1 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LUIZ RICARDO CERVONI O PERFIL DO PROFESSOR INTERLOCUTOR DE LIBRAS/LÍNGUA PORTUGUESA EM ESCOLAS ESTADUAIS DE UMA CIDADE DO INTERIOR PAULISTA ARARAQUARA – S.P. 2018 LUIZ RICARDO CERVONI O PERFIL DO PROFESSOR INTERLOCUTOR DE LIBRAS/LÍNGUA PORTUGUESA EM ESCOLAS ESTADUAIS DE UMA CIDADE DO INTERIOR PAULISTA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Escolar, da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Araraquara, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Exemplar apresentado para exame de defesa. Linha de pesquisa: Formação do Professor, Trabalho Docente e Práticas Pedagógicas. Orientador: Relma Urel Carbone Carneiro. ARARAQUARA – S.P. 2018 CERVONI, Luiz Ricardo O PERFIL DO PROFESSOR INTERLOCUTOR DE LIBRAS/LÍNGUA PORTUGUESA EM ESCOLAS ESTADUAIS DE UMA CIDADE DO INTERIOR PAULISTA/ Luiz Ricardo CERVONI — 2018 128 f. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Relma Urel Carbone Carneiro. 1. Educação Especial. 2. Surdez. 3. Professor Interlocutor de Libras. I. Título. O PERFIL DO PROFESSOR INTERLOCUTOR DE LIBRAS/LÍNGUA PORTUGUESA EM ESCOLAS ESTADUAIS DE UMA CIDADE DO INTERIOR PAULISTA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Escolar, da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Araraquara, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Exemplar apresentado para exame de defesa. Linha de pesquisa: Formação do Professor, Trabalho Docente e Práticas Pedagógicas. Orientador: Relma Urel Carbone Carneiro Data da qualificação: 05/12/2018 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profª. Drª. Relma Urel Carbone Carneiro. Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara. Membro Titular: Profª. Drª. Eliana Marques Zanata. Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências - Departamento de Educação – UNESP - Câmpus de Bauru Membro Titular: Profª. Drª. Luci Pastor Manzoli. Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara DEDICATÓRIA Dedico esse trabalho aos meus pais Olívio e Thereza (in memoriam) e a minha tia Alzira com todo meu amor e gratidão, por tudo que fizeram por mim ao longo da vida. Desejo poder ter sido merecedor do esforço dedicado por vocês, especialmente no que diz respeito a minha formação. AGRADECIMENTOS A Deus, por nunca ter me deixado caminhar sozinho e por atender as minhas preces, se fazendo constantemente presente em minha vida! À Professora Drª Relma Urel Carbone Carneiro, minha orientadora, aquela que acreditou em mim. Obrigado pelo carinho, paciência e dedicação nas inúmeras orientações. Relma, mestra em minha vida, uma exímia professora e um ser humano extraordinário. Sou grato às participantes da pesquisa, por terem colaborado prontamente. À Eliane e Tauane, companheiras desde o início, presente que foi me dado pela nossa querida orientadora, desde o início nos fortalecemos um no outro, seja por meio das dicas técnicas ou pela força nos momentos de cansaço, porém não apenas nas questões acadêmicas, mas perpassando os limites da universidade, nos tornamos amigos para vida. Às professoras, Profª Drª Luci Pastor Manzoli e Profª. Drª. Eliana Marques Zanata, que aceitaram participar da banca de qualificação e defesa, agradeço pela disponibilidade, atenção e carinho com que acolheram o convite para avaliar este estudo. À Professora Edna Diogo por sempre acreditar em meu trabalho e pelo incentivo à carreira acadêmica. Aos Surdos que conheci ao longo de minha carreira profissional e que pacientemente me ensinaram e estiveram ao meu lado. Não posso deixar de agradecer aos meus familiares e amigos queridos por terem se esforçado em compreender a minha ausência em certos momentos e principalmente pelo estímulo constante. A todos que não foram citados de forma direta, mas que sabem do meu reconhecimento. Por via de regra, sonhamos sozinhos, os sonhos, no entanto, não se realizam de forma solitária. Agradeço a todos que de alguma forma fizeram parte desse sonho, colaborando para que se tornasse realidade. RESUMO A escolarização do aluno surdo em escolas comuns requer, necessariamente, a atuação no contexto escolar do Professor Interlocutor de Libras (Língua Brasileira de Sinais). Dentro dessa temática, o papel do Professor Interlocutor de Libras em sala de aula envolve discussão e reflexões, pois sua atuação é confundida com a do professor regente, no entanto, eles desenvolvem papéis diferentes em sala de aula. O professor regente é a figura responsável pelo ensino, assim como, por seus alunos. O Professor Interlocutor atua na mediação de duas línguas, na relação entre o professor e o aluno surdo, aluno ouvinte e aluno surdo, estendendo- se a toda comunidade escolar. Em sala de aula, desempenha a função de interpretação dos conteúdos trabalhados pelo professor para à Língua de Sinais. Porém ultrapassa a função descrita, assumindo não só o papel de intérprete de Libras, mas também a função de ensinar. A pesquisa fundamenta-se em compreender a atuação desse profissional por meio dos relatos de sua práxis e o que de fato ele considera dentro do seu campo de atuação pertinente e a sua função na educação básica com o aluno surdo. Essa pesquisa teve como objetivo realizar um estudo sobre a atuação do Professor Intérprete de Libras no contexto escolar na educação básica, buscando investigar como se dá essa atuação, levando em conta o ambiente multicultural escolar, sem perder o foco no aluno surdo, bem como, nas duas culturas envolvidas (Cultura Ouvinte e Cultura Surda). A pesquisa foi de abordagem qualitativa e, utilizou como procedimento metodológico o Estudo de Caso, envolvendo professores intérpretes de Libras atuantes com estudantes surdos de instituições públicas de educação do Estado de São Paulo. O estudo investigou a atuação de quatro professoras que acompanham alunos surdos. Visando alcançar os objetivos propostos no estudo, foi utilizado como instrumento para a coleta de dados, uma entrevista semiestruturada. Os dados foram analisados através da análise de conteúdo. Os resultados sugerem que a atuação desse profissional não está concentrada apenas no ato interpretativo, pois no contexto educacional faz-se necessário o atendimento das necessidades do processo pedagógico como um todo, as respostas também apontam para alguns entraves referentes à formação, falta de colaboração para o planejamento das adaptações necessárias, falta de alguns recursos de apoio e de reconhecimento e valorização da profissão de Professor Interlocutor de Libras. Palavras chave: Educação Especial. Surdez. Professor Interlocutor de Libras. ABSTRACT The deaf student´s schooling in common schools necessarily requires the performance of the Interlocutor Teacher of Libras (Brazilian Language of Signals) in the school context. Into this theme, the role of Interlocutor Teacher of Libras in the classroom should involve discussion and reflections, because his performance is confused with the Regent Teacher, however, they develop different roles in the classroom. The Regent Teacher is responsible for teaching and for his students. The Interlocutor Teacher works at mediation of two languages, being between the teacher and the deaf student, student listener and deaf student, extending to the whole school community. In the classroom, it performs an interpreter function of the contents worked by the teacher for a sign language. However, it goes beyond the described function and assumes not only role of interpreter of Libras, but also the teaching´s function. This research is based on understand the Interlocutor Teacher´s performance by the reports of his praxis and what in fact he considers within his relevant field of action or his role in elementary school with the deaf student. The objective of this research was to carry out a study about the performance of Interlocutor Teacher of Libras in the school context at elementary school, investigating how this work takes place and taking into account the school´s multicultural environment, without losing focus on the deaf student, at the two cultures involved (Listening and deaf kind of Culture). The research was of qualitative approach and, as a methodological procedure, used the Case Study, involving Interlocutor Teacher of Libras who work with deaf students at Public education´s institutions at São Paulo state. The study investigated the performance of four teachers who accompany deaf students. Aiming to reach the objectives proposed in the study, a semi-structured interview was used as instrument for data collect. The data went through a content analysis. The results suggest the performance of this professional is not only concentrated in the interpretive act, because in the educational context it is necessary to attend to the needs of the pedagogical process as a whole, they point to some obstacles related to training, lack collaboration to plan the necessary adaptations, lack of some support resources and recognition and appreciation the profession of teacher interlocutor of Libras. Keywords: Special Education. Deafness. Interlocutor Teacher of Libras. 9 LISTA DOS QUADROS Quadro 1: Descrição dos participantes da pesquisa ........................................................ 80 Quadro 2: Escolha profissional ....................................................................................... 83 Quadro 3: Experiência e atuação .................................................................................... 84 Quadro 4: Papel específico em sala ................................................................................ 85 Quadro 5: Relação com o professor regente ................................................................... 87 Quadro 6: Participação no planejamento das aulas ou adaptação curricular com o professor regente .......................................................................................... 88 Quadro 7: Colaboração na vida acadêmica do aluno .................................................... 89 Quadro 8: Parceria com o professor do AEE /e ou itinerante ....................................... 91 Quadro 9: Ações que envolvam a disseminação da Libras com a turma e/ou com a escola ......................................................................................................... 92 Quadro10: Concepção linguística .................................................................................. 93 Quadro 11: Relação professor interlocutor de Libras com o aluno surdo ...................... 95 Quadro 12: Comunicação do aluno surdo com os demais alunos da turma ................... 97 Quadro 13: Comunicação do professor interlocutor com os demais alunos da turma. ... 98 Quadro 14: Família e participação da mesma na escolarização do aluno ....................... 99 Quadro 15: Concepção de inclusão .............................................................................. 101 Quadro 16: Legislação específica da Libras e do Intérprete ........................................ 103 Quadro 17: Sobre a Resolução da Secretaria Estadual SE nº 38/2016 ........................ 105 10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AEE - Atendimento Educacional Especializado APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais ASL - American Sign Language (Língua de Sinais Americana) ATPC - Atividade de Trabalho Pedagógico Coletivo BDTD - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações BSL - British Sign Language CAPE - Centro Apoio Pedagógico Especializado CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior CGEB - Coordenadoria de Gestão da Educação Básica CIL - Centrais de Interpretação de Libras CM - Configuração das mãos CODAC - Children Of Deaf Adults DA - Deficiente Auditivo DB - Decibéis FENEIDA -Federação Nacional de Educação e Integração do Deficiente Auditivo FENEIS - Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos IE - Intérprete educacional ILS - Intérprete da Língua de Sinais INES - Instituto Nacional de Educação de Surdos INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais LES – Língua Espanhola de Sinais LGP - Língua Gestual Portuguesa LSF - Língua de Sinais Francesa L1 - Língua materna L2 - Segunda língua M - Movimento MEC - Ministério da Educação ONU - Organização das Nações Unidas OT’s - Orientações Técnicas PA - Ponto de Articulação 11 PAEE - Público Alvo da Educação Especial PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais PCNP - Professor Coordenador do Núcleo Pedagógico PI - Professores Interlocutores PROLIBRAS - Proficiência da Libras SCIELO - Scientific Eletronic Library Online TIC - Tecnologias de Informação e Comunicação TILS - Tradutor e Intérprete de Línguas de Sinais UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina UNESP - Universidade Estadual Paulista UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas 12 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 14 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 17 1. LENTAMENTO DE ESTUDOS SOBRE PROFESSOR INTERLOCUTOR DE LIBRAS ............................................................................................................ 20 2. SURDEZ, LÍNGUA, EDUCAÇÃO E LEGISLAÇÃO....................................... 23 2.1 Breve histórico da educação de surdos no mundo ................................................... 28 2.2 Breve histórico da educação do surdo no Brasil ..................................................... 37 2.3 Leis Federais que regem a Libras ............................................................................ 40 2.4 Resolução SE nº38, de 19-6-2009, dispõe sobre a admissão de docentes com qualificação na Língua Brasileira de Sinais - Libras, nas escolas da rede estadual de ensino .................................................................................................................. 47 3. BREVE HISTÓRICO DO TRADUTOR E INTÉRPRETE DE LÍNGUAS DE SINAIS(TILS) NO MUNDO E NO BRASIL ................................................ 51 3.1 Lei Federal de nº 12319, de 01 de setembro de 2010 que regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – Libras ............................ 56 3.2 Código de Ética do Intérprete .................................................................................. 58 3.3 Diversas terminologias usadas para definir o papel do intérprete de Língua de Sinais no contexto educacional no Brasil ................................................................ 59 4. ESCOLARIZAÇÃO DO SURDO EM UM CONTEXTO INCLUSIVO ......... 64 4.1 O sujeito surdo e aquisição da língua ...................................................................... 67 4.2 O Bilinguismo e os alunos surdos: promoção de uma educação inclusiva ............. 69 4.3 O Professor Intérprete de Libras e o aluno surdo: O ato de interpretar e ser compreendido .......................................................................................................... 72 5. MÉTODO ............................................................................................................... 77 5.1 Abordagens do estudo ............................................................................................. 77 5.2 Local ........................................................................................................................ 77 5.3 Participantes ............................................................................................................ 77 5.4 Objetos e equipamentos utilizados na pesquisa ....................................................... 77 5.5 Procedimentos de coleta de dados ........................................................................... 77 5.6 Análise de dados ...................................................................................................... 78 6. RESULTADOS E DISCUSSÃO .......................................................................... 80 6.1 Eixo 1: Caracterização e Formação dos Participantes.............................................. 80 6.1.1 Escolha Profissional ................................................................................................ 83 6.1.2 Experiência e Atuação ............................................................................................. 83 6.2 Eixo 2: Prática Docente ............................................................................................ 84 6.2.1 Papel específico em Sala ......................................................................................... 85 6.2.2 Relação com o Professor Regente ........................................................................... 87 6.2.3 Participação no planejamento das aulas ou adaptação curricular com o professor regente ...................................................................................................................... 88 6.2.4 Colaboração na vida acadêmica do aluno................................................................ 90 13 6.2.5 Parceria com o professor do AEE /e ou itinerante................................................... 91 6.2.6 Ações que envolvam a disseminação da Libras com a turma e ou com a escola ... 92 6.2.7 Concepção Linguística ........................................................................................... 93 6.3 Eixo 3: Relações Sociais ........................................................................................ 94 6.3.1 Relação Professor Interlocutor de Libras com o aluno surdo ................................. 94 6.3.2 Comunicação do aluno surdo com os demais alunos da turma .............................. 96 6.3.3 Comunicação do Professor Interlocutor de Libras com os demais alunos da turma ...................................................................................................................... 97 6.3.4 Família e participação da mesma na escolarização do aluno ................................ 99 6.4 Eixo 4: Questões Conceituais .............................................................................. 100 6.4.1 Concepção de Inclusão ........................................................................................ 100 6.4.2 Conhecimento relacionado à Política de Educação Inclusiva e Legislação específica da Libras e do Intérprete .................................................................... 102 6.4.3 Resolução da Secretaria Estadual SE 38/2016 que dispõe sobre a atuação dos docentes como Interlocutores de Libras com habilitação e qualificação em Libras .................................................................................................................. 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 106 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 109 ANEXO 1: Parecer do Comitê de Ética ........................................................................... 121 APÊNDICE 1: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido......................................... 124 APÊNDICE 2: Roteiro de Entrevista Semiestruturada .................................................... 127 14 APRESENTAÇÃO A Educação Especial sempre me chamou a atenção, desde a minha primeira graduação em Normal Superior em 2003. De alguma forma, conviver com as pessoas com deficiência sempre me fez refletir sobre este universo e qual contribuição poderia dar a elas por meio do meu trabalho. Entre todas as áreas que compõem a Educação Especial, uma em particular me chamava atenção, a surdez. Interessei-me pela Língua de Sinais, fiz o curso de Libras não apenas por curiosidade, mas por necessidade, pois no ambiente escolar me sentia impotente frente à falta de comunicação com o surdo, cujo interesse nesse universo silencioso no qual convivia como espectador, fez com que eu tivesse cada vez mais vontade de aprender sobre ele. Meu primeiro contato com a Libras e a surdez começou no ano de 2003, em uma escola municipal na cidade de Caraguatatuba, onde atuava como estagiário em um laboratório de informática. Algumas vezes na semana a professora da sala de recursos, especialista em Deficiência Auditiva, utilizava aquele espaço com uma aluna surda, ela por sua vez, tentava se comunicar comigo sem sucesso, aos poucos por intermédio da professora especialista fui compreendendo como era importante aprender a Língua de Sinais. Nessa mesma época ganhei um sinal dado pela aluna surda, esse sinal é como uma identidade dentro da Comunidade Surda em que as pessoas são identificadas por um sinal específico atribuído por uma característica física específica da pessoa. Em 2006, já formado, retornei a Araraquara e ingressei na APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) da cidade, onde trabalhei por três anos. Nesse período cursei uma pós-graduação na área de Educação Especial e tive um módulo específico de Libras. Talvez vendo a paixão da professora em ensinar aquele módulo, comecei a sonhar em seguir estudando a área da surdez. Desde então, meu objeto de estudo tem sido realizado na área de surdez, na mesma instituição iniciei o curso básico de Libras e, no ano seguinte, recebi uma aluna surda e foi através da Língua de Sinais que consegui uma melhor aproximação com a aluna e desenvolver um trabalho pedagógico. A partir desse momento, comecei a criar um vínculo maior com a Libras e com todas as questões a ela vinculadas. Em 2009, ingressei na área de educação, por meio de um Concurso Público na Prefeitura de Araraquara, onde assumi a função de agente educacional e por afinidade com a clientela da Educação Especial passei a acompanhar um aluno surdo com autismo, de forma que o vínculo com a Língua de Sinais que já havia sido construído, apenas se fortaleceu. Em 2011 me matriculei em uma pós-graduação na cidade de Campinas para me especializar na 15 Docência e Interpretação de Libras e, no ano seguinte, em 2012, ingressei como Professor Interlocutor de Libras (PI) na Rede Estadual de Ensino de São Paulo. Em 2013 concluí a especialização em “Docência e Interpretação de Libras”, no mesmo período, fui convidado pela Prof.ª Edna Diogo, coordenadora da pós-graduação em Libras na cidade de Jaguariúna, a compor o quadro de profissionais, inicialmente como auxiliar de coordenação, depois como intérprete e, atualmente, como docente. Outros trabalhos na área foram surgindo, como o Intérprete de Libras no curso de Formação de Condutores, Professor de Libras no IFSP de Araraquara no curso de graduação em Matemática, na unidade ministrei cursos de Libras para comunidade. No Campus da Unesp de Araraquara em 2018, como professor convidado ministrei a disciplina optativa de Libras presencial para o curso de graduação em Pedagogia, além dos cursos de extensão citados em 2017, atualmente continuo atuando na Rede Estadual de São Paulo como Professor Interlocutor de Libras, além da docência na pós-graduação. A especialização em Docência e Interpretação de Libras foi o início de minha formação na área. São seis anos ininterruptos dedicados às questões relacionadas à surdez e formação de docentes na área, ao longo desses anos busquei incessantemente aperfeiçoar-me na Libras, buscando formação em outras regiões devido a carência de cursos na região, atualmente, em concomitância com o mestrado, estou matriculado no terceiro semestre da graduação em Letras Libras. Por meio dos cursos que realizei ampliei meu hall de contatos com a Comunidade Surda de outras cidades, bem como, com profissionais na área que foram meus professores e hoje são meus parceiros e amigos pessoais. A partir desse momento, pude acompanhar de perto a realidade dos alunos surdos e o trabalho dos colegas na função de Intérpretes Educacionais e Professores Interlocutores de Libras nas escolas, percebendo a complexidade dessa atuação e a confusão por parte de outros colegas de outras áreas e especialistas. Tal situação me fazia indagar sobre o papel desse profissional no contexto escolar. Qual seria a sua real função? Interpretar, ensinar, mediar… qual sua atribuição frente ao aluno surdo? Dia após dia, estar diante de uma conjuntura tão complexa, me fazia sentir com as mãos atadas. Em minha mente, a universidade e a escola deveriam caminhar juntas em um trabalho colaborativo, porém a minha formação nunca se deu em um viés que partisse para pesquisa, mas sim, com um olhar direcionado ao mercado de trabalho, pois a necessidade financeira me remetia a esse caminho. Porém, enquanto educador, o pesquisador nunca deixou de estar em mim, mais tarde, amadurecido pela vida e pelas experiências profissionais, parto para área de pesquisa. 16 Estou finalizando meu mestrado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), pesquisando sobre Professor Interlocutor de Libras e sua atuação no contexto escolar na Educação Básica. Desenvolver este estudo contribuiu para minha prática enquanto professor e pesquisador, pois pude refletir melhor sobre minha práxis enquanto profissional e também sobre a minha atuação, considerando a perspectiva da pesquisa. 17 INTRODUÇÃO A temática central dessa pesquisa envolve a compreensão de dois conceitos fundamentais: Surdez e Deficiência Auditiva (DA). É comum a confusão feita pelas pessoas sobre estes dois termos, algumas evitam o uso do termo “surdez”, dentro da nossa cultura, assim como o termo “surdo” remete a algo pejorativo, sendo muitas vezes evitado. Dessa forma, por falta de conhecimento as pessoas atribuem então o termo “Deficiente Auditivo”. Portanto, é importante esclarecer que existem diferentes graus de perda da audição e estas diferenças precisam ser previamente esclarecidas, a pessoa parcialmente surda com resíduo auditivo, com ou sem o uso do aparelho auditivo é considerada como Deficiente Auditivo (DA) podendo ser leve ou moderada, uma pessoa surda compreende um nível maior de comprometimento na percepção dos sons, é considerada pessoa surda aquele indivíduo com perda severa ou profunda, podendo ser congênita (antes do nascimento) ou adquirida (após o nascimento). A surdez acarreta um prejuízo no desenvolvimento típico da língua oral, principal meio de comunicação humana. Em contrapartida, indivíduos surdos desenvolvem outra forma de comunicação a partir da Língua de Sinais. Em relação à aquisição da língua, seja ela qual for, se a língua materna ou primeira língua, refere-se àquela adquirida naturalmente em seu contexto familiar. Quando chega ao ambiente escolar a criança já possui a sua língua materna, cabendo à escola apenas a sistematização do conhecimento. A criança surda, que em sua maioria nasce em um berço familiar de ouvintes, não tem imersão linguística semelhante à dos ouvintes, porque suas famílias desconhecem a Língua de Sinais. Dessa forma, cabe à escola contribuir na função de ensinar a Língua de Sinais e a Língua Portuguesa. O atendimento aos alunos com surdez depende das condições individuais do aluno e às escolhas da família. O grau de perda auditiva, a época da perda, idade de escolarização, entre outros, determinam o atendimento a ser prestado a esse aluno, que no ambiente escolar acontece por meio do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Após tentativas frustrantes na educação de surdos envolvendo as modalidades de ensino como Oralismo e Comunicação Total, atualmente ganha notoriedade o Bilinguismo, modalidades que serão exploradas no capítulo I desse estudo. A educação bilíngue para crianças brasileiras com surdez consiste na aquisição de duas línguas: a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a Língua Portuguesa (modalidade 18 escrita), com professores diferentes em momentos diferentes, a depender da escolha pedagógica da escola e da família. Dentro dessa temática destacamos o papel do Professor Interlocutor de Libras em sala de aula, do qual está envolto em discussão, pois o papel do Professor Interlocutor se confunde com o papel do Professor Regente, embora os dois profissionais desenvolvam papéis diferentes em sala de aula. O Professor Regente é a figura responsável pelo ensino, assim como por seus alunos. O Professor Interlocutor atua na mediação de duas línguas, na relação entre o professor e o aluno surdo, aluno ouvinte e aluno surdo, estendendo a toda escola. Em sala, desempenha a função de interpretação dos conteúdos trabalhados pelo professor para a Língua de Sinais. Há na legislação brasileira o Decreto nº: 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que trata a profissão de Intérprete de Libras. O Decreto nº: 5.626 de 22 de dezembro de 2005 que regulamenta a Lei de nº 10.436 de 24 de abril de 2002, entre outros aspectos, estabelece o papel do profissional que atuará junto ao surdo em diversos locais, o Tradutor e Intérprete de Libras, dedicando o Capítulo V desse decreto, a especificação de sua formação e atuação. Sendo assim, considerando que esse profissional é uma figura recente no contexto escolar, sua atuação provoca tensão e dúvidas, visto que em alguns casos ocasiona discussão sobre sua formação, função e terminologia dentro do contexto educacional. Nas mais variadas redes de ensino, esse profissional recebe diferentes designações, Professor Intérprete de Libras, Intérprete Educacional de Libras, Professor Interlocutor de Libras, essa última especificamente no Estado de São Paulo. Seja qual for a nomenclatura dada, este profissional extrapola a função de interpretar na sala de aula, porque ele circula entre os dois campos, o campo tradutório e o campo pedagógico, facilmente alvo de crítica devido a falta de formação específica para atuação junto a este contexto, resultando em falhas e desacertos éticos e tradutórios. Em meio às diversas nomenclaturas existentes, Tuxi (2009) em suas pesquisas, sugere mudar a nomenclatura TILS (Tradutor Intérprete da Língua de Sinais) dos documentos e bibliografias para “professor intérprete”, justificando que a atuação desse profissional ultrapassa o ato de interpretar, uma vez que no campo pedagógico, a nomenclatura sugerida teria mais proximidade com o seu desempenho na sala de aula. Para Lacerda e Lodi (2009) em outros países o intérprete geral é diferenciado do intérprete educacional. Na Itália, por exemplo, o profissional que atua na sala de aula é denominado de Assistente de Comunicação, pois se entende que naquele espaço o intérprete também se envolverá de alguma maneira com as práticas educacionais, constituindo aspectos 19 singulares a sua forma de atuação. No Brasil, a disparidade no perfil deste profissional tem uma justificativa de estar em constante processo de formação. Antes, por exemplo, este profissional atuava como voluntário, inicialmente de forma clandestina e foi somente após o ano de 2002, com a lei citada acima, que a profissão ganhou status legitimado pela sua atuação. Marinho (2007) destaca também que a postura adotada pelo intérprete muitas vezes não é uma decisão de cunho pessoal, mas exigida mediante a circunstância em que se encontra. No momento que o intérprete percebe uma necessidade do surdo ou uma dificuldade na aprendizagem, seja pela percepção facial ou mesmo pela interpelação do surdo, agindo como facilitador na comunicação e no ensino, transpassando o processo interpretativo. Todas as reflexões acima abordadas nos levaram a aprofundar os estudos nesta temática a partir da presente pesquisa, a qual teve objetivo de analisar o perfil do professor interlocutor de Libras na rede estadual de ensino do interior paulista, bem como investigar a existência das parcerias pedagógicas entre ele e o professor regente, entre alunos surdos e família, como também averiguando a qualificação desse profissional para atuar com os alunos surdos e, por fim, o que pensam esses profissionais sobre a inclusão escolar do aluno surdo. Para o desenvolvimento deste trabalho realizamos no item I, um levantamento sobre o Estado da Arte, na sequência, no item II, discorremos sobre Surdez, Língua, Educação e Legislação, no item III apresentamos um Breve Histórico do Tradutor e Intérprete de Línguas de Sinais (TILS) no mundo e no Brasil, no item IV foi exposto sobre a Escolarização do Surdo em um Contexto Inclusivo e nos itens V e VI abordamos o Método, Resultados da Discussão e, por fim, a Conclusão. 20 I LEVANTAMENTO DE ESTUDOS SOBRE PROFESSOR INTERLOCUTOR DE LIBRAS O levantamento teórico relacionado ao tema desta pesquisa foi realizado tendo em vista a ordem das publicações em bases de dados e catálogos eletrônicos, tais como: Portal Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), BDTD (Biblioteca Digital de Teses e Dissertações), UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos), SCIELO (Scientific Eletronic Library Online), UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) e Portal UNESP. Tais levantamentos objetivaram conhecer as pesquisas científicas focalizadas na temática da surdez e atuação do Professor Interlocutor de Libras de forma a mapear a produção do conhecimento nesta área. A busca foi realizada em todo acervo dos dados e catálogos eletrônicos citados acima e foram elencadas as seguintes palavras-chave: Educação Inclusiva, Surdez, Professores, Professores Intérpretes de Libras, Tradutor e Intérprete de Libras, Intérprete Educacional, Ensino Fundamental e Ensino Médio. No levantamento feito no Portal Capes usando os descritores acima surgiram inúmeras publicações que fugiam da correlação com a pesquisa, então optou-se por direcionar a um único descritor: Intérprete Educacional de Libras, sendo encontrados 10 artigos, porém não selecionado nenhum por falta de relação com a pesquisa. Já no site da BDTD, foi usado o mesmo descritor, remetendo ao Repositório Institucional UFSCAR, foram encontradas 1 uma dissertação de mestrado e 1 tese de doutorado relacionado ao tema de pesquisa, são elas: 1. CAETANO, Priscila Fracasso. Discutindo a atuação do professor interlocutor de Libras a partir de um grupo de formação. 2014. 124 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014. 2. SANTOS, Lara Ferreira dos. O fazer do intérprete educacional: práticas, estratégias e criações. 2014. 203 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014. No site da SCIELO foi encontrado referentes às palavras-chave 1 um artigo relacionado ao tema da pesquisa: SILVA, Keli Simões Xavier; OLIVEIRA, Ivone Martins de. O Trabalho do Intérprete de Libras na Escola: um estudo de caso. Educ. Real. [online]. 2016, vol. 41, n.3, p. 695-712. ISSN 0100-3143. http://dx.doi.org/10.1590/2175-623661085. 21 No Repositório Institucional da UFSC foram encontrados 20 registros. Destes, apenas 1 teve relação com o tema da pesquisa: PASSOS, Gabriele Cristine Rech dos. Os Intérpretes de Língua de Sinais: atitudes frente à Língua de Sinais e às pessoas surdas. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Florianópolis, 2010. No site da UNICAMP, buscando referenciais no Repositório Institucional de acordo com o descritivo, foram encontrados 20 registros e nenhum resultado relacionado ao tema de pesquisa. Enquanto que no Repositório Institucional da UNESP foram relacionados 111.593 resultados e analisados 10 deles, no entanto, apenas 1 um relacionado ao tema desta pesquisa, sendo ele um Trabalho de Conclusão de Curso em licenciatura de Pedagogia. Na realização do levantamento foram encontradas 4 pesquisas que abordam temas ligados à atuação do Professor Intérprete de Libras e que serviram de embasamento para o estudo, sendo elas: Passos (2010), Caetano (2014), Santos (2014) e Silva; Oliveira (2016). Caetano (2014), em sua dissertação de mestrado, buscou analisar a estratégia de formação continuada para Professores Interlocutores (PI). Participaram de sua pesquisa três PIs, atuantes nas Escolas Estaduais de uma cidade de porte médio do interior paulista. Os encontros do grupo de formação aconteceram semanalmente com duração média de duas horas cada, totalizando dez encontros. Os dados coletados (questionário aberto, filmagem, roteiro de análise das filmagens do grupo, atuação do PI, e transcrições do grupo de formação) foram discutidos em três eixos de análises: 1) O papel/função do PI em sala de aula e na escola; 2) Desafios, possibilidades e limites da atuação do PI; e 3) O grupo de formação enquanto espaço de interlocução/mediação entre os participantes. A pesquisadora concluiu que as análises das sequências revelaram a necessidade de um espaço de formação continuada entre PIs a fim de possibilitar discussões e reflexões sobre a prática. Dessa forma, os depoimentos dos PIs indicam a precariedade do ensino para alunos surdos na realidade vivenciada pelos PIs, já que não há uma diretriz ou uma orientação de trabalho, ou mesmo metas estabelecidas para serem seguidas. É devido a essa lacuna de metas e diretrizes que causam confusão entre os fazeres de cada profissional. A segunda leitura refere-se ao trabalho da tese de doutorado, desenvolvido por Santos (2014). O objetivo da tese foi o de desvendar o que há por trás do trabalho de interpretação de uma língua para outra, quais fatores o influencia, positiva ou negativamente, a atuação do Intérprete Educacional (IE). A coleta de dados se deu no segundo semestre de 2011, em que 22 foram observados quatro IEs atuando em quatro salas diferentes, com aulas ministradas por três professores, nos anos finais do Ensino Fundamental, em uma escola com Programa Educacional Inclusivo e Bilíngue para Surdos. Inseridos em salas de aula, e acompanhando as vivências nelas ocorridas, a pesquisadora realizou vídeo-gravações que permitiram registrar situações naturais e cotidianas do processo tradutório realizado pelos IEs. Os resultados mostraram que as análises e reflexões sobre o fazer do IE levaram à construção da tese de que o fazer do Intérprete Educacional não se restringe à tradução e interpretação de enunciados, e sua prática cotidiana vai além desse aspecto: o IE é coautor dos discursos proferidos pelo professor em sala de aula. A terceira leitura refere-se ao artigo desenvolvido por Silva e Oliveira (2016), que teve o objetivo de analisar o trabalho do intérprete de Libras em uma sala de aula do sétimo ano do ensino fundamental de uma escola da Rede Municipal de Ensino de Vitória, Espírito Santo, com proposta inclusiva. A partir da discussão realizada, alguns resultados podem ser destacados: em primeiro lugar, ressalta-se que, embora o intérprete de Libras não seja o professor do aluno, faz-se necessário que ele tenha um envolvimento com o trabalho educativo em sua atuação interpretativa; seu trabalho deve ser traçado colaborativamente com o professor regente; a formação para intérpretes que optam em atuar na área educacional deve tratar, além das questões da fluência da Língua de Sinais, deve buscar compreender aspectos que dizem respeito à função da escola, bem como ao papel da mediação pedagógica no processo de apropriação de conhecimentos do aluno surdo. Finalmente, o estudo indica a necessidade de se ampliar a discussão sobre as especificidades do trabalho de interpretação no espaço educacional. Por fim, a quarta leitura encontrada refere-se à dissertação de mestrado desenvolvido por Passos (2010), o qual buscou refletir a respeito das atitudes que os profissionais intérpretes de Língua de Sinais possuem frente aos surdos e a Libras, tendo em vista toda a repressão que os surdos e a Língua de Sinais foram submetidos durante séculos. Segundo a autora, se fez necessário investigar que tipo de atitudes os profissionais que atuam diretamente com alunos surdos, possuem perante eles e a sua língua. Assim, é de suma importância ressaltar que foram poucas as pesquisas encontradas sobre este assunto especificamente. Porém, elas serviram de suporte para o desenvolvimento do presente trabalho. Portanto, esta pesquisa trará importantes contribuições, pois permitirá compreender mais sobre a atuação do Professor Interlocutor de Libras na perspectiva da educação inclusiva. 23 2 SURDEZ, LÍNGUA, LEGISLAÇÃO E EDUCAÇÃO No que diz respeito à surdez e deficiência auditiva, Carneiro (2013) esclarece dizendo que há uma confusão em relação aos conceitos de deficiência auditiva e de surdez, pois são entendidos como similares. Segundo a autora, há uma variação da perda auditiva em quatro graus diferentes. No primeiro grau, a perda leve de audição varia em torno de 15 a 30 decibéis, o indivíduo consegue ouvir quase tudo, no segundo grau há uma perda moderada em que o indivíduo tem uma percepção auditiva entre 31 e 60 decibéis, já o terceiro grau é considerado perda severa a variação entre 61 e 90 decibéis e o quarto grau, ocorre a perda profunda é quando o sujeito só ouve sons acima de 90 decibéis (por exemplo, ouve só a turbina de um avião). Para Sales et al. (2010): [...] o indivíduo com incapacidade auditiva é aquele cuja percepção de sons não é funcional na vida comum. Aquele cuja percepção de sons ainda que comprometida, mas funcional com ou sem prótese auditiva, é chamado de pessoa com deficiência auditiva. (SALES, 2010, p.48) Dessa forma, considera que a pessoa com alguma limitação ou impedimento auditivo tem uma incapacidade de percepção de todos os sons, porque havendo o resíduo, a pessoa é capaz de utilizar a audição mesmo que com algumas perdas. Algumas delas se beneficiam com o uso de aparelhos para auxiliar na audição, diferentemente da pessoa surda, caracterizada pela incapacidade de percepção de quase todos os sons, especialmente os sons de fala, comprometendo assim o desenvolvimento da língua oral. É considerado o sujeito surdo àquele que tem uma diferença linguística e diferença cultural, não o reconhecendo como deficiente e sim como alguém diferente. Campos (2014) define o surdo como: [...] aquele que apreende o mundo por meio de contatos visuais, que é capaz de se apropriar da língua de sinais e da língua escrita e de outras, de modo a propiciar seu pleno desenvolvimento cognitivo, cultural e social. (CAMPOS, 2014, p. 48) Dessa forma, a pessoa surda possui toda a capacidade de aprender e se desenvolver, devendo-se respeitar sua particularidade linguística e cultural. O Decreto Federal de nº 5.296/04 nos traz a definição de Deficiência Auditiva como, “a perda bilateral, parcial ou total, como de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, comprovada por audiograma nas frequências de 500 hertz, e 2.000 hertz” (BRASIL, 2004). Todavia, essas são as frequências medidas para os sons de fala, que têm como intensidade uma variação entre 50 e 70 decibéis. Assim, há uma dubiedade no texto do Decreto, pois, define-se a deficiência 24 auditiva como perda bilateral, parcial ou total, no entanto, a perda total ou profunda está acima de 90 decibéis, o que impede o indivíduo que a possui de ouvir sons de fala, caracterizando-se como surdez e não como deficiência auditiva. O surdo tem afetada sua capacidade intelectual e a sua habilidade para aprender, sem a interiorização de uma língua. A criança que nasce surda ou que adquire a surdez antes do desenvolvimento da língua oral perde a estimulação linguística, diferente das crianças ouvintes que têm esse estímulo desde o ventre materno. A surdez pode ainda trazer a esse indivíduo, problemas emocionais e psicológicos, alterações de aprendizado, alterações no processo educacional, alterações de fala, problemas no trabalho, insatisfação, solidão, entre outros (VYGOTSKY, 1984). Para Carneiro (2013), a surdez afeta o aspecto psicossocial e educacional da criança de forma mais abrangente. Segundo a autora, quando a surdez é congênita ou adquirida antes do desenvolvimento da língua oral, suas implicações trazem para a criança a incapacidade de desenvolver a fala de forma natural e também transtornos no seu desenvolvimento global. Em relação ao que se entende por “língua” e “linguagem”, também é comum por parte das pessoas uma falta de esclarecimento. Para Saussure (2004), a língua não se pode confundir com a linguagem, pois ela é somente uma parte de um produto social e de um conjunto de convenções necessárias, que foram adotadas por indivíduos de uma sociedade para possibilitar o exercício dessa faculdade. Para Goldfeld (1997): A linguagem por sua vez é tida como tudo que envolve significação, que tem valor semiótico, não se restringindo apenas a uma forma de comunicação, e é nela que o pensamento do indivíduo é constituído (GOLDFELD, 1997, p.30). A autora pontua que a linguagem está sempre presente no sujeito, até quando este não está se comunicando com seus pares, ela constitui o sujeito e a forma que percebe o mundo e a si próprio dentro dele. Para Vygotsky (1997) a trajetória principal do desenvolvimento psicológico da criança é uma trajetória de progressiva individualização, portanto, é um processo que se origina nas relações sociais, interpessoais e se transforma em individual, intrapessoal. Dessa forma, a linguagem da criança, inicialmente é social, pois, ela se desenvolve no plano das interações sociais e nas relações interpessoais. No decorrer do seu desenvolvimento, seu discurso social subdivide-se em discurso comunicativo e discurso egocêntrico. Segundo Vygotsky (1997), o discurso egocêntrico surge quando a criança transfere as formas sociais cooperativas de comportamento para as funções psíquicas pessoais internas. Com o passar do 25 tempo, com a sua maturação, esse discurso se transforma em discurso interior, distinguindo-se da fala social. Sendo assim, as estruturas do discurso, quando dominadas pela criança, transformam-se nas estruturas básicas do pensamento. Compreendendo a distinção entre língua e linguagem, em relação a aquisição da língua pela criança ouvinte e pela criança surda, podemos considerar que desde seu nascimento a criança ouvinte é exposta à língua oral, dessa forma é fornecida para ela a oportunidade de adquirir uma língua natural, a qual irá permitir realizar trocas comunicativas, vivenciar situações do seu meio. Portanto, ela poderá possuir uma língua efetiva que contribuirá na constituição de sua linguagem. No caso da criança surda, ela deveria ter a mesma oportunidade, através da Língua de Sinais, de adquirir uma língua própria para compor a constituição da sua linguagem. Por não terem o acesso à Língua de Sinais, na maioria das vezes, as crianças surdas são associadas a estereótipos, como pensamento concreto, elaboração conceitual rudimentar, baixa sociabilidade, rigidez, imaturidade emocional, isolamento, dentre outros (GÓES, 1999). A solução seria possibilitar ao surdo o aprendizado na Língua de Sinais, assim, os mesmos conceitos que o ouvinte tem acesso na língua oral, seriam acessíveis para o surdo em sua língua materna, ou seja, a Língua de Sinais. De forma geral, às Línguas de Sinais são as Línguas Naturais das Comunidades Surdas e não são universais, assim como as Línguas Orais. De acordo com Honora et al. (2009), as línguas de sinais são: Naturais, pois surgiram do convívio entre as pessoas surdas. Elas podem ser comparadas à complexidade e à expressividade das línguas orais, pois pode ser passado qualquer conceito, concreto ou abstrato, emocional ou irracional [...]. Trata-se de línguas organizadas e não de simples junção de gestões. Por este motivo, por terem regras e serem totalmente estruturadas, são chamadas de LÍNGUAS. [...]. As línguas não são universais. Cada uma tem sua própria estrutura gramatical, sendo assim, como não temos uma única língua oral, também não temos apenas uma língua de sinais. (HONORA, et al., 2009, p. 41) Portanto, as Línguas de Sinais não são apenas gestos e mímicas utilizados para facilitar a comunicação entre os surdos, elas constituem um sistema linguístico complexo e muito bem estruturado como as línguas faladas. As Línguas de Sinais são reconhecidas pela Linguística como uma língua viva e autônoma. Por meio dessa língua, seus usuários podem expressar pensamentos simples e também complexos. Nesse processo, eles utilizam a expressão facial e corporal para fazer afirmações, negações, questionamentos, enfatizar, omitir, salientar, demonstrar desconfiança, 26 entre outros aspectos semelhantes à língua oral. De acordo com Salles: [...] em Línguas de Sinais, são utilizadas marcas não-manuais, como expressões fisionômicas e movimentos do pescoço, em sincronia com o movimento manual, enquanto em línguas orais, é utilizada a modulação do contorno melódico (entoação e intensidade) da cadeia linguística, em sincronia com os segmentos fônicos (SALLES et al., 2002). Enquanto nas Línguas Orais a modalidade é oral-auditiva, nas Línguas de Sinais, a modalidade é espaço-visual. Somente a partir da década de 1960, as Línguas de Sinais foram estudadas, e reconhecidas pela Linguística, com status de língua. Stokoe foi um linguista, estudioso e responsável pela pesquisa extensiva com a American Sign Language ou ASL (Língua de Sinais Americana). A partir de suas pesquisas ficou comprovado que as Línguas de Sinais atendiam a todos os critérios linguísticos semelhantes à de uma língua natural quanto ao léxico, à sintaxe e à capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças (WILCOX, S; WILCOX, P, 2005). No Brasil, a Língua Brasileira de Sinais é a língua dos surdos brasileiros, ela possui uma gramática própria e que teve seu o reconhecimento tardio, decorrente de lutas travadas pela Comunidade Surda, familiares e profissionais ligados às causas dos surdos. A Língua Brasileira de Sinais foi estabelecida, na Lei nº 10.436/2002, como língua oficial das pessoas surdas. Conforme a própria palavra, Libras é uma língua utilizada somente no Brasil: Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002). A lei expõe que deve-se pensar na Libras como um idioma, assim como, a língua espanhola, alemã ou qualquer outra língua, dessa maneira, utilizada e reconhecida em seu país de origem. Dentre as Línguas de Sinais há como exemplos: a “American Sign Language” (ASL); a “British Sign Language” (BSL); a “Lengua Española de Signos” (LES); a “Langue des Signes Française” (LSF); e “Língua Gestual Portuguesa” (LGP); entre outras Línguas de Sinais no mundo. Além disso, a Libras é a segunda língua oficial do Brasil. Em relação a Libras, Strobel e Fernandes (1998), afirmam que: A modalidade gestual-visual espacial pela qual a LIBRAS é produzida e percebida pelos surdos leva, muitas vezes, as pessoas a pensarem que todos os 27 sinais são o desenho no ar referente ao que representam. É claro que, por decorrência de sua natureza linguística, a realização de um sinal pode ser motivada pelas características do dado da realidade a que se refere, mas isso não é uma regra. Portanto, necessita de um aprendizado sistemático, preferencialmente ensinado por surdos. (STROBEL, FERNANDES, 1998, p. 25) Portanto, a Libras é uma língua espaço-visual e não oral-auditiva. A organização espacial da Libras apresenta possibilidades de estabelecer relações gramaticais no espaço, por meio de diferentes formas. Segundo Brito (1995), a Libras têm sua estrutura gramatical organizada a partir de alguns parâmetros que estruturam sua formação nos diferentes níveis linguísticos. Três são seus parâmetros principais ou maiores: a Configuração das mãos (CM), o Movimento (M) e o Ponto de Articulação (PA); e outros três constituem seus parâmetros menores: Região de Contato, Orientação das mãos e Disposição das mãos. Para Quadros e Karnopp (2004), no espaço em que são executados os sinais, o estabelecimento nominal e o uso do sistema pronominal são fundamentais para as relações sintáticas. Em qualquer discurso em Língua de Sinais, é necessário haver a definição de um local no espaço de sinalização (espaço definido na frente do sinalizador). A base para a sinalização no espaço irá depender da presença ou não do referente: caso esteja presente, os pontos no espaço serão delineados a partir da posição real ocupada pelo referente; caso contrário, serão escolhidos pontos abstratos no espaço. Segundo os mesmos autores, outro fator importante, assim como na língua oral, a Língua de Sinais possui uma infinidade de variações de um mesmo sinal, se tratando de Brasil, um país com imensa extensão territorial, é natural que haja diferenças regionais em relação a hábitos alimentares, vestuários e situação socioeconômica, entre outras características. Fatores estes que geraram também algumas variações linguísticas regionais, conhecido como regionalismo. Pensando na Libras, há regionalismo assim como o Português, alguns sinais apresentam significado iguais, porém se configuram de forma diferente de um estado para outro. Assim como os ouvintes que possuem sua cultura, a Cultura Ouvinte, os surdos tem sua própria cultura, a Cultura Surda. Em relação à Cultura Surda, para a pesquisadora surda Gladis Perlin (2006): [...] são construídas dentro das representações possíveis da cultura surda, elas moldam-se de acordo com maior ou menor receptividade cultural assumida pelo sujeito. E dentro dessa receptividade cultural, também surge aquela luta política ou consciência oposicional pela qual o individuo representa a si mesmo, se defende da homogeneização, dos aspectos que o tornam corpo menos habitável, da sensação de invalidez, de inclusão entre os deficientes, de menos valia social. (PERLIN, 2006, p. 77-78). 28 Por meio da Cultura Surda o sujeito surdo entende o mundo e pode modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável, porque se ajustam as suas percepções visuais, ou seja, abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo, moldada mediante as suas interações dentro da comunidade surda e construindo sua identidade. Logo é de suma importância a língua materna, pois é pela língua que qualquer ser humano se apropria dos conceitos formulados através de signos; sem uma língua, o sujeito não pode tecer uma construção conceitual. Os surdos podem ter um bom funcionamento linguístico se a língua for acessível a eles nos canais que têm disponíveis, como o canal visual. Atualmente, estudos na área abordam a importância da Libras como identidade da Comunidade Surda, fruto de lutas, que é de suma importância para a educação do surdo, assim, buscamos compreender a história da educação do surdo no mundo. 2.1 BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DE SURDOS NO MUNDO Com base na filosofia educacional inclusiva, nos acostumamos a ouvir termos como surdo, surdez, Língua de Sinais, Libras entre outras, cabendo aqui esclarecer esses conceitos, mas primeiramente, torna-se necessário conceituar o que é “Inclusão”. Segundo a definição dada por Ferreira (2010), incluir é abranger, compreende: conter, envolver, implicar; pôr ou estar dentro; inserir num ou fazer parte de um grupo. Para Fávero (2004): A inclusão significa, antes de tudo, „deixar de excluir‟. Pressupõe que todos façam parte de uma mesma comunidade e não de grupos distintos. Assim, para „deixar de excluir‟ a inclusão exige que o Poder Público e a sociedade em geral ofereçam as condições necessárias para todos. (FÁVERO, 2004, p. 38) O ato de incluir em uma visão mais ampla significa acolher todas as pessoas, sem exceção, no sistema de ensino e na sociedade, independentemente de cor, gênero, classe social e condições físicas e psicológicas. No contexto escolar, cabe a escola o dever de incluir e proporcionar a educação para todos dentro de uma sociedade globalizada. Com o tempo, Aa inclusão possibilitou a convivência com mais naturalidade, porém nem sempre foi assim, Garbe (2012) fala sobre o tema usando a deficiência física como exemplo, a ideia se estende às demais deficiências, incluindo a surdez, relacionando as barreiras físicas para pessoas com deficiência física, assim como, as barreiras sensoriais para surdos e cegos. Nos primeiros séculos da Era Cristã, a pessoa com deficiência era definida como alguém demonizado, 29 classificada como “castigo de Deus” e julgada como uma punição, uma consequência de culpa. A deformação ou ausência colocava-os na condição de segregados, marginalizados e discriminados. A sociedade romana da época (século III), despreocupada com a proliferação de doenças e o crescimento da pobreza e da miserabilidade dentre boa parte da população, fez com que a doutrina cristã a partir do século IV, voltasse-se para a caridade, humildade, amor ao próximo, para o perdão das ofensas, para a valorização, compreensão da pobreza e da simplicidade da vida de uma população marginalizada e desfavorecida, dentro da qual estavam aqueles que eram vítimas de doenças crônicas, de deficiência física e sensorial ou de problemas mentais. Torna-se necessário retomar a história de exclusão vivida pelas pessoas com deficiência no passado, pois é por meio dela que se compreende os períodos de exclusão vividos por essas minorias, a exemplo dos surdos, cujo histórico contribuiu para que houvesse uma mobilização em prol das conquistas de seus direitos dentro de uma sociedade excludente, seja ele por meio das lutas ou pela divulgação da Cultura Surda desconstruindo assim, os estereótipos. De acordo com Bianchetti e Freire (2002), na Antiguidade, na Roma e Grécia, essencialmente em Esparta e Atenas, cidades de grande respeito quando se tratava de guerras, não poderiam admitir pessoas com imperfeições. Os autores declaram que caso a criança nascesse e apresentasse qualquer manifestação que pudesse atentar contra o ideal prevalecente, era eliminada. Para época, alguém que não se enquadrava no padrão social considerado normal, se tornava um empecilho, um ”peso morto”, o que o levava a ser relegado, abandonado, sem que isso causasse nas pessoas sem deficiência os chamados sentimentos de culpa, característicos de uma normalidade para a época, [...] quem não tem competência não se estabelece‟. Isto é, não há uma teorização, uma busca por causas, havia simplesmente uma espécie de seleção natural: os mais fortes sobrevivem (BIANCHETTI e FREIRE, 2002, p.28). Na Era Cristã, muitos extermínios eram concedidos, logo assumir um filho deficiente era o mesmo que assumir ser pecador, pois ao invés de filho, têm-se um “fruto do pecado” (BIANCHETTI e FREIRE, 2002). Para os surdos, a mudança começou a partir da ação de Pedro Ponce de León (1510 – 1584). Segundo Goldfeld (1997, p.25), “[...] o monge beneditino espanhol, Pedro Ponce de Leon (1520 – 1584), ensinou quatro surdos, filhos de nobres, a falar grego, latim e italiano, além de ensinar-lhes conceitos de física e astronomia”. Leon viveu em um monastério na Espanha, em 1570, e usava sinais rudimentares para se comunicar, pois lá havia o Voto do 30 Silêncio imposto pela igreja. Seus alunos eram surdos, filhos de nobres que, preocupados com a exclusão de seus filhos diante da sociedade e da lei, procuravam León para auxiliá-los. O monge dedicou-se a ensinar os surdos a ler, escrever, falar e aprender as doutrinas da fé católica. “A possibilidade do surdo falar implicava no seu reconhecimento como cidadão e, consequentemente, no seu direito de receber a fortuna e o título da família.” (MOURA, 2000, p.18). Partindo desse pressuposto de que o surdo teria que falar para ser “humanizado” e aceito como “normal”, outros defensores do mesmo pensamento foram surgindo. Até o século XV, os surdos, bem como todos os outros deficientes, eram alvo da medicina e da religião católica. A primeira estava mais interessada em suas pesquisas e a segunda, em promover a caridade com pessoas muito desafortunadas, pois, para ela a doença representava punição. Segundo o pensamento da época, os surdos não tinham possibilidade de desenvolver faculdades intelectuais e, por isso eram impedidos de frequentar a escola e proibidos de conviver com outras pessoas. Eles não tinham vida social e com o predomínio do poder da Igreja, a visão sobre os surdos estabelecia que eles não poderiam se salvar, pois não podiam confessar os seus pecados. Eram proibidos de tomar comunhão e não podiam casar, nem receber herança “[...] as pessoas surdas, ao longo do caminho, enfrentam descrédito, preconceito, piedade e loucura” (SALLES et al., 2002). Em 1620, o padre espanhol Juan Pablo Bonet (1579-1633), criou o primeiro tratado de ensino de surdos-mudos (esta expressão refere-se ao termo usado na época, mas que, atualmente caiu em desuso), o qual foi editado na França, que iniciava a escrita pelo alfabeto manual. Bonet foi quem primeiro idealizou e desenhou o alfabeto manual, no mesmo ano surge o livro Reducción de las letras y artes para enseñar a hablar a los mudos (GOLDFELD, 1997). Alguns estudiosos da língua também se destacaram no ensino dos surdos e um exemplo é o holandês Van Helmont (1614-1699) que propunha a oralização do surdo por meio do alfabeto da língua hebraica, pois, segundo ele, as letras hebraicas indicavam a posição da laringe e da língua ao reproduzir cada som. Helmont foi quem primeiro descreveu a leitura labial e o uso do espelho que, posteriormente, foi aperfeiçoado por Johann Conrad Amman (1669-1724). O Oralismo ou a filosofia oralista pretendia integrar o surdo na comunidade de ouvintes, trabalhando para desenvolver a língua oral. Segundo Goldfeld (1997), a filosofia oralista tinha como objetivo a reabilitação da fala, pois o entendimento da época era a visão de que a surdez não fazia parte da normalidade. Conforme explica Nogueira (2010), fazer com que os surdos se tornassem ouvintes e 31 interagissem com o mundo usando o recurso da leitura labial, era o objetivo da época. Um dos estudiosos da época foi Johann Konrad Amman (1669 – 1724), médico educador de surdos suíço, que aperfeiçoou os procedimentos de leitura labial por meio de espelhos e tato, percebendo as vibrações da laringe, cujo método é usado até hoje em terapias fonoaudiológicas. Para Amman, o foco do seu trabalho era o Oralismo, pois acreditava que os surdos eram diferentes dos animais, devido à incapacidade de falar. Era contra o uso da Língua de Sinais, acreditando que seu uso atrofiaria a mente, impossibilitando o surdo de, no futuro, desenvolver a fala por meio do pensamento. O segredo de seu método só foi descoberto após sua morte. Relatos demonstram que usava o paladar para a aquisição da fala. No século XVII, era percebido o grande interesse que os estudiosos tinham pela educação dos surdos, principalmente porque tinham descoberto que esse tipo de educação possibilitava ganhos financeiros, visto que as famílias abastadas que tinham descendentes surdos pagavam grandes fortunas para que seus filhos aprendessem a falar e a escrever. Charles-Michel de L´Epée (1712-1789) foi um dos mais importantes colaboradores na educação de surdo no mundo, era um educador filantrópico francês que ficou conhecido como “Pai dos Surdos” e também um dos primeiros que defendeu o uso da Língua de Sinais. Ele “reconheceu que a língua existia, desenvolvia-se e servia de base comunicativa essencial entre os surdos.” L´Epée teve a disponibilidade de aprender a Língua de Sinais para poder se comunicar com os surdos. Criou a primeira escola pública para Surdos em Paris, o Instituto Nacional para Surdos-Mudos, em 1760. L´Epée fazia demonstrações de seus alunos em praça pública, e assim arrecadava dinheiro para continuar seu trabalho. Essas apresentações consistiam em perguntas feitas por escrito aos Surdos, confirmando que seu método era eficaz. A partir deste convívio procurou aprender seus meios de comunicação. Transformou sua própria casa em uma escola para Surdos carentes ensinando-os através da combinação da Língua de Sinais e da Gramática Francesa Sinalizada, denominada de “Sinais Metódicos”. L´Epée referia-se a Língua de Sinais com respeito e a obra mais importante dele foi publicada em 1776 com o título A Verdadeira Maneira de Instruir os Surdos-Mudos (VELOSO e MAIA FILHO, 2009). De acordo com Nogueira (1997) em 1778, na Alemanha, cria-se uma escola em Leipzig, tendo como representante na área da educação de surdos, Samuel Heinick, neste momento histórico surge ideias sobre a educação oralista, rejeitando a Língua de Sinais. A metodologia Oralista consistia em desenvolver a fala do surdo a qual será abordada mais a diante. De acordo com Goldfeld (1997): 32 As metodologias do francês L‟Epée e do alemão Heinick se confrontaram e ambas foram submetidas à análise da comunidade científica europeia da época. Os argumentos de L‟Epée foram mais convincentes e, por isso, tiveram larga aceitação pelas demais escolas de surdos pela Europa, enquanto que para Heinick os recursos para a ampliação de seu instituto foram negados. (GOLDFELD, 1997, p.26) O século XVIII é considerado por muitos o período mais próspero da educação dos surdos. Neste século, houve a fundação de várias escolas para surdos. Além disso, qualitativamente, a educação do surdo também evoluiu, já que por meio da Língua de Sinais, eles podiam aprender e dominar assuntos e exercer diversas profissões (VELOSO e MAIA FILHO, 2009). Relata Sacks (1998): Esse período que agora parece uma espécie de época áurea na história dos surdos testemunhou a rápida criação de escolas para surdos, de um modo geral, dirigidos por professores surdos, em todo mundo civilizado, a saída dos surdos da negligência e da obscuridade, sua emancipação e cidadania, a rápida conquista de posições de eminência e responsabilidade – escritores surdos, engenheiros surdos, filósofos surdos, intelectuais surdos, antes inconcebíveis, tornaram-se subitamente possíveis. (SACKS ,1998, p. 37) Os trabalhos em prol da educação dos surdos realizados em instituições somente aparecem no final do século XVIII. Até esta época eram os preceptores (médicos, religiosos ou gramáticos) quem realizavam essa tarefa. O falecimento em 1789 de L‟Epée, já na Idade Contemporânea, trás grandes disputas de poderes pela cadeira de diretor de sua escola e as experiências e maiores interesses em descobertas científicas (VELOSO e MAIA FILHO, 2009). Honora, Frizanco e Lopes (2009) afirmam que o médico-cirurgião e psiquiatra Jean Marc Gaspard Itard (1774 – 1838) assumiu o posto de médico residente no Instituto Nacional de Surdos em Paris (Escola de L‟Epée). Ele estudou com Philipe Pinel, pai da Psiquiatria, para quem as sensações eram base para o conhecimento humano e que reconhecia somente a experiência externa como fonte do conhecimento. Itard dedicou grande parte de seu tempo tentando entender quais as causas da surdez. Sua primeira constatação foi a de que a causa dela não era visível. Foi o pioneiro no conceito de que a surdez era uma doença e que os sujeitos que dela sofressem eram doentes e deviam ser curados, ainda que para isso custasse o sofrimento e até a morte deles. A noção da “medicalização da surdez” surgiu com esse conceito, da qual que ele atribuiu à cura e que ainda está presente nos dias atuais. Conforme Skliar (2004): Medicalizar a surdez significa orientar toda a atenção à cura do problema auditivo, à correção do defeito da fala, ao treinamento de certas habilidades 33 menores, como a leitura labial e a articulação, mais que a interiorização de instrumentos culturais significativos, como a Língua de Sinais. E significa também se por e dar prioridade ao poderoso discurso da medicina na frente da débil mensagem da pedagogia, explicitando que é mais importante esperar a cura medicinal- encarnada atualmente nos implantes cocleares- que compensar o déficit de audição através de mecanismos psicológicos funcionalmente equivalentes. (SKLIAR, 2004, p.111). Os métodos de Itard para descobrir uma suposta causa da surdez se davam por meio da dissecação de cadáveres de surdos, em dar descargas elétricas em seus ouvidos, usar sanguessugas para provocar sangramentos e furar as membranas timpânicas de alunos, fazendo com que um deles fosse levado a morte e outros tivessem fraturas cranianas e infecções devido às suas intervenções. Itard nunca aprendeu a Língua de Sinais, após 16 anos de trabalho incessante para chegar à oralização. Segundo Moura (2000): Se esta história não se passasse no século XIX, poderíamos pensar estar ouvindo o discurso de muitos educadores oralistas que se baseiam até hoje, nestes mesmos argumentos para combater o uso dos Sinais na educação do Surdo. O que chama a atenção com relação a esta postura nos educadores é o fato de não compreender o que observam no seu próprio trabalho, isto é, o fracasso para cumprir o desenvolvimento acadêmico. O próprio Itard, após dezesseis anos de tentativas e experiências frustradas de oralização e remediação da surdez, sem conseguir atingir os objetivos desejados, rendeu- se ao fato de que o Surdo só pode ser educado através da Língua de Sinais [...] (MOURA, 2000, p.27). Outro estudioso que compartilhava das mesmas ideias de Itard foi o barão de Gérando, que era filósofo, administrador, historiador e filantropo. Ganhou a disputa pelo cargo de diretor do Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris. Gérando acreditava na superioridade do povo europeu e sua intenção era equiparar os surdos aos selvagens europeus. Para ele, os surdos entravam na categoria de selvagens e sua língua era vista como pobre quando comparada à língua oral e não deveria ser usada na educação. Com esta concepção, os professores surdos da escola foram substituídos pelos professores ouvintes e a oralização era seu principal objetivo. Segundo ele, os sinais deveriam ser banidos da educação e após anos de trabalho, reconheceu, antes de morrer, a importância do uso dos sinais (MOURA, 2010). Na América a educação dos surdos aconteceu com mais dificuldade do que na Europa, visto que o acesso à metodologia inglesa sempre era negado. Assim aconteceu com Thomas Gallaudet (nos Estados Unidos), que segundo Strobel (2008), a missão de Gallaudet foi frustrada diante da recusa do educador Braidwood de compartilhar suas informações pedagógicas ao estrangeiro americano. Diante disso, Gallaudet inicia seu caminho pra casa, antes, porém, passa pela França, onde conhece o método de L‟Epée, isto incluía o alfabeto 34 manual francês e os sinais franceses. Em 1817, dois anos após ter saído dos Estados Unidos, Gallaudet volta ao seu país, acompanhado por um dos melhores alunos de L‟Epée, ou seja, Laurent Clerc, segundo Sacks (1998). Em solo americano eles fundam a primeira escola permanente para surdos. A l Língua de Sinais usada na escola era inicialmente francesa e de fala inglesa, em uma espécie de método misto que gradualmente foi sendo modificada para se transformar na Língua Americana de Sinais. Conforme Goldfeld (1997) afirma, nos Estados Unidos, a educação segue seu rumo em pleno desenvolvimento e descobertas. A partir de 1821 todas as escolas de surdos seguem o mesmo padrão, ou seja, o uso de sinais para a comunicação entre professores e alunos. Esses sinais seriam o futuro do que hoje chamamos de Língua de Sinais Americana – ASL. Ela sofreu muita influência dos sinais franceses, devido à “importação” da metodologia e sinais franceses trazidos por Gallaudet e Clerc da França. Neste período houve uma elevação no grau de escolarização dos surdos, que podiam aprender com facilidade as disciplinas ministradas em Língua de Sinais. Neste mesmo período na Europa, as escolas de surdos funcionavam em seu apogeu no uso dos métodos francês e alemão, ou seja, o uso de sinais e da oralização, respectivamente. Havia dois grupos distintos que argumentavam um a favor de seu método e outro contrário, em meio a essas discussões, em 1880, ocorreu o Congresso de Milão, realizado em Milão. Segundo Moura (2000), a França e a Itália tiveram um papel relevante nas decisões sobre a educação do surdo, tanto antes como depois do Congresso de Milão, com o intuito de afirmar que aprendizagem da Língua Oral trazia mais benefícios que a Língua de Sinais, além do que, a primeira afirmava que havia maior possibilidade de integrar o surdo na comunidade ouvinte, contrariando assim a identidade surda, defendida pela Língua de Sinais. Na França, o Instituto Nacional de Surdos-Mudos, após o mandato de L‟Epée (que defendia a Língua de Sinais) e Itard (que defendia o Oralismo), iniciaram uma série de conflitos internos a respeito de qual metodologia seria seguida, se a gestual ou a oral. No entanto, o Oralismo com maior força política passou a ser o único método de ensino, mas havia dúvidas quanto a sua eficácia, o que levou o Instituto a sua falência. Um dos motivos que levaram à decadência do Instituto Nacional de Surdos-Mudos foi a intervenção do Estado nos métodos educativos para os alunos surdos. Havia o argumento de que a educação dos surdos deveria ser oralista, a fim de desenvolver a fala, isto é, os surdos deveriam aprender a Língua Francesa, independentemente, de qual identidade o surdo se assemelhava. Segundo Moura (2000): A possibilidade de existir um grupo com uma identidade linguística 35 diferenciada a uma cultura própria punha em risco a própria questão da centralização e da identidade da França enquanto nação. (MOURA, 2000, p. 44) No século XIX, a França ordenou que todas as crianças surdas que estavam fora da escola, frequentassem as escolas regulares próximas de seus lares, sendo que daria maior ênfase na oralidade e na escrita, mas com o apoio do alfabeto datilológico. Na realidade, esse foi um meio escolhido pelo governo para “rastrear” todas as crianças surdas francesas e impor o a elas o método Oral, sem intermédio da Língua de Sinais e dos sinais caseiros criados para a comunicação entre os familiares dessas crianças. Somente o alfabeto datilológico era usado para mascarar o real objetivo proposto pelo governo francês. Enquanto isso, nos Estados Unidos, a campanha a favor do Oralismo continuava sendo liderada por Grann Bell, que mais tarde, e sem desistir de seu sonho de oralizar os surdos, criou uma Associação para Promover o Ensino da Fala para o Surdo. Na Inglaterra, John Ackers criou a Sociedade para o Treinamento de Professores do Surdo e Difusão do Método Alemão Oralista, que pressupunha desenvolver nos professores uma didática apropriada para ensinar aos surdos a Língua Francesa. Moura (2010) explica que foi por esse e outros motivos de ordem política e ideológica das duas nações (França e Itália) que veio culminar no Congresso de Milão em 1880. Esse Congresso buscou e confirmou que o Oralismo era realmente o melhor método de ensino para educar as crianças surdas. Participaram desse Congresso representantes da Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá, Bélgica, Suécia e Rússia. Esse Congresso tinha como propósito evidenciar as desvantagens da Língua de Sinais para o desenvolvimento cognitivo e linguístico do Surdo e a abolir definitivamente como proposta educacional, sendo que a Língua Oral (Língua Italiana) tomaria seu lugar como a única língua acessível aos surdos. Houve a votação e Edward Gallaudet, que estava presente representando os Estados Unidos, foi contra a proposta e sugeriu o método combinado de ensinar a Língua de Sinais com a Língua Oral, mas não foi ouvido. Segundo Moura (2000), a razão principal desse Congresso era a defesa da proposta Oralista, subjugando à Língua de Sinais como imprópria e inferior, destinada àqueles que eram considerados para a sociedade francesa como “anormais”. Como resultado das discussões desse Congresso, chegou-se a conclusão que seria usado o método combinado, ou seja, a língua oral Francesa com a Língua de Sinais. Contudo, os sinais serviriam apenas como apoio para a primeira. Os sinais puros consistiam na Língua de Sinais Francesa propriamente dita, sem outros recursos que pudesse ser associado à Língua de Sinais, como a 36 língua oral Francesa. No entanto, somente os sujeitos classificados como intelectualmente inferiores para desenvolver a língua oral é que poderiam utilizá-la como recurso linguístico, sem que houvesse à a sua proibição. Sendo assim, ela seria destinada a instrução na língua de sinais para os sujeitos classificados como incapacitados para desenvolver a língua oral, isto é, por uma incapacidade intelectual. Conforme Skliar (1998): [...] a partir desta visão a surdez afetaria de um modo direto a competência linguística das crianças surdas, estabelecendo assim uma equivocada identidade entre linguagem e língua oral. Desta ideia se deriva, além disso, a noção de que o desenvolvimento cognitivo está condicionado ao maior conhecimento que tenham as crianças surdas da língua oral. (SKLIAR, 1998, p.11). Foi decidido então, por unanimidade e promulgada a seguinte resolução do Congresso de Milão, 1880 Moura (2000): Dada à superioridade incontestável da fala sobre os sinais pra reintegrar os Surdos-Mudos na vida social e para dar-lhes maior facilidade de linguagem... (Este congresso) declara que o método deve ter preferência sobre os Sinais na instrução e educação dos surdos e mudos. (MOURA, 2000, p.48). Diante desses resultados, o Oralismo passou a reinar pelo resto do século XIX e começo do século XX, quando foi constatada, depois de sua implementação, a sua ineficácia, por meio dos resultados obtidos dos Institutos para surdos, que aplicaram essa metodologia e perceberam que ela não supria adequadamente o ensino para crianças surdas. Os surdos que não se adaptavam ao Oralismo eram considerados retardados. Não era respeitada a dificuldade de alguns surdos por causa de sua perda de audição severa ou profunda. As pessoas somente estavam interessadas em fazer com que o surdo fosse “normalizado” e que desenvolvesse a fala. Naquela época, quem deveria mudar era o surdo, porém, para grande maioria deles, não era organicamente possível. Na primeira avaliação sistemática do método oral, Binet e Simon concluíram que os surdos não conseguiam realizar uma conversação, eles só podiam ser entendidos e entender aqueles a quem estavam acostumados. O uso dos Sinais só voltou a ser aceito como manifestação linguística a partir de 1970, com a nova metodologia criada, a “Comunicação Total”, que preconizava o uso de língua oral e sinalizada ao mesmo tempo. No Brasil, a educação do surdo teve início no século XIX, no período Imperial na regência do então Dom Pedro II. 37 2.2 BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO SURDO NO BRASIL O início da educação de surdos no Brasil é datado de 1857 na época de Dom Pedro II e se destaca na história da educação de surdos. De acordo Strobel (2008): Deduz-se que o imperador D. Pedro II se interessou pela educação dos surdos devido ao seu genro, o Príncipe Luís Gastão de Orléans, (o Conde d‟Eu), marido de sua segunda filha, a princesa Isabel, ser parcialmente surdo. (STROBEL, 2008, p.89) Contudo, não se tem confirmação desse fato. A convite de Dom Pedro II, Ernest Huet, um professor surdo francês e sua esposa chegaram ao Brasil em 1855, com o objetivo de fundar uma escola para surdos. Em 26 de setembro de 1857 foi fundada no Rio de Janeiro a primeira escola para surdos, o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, hoje conhecido como Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Ele servia também como um asilo somente para meninos surdos de todo o Brasil (STROBEL, 2008). Quanto à legislação de fundação do INES, Doria (1958) detalha: [...] quando a Lei nº 839, de 26 de setembro de 1857, denominou-o „Imperial Instituto de Surdos-Mudos‟ (...), o artigo 19 do Decreto nº 6.892 de 19-03- 1908, mandava considerar-se o dia 26 de setembro como a data de fundação do Instituto, o que foi ratificado pelos posteriores regulamentos, todos eles aprovados por decretos. Inclusive o Regimento de 1949, baixado pelo Decreto nº 26.974, de 28-7-49 e o atual, aprovado pelo Decreto nº 38.738, de 30-1-56, (publ. No D.º de 31-1-56), referindo à denominação de „Instituto Nacional de Surdos-Mudos‟ (...) Tal instituição viu seu nome modificado recentemente pela Lei nº 3.198, de 6-7-57 (publ. No D.º de 8-7- 57), para “Instituto Nacional de Educação de Surdos” [...]. (DORIA, 1958, p.171) Strobel (2008) relata que o professor surdo Ernest Huet, teve enormes dificuldades para lecionar, visto que as famílias brasileiras não reconheciam Huet como cidadão e não confiavam no seu trabalho pedagógico. Por isso, ele tinha poucos alunos. Muito diferente do professor surdo Laurent Clerc que foi aos Estados Unidos, que também era surdo e que fazia o mesmo trabalho em uma escola para surdos, como Huet, ambos eram franceses. Em relação ao professor Ernest Huet, Mazzota (1998) menciona que “começando a lecionar para dois alunos no então Colégio Vassimon, Huet conseguiu, em outubro de 1856, ocupar todo o prédio da escola, dando origem ao Imperial Instituto dos Surdos-Mudos” (MAZZOTA, 1998, p.29). De acordo com Strobel (2008), por motivos pessoais, o pedagogo pioneiro da educação de surdos no Brasil, Ernest Huet, após cinco anos na direção do Instituto, afastou-se dos seus trabalhos e viajou para o México em 1861, deixando que diretores ouvintes 38 assumissem a direção do Instituto. A escola do INES era o ponto de convergência e referência dos professores de surdos e deles próprios na época. Eles usavam a Língua de Sinais Francesa, trazida por Huet, e misturavam com a existente no país. Esta mistura originou mais tarde a Língua Brasileira de Sinais (Libras), utilizada atualmente. Porém, bem antes, após o Congresso de Milão, o mundo foi influenciado pelo método Oralista durando quase um século, com poucos opositores a esse método e sendo utilizado como metodologia de trabalho por muitas escolas, inclusive no Brasil. A partir da década de 1980 até 1990, renasce no Brasil o uso dos sinais, mais precisamente a filosofia educacional de “Comunicação Total”, que consistia no uso de qualquer estratégia que pudesse permitir o resgate na comunicação das pessoas surdas. Este modelo combinava a Língua de Sinais, gestos, mímicas, leitura labial, entre outros recursos que colaborassem com o desenvolvimento da língua oral (SCHELP, 2008). Segundo Ciccone (1996): A Comunicação Total é uma filosofia de trabalho voltada para o atendimento e a educação de pessoas surdas. Não é, tão somente, mais um método na área e seria realmente, um equívoco considerá-la, inicialmente, como tal (...). A Comunicação Total, entretanto, não é uma filosofia educacional que se preocupa com ideais paternalistas. O que ela postula, isto sim, é uma valorização de abordagens alternativas, que possam permitir ao surdo ser alguém, com quem se possa trocar ideias, sentimentos, informações, desde sua mais tenra idade. Condições estas que permitam aos seus familiares (ouvintes, na grande maioria das vezes) e às escolas especializadas, as possibilidades de, verdadeiramente, liberarem as ofertas de chances reais para um seu desenvolvimento harmônico. Condições, portanto, para que lhe sejam franqueadas mais justas oportunidades, de modo que possa ele, por si mesmo lutar em busca de espaços sociais a que, inquestionavelmente, tem direito. (CICCONE, 1996, p.06-08) Segundo a mesma autora, a “Comunicação Total” era a fusão da língua falada e sinalizada, permitindo uso de outras formas de comunicação (mímica, pantomima, leitura labial e sinais) que, por sua vez, não atendia a necessidade dos surdos, que clamavam por uma educação que os respeitassem enquanto indivíduos aos poucos foi sendo substituída. A partir do século XX, houve uma compreensão e percepção da complexidade linguística em relação a Língua de Sinais, de forma que, o Bilinguismo se transformou no principal instrumento da filosofia que propõe a convivência, porém a não simultaneidade das duas línguas, oportunizando ao surdo seu desenvolvimento de habilidades em sua língua materna e na língua oral, com a escrita, dessa forma, excluindo o objetivo do desenvolvimento da fala. A metodologia Bilíngue é utilizada atualmente com surdos em algumas instituições educacionais brasileiras. 39 Na concepção de Guarinello (2007): A proposta bilíngue surgiu baseada nas reivindicações dos próprios surdos pelo direito à sua língua e pelas pesquisas linguísticas sobre a língua de sinais. Ela é considerada uma abordagem educacional que se propõe a tornar acessível à criança surda duas línguas no contexto escolar. De fato, estudos têm apontado que essa proposta é a mais adequada para o ensino de crianças surdas, tendo em vista que considera a língua de sinais como natural e se baseia no conhecimento dela para o ensino da língua majoritária, preferencialmente na modalidade escrita. (...) Na adoção do bilinguismo deve-se optar pela apresentação simultaneamente das duas línguas (língua de sinais e língua da comunidade majoritária). (GUARINELLO, 2007, p. 45-46) O Bilinguismo foi uma metodologia adotada a partir das reivindicações dos próprios surdos, pois este método tem possibilitado o acesso a duas línguas dentro de um contexto: a Língua de Sinais e a Língua Portuguesa. De acordo com Santana (2007): O bilinguismo inaugura um novo debate na área da surdez, ele defende a primazia da língua de sinais sobre a língua portuguesa, antes aprendida simultaneamente na comunicação total, ou isoladamente no oralismo. Essa primazia, defendida por muitos autores tem por base dois argumentos. Primeiro, a presença de um período crucial para a aquisição da linguagem. Segundo, a existência de uma competência inata, na qual para aprender uma língua, bastaria estar imerso em comunidade linguística e receber dela inputs linguísticos cruciais. (SANTANA, 2007, p.166) O Bilinguismo possibilita à pessoa surda o acesso aos conteúdos escolares, assim como os demais conhecimentos por meio da Língua Portuguesa (escrita) e da Língua de Sinais. De acordo com Bernardino (2000): [...] a língua é considerada importante via de acesso para o desenvolvimento do surdo em todas as esferas do conhecimento, propiciando não apenas a comunicação do surdo com o ouvinte, mas também com o surdo, desempenhando também a função de suporte do pensamento e de estimulador do desenvolvimento cognitivo e social. O Bilinguismo considera que a língua oral não preenche todas essas funções, sendo imprescindível o aprendizado de uma língua visual-sinalizada desde tenra idade, possibilitando ao surdo o preenchimento das funções linguísticas que a língua oral não preenche. Assim, as línguas de sinais são tanto o objetivo quanto o facilitador do aprendizado em geral, assim como do aprendizado da língua oral. (BERNARDINO, 2000, p. 29) Envoltos por suas lutas, a Comunidade Surda e os ouvintes militantes em prol das causas da Cultura Surda conquistaram apenas em 2002 o reconhecimento da Língua de Sinais e, a partir do reconhecimento legal, surgiram outras conquistas no campo social e educacional. 40 2.3 LEIS FEDERAIS QUE REGEM A LIBRAS A legislação em vigor em nosso país que busca fortalecer e garantir os direitos dos cidadãos surdos envolve a Lei nº 10436, de 24 de abril de 2002; o Decreto 5.626, de 26 de dezembro de 2005; a Lei nº 12.319, de 1º de setembro de 2010; Resolução se - 38, de 19 junho de 2009 e o Código de Ética do Intérprete (FENEIS). No ano de 2002, foi decretada e sancionada a Lei Federal nº 10.436 que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e dá outras providências: Reconhece a Libras como uma forma de comunicação e expressão em todo o País, não podendo a mesma substituir a modalidade escrita da Língua Portuguesa; Garante a sua inclusão nos cursos de Magistério e Fonoaudiologia, seja nos níveis médio e superior, em instituições públicas ou privadas (BRASIL, 2002, p. 1). No Brasil, a Lei Federal nº 10.436 reconhece a Libras como segunda língua oficial do Brasil, língua essa que é a representação de lutas e conquista da Comunidade Surda. A Língua de Sinais exprime um papel expressivo na vida do sujeito surdo, pois por intermédio de uma língua estruturada, faz com o sujeito surdo tenha um desenvolvimento pleno. Harrison (2000) afirma que a língua fornece à criança surda a oportunidade de ter acesso à aquisição de linguagem e de conhecimento de mundo e de si mesma. É importante ressaltar que essa lei reconhece a Libras e faz uma observação em relação à língua majoritária, não podendo a mesma substituir a modalidade escrita da Língua Portuguesa, que será disseminada em todo território brasileiro, porém cabe aos surdos aprenderem a Língua Portuguesa na modalidade escrita (BRASIL, 2002). Em 2005, em complemento a Lei nº 10.436 foi promulgado o Decreto de nº 5.626, de 26 de dezembro de 2005, regulamenta a Lei Federal de 2002. O Decreto possui nove capítulos, destinados às disposições gerais; Libras como disciplina curricular; formação do Professor de Libras e Instrutor; difusão da Libras e Língua Portuguesa; formação do Intérprete de Libras; garantias das pessoas surdas ou com deficiência auditiva; garantias à saúde; o papel do Poder Público e empresas na difusão da língua e as disposições finais. Com relação a este documento, vamos nos ater exclusivamente aos primeiros capítulos que são pertinentes a pesquisa. O Decreto menciona: Art. 3 o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino 41 dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. § 1 o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério. § 2 o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto. (BRASIL, 2005) A inclusão de Libras como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições públicas e privadas e como disciplina opcional nos demais cursos de educação superior e na educação profissional é muito importante, pois os alunos das diversas licenciaturas irão desenvolver um trabalho frente ao aluno surdo, mas as demais graduações em Bacharelado irão atuar na prestação de serviços a clientela surda, necessitam ter conhecimento dessa língua para se comunicarem com os surdos. Com isso, observa-se a dimensão linguística que o Decreto proporcionou em relação a valorização da comunicação, referentes à Comunidade Surda, fazendo com que a língua seja usada pelos ouvintes/e ou não-ouvintes, pois não basta apenas a implementação de leis ou decretos, precisa haver a ação do fazer, fazer esse que se refere a disseminação da Língua de Sinais na prática. Há uma diferença entre o querer e o fazer, querer é a vontade, pode constar no papel, em um documento, podendo ou não haver a sua efetividade, o fazer se materializa com a prática, neste caso, veiculada pelo papel da educação na sua disseminação, bem como afirma Quadros (2007): O espaço de negociação começa a ser deflagrado. A política linguística aditiva vai se tornando uma realidade ao longo do processo resultando dessas ações. A partir desta experiência, somando-se ao que vem sendo feito no plano federal e em outros Estados brasileiros, pode ser processada uma aproximação entre o “querer” e o “fazer” na educação. (QUADROS, 2007, p.40) Faz-se necessário o cumprimento da Legislação, pois sem o reconhecimento da língua e suas especificidades, não a outorga o direito de que saia da “marginalidade”, não lhe garantindo o status de língua, havendo o respeito por meio do reconhecimento e sua aplicação, garantindo a veiculação e divulgação pelos meios competentes, neste caso, a educação. Para Freire (1996), a sala de aula não é um território que limita o educador, muito menos os conteúdos ensinados, pois seu trabalho vai além, contribuindo para formação do cidadão que não só usufrui de direitos civis e políticos por esses garantidos, mas porque 42 desempenha os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. (FREIRE, 1996, p.77) Quando Freire menciona a expressão “forma neutra”, ele quer dizer, estar inserido em uma sociedade e não com seus dilemas, torna seres passivos dentro do sistema, não garantindo direitos e nem deveres, portanto ao tomar contato com a Cultura Surda, e não mais ingênuos e indiferentes. Por isso, a importância de legalidade do fazer. O Capitulo III do Decreto Federal de nº 5.626, destina-se a Formação do Professor de Libras e do Instrutor de Libras: Art. 4 o A formação de docentes para o ensino de Libras nas séries finais do ensino fundamental, no ensino médio e na educação superior deve ser realizada em nível superior, em curso de graduação de licenciatura plena em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa como segunda língua. Art. 5 o A formação de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental deve ser realizada em curso de Pedagogia ou curso normal superior, em que Libras e Língua Portuguesa escrita tenham constituído línguas de instrução, viabilizando a formação bilíngue (BRASIL, 2005). Nesse artigo, é importante destacar a diferença na formação do docente que irá atuar na educação para ensino de Libras. Nas séries finais do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e na Educação Superior deve ser graduado em Licenciatura plena em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa, já para o ensino de Libras na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental deve ser realizada em curso de Pedagogia ou Curso Normal Superior (este último extinguido), sendo o processo de aquisição linguística, nos anos iniciais, atribuída ao pedagogo e ao especialista em Letras Libras nos anos seguintes. O Capitulo V destina-se a Formação do Tradutor e Intérprete de Libras - Língua Portuguesa, traz dois artigos distintos relacionados à formação desse profissional: Art. 17. A formação do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa deve efetivar-se por meio de curso superior de Tradução e Interpretação, com habilitação em Libras - Língua Portuguesa. Art. 18. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, a formação de tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de: I - cursos de educação profissional; II - cursos de extensão universitária; e 43 III - cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior e instituições credenciadas por secretarias de educação. (BRASIL, 2005).