemos que um smartphone – por exemplo – proporcione grande liberdade, visto que podemos nos comunicar a longas distâncias, chamar um Uber, encomendar uma pizza, pagar as contas do banco etc., raramente conseguimos constatar que o nosso comportamento é pré-determinado pelos códigos técnicos dessa ferramenta. De acordo com Feenberg (1999, 2002, 2017), o design e a tecnologia estão imbricados: os objetos e os espaços são delineados por grupos específicos traduz pensamentos, comportamentos e gera modos de vida. Por exemplo, o modelo adotado pelas primeiras escolas consistia em grandes construções divididas em salas de aula, dentro das quais os alunos deveriam se sentar enfileirados e se posicionar diante da figura do professor, cuja função era transmitir conteúdos e disciplina; quase sempre, essa mesma instituição possuía um pátio com visão panóptica a partir da qual os dirigentes poderiam controlar até mesmo o que os escolares fizessem em seu intervalo. A configuração do sistema escolar guiou-se, como atesta Feenberg (1999), a partir da política de expulsão das crianças do ambiente fabril. Todavia, esse deslocamento da fábrica para os assentos escolares possuía a nítida intenção dos proprietários das indústrias em promover aos futuros trabalhadores um ambiente disciplinador, de tal maneira, que quando adviesse a idade adulta, tornassem-se produtivos e obedientes. Ademais, a expulsão torna as crianças potenciais consumidores, elemento que interessava ao comércio. Mas se é assim, então a tecnologia certamente deve possuir implicações políticas. Em geral, escolhas técnicas específicas, em vez de progresso propriamente dito, estariam envolvidas no desmantelamento do trabalho, na degradação da cultura de massas, e na burocratização da sociedade (Feenberg, 1999, p. 11, tradução nossa)2. 2 But if this is so, then technology must surely have political implications. In particular, specific technical choices rather than progress as such would be involved in the deskilling of work, the debasement of mass culture, and the bureaucratization of society” (Feenberg, 1999, p. 11). 23 As proposições extrapolam a consideração de que tecnologia é política, e nos alertam para o desmantelamento do trabalho, anteriormente realizado por artesãos, e convertido em trabalho alienado, em um modo de produção que transformou os membros e os demais órgãos dos sujeitos em extensão da maquinaria (Marx, 1867/2017). Essa reflexão nos ajuda a compreender a formulação de Feenberg (2002) sobre a importância de concebermos novos designs, devido à necessidade de compreender e estabelecer maior controle dos códigos técnicos. O design nos coloca diante do seguinte problema quanto à Teoria Crítica da Tecnologia: Essa teoria traça um caminho árduo entre resignação e utopia. Analisa as novas formas de opressão associadas à sociedade moderna e argumenta que elas estão sujeitas a novos desafios. Mas, tendo renunciado à ilusão de uma mudança civilizacional patrocinada pelo Estado, a Teoria Crítica deve se envolver mais diretamente com a questão da tecnologia do que é habitual nas humanidades. Deve atravessar a barreira cultural que separa a herança da intelectualidade radical do mundo contemporâneo da especialização técnica e explicar como a tecnologia moderna pode ser redesenhada para adaptá-la às necessidades de uma sociedade mais livre. (Feenberg, 2002, p. 13, tradução nossa)3. Temos, por um lado, uma tecnologia cada vez mais pervasiva e capaz de controlar o comportamento dos sujeitos, tanto em seu ambiente de trabalho, quanto em seus momentos de lazer e de consumo; por outro, a expectativa de que, por meio das tecnologias, os seres humanos poderiam se expressar e se rebelar. A barreira cultural a que o autor se refere diz respeito à opacidade dos aparatos: usuários enxergam instrumentos tecnológicos como entidades neutras, destituídas de valor político. Na Revolução Industrial, período em que crianças trabalhavam nas indústrias, havia martelos de diferentes tamanhos, 3 This theory charts a difficult course between resignation and utopia. It analyzes the new forms of oppression associated with modern society and argues that they are subject to new challenges. But, having renounced the illusion of state-sponsored civilizational change, critical theory must engage far more directly with the question of technology than is customary in the humanities. It must cross the cultural barrier that separates the heritage of the radical intelligentsia from the contemporary world of technical expertise and explain how modern technology can be redesigned to adapt it to the needs of a freer society (Feenberg, 2002, p. 13). 24 pesos e formatos que permitiam seu uso por mãos pequenas e menos hábeis. Como o martelo, cada instrumento tecnológico possui um design que, explícita ou implicitamente, dita suas regras, as quais sempre podem ser extrapoladas, por exemplo, um martelo pode ser utilizado como enfeite, peso de escritório, símbolo ou outra função ‘não programada’. O problema é que, em geral, o usuário está diante de uma caixa-preta (Flusser, 1983/2009) e não compreende as relações políticas que implicam sua utilização. Em outras circunstâncias, os usuários possuem uma relativa consciência dos impactos causados pelas tecnologias, entretanto, o fetiche que estas exercem se sobrepõe à realidade, de modo que o comportamento se sobrepõe a uma ética de convivência intersubjetiva e ambiental (Marcuse, 1964/2015). O movimento de mobilização permanente em defesa da tecnologia, típico duma sociedade unidimensional, desconhece ou finge não reconhecer os fatores que a conduzem ao próprio aniquilamento. A racionalidade instrumental se presentifica nas relações humanas de todo tipo, obnubilando nosso entendimento e fazendo-nos crer que o domínio dos objetos e das pessoas é inevitável. O domínio da natureza é uma ilusão proporcionada pela relação com os aparatos, os quais ‘nos conferem poderes divinos’, fazendo-nos pensar que podemos dobrar o mundo que nos cerca e manipulá-lo de acordo com nossos desejos. Nossa existência implica um constante ‘metabolismo com a natureza’, destarte toda ação humana o afeta e, dessa forma, retorna aos seus agentes. Porém, os pequenos feedbacks que recebemos diariamente não permitem que compreendamos os reais impactos proporcionados (Feenberg, 2017). Quando pedimos uma comida oriental no final de semana, por meio de um aplicativo do smartphone, não percebemos que estamos construindo novas tradições. O ato pode parecer ‘natural’, todavia jantares em família nos finais de semana estão sendo modificados e o lixo produzido não fica à nossa vista, nem vislumbramos o que se perde por não sabermos nada sobre nossos fornecedores e como eles trabalham. De acordo com Feenberg (2017), a partir da esfera da experiência, vicejam protestos e resistências, assim novos designs podem ser constituídos a partir de contestações, hackeamentos ou manifestações. O risco consiste no fato de 25 que tais expressões podem ser englobadas pelo sistema, pervertendo a lógica contestadora em prol de uma readaptação eficiente ao status quo, como a grife de marca que vende roupas do estilo hippie para crianças da elite. A nova geração se depara com a finitude, produzida pelas notícias sobre o aquecimento global, a acidificação dos oceanos, o esgotamento dos recursos naturais etc. Assim, a crença numa Ciência capaz de equacionar os problemas da humanidade se liquefaz: a luta por um meio-ambiente mais sustentável, em um contexto em que vigora a incapacidade política de frear as causas da degradação é prova desse argumento. A escola é ambiente salutar para a construção de novos paradigmas, já que é nesse local que crianças e jovens acessam os conhecimentos culturais, científicos e artísticos, de modo a reconstruí-los e subvertê-los. Kant (1784/2011), responde à questão sobre o esclarecimento: Esclarecimento é a saída do ser humano de sua menoridade, menoridade essa da qual ele se inseriu por sua própria culpa. Menoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a condução de outrem (Kant, 1784/2011, p. 23). Essa assertiva possui implicações diretas para a Educação. Dever-se-ia educar os homens com vistas à sua emancipação, no caso, emancipação das ideias religiosas, em primeiro lugar, e emancipação de preceitos e fórmulas mecânicas, em segundo lugar. Pressupunha-se um tipo de educação para a liberdade. Seria necessário que homens mais experientes se incumbissem da tarefa de educar as crianças e os jovens. “Um dos maiores problemas da educação é saber como se pode unir a sujeição sob a coacção de leis com a capacidade de se servir da sua liberdade. Pois é necessário que haja coacção” (Kant, 1803/2019, p. 23-24). De algum modo, o currículo representa essa relação entre coação e liberdade, a qual visa a constituição da autonomia do indivíduo, ou seja, um estado em que as leis são introjetadas a partir da própria razão, orientando uma vontade virtuosa, obediente ao imperativo categórico. Em sentido kantiano, a liberdade provém da possibilidade de aprender coisas relevantes, incluindo autocontrole. Mais do que roteiros, os currículos 26 possuem em si política. Zamora (2018b) nos ajuda a refletir acerca da dialética essencial da Pedagogia: a formação para a cidadania em oposição à construção de habilidades que constituem o “capital humano”, ou seja, competências exigidas pelo mercado de trabalho. No artigo Entre “cidadania” e “capital humano”: a dialética da modernidade, realiza um apanhado histórico que diferencia a educação da burguesia e do cidadão; discute novas formas de trabalho e de subjetivação, implicando modos de enxergar a realidade atual sob o prisma da objetividade e da funcionalidade, denunciando a perda do ‘valor’ da educação, com a desvalorização de disciplinas que não se prestam à produção de bens úteis ao capital, ou seja, as que não se adaptam aos novos tempos. Corroborando essas proposições e avançando nas questões políticas, Gomes (2010) menciona: A política, enquanto dimensão vital da sociedade, que compunha a essência da Paideia grega e do ideário moderno de Bildung, encontra-se hoje eclipsada no interior de uma concepção de sociedade em que impera, de forma reducionista, a dimensão administrativa e gerencial da política (Gomes, 2010, p. 198). Esse giro pela dialética da modernidade, que abarca uma relação entre a cidadania e o capital humano (Zamora, 2018b), somado ao entendimento de que a educação atual está pautada na administração e no gerenciamento das políticas, não mais no ideal de Paideia ou de Bildung (Gomes, 2010), nos faz refletir sobre dois princípios defendidos por Aristóteles e Platão: a vida boa e o rei-filósofo, respectivamente. A compreensão de vida boa (Aristóteles,  400 a.C./2020) está em pauta: a busca pela excelência no trabalho, local em que o cidadão ateniense deveria realizar sua função com proficiência, visando a um bem maior: ao bem dos cidadãos da polis. A reflexão platônica de que nem todos podem ser filósofos se atualiza nesse caldeirão de ideais, ressalvando-se que o constructo rei-filósofo requer cautela, correndo-se o risco de utilizá-lo em favor de doutrinas de caráter conservador. Segundo o pensador grego: — E, as diferentes formas de governo fazem leis democráticas, aristocráticas ou tirânicas tendo em vista os seus respectivos interesses. E, ao estabelecer essas leis, mostram os que 27 mandam que é justo para os governados o que a eles convém, e aos que delas se afastam castigam como violadores das leis e da justiça. É isso o que quero dizer quando afirmo que em todos os Estados rege o mesmo princípio de justiça: o interesse do governo. E, como devemos supor que o governo é quem tem o poder, a única conclusão razoável é que em toda parte só existe um princípio de justiça: o interesse do mais forte (Platão,  400 a.C./20184, p. 26). Se o governo em um Estado democrático deve representar sua população, o ideal de formação dos cidadãos deve estar além da realidade objetiva, num sentido teleológico; de outro modo, não haveria espaço para idealizar as obras humanas, tampouco razão para a vida. Em um sentido anacrônico, o trabalho alienado deveria ser abolido. De acordo com o Grupo Krisis (1999), a abolição dessa modalidade não implicaria o colapso, pelo contrário, todas as atividades essenciais da existência permaneceriam, porém de modo mais harmonioso: a relação entre os homens e entre esses e a Natureza atingiria patamares jamais imaginados e a noção de trabalho se modificaria em prol de uma vida mais digna a todos. É necessário discutirmos a formação das pessoas, todavia a radicalidade conceitual implica a oposição de ideias a respeito da manutenção do trabalho esvaziado de sentido e a compreensão da necessidade de abolição do trabalho alienado (Grupo Krisis, 1999), tema abordado no capítulo sexto. O questionamento é a organização da sociedade hodierna, a qual está dividida entre exploradores e explorados, gerando: de um lado, o trabalho intelectual, nobre e valorizado; de outro, o trabalho manual, substituível por instrumentos técnicos, conduzindo milhares de trabalhadores à miséria. Encontramos em Simondon (1958/2020) uma discussão pertinente a respeito da relação entre os seres humanos e os objetos técnicos, os quais se incorporaram à cultura e são indispensáveis quando o assunto é a Filosofia da Tecnologia. Simondon (1958/2020) menciona que o platonismo teria causado uma cisão na relação entre trabalho manual e intelectual, posicionando o primeiro como inferior ao segundo, o que teria gerado ojeriza no tocante às atividades 4 Platão viveu em Atenas entre 428/427a.C e 348/347a.C. Foi fundador da Academia, a primeira instituição de nível superior do Ocidente. Sua obra A República é uma referência quando se discutem questões gerais acerca do pensamento político (Platão,  400 a.C./2018, pp. 7-8). 28 exercidas por trabalhadores não intelectualizados. Segundo o autor, o marxismo reaproximou o trabalhador de suas funções, assumindo ideais politécnicos, ou seja, compreendendo que os trabalhos manuais humanos envolvem, necessariamente, grande quantidade de intelectualidade, i.e., o trabalho seria uma categoria humana genérica. Por exemplo, por mais que possa realizar um castor, jamais essa espécie animal seria capaz de construir os diques que sustentam os Países Baixos. Questionavam-se no período clássico se todo cidadão precisaria se tornar filósofo. Haveria papéis na sociedade que poderiam ser exercidos dignamente? Essa discussão traz à baila questionamentos essenciais sobre o modelo que queremos adotar para formar os jovens de nossa época, todavia está marcada por contradições. Sabemos que atualmente a média dos salários das pessoas que possuem nível superior está superestimada com relação à média dos salários de pessoas que mal conseguiram atingir o Ensino Médio. Destarte, se imaginarmos uma sociedade em que o salário do médico, do engenheiro e do bacharel em Direito se equipara – para cima – com o salário do Técnico em Açúcar e Álcool, do Técnico em Informática etc. e cada profissional exercesse com excelência a sua função na sociedade, desde que as condições de vida e de existência fossem razoáveis, poder-se-ia pensar em currículos cujas metas estariam relacionadas à humanização dos alunos. Porém, na mesma medida que o capital valoriza aquilo que é mais vendável, impõe a exploração de mais valor de todas as atividades, submetendo a classe trabalhadora aos desígnios da classe dominante. A questão é que essa submissão tem ocorrido de maneira cada vez mais explícita. O problema é que os explorados e os expropriados não têm alternativa e, de suas perspectivas, aceitam as contrariedades desse modo de existência para garantirem seu sustento. No seio dessa discussão, visando entender se as tecnologias têm política e se estamos em uma sociedade em que elas cumprem papéis de justificar a dominação, analisamos a Educação Profissional Tecnológica e se a dimensão política dos artefatos técnicos é explicitada. Com esse intuito, entrevistamos sete professores do Ensino Médio de dois cursos técnicos: Açúcar e Álcool e Informática, de dois Campi do IFSP – Matão e Araraquara, respectivamente. Visamos analisar suas apreensões do conceito ‘tecnologia’ e suas opiniões a 29 respeito de política e currículo. Utilizamos a técnica Análise de conteúdo, com o mínimo auxílio de Inteligência Artificial5. Consideramos que a formação profissional é um tema relevante, o qual há muitos anos está em pauta, tanto nos meios políticos profissionais quanto nos ambientes escolares, nesse sentido, nada mais justo do que dar voz aos professores. Dando sequência à reflexão sobre a formação dos estudantes de cursos técnicos profissionalizantes em nosso país e em outras nações democráticas, encontramos em Zamora (2018a) uma contribuição importante no que tange às contradições dessa formação profissional: Ao mesmo tempo, e sem solução de continuidade, denunciam- se a situação calamitosa das instituições educativas, suas insuficiências, seu anacronismo e seu fracasso, tanto na capacitação para o desempenho laboral ou profissional como para o exercício de uma cidadania ativa (Zamora, 2018a, p. 17, tradução nossa)6. Essa discussão nos faz refletir sobre o futuro da Pedagogia e os destinos que desejamos empreender. A construção da cidadania ativa dos discentes se assenta sobre os princípios que são ensinados na escola, mas também pelas vivências que esses atores educacionais têm na vida cotidiana. Encontramos em Prioste (2019) uma reflexão segura a tal respeito: Ao propor uma pedagogia libertadora, precisamos, em primeiro lugar, questionar: libertação de quem e para quê? Não podemos pensar em uma pedagogia libertadora sem compreensão dos novos mecanismos de escravidão psicológica televisiva e digital, que tantas vezes estimulam impulsos arcaicos e narcisistas do indivíduo. Tampouco podemos pensar em educação libertadora sem levar em conta as mudanças das escolas e dos discursos pedagógicos que sustentam desigualdades (Prioste, 2019, p. 23, tradução nossa)7. 5 A Análise de conteúdo das sete entrevistas foi realizada sem o auxílio de aplicativos, porém, a transcriação requereu o uso do TurboScribe (2024) e das ferramentas do Microsoft Word. 6 Al mismo tiempo y sin solución de continuidad, se denuncia la calamitosa situación de las instituciones educativas, sus insuficiencias, su anacronismo y su fracaso tanto em la capacitación para el desempeño laboral o professional como para el ejercicio de una ciudadanía activa (Zamora, 2018a, p. 17). 7 Al proponer una pedagogía liberadora, necesitamos en primer lugar cuestionar: ¿liberación de quién y para qué? No podemos pensar en una pedagogia liberadora sin la comprensión de los nuevos mecanismos de esclavitud psicológica televisiva y digital, que a menudo estimulan los impulsos arcaicos y narcisistas del individuo. Tampoco podemos pensar en una educación 30 Essas proposições são complementares ao contexto histórico averiguado por Feenberg (1999, 2002, 2017), em que a tecnologia influencia pensamentos e altera os modos de vida. O IFSP é um terreno fértil para o florescimento de ideias sobre a dialética entre formação para o mercado de trabalho e busca por uma cidadania ativa, discussão importante em um programa de doutorado sobre Educação Escolar. No tocante à organização de nossa tese, após esse capítulo introdutório, realizamos, no capítulo 2, uma discussão sobre o método, partindo de René Descartes e de sua relevância entre os clássicos da Teoria Crítica. No capítulo 3, aproximamo-nos de nosso objeto: a Educação Profissional. No capítulo 4, defendemos que o currículo é um artefato curricular, a partir das contribuições críticas de Andrew Feenberg. No capítulo 5, analisamos sete entrevistas que realizamos com professores do IFSP de Araraquara e de Matão. No capítulo 6, confrontamos conteúdos e concepções sobre tecnologia, política e currículo. No capítulo 7, realizamos as considerações finais. liberadora sin levar em cuenta los cambios de las escuelas y los discursos pedagógicos que sustentan las desigualdades (Prioste, 2019, p. 23). 31 2 SOBRE O MÉTODO: DO CARTESIANISMO À TEORIA CRÍTICA Método sm. ‘ordem que se segue na investigação da verdade, no estudo de uma ciência ou para alcançar um fim determinado’ XVI. Do lat. tard. methŏdus e, este, do gr. méthodos, de meta- e hodós ‘via, caminho’, já no sentido de investigação científica’ (Cunha, 2010, p. 424). O percurso metodológico nas ciências humanas e sociais é desafiador, provavelmente mais do que nas outras ciências. Certamente, a contribuição de um pesquisador que analisa o genoma de uma bactéria representa algo socialmente relevante, porém, parte de métodos distintos dos propostos em nossa investigação. Nossa metodologia requer uma maior atenção, de modo que precisamos dedicar a ela um espaço maior. A compreensão etimológica nos norteia, indicando que investigações científicas seguem um caminho, uma via. Essa proposição nos permite questionar: por onde começar? Iniciar essa discussão partindo da Idade Moderna parece razoável, principalmente se se compreende que René Descartes ainda é lido, discutido e reeditado. Leitura obrigatória em diversos cursos, o Discurso do Método (Descartes, 1637/2001), gera reflexões, conflitos e confusões. Enquanto uma minoria de privilegiados têm acesso ao original, a maior parte dos estudantes, mesmo diante de uma boa tradução, não consegue percorrer a trajetória proposta por seu autor. Embora a obra seja fundamental a todo pesquisador, quer seja das chamadas ciências duras, quer seja das ciências sociais, cada vez mais tem sido relegada a segundo plano, especialmente pelas críticas sobre seu caráter especulativo. Mas, é necessário retomar Descartes? Ademais, é congruente iniciar uma explanação sobre cartesianismo diante de uma pesquisa sobre Teoria Crítica, onde imperam os princípios da dialética? Nossa tentativa de resposta se encontra no início do texto de Descartes (1637/2001), quando o filósofo questiona a noção de bom senso. Em nossa busca obstinada por uma postura dialética, distanciamo-nos da natureza da pesquisa e nos assemelhamos aos parnasianos, tão apegados à forma que esquecemos da essência. Necessário se faz assumir que ao lidarmos com a temática da tecnologia, deparar-nos-emos com princípios de lógica formal e deveremos compreender suas nuanças para que possamos conduzir os 32 pensamentos a uma síntese compreensível, lógica e coerente com os objetivos. Vale recordar a proposição de Eco (2015, p. 176): “Mesmo o mais encarniçado dos adversários pode sugerir-nos ideias”. Compreender o caminho entre autores cuja argumentação passa pela lógica formal e por pensadores cuja estrutura conceitual se situa em torno da dialética nos permite admitir que o fenômeno tecnologia é deveras complexo, requerendo lucidez dos pesquisadores que se aventuram nessa temática. Há uma infinidade de material produzido nessa área, de tal maneira que a escolha por um recorte se faz premente. Uma tese de doutoramento segue protocolos no tocante à utilização do tempo, os quais são regidos por um sistema próprio, inseridos no modo de produção capitalista. As contribuições dessa pesquisa serão limitadas; espera-se que auxiliem nas reflexões dentro do ambiente acadêmico, mas também fora dele, afinal “A VIDA COTIDIANA é a vida de todo homem” (Heller, 1970/2016, p. 35). A tecnologia se apresenta em sua onipresença, onipotência e onisciência. Já não é possível separar a natureza daquilo que foi constituído artificialmente por esforços coletivos. O ser biológico e a existência espiritual se imiscuem em uma realidade dominada por algoritmos que controlam os pensamentos e comportamentos humanos (O’Neil, 2016). Vale destacar que algoritmos são criações humanas, ou seja, exigem uma programação que requer um traçado do input ao output. Essa discussão é interessante, porém, para investigarmos um fenômeno como a tecnologia, faz-se necessária a adoção de um método. De onde deriva o questionamento: qual o método mais adequado? Há variadas maneiras de responder à questão, todavia, parece-nos interessante realizar digressões. Nas palavras do pensador Luria (1974/2008): “A convicção de que a autoconsciência é primária, fundamentou a máxima de Descartes, cogito ergo sum” (p. 193). É inegável a pertinência das contribuições de Descartes ao desenvolvimento da ciência ocidental, de tal modo que retomar alguns de seus princípios é salutar. Um primeiro ponto diz respeito ao modo de exercermos nossa dúvida: (1) Duvidar não é apenas importante, é essencial para toda e qualquer investigação cuja meta é a busca da verdade; deixemos de lado, por instantes, a questão da verdade como instância atingível e partamos para o segundo princípio cartesiano. (2) É necessário analisar parte por parte para 33 termos clareza do problema que se apresenta; ignoremos, por hora, todas as críticas à visão fragmentada da ciência e continuemos: é fundamental que organizemos e reorganizemos os nossos pensamentos quando estamos diante da investigação. (3) É cabal que nos direcionemos dos raciocínios mais simples aos mais complexos, de maneira que não apenas as nossas conclusões façam sentido, mas o percurso seja viável (Descartes, 1637/2001). Os princípios cartesianos relacionam-se ao idealismo do método, como se houvesse uma via precisa capaz de conduzir à verdade. Tratar de método também significa mencionar a relação entre sujeito e objeto, o que pressupõe a consciência do pesquisador. Assim, enquanto “os filósofos e psicólogos idealistas têm afirmado que a autoconsciência é uma propriedade fundamental e irredutível da vida mental, sem história própria” (Luria, 1974/2008, p. 193), os teóricos críticos têm reafirmado que há uma realidade material anterior ao nascimento de qualquer pesquisador, a qual delimita as fronteiras de seu pensamento. Qualquer que seja o método escolhido, é necessário, para os pensadores críticos, a ênfase na primazia do objeto. Destarte, analisamos as relações entre tecnologia, política e currículo a partir dos discursos de professores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo de 2 (dois) Campus distintos: Araraquara e Matão – especificamente os que ministram no Curso Técnico em Informática e Curso Técnico em Açúcar e Álcool –, o que não esgota o objeto, nem é necessariamente um ponto de partida. Os dados empíricos oriundos das entrevistas são um apoio e uma forma de ouvir quem participa diretamente da formação de técnicos. No que tange à especificidade de nosso objeto, há de se pensar que discentes experienciam o cotidiano dos institutos de ensino. Realizamos as entrevistas com os docentes do instituto, adotando como contraponto a dialética. De acordo com Adorno (1966/2009): “aquela parte da verdade que pode ser alcançada por meio dos conceitos, apesar de sua abrangência abstrata, não pode ter nenhum outro cenário senão aquilo que o conceito reprime, despreza, rejeita” (p. 17). Enquanto a ciência formal se limita ao que se pode descobrir por meio do método, a dialética considera a necessidade de se pensar, por meio de conceitos, também o não conceitual, o que escapa à pretensão de totalidade. 34 Vale frisar que para empreender uma pesquisa científica se carece não apenas de um método, mas também da compreensão das regras e princípios que norteiam a atividade dos demais pesquisadores que atuam no mesmo campo. Kuhn (1962/2018) sintetiza: “Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica” (p. 72). Nosso problema é sugerido pela Teoria Crítica da Tecnologia, porém nosso alvo não consiste em um conjunto de aparatos, mas na compreensão a respeito da educação técnica, destarte nossa pesquisa é sustentada pela Teoria Crítica da Sociedade. Nesse sentido, a exposição de divergências e contradições representa per se uma contribuição para o debate acadêmico. Antunes (2014) menciona que: “as contradições não devem ser ignoradas, mas desenvolvidas” (p. 146). Os positivistas se vangloriam do empirismo e da obtenção da ‘verdade científica’ a partir da experimentação. Essa realidade é verificada por meio de instrumentos que enclausuram o pesquisador: um tipo de círculo vicioso que aproxima a ciência do mito. Ao se arriscarem diante da tautologia evitam o aprofundamento em questões que o raciocínio filosófico poderia contribuir. De acordo com Horkheimer (1947/2015): A filosofia deve formular o conceito de ciência de um modo que expresse a resistência humana à recaída ameaçadora na mitologia e na loucura, em vez de estimular essa recaída formalizando a ciência e conformando-a às exigências da prática existente (Horkheimer, 1947/2015, p. 90). A proposição horkheimeriana nos posiciona diante de uma contradição, a qual pode ser expressa pela pergunta: como lidar com documentos oficiais e manter um posicionamento que não opaque nossa capacidade de pensar? É possível e necessário utilizarmos os dados produzidos pelos pesquisadores das áreas de ciência e tecnologia na atualidade? Para Horkheimer (1947/2015): “Teorias encarnando visões críticas de processos históricos, quando usadas como panaceias, transformam-se frequentemente em doutrinas repressoras” (pp. 181-182). Ressaltamos a importância do método dialético, não como forma de obter “a” verdade, mas sim como um meio de desvelar inclusive as inverdades inevitáveis de qualquer pesquisa científica. 35 Esse posicionamento nos coloca diante do problema da incompletude de qualquer investigação e, ao revelar contradições, permite-nos compreender que as soluções que apazíguam as angústias e incertezas da existência humana constituem utopias que servem à manutenção de um modo de produção que danifica dos recursos naturais às subjetividades. “A dialética revela, ao contrário, toda imagem como uma forma de escrita. Ela ensina a ler em seus traços a confissão de sua falsidade, confissão essa que a priva de seu poder e o transfere para a verdade” (Adorno e Horkheimer, 1944/1985, p. 32). Enquanto os positivistas coletam dados para ‘provar a realidade’, os autores dialéticos contrapõem imagens que comprovam suas limitadas perspectivas de explicação do mundo. Ao discorrer sobre a normatização das ciências que se embasam na matemática, Adorno e Horkheimer (1944/1985) mencionam que essa postura: “tem por preço a subordinação obediente da razão ao imediatamente dado” (p. 34). O pesquisador que se propõe a uma compreensão crítica dos fenômenos precisa se manter atento às mediações, resguardando-se das compreensões limitadoras e unificadoras do pensamento científico. De acordo com Adorno e Horkheimer (1944/1985): “Se a única norma que resta para a teoria é o ideal da ciência unificada, então a práxis tem de sucumbir ao processo irreprimível da história universal” (p. 37). Deve-se atentar para as relações entre o objeto analisado e sua inserção nos processos históricos. Na Teoria Crítica, contextualização é parte integrante do método, devendo ir além da simples descrição do contexto a que o objeto está inserido. Nas palavras de Antunes (2014): As questões das pesquisas seriam tais como apurar [...] as conexões entre seu papel no processo econômico, as transformações das estruturas psíquicas de seus membros, e as instituições e pensamentos que agem sobre ele ao mesmo tempo em que são seus produtos (Antunes, 2014, p. 30). Diversos pesquisadores têm se debruçado, há décadas, sobre a temática da tecnologia e dos cursos técnicos de educação profissional oferecidos no Ensino Médio, de tal modo que a compreensão de aspectos pertinentes desses últimos, se mostram viáveis, todavia, um refinamento do método é essencial. 36 Julgamos fundamental a primazia do objeto, uma concepção bastante cara à Teoria Crítica e que ajuda a nortear o tipo de pesquisa a qual nos propusemos. “O ‘conceito’ do primado do objeto [ou primazia do objeto] seria elaborado particularmente na Dialética negativa e nos ensaios Sobre sujeito e objeto e Notas marginais sobre teoria e prática” (Maar, 2006, p. 137, itálicos nossos). As obras em destaque são de Theodor W. Adorno e representam uma contribuição ao potencial da pesquisa empírica na Escola de Frankfurt, quando os pensadores se encontravam nos Estados Unidos. Sobre esse posicionamento, a “mudança de postura de Adorno em relação ao potencial emancipador da pesquisa social empírica foi marcada pela sua ênfase na natureza dialética do próprio objeto investigado pelas ciências humanas e sociais” (Antunes, 2014, p. 118). Uma pesquisa pode ser conduzida objetivamente sem redundar em objetivismo, em outros termos, o pesquisador pode e deve manter o caráter lógico e racional da investigação sem que o objeto se restrinja a si e aos demais pressupostos a priori. É necessária a objetividade para que possa ser compreendida, o erro consistiria na reificação. Destarte, a pesquisa caminha rumo à compreensão da totalidade, embora esse todo jamais possa ser atingido. “Esse momento crítico é uma demanda do objeto ao observador. Uma vez que ele é um objeto histórico e social, ele deve ser relacionado ao processo da sociedade como um todo” (Antunes, 2014, p. 182). O caminho da totalidade à particularidade precisa ser pensado. Vale mencionar que a busca do primado do objeto deve se constituir como mediação, compreendendo esse conceito como sinônimo de história, fazendo- se necessária a negação do próprio método. A partir dessa negação, surgem contradições. Ferramentas conceituais podem ser utilizadas nesse movimento dialético de compreensão do objeto. “Isso inclui a Psicologia, cujo objeto a coloca como uma ciência entre a ciência da natureza e as ciências sociais” (Antunes, 2014, p. 182). Marcuse (1955/1969) nos apresenta um claro modelo dessa parceria entre os conceitos da Psicanálise e as ideias da Escola de Frankfurt, demonstrando que as obras sociológicas que norteiam o campo da psicanálise, por exemplo, O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010) possuem valor heurístico na compreensão de camadas profundas da Filosofia. 37 Vale destacar a necessidade de se manter o caráter crítico diante dos discursos de cada um dos autores elencados na pesquisa. Sobre essa criticidade, Antunes (2014) afirma: “Longe de constituir uma teoria pessimista, o esforço da teoria crítica da sociedade é pela construção de uma sociedade melhor; e é por isso que a devoção cega ao existente é recusada e em seu lugar se coloca a crítica” (p. 183). Em síntese, nossa tese consiste na compreensão do currículo como um artefato técnico, apoiando nossa análise simultaneamente em entrevistas com 7 (sete) docentes, os quais representam o Curso Técnico em Informática, do IFSP Campus Araraquara e o Curso Técnico em Açúcar e Álcool, do IFSP Campus Matão. 2.1 ASPECTOS QUANTITATIVOS DA PESQUISA O primeiro movimento dessa investigação consistiu em um levantamento de dados. De 22 de março a 27 de abril de 2022, acessamos os sites de cada uma das entidades que fazem parte da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Nossa contabilização foi realizada a partir do acesso aos sítios eletrônicos: dos Institutos Federais (IF); da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); dos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET); do Conselho Nacional de Dirigentes das Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais (CONDETUF); e do Colégio Pedro II. Com o auxílio de planilhas de cálculos, contabilizamos o número de cursos oferecidos nessa rede, nas modalidades integrada, concomitante e subsequente. Excluímos da pesquisa a modalidade de EaD, pois essa mereceria estudos à parte. A contagem curso a curso gerou, posteriormente, o Apêndice A, no qual listamos os cursos técnicos oferecidos pela Rede Federal, divididos por área e por instituições que compõem essa rede. A divisão em instituições leva em consideração a Lei n.º 11.892/2008 (Brasil, 2008b). Destacamos o número de cursos ofertados, perfazendo 3.226 (três mil duzentos e vinte e seis). Todavia, há discrepâncias na distribuição dos cursos, explicitada pelo fato de que 2.999 (dois mil novecentos e noventa e nove) são oferecidos pelo Instituto Federal (IF); apenas 1 (um) pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); 38 74 (setenta e quatro) pelo Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET); 130 (cento e trinta) por escolas vinculadas a Universidades Federais (UF); e 22 (vinte e dois) pelo Colégio Pedro II. É necessário considerar uma margem de erro na contabilização, visto que os dados são alimentados pelas instituições, podendo haver descompasso na atualização; além disso, devem ser consideradas possíveis falhas por parte do pesquisador. Porém, o levantamento cumpre o seu papel de apresentar dados da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Destaca-se que esse mapeamento deve ser considerado como uma ‘fotografia’, tendo-se em vista a dinâmica dessa rede. Os sites pesquisados estão nas Referências complementares. 2.2 ASPECTOS QUALITATIVOS DA PESQUISA Após explicitarmos o primeiro momento de nossa investigação, cuja base foi quantitativa, culminando numa tabela com todos os cursos oferecidos pela Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, o Apêndice A, partiremos à explicitação dos aspectos qualitativos de nossa pesquisa, que consistem na Análise de conteúdo de 7 (sete) entrevistas com docentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, de dois Campi: Araraquara e Matão. 2.2.1 Entrevistas Nossas considerações teórico-metodológicas sobre a temática entrevistas foram extraídas, inicialmente, da obra de Lakatos e Marconi (1991) intitulada Fundamentos de Metodologia Científica. De acordo com as autoras: A entrevista é um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha informações a respeito de determinado assunto, mediante uma conversação de natureza profissional. É um procedimento utilizado na investigação social, para a coleta de dados ou para ajudar no diagnóstico ou no tratamento de um problema social (Lakatos e Marconi, 1991, p. 195). 39 O principal objetivo dessa técnica consiste em obter informações, a partir do relato do entrevistado, sobre um assunto específico. De acordo com Sellitz, citado por Lakatos e Marconi (1991, p. 196), no tocante ao conteúdo, há seis possíveis objetivos: a) Averiguação de ‘fatos’ [...] b) Determinação das opiniões sobre os ‘fatos’ [...] c) Determinação de sentimentos [...] d) Descoberta de planos de ação [...] e) Conduta atual ou do passado [...] f) Motivos conscientes para opiniões, sentimentos, sistemas ou condutas (Sellitz apud Lakatos e Marconi, 1991, p. 196). Em nossa investigação, a entrevista possui como objetivos determinar as opiniões sobre os ‘fatos’, além de elencar motivos conscientes sobre opiniões, sentimentos e condutas. São entrevistas semiestruturadas, compostas por 5 (cinco) questões, as quais versam a respeito: (1) da formação acadêmica do professor; (2) de sua trajetória; (3) de suas representações sobre tecnologia; (4) de suas opiniões sobre a dimensão política das organizações curriculares; e (5) de suas impressões sobre o conceito tecnologia. Lakatos e Marconi (1991) afirmam que a etapa preparatória é bastante relevante, de tal modo que o entrevistador clarifique suas ideias e compreenda de antemão os procedimentos a serem adotados. Para tanto, é necessário que: tenha-se em vista o objetivo a ser atingido; esteja-se familiarizado com o tema abordado; assegure-se de que os encontros sejam previamente agendados; garanta-se o sigilo e a privacidade das conversações; proporcione-se um clima de empatia com o entrevistado; atente-se para evitar desencontros; tenha-se em mãos o roteiro das entrevistas. Além de seguidas essas medidas, em nossa pesquisa, antes das entrevistas, os professores foram orientados a respeito do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual foi assinado antes do início da aplicação desse instrumento. Ademais, foi enviado, por e-mail, o projeto de pesquisa, em que foi apresentado o roteiro das entrevistas, além do Apêndice A, de modo a explicitar os objetivos e instrumentos utilizados em nossa investigação. Entrevistas devem possuir determinadas diretrizes, tais como: “contato inicial; formulação de perguntas; registro de respostas; término da entrevista” 40 (Lakatos e Marconi, 1991, p. 199). Em nosso caso, há de se fazer uma ressalva quanto ao registro das respostas, tendo-se em vista que as conversas foram registradas em dispositivo off-line, cujo armazenamento dos dados estão sob responsabilidade do pesquisador, quem deve garantir a privacidade, o sigilo, a confidencialidade e o anonimato; as entrevistas foram realizadas em local privado; os dados obtidos foram armazenados em local físico, com senhas, não compartilhados; as transcrições não mencionam informações que possam identificar os professores. Os áudios foram excluídos após sua edição final, não sendo salvos em plataforma virtual, ambiente compartilhado ou nuvem. Esses procedimentos foram estabelecidos respeitando as Diretrizes Nacionais de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, presentes nas Legislações: Código Civil (Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002); nas Resoluções: 510/2016; 674/2022; 466/2012; na Norma Operacional 001/2013; e no Ofício Circular n.º 2/2021/CONEP/SECNS/MS. O projeto foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras (FCL/Ar), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), e aprovado a partir do Protocolo CAAE: 79304724.6.0000.5400, Parecer: 6.949.535. Ademais, foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Protocolo CAAE: 79304724.6.3001.5473, Parecer: 7.115.726; e Protocolo CAAE: 79304724.6.3002.5473, pelo Parecer: 7.115.733. A realização de entrevistas com professores do Instituto Federal levou em consideração a necessidade de abordar, de maneira qualitativa, as temáticas: tecnologia, política e currículo. Nesse sentido, buscou-se um clima confortável em que esses professores pudessem expressar suas opiniões e representações mentais de modo livre e a partir das primeiras associações que viessem à sua mente. Sobre a utilização de entrevistas nas Ciências Sociais, Lüdke e André (1986) discorrem: a entrevista representa um dos instrumentos básicos para a coleta de dados, dentro da perspectiva de pesquisa [...]. Esta é, aliás, uma das principais técnicas de trabalho em quase todos os tipos de pesquisa utilizados nas ciências sociais. Ela desempenha importante papel não apenas nas atividades 41 científicas como em muitas outras atividades humanas (Lüdke e André, 1986, p. 33, itálicos acrescentados). Entrevistas são bastante úteis às investigações em Ciências Humanas, porém a afirmação de que são ‘instrumentos básicos para a coleta de dados’, não deve ser confundida com a obrigatoriedade de realizar entrevistas quando se lida com pesquisa qualitativa. Há outras maneiras de coletar informações a partir de um objeto, como as observações in loco, a análise documental etc. O que Lüdke e André (1986) destacam é a relevância da entrevista nesse tipo de atividade, não a necessidade de realizar entrevistas em todas as pesquisas nas áreas de humanidades. Lakatos e Marconi (2003) afirmam ser necessário, antes iniciar qualquer pesquisa científica, a testagem dos instrumentos e dos procedimentos: Para que o estudo ofereça boas perspectivas científicas, certas exigências devem ser levadas em consideração: fidelidade de aparelhagem, precisão e consciência dos testes; objetividade e validez das entrevistas e dos questionários ou formulários; critérios de seleção da amostra (Lakatos e Marconi, 2003, p. 165, itálicos acrescentados). Antes de iniciarmos as entrevistas, testamos o dispositivo de captação de som, um smartphone desconectado da Internet, sem chip e com o bluetooth no modo desligado. Esse mesmo instrumento foi utilizado nas entrevistas, sob as mesmas condições. A entrevista de testagem seguiu os mesmos protocolos que seriam adotados nas entrevistas oficiais, tendo sido realizada com autorização da participante, a partir de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que foi assinado e arquivado em local seguro. As perguntas do roteiro estabelecido previamente foram realizadas em sua integralidade, a transcrição foi enviada ao mesmo aplicativo on-line, com a cautela de ser excluído após a transcrição. Esse pré-teste não foi aplicado a uma amostra aleatória representativa, mas a uma participante, visando testar os protocolos e não analisar o conteúdo da entrevista; os dados da primeira entrevista não foram analisados na tese. Essa etapa foi essencial para reconhecer o modus operandi das entrevistas, ademais nos permitiu refletir acerca da validade das cinco perguntas elencadas, porém não foram feitas modificações nas questões, haja vista termos compreendido 42 que elas englobavam nosso objeto de estudos. No que tange às características da entrevista científica, Lüdke e André (1986) mencionam: De início, é importante atentar para o caráter de interação que permeia a entrevista. Mais do que outros instrumentos de pesquisa, que em geral estabelecem uma relação hierárquica entre o pesquisador e o pesquisado, como na observação unidirecional, por exemplo, ou na aplicação de questionários ou de técnicas projetivas, na entrevista a relação que se cria é de interação, havendo uma atmosfera de influência recíproca entre quem pergunta e quem responde (Lüdke e André, 1986, p. 33, itálicos acrescentados). Não deve haver hierarquia entre entrevistado e entrevistador, durante a entrevista é necessário estabelecer ambiente propício à interação. Medidas de cautela precisam ser adotadas, como a postura amigável, a fala em tom de voz audível e o respeito ao tempo de resposta do entrevistado. Intervenções podem ser realizadas, porém a interrupção do fluxo de pensamento deve ser evitada. Em entrevistas semiestruturadas, a livre-associação merece ser explorada para que o assunto surja com o máximo de fluidez. Não há garantias de que todo o objeto da pesquisa seja abordado nas entrevistas, porém vale ressaltar que a busca pela interação facilita a tarefa. Lüdke e André (1986) coadunam: Especialmente nas entrevistas não totalmente estruturadas, onde não há a imposição de uma ordem rígida de questões, o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informações que ele detém e que no fundo são a verdadeira razão da entrevista. Na medida em que houver um clima de estímulo e de aceitação mútua, as informações fluirão e maneira notável e autêntica (Lüdke e André, 1986, pp. 33-34, itálicos acrescentados). O roteiro de nossas entrevistas não foi utilizado de modo rígido, houve variações na realização das perguntas feitas a cada entrevistado, com exceção de um participante que preferiu ler o roteiro e responder às perguntas durante a gravação. Esse tipo de variação é esperado e deve ser respeitado. A postura do entrevistador deve abarcar a diversidade humana, de maneira a permitir que cada participante se posicione confortavelmente. A busca pela resposta ideal precisa ser evitada, por questões éticas. Não é tarefa do pesquisador 43 comprovar a sua tese durante a investigação, ao contrário, é necessário que se esforce para que o ambiente da entrevista permita liberdade: Quando o entrevistador tem que seguir muito de perto um roteiro de perguntas feitas a todos os entrevistados de maneira idêntica e na mesma ordem, tem-se uma situação muito próxima da aplicação de um questionário, com a vantagem óbvia de se ter o entrevistador presente para algum eventual esclarecimento. Essa é a chamada entrevista padronizada ou estruturada, que é usada quando se visa à obtenção de resultados uniformes entre os entrevistados, permitindo assim uma comparação imediata, em geral mediante tratamentos estatísticos (Lüdke e André, 1986, p. 34). Nossa pesquisa partiu de um viés qualitativo e não estatístico, portanto, nossa preocupação com a não-padronização e a não-rigidez das entrevistas se configurou em permitir que cada participante emitisse sua opinião a respeito dos conceitos essenciais elencados no roteiro. Nesse sentido, visamos a uma entrevista semiestruturada, a qual: “se desenrola a partir de um esquema básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as necessárias adaptações” (Lüdke e André, 1986, p. 34). As cinco perguntas foram feitas para todos os participantes: as duas primeiras de cunho pessoal; a terceira abordando o conceito de tecnologia; a quarta se referindo à política curricular; e a última a respeito da discussão entre alunos e professores sobre tecnologia. Julgamos importante realizar as duas primeiras perguntas a todos os entrevistados para facilitar o rapport, permitindo que o professor pudesse contar sua história e sua trajetória acadêmicas. Corroborando as assertivas, Lüdke e André (1986) afirmam: “Parece-nos claro que o tipo de entrevista mais adequado para o trabalho de pesquisa que se faz atualmente em educação aproxima-se mais dos esquemas mais livres, menos estruturados” (p. 34). Considerando-se essa mesma assertiva, as metodólogas acrescentam: Ao lado do respeito pela cultura e pelos valores do entrevistado, o entrevistador tem que desenvolver uma grande capacidade de ouvir atentamente e de estimular o fluxo natural de informações por parte do entrevistado. Essa estimulação não deve, entretanto, forçar o rumo das respostas para determinada direção. Deve apenas garantir um clima de confiança, para que o informante se sinta à vontade para se expressar livremente (Lüdke e André, 1986, p. 35). 44 Esse trecho nos coloca diante de uma contradição, qual seja a liberdade do entrevistado se expressar livremente e o objetivo de analisar determinados conceitos por parte do pesquisador. Há de se sintetizá-la a partir de um meio- termo. Em nossa investigação, nem o professor possuiu espaço e tempo para se aprofundar em assuntos que se desviam da pesquisa, nem o entrevistador forçou respostas, interferindo no fluxo de pensamentos do entrevistado. Esse foi um dos desafios que demandaram respeitar e colaborar para um clima de confiança entre pesquisador e participantes. Sobre a relevância de um roteiro inicial, Lüdke e André (1986) compreendem: Será preferível e mesmo aconselhável o uso de um roteiro que guie a entrevista através dos tópicos principais a serem cobertos. Esse roteiro seguirá naturalmente uma certa ordem lógica e também psicológica, isto é, cuidará para que haja uma seqüência lógica entre os assuntos, dos mais simples aos mais complexos, respeitando o sentido do seu encadeamento (Lüdke e André, 1986, p. 36). Importante destacar que o roteiro foi enviado a cada participante, antes da realização de cada entrevista, por e-mail, junto ao projeto de pesquisa que havia sido aprovado pela Comissão de Ética da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. 2.2.2 Da ideia de transcrição à prática da transcriação Nossa transcrição foi realizada a partir do TurboScribe (2024), aplicativo da Internet que utiliza I.A. para converter os discursos gravados em áudio, em texto; configura-se como uma plataforma minimalista em que o usuário faz o upload do arquivo de som, em formato .wma, .mp3 etc. e, podendo selecionar ferramentas de precisão, obtém como resultado um texto escrito, que pode ser salvo nos formatos .pdf, .docx, etc. O programa possui política de privacidade, que garante criptografia de ponta a ponta e pode ser utilizado para analisar vídeos, entretanto essa opção não foi utilizada. Devido às implicações éticas, após concluir cada transcrição e salvá-las em ambiente seguro, no formato de documento de texto, retiramos os arquivos de áudio da Internet. 45 Durante o processo de manipulação desses dados sigilosos, mantivemos o computador em modo avião, ou seja, off-line, visando evitar ‘hackeamentos’ ou ações de vírus. Entre os dias 11 e 15 de novembro de 2024, as entrevistas foram editadas em computador desconectado da Internet, visando a assegurar sigilo: as entrevistas ‘originais’ foram eliminadas. Solicitamos, posteriormente, a assinatura das Autorizações de publicação, documentos nos quais constam as garantias dos direitos dos participantes quanto à manutenção do sigilo das informações, incluindo as garantias do Código Civil Brasileiro (Brasil, 2002). A transformação dos textos das entrevistas, inicialmente transcritos de maneira ‘bruta’ pelo aplicativo TurboScribe (2024), em transcriações, levou em consideração dois objetivos: o primeiro, consistiu na anonimização dos dados pessoais dos entrevistados; o segundo, referiu-se à necessidade de correção gramatical, adequando-os a um trabalho de doutorado. Anonimizar implicou retirar, dos discursos dos participantes, todas as informações que poderiam identificá-los; a correção gramatical compreendeu organizar o texto de modo a torná-lo mais adequado à análise, com alguns ajustes de expressões usadas pelos entrevistados. 2.2.3 Análise de conteúdo Embora compreendamos que a Análise de conteúdo seja uma vertente francesa embasada no estruturalismo, essa ferramenta pode ser bastante útil; sabe-se que a proposta inicial da Análise de conteúdo consiste num método de verificação de discursos (Bardin, 1977/2021). Nossa proposta não consiste em realizar uma análise estrutural, tampouco adotar o método da Análise de conteúdo de forma restrita. Antes, nossa intenção é organizar um texto lógico, coerente e ressaltar contradições. Elencar categorias é um aspecto essencial. Corroborando esse aspecto, Sampaio e Lycarião (2021) afirmam: A análise de conteúdo categorial, como já dito, é uma técnica de pesquisa que busca permitir a criação de inferências sobre determinado conteúdo. Para tanto, os pesquisadores realizam a codificação do conteúdo, fazendo a aplicação de códigos, que vão formar categorias. Apesar de, frequentemente, serem vistos como sinônimos, cada um desses termos é importante para uma 46 aplicação adequada da técnica (Sampaio e Lycarião, 2021, p. 45). Codificar é uma etapa importante da análise dos conteúdos e implica a sistematização dos dados obtidos. Essa organização gerará códigos, obtidos a partir dos próprios discursos dos participantes; uma organização sistemática dos códigos deve levar em consideração os objetivos almejados pela pesquisa. Por fim, chega-se à etapa da categorização, que consiste em agrupar tópicos ou temas relevantes à investigação, de modo que se façam inferências sobre os discursos, ora aproximando certas proposições, ora demonstrando as suas contradições; essa etapa auxilia na interpretação dos discursos que emergem do que se tem em mãos. A dialética entre análise e síntese deve ser considerada, ressaltando-se as contradições imanentes dos discursos. Todavia, “A codificação precisa ser rigorosa e, para tanto, precisa seguir instruções e ser aplicada da mesma maneira” (Sampaio e Lycarião, 2021, p. 46), ou seja, devem ser utilizados os mesmos critérios de análise para todas as entrevistas. No que tange à etapa da categorização, Bardin (1977/2021) explica: “categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o género (analogia), com os critérios previamente definidos” (p. 145). Após a categorização, parte-se para a análise e interpretação dos dados. Nesse ponto, fazer inferências é necessário, permitindo explorar conceitos e sintetizar proposições. Essa etapa é bastante comum nas Ciências Sociais, pois é a partir da compreensão de categorias que se inicia a depuração da temática geral. Quanto à inferência, Bardin (1977/2021) afirma: “não passa de um termo elegante, efeito de moda, para designar a indução, a partir dos factos” (p. 166). Segundo Sampaio e Lycarião (2021): “A noção de inferência é importante na análise de conteúdo; afinal, o pesquisador usa construtos analíticos para se mover do texto para as respostas de questões de pesquisa” (pp. 107-108). Para não nos alongarmos na noção filosófica, podemos mencionar que, em nosso caso, os ‘fatos’ são discursos de sete entrevistas e as opiniões a respeito dos conceitos tecnologia, política e currículo. 47 Um aspecto controverso da Análise de conteúdo se refere à utilização da informática. Poderíamos nos questionar se sistemas computacionais são úteis na codificação de discursos. Para Bardin (1977/2021): a “informática permite [...] descrever, em simultâneo, classes de respostas e subgrupos de pessoas, e, sobretudo, navegar entre um e outro destes objetivos” (p. 196). Há de se considerar os riscos da análise computacional numa abordagem que se propõe dialética: optamos pela Análise de conteúdo sem o auxílio de aplicativos, por considerarmos que o número de entrevistas realizadas permitia esse tipo de análise. Sampaio e Lycarião (2021) discutem a análise de resultados e os testes estatísticos; na medida em que nossa amostra consiste em apenas sete entrevistas, o modelo estatístico não se aplica ao nosso estudo. 2.3 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS No início de nossa investigação, fez-se necessária uma contextualização preliminar de nosso objeto, a qual não poderia prescindir de uma coleta de dados. De 22 de março a 27 de abril de 2022, catalogamos os cursos técnicos ofertados pela Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Esse trabalho foi realizado acessando-se os sítios eletrônicos de cada uma das instituições, resultando no Apêndice A. Foram catalogadas as modalidades integrado, concomitante e subsequente. Excluímos da pesquisa os cursos à Distância (EaD), pois requereriam estudos à parte. A catalogação dos cursos levou em consideração a Lei n.º 11.892, de 2008 (Brasil, 2008b), em vigor, que “Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências” (n.p). De acordo com a legislação, passam a constituir a referida rede, as seguintes instituições: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IF); Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET); Escolas Técnicas vinculas às Universidades Federais (UF); e Colégio Pedro II. Para contextualizarmos os Cursos Técnicos em Açúcar e Álcool e em Informática no universo dos demais cursos, acessamos, além dos sítios eletrônicos de cada entidade, a Plataforma Nilo Peçanha (Brasil, 2023) e o CONDETUF (Brasil, 2022). Com o auxílio de 48 aplicativos, contabilizamos o número de ocorrência de cada curso. Há de se considerar uma margem de erro, tanto por falhas do pesquisador, quanto por alterações nos sistemas. Essa análise prévia nos permitiu situar nosso objeto. O objeto em questão poderia ser compreendido a partir de camadas, as quais se inter-relacionam de um modo por vezes conflitante, exigindo-nos explicitar tais conflitos a partir da crítica rigorosa. Deve-se entender essa crítica como um olhar focal, mas, ao mesmo tempo, distanciado. Sendo assim, a melhor ferramenta que temos em mãos é a dialética. Certo distanciamento deve ser levado em consideração, porém, há de se evitar o risco de incorrer na retórica. Aristóteles ( 400 a.C./2011)8 nos adverte sobre a necessidade de se encarar a dialética como algo próximo de um estado de arte: Mas quanto mais insistirmos em tornar a dialética e a retórica ciências, e não as reconhecermos como o que elas realmente são, ou seja, simplesmente faculdades, mais estaremos inadvertidamente destruindo a verdadeira natureza delas, uma vez que as estaremos remoldando e as estaremos colocando na esfera de ciências que têm objetivos definidos, e que não se ocupam simplesmente de discursos. Todavia, mencionaremos os pontos cuja distinção apresenta importância prática, embora a abordagem mais completa deles caiba à ciência política (Aristóteles,  400 a.C./2011, p. 57). Essa reflexão nos situa diante da contradição entre o raciocínio dialético e o adotado pelas ciências. Para o filósofo, a dialética e a retórica se prestariam essencialmente à realização e à análise de discursos e não a uma forma de obtenção da verdade; relacionam-se a uma faculdade, um modus operandi, o que permitiria a contraposição de elementos nas narrativas, querelas jurídicas e demais situações presentes no cotidiano. A crítica à dialética se aprofunda mais adiante, quando o autor discorre sobre a confusão gerada por ela no tocante à relação entre o absoluto e o não-absoluto, destarte: “o não-ser é, porque o não-ser é enquanto não-ser” (Aristóteles,  400 a.C./2011, p. 203). Logicamente, o ser é e o não-ser não é. É objeto aquilo que é cognoscível, resultando que o incognoscível não pode sê-lo. A partir dessa ordenação, 8 Aristóteles viveu na Grécia, provavelmente entre 384a.C. e 322a.C. Determinar a data em que suas obras foram escritas não é tarefa fácil. Estima-se que Retórica é um de seus livros da maturidade (Aristóteles,  400 a. C./2011, pp. 17-34). 49 durante séculos até a atualidade, orientaram-se de Escolas de Filosofia a Institutos de Pesquisa, os quais têm ditado as regras do jogo racional como matriz para a construção epistêmica. Todavia, a reflexão filosófica nos permite questionar o que é conhecimento e os seus possíveis caminhos. Nesse tópico, apresentamos o objeto, discorremos sobre a dialética, a dialética negativa, a primazia do objeto e o modo como esse último conceito contribui em nossa análise. A dialética foi amplamente discutida nos Tratados de lógica ou Órganon (Aristóteles,  400 a.C./1982). O dialético parte de objetos plausíveis, a partir de proposições e objeções. Considera-se proposição uma dada hipótese A e objeção uma hipótese B, a qual contradiz a primeira; o movimento dialético, segundo o pensador grego, consistiria na narrativa em que essas duas hipóteses intercalariam, de modo discursivo, com a meta de atrair a atenção para assuntos não solucionáveis a partir da lógica formal. Deve-se destacar que o raciocínio dialético tem o propósito de eliminar falácias (Aristóteles,  400 a.C./1982). Verifica-se essa assertiva abaixo: Todos os argumentos que constituem um raciocínio falso devem ser resolvidos eliminando aquele por meio do qual surge a falsidade [;] o argumento poderia ter vários pontos falsos, por exemplo, se alguém assume como proposições que aquele que está sentado escreve e que Sócrates está sentado, delas se depreende que Sócrates escreve (Aristóteles,  400 a.C./1982, p. 293). Faz-se mister a identificação de hipóteses: não é possível contrapor ideias se essas não forem compreendidas: “é necessário estabelecer em quantas espécies se dividem os argumentos dialéticos. Uma é a comprovação, outra o raciocínio” (Aristóteles,  400 a.C./1982, p. 108), sendo a primeira uma trajetória que se inicia no particular e tende ao universal, já o segundo representa uma abstração. Refletir dialeticamente consiste em uma lógica fronteiriça entre o real e o abstrato, subsidiada pelo confronto de ideias, com vistas à exposição de contradições. Obviamente, antes de Aristóteles havia inúmeros filósofos analisando esse tema. Todavia, há de se destacar sua sistematização, a qual permitiu um grande avanço. Optamos por realizar um 50 salto histórico, de modo que se partirá de Aristóteles ( 400 a.C./1982) para Karl Marx (1867/2017). Essa transição implica não considerar mais de dois milênios, dentre os quais a dialética continuou sendo discutida. Daremos sequência à crítica do economista político à dialética hegeliana, em seguida, desenvolveremos a compreensão da teoria crítica. Segundo Marx (1867/2017), o materialismo histórico foi desenvolvido a partir da dialética hegeliana, porém, sob um prisma antitético. De acordo com o pensador: “O método aplicado em O capital foi pouco compreendido, como já o demonstram as interpretações contraditórias que se apresentaram sobre o livro” (Marx, 1867/2017, p. 88). O método a que se refere é o dialético, o qual, devido às nuanças apresentadas, desagradou a diversos filósofos, tanto hegelianos quanto não-hegelianos. O pensador prossegue: “Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há quase trinta anos, quando ela ainda estava na moda” (Marx, 1867/2017, p. 91). Mantendo seu posicionamento, o autor afirma o seguinte: “Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto” (Marx, 1867/2017, p. 90). A oposição ao método dialético hegeliano se relaciona essencialmente à postura política. A dialética hegeliana possui caráter de justificação, assumindo tons proféticos que posicionavam a elite burguesa de forma divinizada. No tocante a esse aspecto místico de compreensão da dinâmica social, Marx (1867/2017) discorreu: A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico (Marx, 1867/2017, p. 91). Quando o posfácio da edição alemã foi escrito, já se haviam corrido mais de cinco anos da publicação de O capital e a tradução francesa, realizada em fascículos, já estava em curso. Isto posto, as críticas a essa obra, devido ao impacto gerado no meio intelectual, surgiram tanto de autores que viram nela uma evolução do pensamento socialista, quanto de pensadores alinhados às ideias liberais, que a consideravam ameaçadora. Dos primeiros, destacamos 51 Kaufmann, economista russo e professor da Universidade de São Petesburgo, teórico que, após a leitura de O Capital, publicou o artigo Contribuição à crítica da economia política, em que descreve o método histórico-dialético. Esse autor compara a investigação marxista ao processo minucioso de um pesquisador de biológicas, conhecedor da lei da evolução das espécies. O economista reconhece a radicalidade da dialética marxista ao mencionar que fenômenos como a consciência, a vontade e a intenção não são entidades inatas, mas construções históricas: Marx concebe o movimento social como um processo histórico- natural, regido por leis que não só são independentes da vontade, consciência e intenção dos homens, mas que, pelo contrário, determinam sua vontade, consciência e intenções (Kaufmann apud Marx, 1867/2017, p. 89). O movimento da história estaria diretamente relacionado à constituição da subjetividade, portanto, cada época ditaria leis específicas. Desse modo, comparar a consciência de um escravo na Grécia arcaica à de um servo na Idade Média francesa seria um despropósito. Há de se considerar a diferença de trabalho exercido por um e pelo outro, reconhecendo-se que cada período histórico e localidade são regidos por forças produtivas distintas, com leis e regimes peculiares. Segundo Kaufmann apud Marx (1867/2017) a dialética materialista marxiana prestou-se a: demonstrar, mediante escrupulosa investigação científica, a necessidade de determinadas ordens das relações sociais e, na medida do possível, constatar de modo irrepreensível os fatos que lhe servem de pontos de partida e de apoio (Kaufmann apud Marx, 1867/2017, p. 89 – itálico acrescentado). O conceito necessidade é essencial para a compreensão do materialismo histórico. Ao contrário de Hegel, sua dialética parte dos fatos e não das ideias. Assim, cada objeto que compõe a sociedade precisa ser analisado em sua especificidade e, ao mesmo tempo, no tocante às suas relações com os demais objetos. Marx (1867/2017) desenvolveu categorias essenciais e, a partir delas, formulou tratados que dão sustentação a teorias que o sucederam: agonistas e antagonistas. Dentre as primeiras, destaca-se a Teoria Crítica desenvolvida 52 por filósofos da Escola de Frankfurt. Theodor W. Adorno e Max Horkheimer fazem parte da primeira geração desse movimento, tendo sido responsáveis, dentre outras, pela obra Dialética do esclarecimento. Uma das contribuições essenciais foi a discussão sobre a racionalidade instrumental e seu ideal de controle e dominação foi reeditado diante da realidade hodierna. “A ‘confiança inabalável na possibilidade de dominar o mundo’, que Freud anacronicamente atribui à magia, só vem corresponder a uma dominação realista do mundo graças a uma ciência mais astuciosa que a magia” (Adorno e Horkheimer, 1944/1985, p. 22). A razão mantém seu papel de relevância na constituição dos sujeitos, pois a magia não fornece as respostas necessárias para lidar com o cotidiano. O misticismo não desapareceu do imaginário popular; verificam-se pessoas defendendo o terraplanismo e curas milagrosas, indicando que o pensamento mágico se mantém. Mais complexo, entretanto, é compreender o oposto: a ideia de que o raciocínio científico também se presta a um caráter mítico. A compreensão de que as Ciências tornar-se-ão infalíveis e dominarão as leis da Natureza é um mito da civilização e que, assim como as curas milagrosas, apascenta ânimos diante da realidade caótica.