UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Erislaynne Maria da Silva Santos “E EU, SOU NEGRA?” As vicissitudes da construção da identidade negra de adolescentes de escolas públicas do interior paulista. Assis, SP 2025 ERISLAYNNE MARIA DA SILVA SANTOS “E EU, SOU NEGRA?” As vicissitudes da construção da identidade negra de adolescentes de escolas públicas do interior paulista Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, SP, para obtenção do título de Mestra em Psicologia Área de Concentração: Psicologia e Sociedade Orientador: Prof. Dr. Fernando Silva Teixeira Filho Assis, SP 2025 Dedico este trabalho a mim, para a adolescente que já fui e para todas nós que sobrevivemos ao vazio em todas as tentativas de ver a si mesma, ser e existir. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, pela minha vida e minha espiritualidade, possibilitando não apenas o trabalho desenvolvido até agora, mas todos que irei realizar nesse sentido. Expresso minha gratidão por ser uma mulher de ascendência mista, filha de uma mulher parda pernambucana e de um homem preto baiano, eu, nascida e criada na Zona Norte, Araçatuba- SP. Sobretudo, agradeço à minha mãe, pelo apoio incondicional em qualquer decisão que – dificilmente – decidi. Agradeço à minha família, em especial minha tia Rosangela Maria e meu primo Eduardo Marinho, que estavam presentes na pior barra que carreguei durante esta caminhada. Agradeço também às minhas irmãs Rebecca Bertelli, Silvia Teodoro e Melissa Cambuhy. Rebecca por ter acredito mais que eu, em inúmeros momentos; Silvia Teodoro por ter idealizado comigo esse projeto, e mesmo que tenha ancestralizado no início da minha inserção ao mestrado, nossos projetos seguem firmes; e por fim, mas jamais menos importante; Melissa Cambuhy por surgir – quase como um relâmpago celestial – injetando a dose necessária de incentivo para dar sequência em um projeto, enquanto atravessei o luto por Silvia Teodoro. Aos meus novos amigos de pós-graduação e, principalmente ao Eduardo Henrique. Sem vocês, o processo teria sido muito mais solitário e neurótico. Contribuiu para que eu conseguisse finalmente dizer: estou formando! E por fim, às considerações apontadas da banca examinadora composta pelo Dr. Paulo Vitor Palma Navasconi e Prof. Drª. Ana Claudia Bortolozzi, e, ao meu orientador Fernando Silva Teixeira Filho. Reconheço e agradeço a todas as pessoas amigas e colegas que permaneceram ou cruzaram o meu caminho ao longo desses anos. Honro e agradeço tanto às mãos estendidas que muito me ajudaram, quanto aos punhos cerrados e trabalhos locais como Ebun, Iranti e Ateliê de Escrita que, também contribuíram para a minha jornada ao lembrar os motivos de atuar com meu trabalho acadêmico. Cada uma dessas experiências foram fundamentais para que eu chegasse onde me encontro hoje. Obrigada a todos que contribuíram para que este momento chegasse. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001. E à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio financeiro, concedido por meio do Processo nº 2022/15146-0, que me possibilitaram explorar novas áreas e me encontrar no mundo acadêmico. Minha esperança, acima de tudo, é que mais pessoas, outrora e ainda hoje silenciadas, encontrem sua própria voz. Eu, pelo menos, quero ouvir o que elas têm a dizer. Patrícia Hill Collins, 1990 RESUMO Esta pesquisa teve como objetivo identificar e analisar o processo de construção identitária de adolescentes pretas e pardas, cisgêneras, em contexto escolar público em uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo. O foco de investigação da pesquisa foram os sofrimentos e potencialidades raciais aparelhadas à classe e gênero, opressões que se articulam entre relações de poder e marcadores sociais de diferença dentro e fora do contexto escolar. Desta maneira, a pesquisa fundamentou-se em conceitos teóricos que trabalham com as perspectivas pós-estruturalistas, decoloniais e contra-decoloniais, iniciando com reflexões acerca da origem da interseccionalidade como campo conceitual e empírico. Coletamos dados e discursos por meio do grupo focal, com adolescentes pretas e pardas entre 14-17 anos, buscando investigar como se deu a percepção de sua identidade racial e, antes disso, como habitaram na dúvida sobre seu lugar racial. Tais discursos foram transcritos e analisados a partir da metodologia de análise do conteúdo. Assim, realizamos análise de conteúdo dos discursos coletados, à luz das reflexões interseccionais, entre análises esquizoanalítica e psicanalítica. Identificamos opressões e/ou subversões que produzem políticas de identidade, relações raciais emancipadoras e vitais para a saúde de adolescentes pretas e pardas. Os dados reiteram como o espaço escolar ainda está muito aquém de seu dever de enfrentamento ao racismo, sobretudo porque, apesar de obrigatório, não trabalha nem direta nem transversalmente os temas sobre história e emancipação da população afropindorâmica brasileira. A problemática da política do conhecimento é também étnico-racial emaranhado ao tabu e ressentimento, sendo estas, outras heranças-produtos do processo de miscigenação – e não unicamente a cor do corpo pardo. Portanto, urge um fortalecimento da educação intercultural com pedagogias contradecoloniais por meio da lei 10.639/2003. Para além da vida escolar, a dúvida "E eu, sou negra?" é um dos pontos de partida crucial para pensar o limbo racial no qual pessoas pardas se encontram, é necessário construir uma cosmo-visão que sustente as dinâmicas existenciais das mulheres negras, sobretudo, pardas-mestiças, na ética do cuidado no trânsito das diferenças e seus respectivos eixos de subordinação sexual, de classe, território e traços fenotípicos. Palavras-chave: subjetivação; identidades étnico-raciais; relações étnico-raciais; racismo e contexto escolar; interseccionalidade. ABSTRACT The aim of this research was to identify and analyze the identity construction process of black, cisgender adolescents in a public school context in a medium-sized city in the interior of the state of São Paulo. The focus of the research was racial suffering and potential, along with class and gender, oppressions that are articulated between power relations and social markers of difference inside and outside the school context. In this way, the research was based on theoretical concepts that work with post-structuralist and decolonial perspectives, beginning with reflections on the origin of intersectionality as a conceptual and empirical field. We collected data and speeches through focus groups with black (black and brown) adolescents aged 14-17, seeking to investigate how their racial identity was perceived and, before that, how they lived in doubt about their racial place. These speeches were transcribed and analyzed using the content analysis methodology. Thus, we carried out a content analysis of the discourses collected, in the light of intersectional reflections between schizoanalytic, and psychoanalytic analyses. The data reiterates how the school space still falls far short of its duty to combat racism, especially because, despite being mandatory, it does not deal directly or transversally with themes about the history and emancipation of the Brazilian Afro-Pindoramic population. The problem of the politics of knowledge is also ethnic-racial entangled with taboo and resentment, these being other legacies- products of the miscegenation process – and not just the color of the brown body –, therefore, there is an urgent need to strengthen intercultural education with counter- decolonial pedagogies through law 10.639/2003. Beyond school life, the question “What about me, am I black?” is one of the crucial starting points for thinking about the racial limbo in which brown people find themselves, it is necessary to build a worldview that supports the existential dynamics of black women, especially mixed-race women, in the ethics of care in the transit of differences and their respective axes of sexual subordination, class, territory and phenotypic traits. Keywords: subjectivation; black identities; ethnic-racial relations; racism and the school context; intersectionality. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................ 11 2 MÉTODO .......................................................................................................................................................... 14 2.1 TIPO E DESCRIÇÃO GERAL DA PESQUISA ......................................................................................... 14 2.1.1 ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA ..................................................................................................................14 2.1.2 JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA DO TEMA ...................................................................................................................15 2.2 PRODUÇÃO DE DADOS EM CAMPO...................................................................................................... 18 2.2.1 POPULAÇÃO E AMOSTRA .............................................................................................................................................18 2.2.2 PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS ..................................................................................................................19 3 REFERENCIAL TEÓRICO ........................................................................................................................... 23 3.1 TRILHAS METODOLÓGICAS TEÓRICAS ENTRE INTERLOCUTORAS DA INTERSECCIONALIDADE, PSICANÁLISE E ESQUIZOANÁLISE .......................................................... 23 3.2 AS VICISSITUDES DO PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO À SUBJETIVIDADE(S) RACIALIZADAS .................................................................................................................................................. 36 3.2.1 NEGRA-PARDA? O LIMBO IDENTITÁRIO RACIAL BRASILEIRO E A REIVINDICAÇÃO DA IDENTIDADE MICRO E MACROPOLÍTICA EXISTENCIAL ............................................................................................................................................. 41 4.1 TERRITÓRIOS DE CONTROLE: SEGURANÇA PÚBLICA PARA QUEM? ............................................................ 53 4.2 TERRITÓRIOS AFETIVOS: (DES)TERRITORIALIDADE EM CONTEXTO INTRAFAMILIAR E CULTURAL ....... 57 4.3 TERRITÓRIOS DE SILENCIAMENTO: A (IM)POSSIBILIDADE DE OUVIR O RACISMO EM CONTEXTO ESCOLAR . 60 4.4 ESTÉTICA CAPILAR E PODER: REGIMES DE AUTORIZAÇÕES DE IDENTIDADES ........................................... 66 4.5 EXÚ RETERRITORIALIZANDO: POSSÍVEIS ENCRUZILHADAS IDENTITÁRIAS ..................... 69 4.6 “PIGMENTOCRACIA” VERSUS "PIGMENTARIDADE": RESISTÊNCIA E SUBVERSÃO À BINARIDADE RACIAL ...................................................................................................................................... 73 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................................... 76 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................................... 82 11 1 INTRODUÇÃO Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. (SOUZA, 2021) Citando o trabalho da psicanalista Neusa Santos Souza (1983), que veio a público no início dos anos 1980, intitulado “Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social”. Tal obra e pesquisadora contribuiu muito para os temas do racismo, gênero e classe social na perspectiva psicanalítica, assuntos dos quais a psicanálise deve se implicar e caminhar em direção a produção de saberes alinhados às novas produções de subjetivação na contemporaneidade. Entende-se a articulação da esquizoanálise, psicanalise e interseccionalidade como um campo fértil para as interrogações e formulações de saberes, recusando o risco de perpetuar uma produção teórica acrítica tal como o arcabouço teórico psicanalítico perpetuou quando invisibilizaram escritas, vozes e lugares não-hegemônicos, o que compreendo como um movimento necessário para questionar nosso exercício clínico-político, bem como em outros espaços de atuação onde se faça necessário transitar entre os temas como raça, gênero e classe social onde quer que está se dê, implicando um exercício clínico sob uma perspectiva situada, ancorada na realidade em que se desenvolve de maneira crítica. Tal como Ayouch (2019, p. 183) comenta que qualquer experiência social, "não escapa a essas intersecções de gênero, cultura, raça e classe”. Para tal, podemos compreender de acordo com Laplanche (1992), que nos períodos iniciais da vida humana o sujeito não detém a capacidade de se sustentar sem o auxílio de outrem. Nesse sentido, se torna fundamental na infância o contato com o adulto e com o mundo. Isso porque, a partir do vínculo com o Outro, as crianças se fundam enquanto sujeitos na medida em que a linguagem se traduz, dando origem tanto às concepções que o sujeito tem de si, quanto à sua alteridade (Laplanche, 1988). Contornando a linguagem como um lugar embrionário para o desenvolvimento humano, continuemos a discussão citando Fanon (2008), cujo o qual afirma que “falar é existir.” Para o autor, o sujeito negro atravessado pela colonialidade possui duas dimensões de existir para-o- outro. Uma diante de seu semelhante e outra com o branco, e sob o ponto de vista do autor, “o homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro homem, a fim de ser reconhecido.” (Fanon, 2008, p. 180). 12 Logo, compreende-se que enquanto o sujeito não é reconhecido pelo outro, é do reconhecimento desse outro que dependem o seu valor e a sua realidade humana e, sobre isso, Fanon (2008) cita: “É neste outro que se condensa o sentido de sua vida [...] No paroxismo da dor, só há uma solução para o infeliz preto: provar sua brancura aos outros e sobretudo a si mesmo” (Fanon, 2008, p. 179). Conforme nos explica Gondar (2012), o aspecto patológico do trauma estaria menos vinculado ao ato violento em si do que à desconsideração do ocorrido, à afirmação de que nada aconteceu e à negação do sofrimento vivenciado pelo sujeito. Nesse sentido, a banalização e o silenciamento diante da violência se tornam fatores centrais na configuração do traumatismo e, em alguma medida, “o que se desmente não é o evento, mas o sujeito” (Gondar, 2012, p. 196), deslegitimando a sua percepção afetiva e subjetiva. Grada Kilomba (2019) explica que a expressão “dessemelhança” descreve a branquitude como uma identidade dependente da exploração do Outro. Uma identidade relacional construída por brancos que se autodefinem, entre si mesmos, como racialmente diferentes do Outro, isto é, uma alteridade embranquecida, que entende e define a negritude como forma primária de Outridade, pela qual a branquitude é construída, e nessa perspectiva, em linhas gerais, tal conceito de Outridade representaria um sujeito encarcerado como subordinado e exótico, sendo percebida/o como o “Outro” inferior. O sujeito negro torna-se o Outro por meio de um processo de absoluta negação. Sobre isso, Fanon (2008) escreve: “o que é frequentemente chamado de “alma negra” é uma construção do homem branco” (Fanon, 2008, p. 110). Diante de tais formulações, que sinalizam a importância da alteridade, do meio social e da dimensão do reconhecimento para a constituição do Eu, bem como para lidar com os impactos que podem advir da colonialidade e da branquitude, cabe questionarmos como a violência racial atinge os corpos não brancos na cena social brasileira. Costa (1984, p. 104), ao apresentar o livro de Neusa Santos Souza (1983), afirma que: Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. No entender de Souza (1983), para viver a experiência de “tornar-se negro” numa sociedade discriminatória, é necessário considerar como a subjetivação identitária se constrói 13 no plano simbólico, entendo esse percurso como resultado de um processo que se constrói em relação ao olhar, contraste, vínculo e discurso com o Outro. Tais formulações nos conduz a questionar os impactos da alienação forçada imposta ao sujeito negro a identificar-se com o Outro consolidado na branquitude, como uma necessidade de desenvolver uma relação de identificação com o Outro fundado na branquitude. Constata-se isso neste desabafo inquieto, “O que mais isso poderia ser pra mim, senão uma amputação, uma excisão, uma hemorragia que respinga meu corpo inteiro com sangue negro?” (Fanon, 2008, p. 112). De acordo com Kilomba (2019), o autor supracitado compreende a linguagem do trauma a partir das experiências racistas cotidianas, nas quais a maioria dos sujeitos negros são violentamente separados de qualquer identidade que realmente possam ter e compulsados a vincular com a sociedade inconscientemente estruturada pelo colonialismo, levando a um característico colapso traumático nesse estado de absoluta “Outridade” estabelecido pela branquitude. Diante de sujeitos atingidos por tais cenas traumáticas, Costa (1984) tenta catalogar pontos relevantes na organização estrutural da psique do sujeito negro, tais como a internalização de um ideal de Eu branco; a desvalorização dos próprios atributos em favor da norma imposta; a relação persecutória com o corpo que, pela ação dos ideais, não pode ser vivido como fonte de prazer; ou mesmo o aniquilamento subjetivo. Certamente reconhecer-se na negritude e afirmar-se como sujeito negro/a é um movimento importante para combater as diferentes maneiras de (re)produção do colonialismo, seja no campo simbólico, isto é, na inferiorização do negro como povo e pessoa, na qual sistematicamente ocorre uma desumanização; seja no plano material, no qual dá-se a manutenção das desigualdades materiais/estruturais contra a população negra – pretos e pardos – quando, por exemplo, se vê práticas de discriminação institucional que restringe o acesso às oportunidades e à ascensão financeira. Como se sabe, no Brasil, pobreza tem cor. (Rosemberg, 2017) Sob o ponto de vista de Gonzalez (1984), “o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira” (Gonzalez, 1984, p. 224). Ela ainda argumenta sobre como o sexismo produz efeitos violentos e como as mulheres pretas e pardas são atravessadas pelos estereótipos em relação às noções de mulata, doméstica e mãe preta na sociedade brasileira. Dessa forma, Gonzalez antecede o que entendemos referente à interseccionalidade ao conceber as experiências das mulheres negras na conjugação das opressões. 14 2 MÉTODO Serão apresentados nesta seção os procedimentos e processos adotados na execução da pesquisa buscando resultados aos objetivos propostos neste trabalho, a saber, tipo e descrição geral da pesquisa, justificativa e relevância do tema, caracterização da amostra e, por fim, procedimentos de coleta, tratamento e análise dos dados. Cabe salientar que o método e a metodologia são coerentes com o problema de pesquisa formulado, com os objetivos geral e específicos e com os princípios conceituais estabelecidos na fundamentação teórica. 2.1 TIPO E DESCRIÇÃO GERAL DA PESQUISA Esta dissertação é de caráter qualitativo. Ela foi desenvolvida utilizando o grupo focal como técnica de coleta de dados, voltada à análise de conteúdo resultante da pesquisa. Foram realizados três encontros de grupo focal, com tópicos específicos por meio do roteiro semiestruturado discutido entre as participantes. Os três encontros duraram de uma hora e meia até, no máximo, duas horas. Eles foram realizados na Escola Estadual Silvia Teodoro no município de Araçatuba-SP, sob Termo de Responsabilidade dos responsáveis, termo de assentimento e submissão ao Comitê de Ética, Capítulo IV, itens 1 a 8 da Resolução 466/2012. Além disso, inspirada por Grada Kilomba (2019), escrevo em primeira pessoa, tecendo uma escrevivência, como narradora da minha própria realidade, saindo do papel de objeto de pesquisa do Outro, para sujeito que conta a própria história para pensar a produção de letramento racial pardo. 2.1.1 Abordagem teórico-metodológica Entende-se a articulação da esquizoanálise, psicanálise e interseccionalidade como um campo fértil para as interrogações e formulações de saberes, recusando o risco de perpetuar uma produção acrítica no arcabouço teórico na psicologia e relações raciais, o que compreendo como um movimento necessário para questionar nosso exercício ético científico-profissional. Principalmente, considerando que diante dos valores da branquitude em nossa sociedade, se culmina um processo de auto-ódio na população preta e parda, esse mecanismo é o que a psicanálise tipifica como identificação com o agressor, este é internalizado e assim a 15 pessoa negra passa a se auto rejeitar (Nogueira, 1998, p. 123). Isildinha nos conduz em um mergulho complexo referente a noção de corpo a partir da psicanálise lacaniana: Do ponto de vista real, o corpo é sinônimo de gozo; do ponto de vista simbólico, o corpo é o significante “conjunto de elementos diferenciados entre si e que determinam um ato no outro”; e como corpo imaginário, “identificado como uma imagem externa e prenhe, que desperta o sentido num sujeito”. (Nogueira, 1998, p. 95) Porém, para nós, pessoas não-brancas, o estranho inquietante vai além do reconhecimento de um outro – estranho – em si: é o reconhecimento de sua condição de não ser, conforme Kilomba (2019) afirma sobre a produção do sujeito negro, onde só poderá ter uma experiência de si através do “não-ser”. Dentro das relações de poder e privilégios já instituídas que concedem ao sujeito branco, o sujeito não-branco será tomado como este outro como selvagem, irracional e primitivo que precisa ter o corpo controlado e/ou governado, de forma subalterna, pelo adoecimento psicológico, desemprego e genocídio da juventude preta, parda, indígenas e pobre, ditando quem pode morrer e determinando as condições de sobrevivência na sociedade. Segundo Foucault (1992) uma das condições que viabilizaram o surgimento do racismo pode ser compreendido a partir do biopoder, sendo um instrumento de controle político e regulação econômica que se caracteriza por práticas e discursos que constituem e organizam a burguesia, contabilizando, classificando e objetificando determinadas parcelas da sociedade. O grupo focal enquanto técnica utilizada nesta pesquisa ancora-se na interseccionalidade fundamentando análises sobre o processo de construção de identidade, articulada em pressupostos esquizoanalíticos, psicanalíticos e estudos críticos de feministas negras acerca da interatividade entre relações de poder e marcadores sociais de diferença tais como raça, classe e gênero em arranjos institucionais, individuais e sociais. 2.1.2 Justificativa e relevância do tema Nos espaços em que transitamos e ocupamos, nós, mulheres pretas e pardas oriundas das periferias, sobrevivemos e resistimos às formas mais clássicas de exclusão e discriminação, sobretudo em contextos educacionais e profissionais. Rosa (2017) corrobora essa realidade ao relatar que a maioria de nós pensa que o preconceito racial só ocorre de maneira explicita. Porém, as maneiras violentas que lidamos para sustentar e permanecer em espaços de saber e conhecimento, minam nossa vitalidade. 16 Essa também é uma forma de matar sonhos, possibilidades e humanidade, que no afasta de ambientes que possam ser ponte de acesso ao conhecimento e emancipação. Conforme Queiroz e Santos (2016, p. 86), “para as mulheres negras, isso implica um enorme esforço cotidiano, que exige o confronto com uma realidade que as exclui e as desqualifica, realidade que insiste em querer lhes fazer crer que esse não é o seu lugar (...)”. Logo, na tentativa de sobreviver diante das opressões que atravessam nossos corpos em espaços que promovem emancipação e ascensão através do saber, paradoxalmente, combatemos diariamente nesses mesmos contextos, as mesmas opressões, procuramos a educação como possibilidade de nos libertar, mas como se libertar em um caminho mortífero da nossa potência? A partir do discurso “não há racismo”, forjado pelo mito da democracia racial e sustentado pelo processo de miscigenação e modelo de homem cordial brasileiro, divulgado mundialmente como aquele que festeja e não segrega (Melo, 2024), a violência racial se perpetua em nosso cotidiano de formas explícitas e veladas. Para melhor ilustrar o dito, resgato Grada Kilomba (2019, p. 80): O racismo cotidiano não é um “ataque único” ou um evento discreto”, mas sim uma “constelação de experiências de vida”, uma “exposição constante ao perigo”, um “padrão contínuo de abuso” que se repete incessantemente ao longo da biografia de alguém – no ônibus, no supermercado, em uma festa, no jantar, na família. De acordo com Melo (2024), a racialização dos corpos ocorre desde o início do encontro entre os diferentes povos neste território, constituindo a escravização, a desumanização e o genocídio das nações originárias e das sequestradas, comercializadas e trazidas à força do continente africano. Nesse decurso, Munanga (2019), afirma que o mito da democracia racial brasileiro se baseia em uma dupla mestiçagem, sendo esta biológica e cultural, entre brancos, negros e indígenas, suas três raças originárias. Sendo exaltada a ideia de uma harmoniosa convivência entre as pessoas em todas as camadas sociais e grupos étnicos: [...] permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vitimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são “expropriadas”, “dominadas” e “convertidas” em símbolos nacionais pelas elites dirigentes. (Munanga, 2019, p. 99-100). 17 A atualização de tamanha violência ainda se debruça sobre corpos não brancos, marcando real, simbólica e imaginariamente os caminhos do gozo e as possibilidades dos destinos articulados das pulsões de vida e morte. Um mecanismo que, como nos ensina Freud (1927), é diretamente vinculado a estrutura da perversão. O que nos direciona a pensar com Costa (1984), sobre o ideal de branquitude se estabelecer como um lugar endereçado à normatização de um ideal e padrão civilizatório dado pela própria branquitude, isto explica o porquê pessoas pretas e pardas crescem em seu âmbito familiar sem letramento racial e, atrelando à vulnerabilidade econômica; resulta em invisibilidade, seja no âmbito imaginário ou simbólico, influenciando na posição identitária e socioeconômica da pessoa pretas e pardas na sociedade. De acordo com dados apresentados na pesquisa “Por Ser Menina no Brasil”, realizada pela Plan International Brasil, informa que 74,1% das meninas mães no Brasil são pretas e pardas e 37% deste total está entre 16 e 17 anos. O levantamento revela ainda que as meninas mães brancas correspondem a 21% e as indígenas 3,7%. “Correlacionando as idades e raça das meninas constatamos que as meninas negras são as mães na faixa etária mais jovem, o que pode representar um maior grau de vulnerabilidade social”, afirma o relatório (Plan International, 2021). Na pesquisa, outro dado apresentado é a ocupação e remuneração das adolescentes. Segundo a pesquisa, 18,6% das meninas entre 14 e 19 anos estão trabalhando. Desta realidade, 37,4% são meninas pretas e pardas, enquanto 20,3% das trabalhadoras são amarelas e 20% são brancas, os dados revelam quem não tem o poder de escolha de priorizar os estudos e, por alguma necessidade, a juventude preta, parda e periférica começam a trabalhar mais cedo, realidade que não garante ascensão econômica visto que, os dados apresentados do Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – de 2015, afirmam que mulheres brancas recebem 70% a mais que mulheres pretas e pardas (Fontoura et al, 2017). Entre tantos desdobramentos, nosso percurso escolar, acadêmico e profissional se torna um ato de protesto numa sociedade que aceita e venera nossas pernas, mas não nossas percepções críticas, escritas e voz ativa dentro da sociedade. Assim, é fundamental ampliar reflexões sobre a produção de políticas de identidade e relações raciais, onde o sofrimento racial no processo de subjetivação identitária possa virar palavra. 18 Partindo do marco teórico-metodológico interseccional ancorado por teóricas críticas feministas articuladas aos pressupostos psicanalíticos e esquizoanalíticos, propõe-se identificar e analisar o processo de construção de identidade de adolescentes pretas e pardas, descrevendo os impactos do racismo no contexto da vida escolar das destas adolescentes e suas implicações. E por fim, mas não menos importante; iniciar uma breve crítica à tentativa de implementação de sistemas binários de identidade no Brasil - em que se é branco ou negro sem possibilidades de identidade mestiça - e as consequências psicológicas que este movimento tem gerado para a população parda. Concluo ressaltando a importância do reconhecimento do movimento negro em nossa sociedade que trouxeram reparações históricas importantes, contudo para seguir com o propósito da promoção a igualdade e combate ao racismo de maneira honesta com nossa narrativa brasileira multirracial, se faz necessário nos aproximar da consciência mestiça em nosso país, para promover genuína diversidade e inclusão, contribuindo para uma maior justiça e coerência nas políticas públicas de reparação histórica e na sociedade como um todo. Respondendo à pergunta inicial da pesquisa, o percurso argumentativo do estudo revelou que, na realidade, uma atuação antirracista no Brasil, rejeitando a mestiçagem, não tem se apresentado viável para pessoas pardas dentro do movimento negro. 2.2 PRODUÇÃO DE DADOS EM CAMPO 2.2.1 População e amostra Inicialmente, a proposta da pesquisa estava direcionada a realizar análise referente a construção de identidades pretas e pardas de adolescentes cis em contexto escolar público e privado, por compreender esses territórios como dispositivos que exercem diferentes mecanismos de poder disciplinar, inferem e exercem controle social, político e ideológico no contexto de uma sociedade como a nossa, atravessada por diferentes interesses econômicos. Contudo, me deparei com uma complexidade onde as dimensões estruturais do racismo permanecem se destacando nas instituições educacionais e classe, atualizando formas de gerir acessos desiguais e indiferenças que mantem regimes racistas; dentre vinte e sete (27) escolas privadas que atendem adolescentes cursando ensino médio, encontrei somente (3) adolescentes negras, uma preta e duas pardas heteroidentificadas e autodeclaradas, dito isto, a realidade regional não apresentou o número mínimo de participantes para compor um grupo focal – no 19 mínimo seis pessoas – para receber a proposta de pesquisa. Diante da impossibilidade de realizar o grupo focal em contexto privado, realizei uma entrevista individual online com cada uma das três (3) adolescentes encontradas, para execução de um artigo científico. Tais participantes tiveram a autorização dos responsáveis que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), submetido ao Comitê de Ética, Capítulo IV, itens 1 a 8 da Resolução 466/2012. Reconsiderando novos percursos para a continuidade da pesquisa, entrei em contato com a Diretoria de Ensino solicitando um documento quantitativo de alunas autodeclaradas pretas e pardas. Com esse documento, identifiquei quais escolas possuíam mais alunas já autodeclaradas e iniciei a amostragem. A população e amostra desta pesquisa foram caracterizadas em termos de escolaridade, gênero, idade, heteroidentificação e autodeclaração. Para tanto, realizei uma reunião com professores e coordenadores da escola para apresentar-lhes a pesquisa e, em pouco tempo a equipe docente reuniu 12 adolescentes via heteroidentificação. Logo após o convite feito a elas por mim, as mesmas confirmaram sua autodeclaração racial e participação no grupo focal. O grupo focal foi desenvolvido com a participação de doze adolescentes pretas e pardas no contexto escolar público, com diversidades de traços corporais e orientações sexuais – incluindo adolescentes heterossexuais, bissexuais e lésbicas, todas não PCD. Entretanto, uma adolescente decidiu não permanecer ao longo do processo por questões familiares. Assim, o grupo final contou com a participação de 11 adolescentes. 2.2.2 Procedimentos de coleta de dados Nesta pesquisa, a técnica utilizada para obtenção dos dados foi grupo focal. Tal técnica permite promover debates e coletar dados de modo dialógico a partir da interação entre as participantes da pesquisa, compartilhando experiências, sentimentos, percepções, preferências e posicionamentos frente à temática abordada na dissertação (Gatti, 2005; Iervolino & Pelicioni, 2001). Ao tomar contato com os discursos a partir do grupo focal com as adolescentes pretas e pardas cisgêneras em contexto escolar público foi possível operacionalizar a análise de conteúdo considerando as interseccionalidades entre raça, classe e opressão de gênero que permitiram maior compreensão referente as representações que o sujeito apresenta em relação a sua realidade e a interpretação que faz dos significados a sua volta. (Rocha Silva et al., 2005). Trivinos (1987, p. 160) usa a conceituação de Bardin sobre análise de dados: 20 Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, obter indicadores quantitativos ou não, que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens. Ainda com Trivinos (1987), ao aprofundar a análise de conteúdo é possível tentar desvendar o conteúdo latente que pode apresentar ideologias e tendências determinantes referente à engrenagem social, bem como o conteúdo manifesto que é dinâmico, estrutural e histórico e se revela por meio do discurso. Ainda inspirada em Michael Foucault (1999, p. 155), compreende-se que: (...) as análises da representação, da linguagem, das ordens naturais e das riquezas são perfeitamente coerentes e homogêneas entre si, existe, todavia, um desequilíbrio profundo. É que a representação comanda o modo de ser da linguagem, dos indivíduos, da natureza e da própria necessidade. A análise da representação tem, portanto, valor determinante para todos os domínios empíricos. Portanto, com a coleta de dados a partir do grupo focal foi possível aprofundar no objetivo geral da pesquisa que se delimitou em investigar a construção da identidade de adolescentes pretas e pardas em Araçatuba. Por meio de uma escuta crítica e analítica, buscou- se compreender como essas adolescentes percebem a própria racialidade1, abrangendo objetivos específicos da pesquisa, como: (i) investigar os processos de construção de identidades raciais de adolescentes pretas e pardas cisgêneras no contexto escolar, (ii) analisar as interseccionalidades de gênero e classe a partir das narrativas das participantes e (iii) descrever os impactos emocionais e psicológicos do racismo nas narrativas racializadas. Ao investigar os impactos emocionais e psicológicos decorrentes do racismo, a pesquisa toca na maneira como as representações podem oprimir, limitar e afetar subjetivamente essas adolescentes. Isso se conecta com a ideia de que a representação não apenas descreve a 1 Nesse sentido, Sueli traz o conceito como um elemento do dispositivo de racialidade, ao passo que esse hierarquizaria também as produções de conhecimento, considerando algumas superiores e outras inferiores, eliminando-as em último efeito. Em consequência disso, Sueli argumenta que essa hierarquização é normalizada a ponto de o sujeito negro internalizar uma insegurança desde o ambiente escolar, tendo refletido no campo acadêmico. [...] Em resumo, a autora aponta que o racismo brasileiro pode ser entendido a partir da concepção de “dispositivo de racialidade”, que quando ativado organiza vidas e saberes, privilegiando uns e matando outros. Entender isso é compreender uma dimensão ampla do racismo que se manifesta especialmente no âmbito dos discursos e que precisa também ser combatido nesse âmbito, sobretudo a partir da juventude. Delphino, Gabriel. Rio de Janeiro, Zahar, 2023." (2024): 297-302. 21 realidade, mas a constrói, influenciando diretamente as experiências emocionais e identitárias. Tais experiências de racismo e as interseccionalidades relatadas pelas adolescentes são estruturadas pelas normas sociais e culturais que ditam o que pode significar ser preta ou parda em determinado território. Durante os três encontros realizados com as adolescentes, o foco foi criar um espaço de escuta e troca a partir de intervenções artísticas com o objetivo de explorar as experiências individuais e coletivas de meninas e mulheres cisgêneras pretas e pardas. A metodologia derivou do grupo focal tradicional, mas implementado por elementos artísticos que facilitaram o processo de expressão e participação. Todas as sessões de grupo focal foram roteirizadas por questões gerativas previamente elaboradas e, também, foram gravadas e transcritas para realizar a análise de conteúdo. Todos os encontros foram realizados na sala de videoaula da escola. Cada encontro começou com uma atividade e, a partir de então, as participantes foram instigadas a debater as atividades com algumas questões disparadoras apresentadas no Apêndice A. Para os encontros utilizamos gravadores, aparelho de som, projetor e tv para apresentar documentários e literatura afropindoramica. O primeiro encontro iniciou-se com a apresentação da pesquisadora, bem como, foi apresentado brevemente o propósito da pesquisa para a ciência, sociedade e, principalmente, para nós, pessoas pretas e pardas. Em seguida, solicitei uma breve apresentação das participantes sobre elas. E, após, foi apresentado para elas um curta metragem chamado: “Cores e Botas” com duração de 16 minutos, contando a história de Joana, uma menina na década de 1980 que sonhava em ser paquita, dirigido e roteirizado por Juliana Vicente. A partir disso, conversamos sobre correlações entre o documentário e a vida das participantes. Neste primeiro encontro, a introdução do curta-metragem Cores e Botas serviu como ponto de partida para explorar questões de representatividade, sonho e frustração. Após a exibição, as adolescentes foram instigadas a compartilhar suas percepções, conectando as experiências da protagonista com suas próprias vivências. Esse momento inicial foi fundamental para criar um vínculo entre elas e a pesquisadora, estabelecendo uma atmosfera de confiança e empatia. No segundo encontro, foi exibido um trecho do documentário: “Sobre Nós” com duração de 20 minutos, apresentando experiências de vida de 11 brasileiras de diversas origens, gerações, classes e orientações sexuais, dirigido por Naína de Paula. E após, houve discussões com perguntas disparadoras já dispostas no apêndice “a”. 22 Já neste encontro, o documentário Sobre Nós, dirigido por Naína de Paula, ao apresentar múltiplas referências e histórias de mulheres pretas e pardas, de como a racialização se manifesta em diferentes aspectos da vida. As discussões estimularam reflexões sobre identidade, opressão e resistência, abrindo espaço para que as adolescentes articulassem suas próprias narrativas a partir das experiências das personagens do documentário. No terceiro encontro foi apresentado para as participantes trechos de poesias de autoras poetas negras brasileiras, como: Conceição Evaristo; Beatriz Nascimento; Elisa Lucinda; Ryane Leão, entre outras. E então, através desta atividade, demos início aos diálogos. E por fim, o terceiro encontro trouxe a poesia como ferramenta de expressão e sensibilização. Poetas como Conceição Evaristo, Beatriz Nascimento, Elisa Lucinda e Ryane Leão foram as vozes que ecoaram no grupo, inspirando as adolescentes a refletirem sobre a potência de suas próprias histórias. A partir dessas leituras, as participantes foram convidadas a dialogar, não apenas sobre as obras, mas também sobre suas próprias experiências de vida, conectando-se com a força da palavra enquanto instrumento de transformação. Neste ínterim, o percurso do tratamento dos dados concebeu revisões literárias frente às temáticas abordadas como: identidade, subjetivação, relações étnicos-raciais, sofrimentos e potências raciais. Consistindo em compilar e analisar a literatura juntamente com os dados coletados no grupo focal, fundamentado por pressupostos teóricos-metodológicos interseccionais, psicanalíticos e esquizoanalíticos. 23 3 REFERENCIAL TEÓRICO Esta seção apresenta a fundamentação teórica deste trabalho, resultado da revisão de literatura das variáveis relevantes à elaboração e consecução da pesquisa. Posto isto, o referencial teórico encontra-se dividido em dois momentos: a) o primeiro dedicado à caminhar pelas interlocuções da interseccionalidade, dos fundamentos da esquizoanálise e da psicanálise; b) e o segundo momento situa a problemática central da pesquisa, delimitando-a para a região do interior noroeste paulista no município de Araçatuba. 3.1 TRILHAS METODOLÓGICAS TEÓRICAS ENTRE INTERLOCUTORAS DA INTERSECCIONALIDADE, PSICANÁLISE E ESQUIZOANÁLISE Embora o meio acadêmico possua o poder de nomear e sistematizar conceitos, é importante considerarmos que o surgimento destes também se forma na sociedade, nos movimentos políticos e sociais. Ao abordamos um conceito, é necessário considerar sua relação com os fenômenos complexos que acontecem na sociedade, que dão origem e consolidam tais conceitos. Sendo assim, para discorrermos sobre o ponto de partida ou origem do conceito interseccionalidade, viajaremos para Estados Unidos, em 1989, onde à jurista americana Kimberlé Crenshaw sistematizou a metodologia teórica. Porém, temos o precedente histórico que o tornou possível, conforme apresenta Gabriela Kyrillos (2020), a começar pelo discurso de Sojourner Truth, sufragista, abolicionista e feminista negra estadunidense, proferido em 1851, em Akron, Ohio, em uma convenção de mulheres. Este evento ressaltou a urgência da raça na agenda feminista e, ao mesmo tempo denunciou o racismo e o elitismo no feminismo branco (Davis, 2016). No discurso de Sojouner Truth, ela enuncia a voz das mulheres negras a partir da sua história, diante das hostilidades vividas no evento: Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem - quando eu conseguia comida - e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, 24 quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher? (Davis, 2016, p. 57) Neste ínterim, quando falamos em corpo, devemos levantar algumas questões: De qual corpo se trata na psicanálise? De acordo com Lacan, o corpo na psicanálise não é o corpo inato. No interior do campo psicanalítico, o corpo só pode ser pensado pulsionalmente, como corpo- efeito do investimento pulsional do Outro, isto é, como efeito do significante. É daí que o processo de constituição do sujeito terá, neste investimento que é sempre articulado à linguagem, seu ponto de partida. A existência de um sujeito, se inicia no encontro do vivo com o significante; encontro sempre traumático, que implica uma perda constitutiva de gozo que implica o seu corpo. É sob as marcas dessa afetação primordial que se constituirá o sujeito, como dividido pela relação com a linguagem. O corpo é, então, objeto de investimento do Outro e deverá ser assumido pelo sujeito, já que, entre ambos, nenhuma relação natural existe: sujeito e corpo não vieram juntos ao mundo. Como nos diz Lacan em seu último ensino, no ato em que o corpo é pulsionalmente investido pelo Outro, se desconstitui enquanto corpo orgânico, esvazia-se de seus órgãos. Isto significa que o corpo natural, o corpo biológico, está perdido para o sujeito, e só se tornará acessível a ele, por intermédio da ordem simbólica que o marca como humano (Elia, 1995). Cabe ressaltar que Miller (2014) nos adverte que ao longo do ensino de Lacan o estatuto do corpo vai-se aprimorando. Em primeiro lugar, o corpo é introduzido como imagem, estabelecendo sua unidade por meio da imagem no espelho. Em segundo lugar, o corpo se articula com Ideal do eu e o eu ideal, a partir das dinâmicas de identificação. Em terceiro, a afinidade entre o corpo e o imaginário é reafirmada no ensino dos nós. Isso enfatiza que é pelo viés de sua imagem que o corpo participa, primeiro, da economia do gozo. Em quarto lugar, avançando mais, “o corpo condiciona tudo o que o registro do imaginário aloja de representações: significado, sentido e significação, a própria imagem do mundo” (Miller, 2014, p. 8). Diante dessas considerações, ao afirmar que um sujeito não é seu corpo, mas sim o que sabe fazer algo com ele. Pois, trata-se de um corpo simbólico, um corpo mapeado por marcas e 25 traços significantes, irredutíveis à ordem biológica. Um corpo de identificações, modificado pelos efeitos dos objetos por ele investidos e amados. E, finalmente, o corpo é também real, não porque ele seja um corpo orgânico. Ele é real na medida em que não é totalmente imaginarizado e simbolizado, ou, antes, porque o é não- todo, pois, a partir do corte representado por sua entrada na ordem simbólica, que toma o corpo passível de reconhecimento imaginário, o corpo orgânico natural, para sempre perdido na experiência do sujeito, dá lugar a um vazio não imaginarizável nem simbolizável, lugar, inclusive, que se constitui como furo no campo das representações. Segundo Silva (2021), é assim, dentro da dinâmica de tornar-se sujeito, assumir e fazer- se um corpo e tornar-se uma mulher. Cabe à mulher negra achar seu caminho para subverter as marcas psíquicas que o racismo produz. Gostaria, então, de continuar esse trabalho sob a necessidade de produzir um exercício de manejo psicológico inventivo, aberta ao “sentir com”, sugerir uma outra linha argumentativa que localiza o desinteresse e a anestesia que parecem ter caracterizado a comunidade de psicanalistas em torno do racismo e da pobreza, condição social que define a vida de bem mais da metade de nossa população. E, conjuntamente com a crítica aos manejos clínicos que soam como desinteresse dos psicanalistas pela pauta racial, precisamos recursar também os modelos teóricos que compreendem a subjetividade a partir de invariáveis de universalizantes, de marcos ahistóricos, na compreensão do sujeito e da cultura. É apenas deslocando-nos destes operadores que podemos construir uma perspectiva clínica que seja atenta às particularidades dos sofrimentos de um país como o nosso, caracterizado por uma violência continuada, sobretudo contra pessoas pretas, pardas, indígenas e pobres. Neste sentido, o reconhecimento do lugar de sujeito ocupado por uma mulher tem o simbolismo de honrar a memória aniquilada de todo um povo inteiro. Afinal, segundo Frantz Fanon (2008), nestes casos encontramos pela expressão de um sujeito, a força viva de seus antepassados. Seguindo em nossa trilha, a pensadora Kimberle W. Crenshaw cunhou interseccionalidade enquanto conceito teórico-metodológico analítico referente a produção de sofrimentos face a opressões de raça, classe e gênero; sendo fortemente influenciada pelo movimento Black Feminism, onde questionava posicionamentos eurocêntricos, de classe média e heteronormativa que predominavam à época (Hirata, 2014, p. 62). Segundo Kimberle Crenshaw, a interseccionalidade pode ser definida como: 26 (...) uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições sociais de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (Crenshaw, 2002, p. 177). Conforme Hirata (2014, p. 62) explica que a autora Crenshaw (1989) apresenta uma subdivisão na interseccionalidade em duas categorias, sendo uma delas a "interseccionalidade estrutural", identificando as mulheres posicionadas na intersecção da raça e do gênero sob experiências da violência conjugal e estupro e suas respostas na subjetividade, e a "interseccionalidade política", onde as políticas feministas e as políticas antirracistas têm como consequência a marginalização da questão da violência em relação às mulheres de cor. Segundo a mesma autora, o conceito de interseccionalidade se apresenta como uma possibilidade de "levar em conta as múltiplas fontes da identidade", embora não tenha a pretensão de "propor uma nova teoria globalizante da identidade". De acordo com Angela Davis (2016) em “Mulheres, Raça e Classe”, no século XIX, nos Estados Unidos, a organização do movimento de mulheres negras posicionou em pauta a luta contra o racismo, que ignorado pelas feministas brancas de classe média. O movimento também argumentou que “classe” não se apresentava como pauta pela elite feminista branca, que discute o direito ao voto e o direito ao trabalho, porém ignorando a realidade de que as mulheres negras trabalharam durante toda a vida. Já no início do século XX, o feminismo negro enfrentava a segregação racial institucionalizada, que impedia o acesso de pessoas negras a diferentes espaços, e sua inserção era precária, quando existia, além de lutar contra o linchamento e homicídios do povo negro à violência racista. Angela Davis (2016) identifica o potencial da terceira onda do feminismo a partir da década de 1980, diminuindo o movimento de meninas “negras, latinas, indígenas, asiáticas e brancas da classe trabalhadora”. Nesse sentido, ela propôs a ideia de reunir os movimentos de mulheres, unindo lutas, considerando diferentes agendas e beneficiando a todos, o que ela chamou de “unidade multirracial”. Como garantir direitos universais para as mulheres, considerando suas diferenças e singularidades, sem invisibiliza-las ou torná-las motivo para a impossibilidade de garantia de direitos? A interseccionalidade tenciona justamente este lugar da possibilidade acessar 27 direitos em realidades atravessadas por inúmeros fatores como classe, religião, etnia, raça, território, dentre outros. Nessa direção, Patrícia Hill Collins (2015) discorre sobre a facilidade que temos para identificar as discriminações que sofremos e eleger as mais graves, e a dificuldade de reconhecer como perpetuamos as mesmas por meio de nossas ações e pensamentos, introduzidos nesse sistema múltiplo de opressão, somos vítimas e opressores com graus variados de privilégio e punição. Logo, apenas quando percebermos que existem poucos/as que são puramente vítimas ou opressores, e que cada um de nós experimentamos uma variedade de punições e privilégios de um sistema de opressão múltiplo que enquadra nossa vida, estaremos em condição de ver a necessidade de novas formas de pensamento e ação. (Collins, 2015, p. 14) Collins também identifica classe, raça e gênero como categorias de análise e procura formas de conexão e relacionamento entre as pessoas que transcendem as barreiras dessas categorias. Para tanto, ele evita uma análise holística baseada em pressupostos binários e hierárquicos, afirmando que, como a opressão está entrelaçada com experiências idiossincráticas, é provável que a opressão específica afete grupos específicos de mulheres em lugares e momentos específicos. Neste percurso, Davis (2020) afirma que é preciso entender como se articulam as relações entre múltiplas formas de violência, como o sexismo, a homofobia, o racismo, o erudito, etc., que emanam da mesma engrenagem sociopolítica econômica: As raízes do sexismo e da homofobia se encontram nas mesmas instituições econômicas e políticas que servem de base para o racismo neste país e, na maioria das vezes, os mesmos círculos extremistas que causam a violência contra as minorias étnicas são responsáveis pelas erupções de violência motivada por preconceitos sexistas e homofóbicos. Nosso ativismo político deve expressar evidentemente nossa compreensão dessas relações. (Davis, 2020, p. 22). Nesse contexto, somos requisitadas a analisar e questionar aspectos sociais intricados entre as relações e instituições, que expressam diferentes formas e graus de opressões, mas também de ação política. Daniela Kergoa (2010) enfatiza a necessidade de analisar essa sobreposição para cada realidade social analisada, dada a estrutura conjunta e indivisível das categorias de opressão, exploração e dominação. No entanto, não se deve levar em conta que as mulheres apenas serão oprimidas; é preciso considerar e assegurá-las como sujeitos políticos e fortalecer a comunidade como uma saída possível produtora de transformação dessa condição opressiva e subjugada. Assim, Davis 28 (2020) assume uma postura revolucionária e radical, apontando o capitalismo como pauta central: “Nossa pauta de empoderamento das mulheres deve, portanto, ser inequívoca na contestação do capitalismo monopolista como o maior obstáculo para a conquista da igualdade” (p. 24). Em “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, Gloria Anzaldúa (2000) aborda os perigos enfrentados por mulheres não-brancas. Como uma chicana pobre, escritora, trabalhadora, ela costura e interliga em sua experiência de vida apresentando as interseções que a constituem. Nesse sentido, ela aposta na escrita como ato político de criação, salvação e sobrevivência, a partir do lugar que homens e mulheres brancas as situam, as mulheres do “terceiro mundo”. A sujeição das mulheres negras se manifesta no processo identificatório como corpos objetificados para satisfazer as necessidades a partir do parâmetro de branquitude, como amas de leite para os filhos brancos das mulheres brancas-sinhás e, como objetos de gratificação e das necessidades dos homens como objetos sexuais, Rita Segato (2003), explica que: A forclusão da babá negra invisibiliza e francamente anula o trabalho reprodutivo da negritude no Brasil, isto é, suprime a consciência do trabalho reprodutivo das pessoas negras na sociedade brasileira. Essa supressão é violenta e extirpa, em um mesmo gesto, a mãe que cria e sua negritude do campo do possível na consciência. Trata-se do próprio momento da ontogênese da raça e do gênero como biologias degradadas na atmosfera estruturada pela colonialidade. A mãe biológica e legal – legítima – é empurrada para a função da lei, uma vez que afirma seu vínculo materno por meio de um contrato. A outra relação materna e procriativa, a da intimidade, é banida e lançada na condição de ilegitimidade. Apenas a mitologia afro- brasileira do candomblé vai subverter esse silêncio e dar politicidade ao drama doméstico das duas mães na narrativa codificada do mito. Como já afirmei, uma característica da inteligência estratégica que garantiu a sobrevivência de pessoas afro-brasileiras e afro-americanas em geral, ao longo de uma história de repressão e massacre, foi esconder o político no formato doméstico, vestir os temas da política, isto é, do poder, autoridade, influência e coesão do grupo, na roupagem da domesticidade e do parentesco. Diante da realidade neocolonial, Grada Kilomba (2019), nos aponta sentido para novas possibilidades, “Parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova 29 linguagem. Um vocabulário no qual nós possamos todas/es/os encontrar, na condição humana” (Kilomba, 2019, p. 21). Na obra “Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano”, a autora compartilha experiências e entrevistas expondo como o racismo se inscreve na dinâmica social, por isso afirma no prefácio a importância de ações que possam fortalecer a luta antirracista. Trata-se de um livro necessário para compreender o racismo cotidiano vivenciado por mulheres negras, ao mesmo tempo promove reflexões sobre colonialismo, gênero, bem como o conhecimento e a linguagem enquanto um campo de disputas sociais de forma didática, onde nos direciona a necessidade de SER, de existir e tornar se sujeito à medida que podemos narrar a nós mesma. A autora nos lembra da função política da língua enquanto criadora, fixadora e perpetuadora das relações de poder, pois “cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (Kilomba, 2019, p. 14). Mostrando a necessidade de epistemologias que nos direcionem para novas perspectivas teóricas. Sob histórias e manejo psicanalíticos, Kilomba, apresenta alguns dos impactos produzidos pelo colonialismo como aspectos fundantes das inúmeras desigualdades e violências praticadas contra a população negra; ressaltando a invisibilidade da população negra na narrativa histórica oficial, especialmente da mulher negra. Isto posto, a autora reconhece a necessidade urgente de descolonizar o pensamento, diante disso elabora um trabalho teórico com base em autores como Frantz Fanon, bell hooks e Philomena Essed, nos quais analisam a história colonial e os impactos que dele decorrem. Nós, enquanto população preta e parda brasileira somos atravessadas/os pelos efeitos da colonização mascarada pelo mito da democracia racial. Gilberto Freire e Darcy Ribeiro defendem positivamente a mestiçagem brasileira como responsável por uma democracia racial no Brasil, porém isso é resultado do estupro de mulheres negras e indígenas, que teve como função, executar uma política de embranquecimento do povo brasileiro supondo estratégia de higienização social, logo, “extinguir” a população negra seria um processo de evolução cívica. Portanto, a questão racial é central para compreender em que lugar as mulheres e adolescentes pretas e pardas ocupam na América Latina, em específico no Brasil, sobretudo por intelectuais como Lélia Gonzalez, Isildinha Nascimento e Neusa Santos, que trabalharam e trabalham intensamente na análise dos impactos coloniais no nosso país. A produção intelectual das mulheres negras brasileiras também foi intensa e rica na década de 1980. Lélia Gonzalez (1988) em sua obra "Pelo feminismo afro-latino-americano" começa dizendo que, a apesar da comemoração centenária da lei Áurea, as mulheres e homens 30 pretos lutavam pela liberdade muito antes, direcionando reflexões para as desigualdades raciais e sexuais no Brasil, afetando principalmente as mulheres e indígenas. Ao contrário dos estados unidos, onde a discussão racial não foi precursora da discussão de outras formas de discriminação, que para Gonzalez (1988) podemos considerar isso como “racismo por omissão”, que está intimamente relacionado ao patriarcado e ao colonialismo. A autora retoma dois conceitos lacanianos para dar conta desse fenômeno na dimensão subjetiva, que se trata do infante e do sujeito-suposto-saber. Infante é a criança falada por outrem, a quem não é dada voz, nem atribuída condição de sujeito. Assim aconteceu com as mulheres não brancas, infantilizadas assujeitadas pelo sistema patriarcal-racista, negadas em sua condição de pessoas. Sujeito-suposto-saber é aquele ao qual se atribui, de forma imaginária, saber que não possui, gerando identificação. Dessa maneira, o colonizador é sustentado nesse lugar pelo colonizado, um efeito articulado ao eurocentrismo. Gonzalez (1988), enfim, chama a atenção para a intrínseca e inegável articulação entre fatores históricos, políticos, culturais e subjetivos que mantém a estrutura patriarcal, colonial e racista de dominação sobre as pessoas não brancas. E, embora Gonzalez tenha transcorrido há quase 40 décadas no artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” (1984) que: “O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo” (Gonzalez, 1984, p. 224), nos apresenta que os atravessamentos do lugar da mulher negra entre o racismo e o sexismo ainda são atuais na sociedade. Ao longo dessa caminhada, temos Isildinha Baptista Nogueira (1998), que foi uma das primeiras a utilizar ferramentas psicanalíticas para abordar as dimensões socioculturais e subjetivas da condição de pessoas negras brasileiras, e pioneira a discutir sobre o corpo negro no Brasil. Em seu trabalho, em que se aprofunda como mulher negra e brasileira, explica as muitas limitações que impedem o desenvolvimento humano, a autoestima e os processos autodestrutivos que são culturalmente impostos em uma sociedade racista. Se o inconsciente, como disse Freud, há registros de memórias da formação de cada pessoa, então as experiências diferentes, de reconhecimentos opostos entre pele negra e branca; pode-se afirmar que diante da subjetividade do corpo brasileiro, o inconsciente possui cor. Investigando diretamente nossas neuroses cotidianas, “A Cor do Inconsciente: Significações do Corpo Negro” expõe as raízes do racismo emaranhado em um movimento de degradação dos indivíduos que o vivenciam. 31 Ao identificar o “racismo à brasileira”, a autora Neusa Santos (1998) realiza análises para o âmbito das subjetividades e da dimensão psíquica, refletindo psicanaliticamente sobre os efeitos psíquicos e o custo emocional do racismo. De acordo com Neusa, a ideologia de branqueamento e o mito da democracia racial fortalece o Ideal de Ego enquanto um ideal branco, obtendo como efeito às pessoas negras um processo de dolorosa assimilação e submissão ideológica aos padrões brancos das relações sociais, onde a pessoa negra passa a enxergar o próprio corpo com auto-ódio, o que Isildinha Nogueira denominou como “sofrer o próprio corpo” (1998). A obra “Tornar-se negro” discorre sobre realidades de pessoas negras de diferentes idades, em mobilidade social ascendente - a fim de analisar o complexo de interiorização, do lugar de inferioridade do negro instituído por uma hierarquia pautada na cor; cujas as contribuições apresentaram que: (1) a raça, enquanto noção sócio-histórica, não carrega nenhum componente biológico justificável de diferenciação humana; (2) os padrões de interação racial no Brasil designaram certo paralelismo entre cor e posição na estrutura de classes; (3) a discriminação de cor/racial não deriva somente de uma herança do período escravocrata, mas se enraíza e se dinamiza através de estruturas específicas do capitalismo moderno; (4) ideologia de embranquecimento e democracia racial são dois lados de uma mesma moeda; (5) o caráter individualista de ascensão social do/a negro/a produz o impedimento do combate efetivo das dinâmicas estruturais das desigualdades raciais e um desestímulo à solidariedade e afirmação do grupo racial negro enquanto coletividade política. A partir destes pressupostos teóricos, Neusa afirma que as pessoas negras brasileiras são compelidas a usar um “figurino branco”, com o objetivo de inserir-se socialmente e receber aceitação. Porém, o custo emocional para ser reconhecido é muito alto porque implica uma dupla negação de si: enquanto sujeito (e enquanto corpo), e enquanto pertencente a um contingente social/racial. Logo, a autora argumenta que essa saída da discriminação racial por via da ascensão individual entendida como “exceção a regra”, estipula “o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação” (Souza, 2021, p. 53). Portanto, de acordo com as elaborações teóricas da psicanalista Neusa, “tornar-se negro” é, em síntese, o ato recusar à ideologia de branqueamento, produzindo uma concepção positiva de si mesmo. Este processo de emancipação ocorre como efeito resultante da ação política e do (re)conhecimento sócio-histórico, ou, nas palavras da autora, “saber que - racional e emocionalmente - reivindico como indispensável para negros e brancos, num processo real de libertação” (Souza, 2021, p. 46). 32 Nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negróide e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial, não organiza, por si só, uma identidade negra. Ser negro é, além disto, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência [...] Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori, é um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro. (Souza, 2021, p. 115). É através do processo de tornar-se negro que o indivíduo negro/a se emancipa do massacre de sua identidade, efeito do empenho de “embranquecer-se” como estratégia de ascensão. “O negro que elege o branco como Ideal do Ego engendra em si mesmo uma ferida narcísica, grave e dilacerante, que, como condição de cura, demanda ao negro a construção de um outro Ideal de Ego” (Souza, 2021, p. 77). A partir da rejeição ao Ideal de Ego branco e da construção de outro Ideal de Ego via afirmação da identidade negra, o/a negro/a lança mão da “experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades” (Souza, 2021, 46). Sueli Carneiro (2003) volta também ao plano de experiências, mas a nível coletivo, ao discorrer sobre as lutas do movimento de mulheres brasileiras que desempenharam protagonismo fundamental na luta contra a violência de gênero, criando políticas públicas como delegacias, casas de acolhimento para mulheres em situação de violência, além de reconhecer a desigualdade de gênero no mercado. Ela lança luz sobre a função significativa das mulheres negras como agentes de transformação na sociedade com sujeito político, cujas especificidades e singularidades de experiências associadas ao racismo são centrais para as conquistas das mulheres negras. As mulheres negras posicionaram o racismo como uma questão central dentro do debate feminista branco: o fato de já estarem inseridas no mercado de trabalho, o fato de sofrermos com violência racial e sexual historicamente de forma naturalizada, o fato de sermos alvo de esterilização forçada, dentre essas e outras particularidades, segundo Carneiro (2003), são cruciais para a uma agenda política antirracista e feminista brasileira. Enquanto a autora Carla Akotirene (2020), contribui atualmente complementando com discussões em seu livro “Interseccionalidade”, resgatando a história do conceito apresentando- o a partir de uma perspectiva feminista decolonial afrocentrada, restabelecendo brilhantemente nossa visão sobre o oceano Atlântico como aquele que banha as terras africanas e latino- 33 americanas; como aquilo que, embora demarque o lugar de tantas vidas violentadas; este oceano Atlântico move e permite cicatrizar e curar feridas pela presença das memórias ancestrais. Diante de tais pensadoras, podemos compreender a interseccionalidade como uma ferramenta anticolonial vital para o fortalecimento de nossas vidas seja qual for o âmbito; nas últimas 30 décadas de interseccionalidade nos apresenta a relevância epistemológica, metodológica e empírica que ampliou espaço para re-editar nossas escre-vivências, como diria nossa escritora Conceição Evaristo. Kimberlé Crenshaw não supôs o quão longe o termo interseccionalidade caminharia nas ciências humanas e pautas identitárias e; ao sistematizar o conhecimento empírico das mulheres negras como ferramenta normativa, a interseccionalidade tornou-se uma sensibilidade hermenêutica no campo da teoria crítica feminista de raça, onde em condições jurídicas, estruturais e subjetivas as mulheres negras podem ser representadas por si mesmas e compreendidas nos tribunais. A interseccionalidade está atravessando o século XXI e foi através deste conceito- método que os alguns Estados-nações se comprometeram com leis e políticas públicas para combaterem ao racismo, às violências correlatas, à intolerância e xenofobia. E, diante dos epistemícidios acarretados pelo Ocidente frente ao Outro, quaisquer políticas de identidade, necessita, metodologicamente, considerar a matriz de poder colonial moderna que se manifesta naquela ocupação ilegal, depredação, repartimento do continente africano, tráfico de pessoas, expropriação de riquezas, ódio religioso, violências militar, doméstica e sexual, exploração infantil e nacionalismos, de modo que identidades; são antes, permanências do colonialismo ao qual elas não conseguiriam ser idênticas. Neste sentido, a interseccionalidade exerce, entre escritas e ocupações, a reparação histórica referente às tentativas de silenciamento epistemológico e empírico das mulheres negras. As pautas dos direitos humanos ou consequentemente debates a respeito das diferenças que sejam, necessitam reconhecer que África e seus descendentes na diáspora compreendem mais sobre desumanização de aparências, preconceitos e discriminações, porque vivem o racismo estruturalmente e possuem uma engrenagem subjetiva e discursiva a este respeito pelo passado colonial e pelo presente marcado pelo racismo estruturante. Porém, a sociedade pós-moderna neocolonial se utiliza do conceito para manobrar os mesmo interesses do passado, fazendo a manutenção da herança colonialista, onde a ilegibilidade das mulheres negras às vagas de emprego são justificadas pela escolaridade baixa, 34 função específica, perfil corpóreo, etc, considerados nas lógicas de reestruturação produtiva; ao contrário do racismo e do sexismo que eram institucionalizados para impossibilitar o grupo ao mercado de trabalho e posteriores sistemáticas dos tribunais, induzindo o direito de fundamentar os prejuízo das vítimas explicitamente. Diante dessa conjuctura, vale considerar as metáforas de acidentes para a aplicação prática da interseccionalidade. Optando “amefricanizar” a retórica análoga à Lélia Gonzalez, compreendendo e utilizando a encruzilhada como o lugar multideterminado e multifacetado dos trânsitos de raça, classe, gênero, sexualidade, fluxos e sobreposições de acidentes identitários. Onde, frequentemente as mulheres negras são atravessadas e vitimadas por estarem posicionadas nas avenidas da diferença, interdependência e interação estruturais. Consequentemente, a atenção política da cosmo-visão ocidental agrava o estado social de uma pessoa enxergada diferente da mulher universal, principalmente se seus sentidos de humanidade sequer foram reconhecidos. Portanto, a mulher parda-mestiça não consegue contar somente com feminismo na cosmo-visão ocidental, uma vez que, as ferramentas trazidas são etnocentradas, e postuladas como ideal saber-poder etnocêntrico. A saber, um exemplo: por uma visão afrocentrada, Exu, é quem movimenta as avenidas e alimenta-se na encruzilhada, é uma das vozes ancestrais da cultura yorubá. Essa cosmo-visão sustenta algumas dinâmicas existenciais das mulheres negras, sobretudo, pardas-mestiças, já que produz a(fe)tivação na ética do cuidado no trânsito das diferenças e seus respectivos eixos de subordinação sexual, de classe, território, cor e etc. Sem perder de vista, em 1851, na Convenção dos Direitos da Mulher, Ohio, a intelectualidade ancestral aparece de Kimberlé Crenshaw à Sojourner Truth, pensadora não alfabetizada, pioneira do feminismo negro, cuja leitura discursou: “Eu não sou uma mulher?” Discutindo a marginalização submetida às mulheres negras em sua vivência, comprovadamente maior que a soma do racismo e sexismo, ou seja, da mera análise de classe trabalhadora. Neste discurso, a pensadora questionou ao público o seu próprio sexo, descredenciando o determinismo e preconcepções biológicas e religiosas quanto aos marcadores cristalizados e normalizados da identidade universal das mulheres, heterossexuais, produzidas e interpretadas pela visão branco patriarcal. Ao declarar nunca ter sido ‘ajudada a pular poças de lama ou subir nas carruagens’ e parir treze filhos assistindo ‘a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, [...] E não sou uma mulher?’ Sojourner Truth, conseguiu explicitar as relações de poder entre homens e mulheres isolada das questões de raça, 35 respondendo a opressão patriarcal experienciada pelas mulheres e homens brancos da classe média. Diante desta provocação, consequentemente, teorizou a categoria trabalho ao sugerir o parto da mulher negra como um trabalho produtivo e reprodutivo, como significantes do capitalismo, que afinal expõe o lucro mediante racismo e sexismo onde crianças negras foram produzidas, vendidas, retiradas da propriedade da mãe preta e da maternagem obrigatória. Portanto, foi com Sojourner Truth que a articulação de agendas mistas deu origem ao termo interseccionalidade, e atualmente, também nos fazem citar Kimberlé Crenshaw; Angela Davis, em 1981; Patrícia Hill Collins, 2015; Glória Anzáldua, em 1984; Rita Segato, 2003; Grada Kilomba, 2020; Lélia Gonzalez, 1988; Isildinha Baptista Nogueira, 1998; Neusa Santos, 1998; Sueli Carneiro, 2003; Carla Akotirene, 2020; Bell Hooks, 2013 entre outras pensadoras feministas pretas e pardas que declararam comprometimento no combate à opressão racial, sexual, heterossexual e classista, e nossa tarefa segue sendo o desenvolvimento de análises e práticas integradas, baseadas nas diversas realidades sistêmicas de opressões interligadas. Suprindo uma lacuna analítica - dentro do campo científico-acadêmico - e social, para que o conceito não perca seu potencial transformador e que sua utilização não reforce o silenciamento e o apagamento das importantíssimas contribuições que historicamente e contemporaneamente são concretizadas pelas mulheres pretas e pardas na teoria e na prática feminista brasileira. Ao longo dessa esteira teórica, percebe-se a necessidade de construir uma visão do manejo e pensamento crítico psicológico no país, sobre as teorias e práticas já utilizadas em nome de uma narrativa científica advinda de raízes discriminatórias e excludentes. Tal necessidade direcionou a articular na pesquisa conhecimentos da psicanálise com a esquizoanálise, interrogando o sofrimento e as tecnologias de cura diante do racismo com pessoas pardas. Essa discussão abre margem para uma atuação alinhada às possíveis demandas que podem chegar aos consultórios clínicos e instituições psicossociais, contribuindo também para o debate público. Ao considerar os processos de subjetivação marcados pela lógica colonial-capitalística (Rolnik, 2018) e modos de subjetivação marcados pelo agenciamento coletivo do desejo de ruptura, caminhamos em direção a invenção de práticas instituintes em defesa de políticas que assegurem direitos à população preta e parda, e, principalmente, ampliar e garantir espaço aos 36 modos de subjetivação racializada que já coexistem pelo agenciamento coletivo do desejo de ruptura ao binarismo racial. Os processos de subjetivação que contornam os territórios existenciais nos fazem ver e falar da força desses pequenos agenciamentos coletivos do desejo existentes no processo de devir grupo-sujeito. Compõem uma micropolítica do desejo, cujos processos de singularização expressam modos de romper com o instituído, instaurando discussões que suscitam o debate em torno das relações raciais e de outras situações-problema, acerca do processo de subjetivação à subjetividade(s) racializadas que será discutido no próximo capítulo. Trata-se de um devir comum minoritário que produz pequenas fissuras nesses muros, apontando para a composição de movimentos micropolíticos de enfrentamento ao racismo e de resistência à produção de subjetividades colonial-capitalística (Guattari; Rolnik, 2010; Rolnik, 2018). Considerando uma ética da alteridade-solidariedade no cuidado interracial, em saúde. 3.2 DAS VICISSITUDES DO PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO À SUBJETIVIDADE(S) RACIALIZADAS Daquilo que não sei Por que deixei A Terra ao longe, Com os pés que não pisei O peito consola O que poderia e não foi Aqueles que vieram antes... De mim, De lá Não deveriam Filhos, pais, amores... Ficaram... Levaram... Saudade do que poderia Mas não foi O coração tenta consolar O cerne, A semente, Outros têm 37 E eu... não sei... De Jesus, Dos Anjos, O nome Qual é? Ah, Jesus! Os rostos, as mãos, o cerne Espaço... Saudade Tristeza... Demais Saudade que começa com B E termina no alvorecer Pra casa não retornaram Pro dia que acabou Pra noite que começou (Tiodora – Silvia Teodoro) O processo de subjetivação diz respeito ao desenvolvimento pelo qual uma pessoa se torna um sujeito, ou seja, como ela é moldada e transforma sua própria subjetividade em relação a forças externas. Esse processo envolve uma série de práticas, discursos e relações que podem tanto libertar quanto aprisionar o indivíduo. Em que a esquizoanálise busca entender como esses processos de subjetivação podem ser desencadeados ou bloqueados, enfatizando a multiplicidade e a fluidez da experiência humana. A esquizoanálise não optará, então, por uma modelização com a exclusão de uma outra. Tentará discernibilizar, no interior de diversas cartografias em ato em uma situação dada, focos de autopoiese virtual, para atualizá-los, transversalizando-os, conferindo-lhes um diagramatismo operatório (por exemplo, por uma mudança de matéria de Expressão) tornando-os operatórios no interior de Agenciamentos modificados, mais abertos, mais processuais, mais desterritorializados. A esquizoanálise, mais do que ir no sentido de modelizações reducionistas que simplificam o complexo, trabalhará para sua complexificação, para seu enriquecimento processual, para a tomada de consciência de suas linhas virtuais de bifurcação e de diferenciação, em suma, para sua heterogeneidade ontológica. (Guattari, 1992, pp. 90-91) Enquanto as subjetividades(s) se refere ao refere-se ao modo como um indivíduo percebe e vive sua própria experiência. Caracterizando-se como uma construção interna da 38 "identidade", influenciada por fatores sociais, culturais e históricos. Em outras palavras, é a maneira como cada um se relaciona com o mundo e com si mesmo, segundo (Guattari, 1992): No ponto em que nos encontramos, a definição provisória mais englobante que eu proporia da subjetividade e: "o conjunto das condições que torna possível que instancias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como territ6rio existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva (Idem, p.19). É importante ressaltar que a esquizoanálise promove a ideia de que as identidades não são unitárias ou fixas, mas múltiplas e em constante transformação. Quando aplicada ao racismo, essa perspectiva abre espaço para pensarmos a identidade racial de maneira menos rígida, desafiando as noções de "branco" e "negro" como categorias estáticas e binárias, nos convidando a ver a raça como uma construção fluida, que pode ser continuamente ressignificada e reconfigurada. O “território existencial é uma instância expressiva que se funda sobre uma relação matéria-forma, que extrai formas complexas a partir de uma matéria caótica”. (Guattari, 1992, p. 44). Diante dessa perspectiva, podemos considerar uma subversão das categorias birraciais raciais fixas que também sustentam o racismo. Ao aceitar a multiplicidade de subjetividades racializadas, a esquizoanálise aponta para a possibilidade de desmontar estruturas hierárquicas que organizam as relações raciais. Trata-se de criar novos territórios existenciais onde as identidades raciais possam ser vividas de maneira múltipla e descentrada, fora das fixações da pigmentocracia ou das dicotomias birraciais que estruturam o racismo. Ainda de acordo com a esquizoanálise, o conceito subjetividade tal como é visto por Félix Guattari seria compreender que a “[...] subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo” (Guattari; Rolnik, 1996, p. 31). Após compreendermos que, a partir das ideias do autor, a subjetividade é como um processo de produção no qual comparecem e atuam múltiplos componentes; entende-se os componentes como resultados da apreensão parcial que o humano realiza, permanentemente, de uma heterogeneidade de elementos presentes no contexto social. Logo, os sentidos, ideias e valores são singularizados na medida em que nos relacionamos a cada encontro com o outro, tornando-se matéria prima para cada expressão dos afetos vividos. Dessa produção de subjetividades que sempre estamos sob um efeito provisório, acolhemos e emitimos tais componentes de subjetivação em circulação e, nesse movimento, fazemos uma construção coletiva viva. 39 É necessário acrescentar que a imbricação dos componentes se dá por instituições, práticas e procedimentos vigentes em cada tempo histórico, contando com a participação das instituições, da linguagem, da tecnologia, da ciência, da mídia, do trabalho, do capital, da informação, das famílias. Uma dinâmica vasta, mutante e permanentemente reinventada; posta em circulação na vida social de exclusão das diferenças. A binaridade racial, tal como outros modos de repressão racial veladas e explícitas em que as experiências de sofrimento expressam em suas singularidades, exigem articulações e rearticulações. Diante dessa constatação, sabemos que estamos suscetíveis ao risco de nossas invenções serem capturadas, transformadas e manipuladas para serem reproduzidas pela coletividade em uma determinada direção; e ao tomar uma posição dominante, a reprodução desses componentes desqualifica aquelas ações que colocam a vida em movimento. Guattari afirma: “Tudo o que é do domínio da surpresa e da angústia, mas também do desejo, da vontade de amar e de criar deve se encaixar de algum jeito nos registros de referências dominantes” (p.43). E, ao passo que essas referências são fortalecidas, simultaneamente abafa-se aquilo que Guattari nomeou como “processos de singularização”, o autor explica: “O que chamo de processos de singularização é algo que frustra esses mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos cercam e espreitam por todos os lados” (Guattari; Rolnik, 1996, p. 47). Disso, resulta que: Por um lado, vai estar preso em tal segmento, tal escritório, tal má-quina ou tal estado de máquina, vai estar ligado a tal forma de conte-údo, cristalizado em tal forma de expressão (desejo capitalista, desejo fascista, desejo burocrático, etc.). Por outro lado e ao mesmo tempo, vai passar por toda a linha, arrebatado por uma expressão liberada, arrebatando conteúdos deformados, atingindo o ilimitado do campo de imanência ou de justiça, encontrando uma saída (Deleuze; Guattari, 1975, p. 88). Fica evidente que diante dessa reprodução manipulada, para esse autor, vivemos uma espécie de desvio, de escapatória frente às tentativas de traduzir a existência pelo crivo dominante do capital, existindo e produzindo subjetividades em meio a uma luta. Para continuar esboçando nossa compreensão acerca de como os componentes subjetivos recebem diferentes contornos e se agrupam, passaremos a pensar sobre os modos de subjetivação juntamente com autor Michel Foucault, recorrendo a uma entrevista denominada 40 “Sujeito e Poder”, onde ele pontua: “Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos": Não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos. (Foucault apud Rabinow; Dreyfus, 1995, p. 231). Portanto, para conceber uma pesquisa sobre o processo de construção identitária de adolescentes pretas e pardas é de extrema necessidade considerar os marcadores sociais que forjam as relações sociais delas, principalmente as raciais já que estamos em um país que apresenta cotidianamente ataques e desigualdades raciais com requintes bem sádicos. Ao compreender a construção e manutenção das identidades, Stuart Hall (2004) argumenta a respeito da condição fragmentada do sujeito moderno, sustentando uma visão de identidade fragmentada, não fixa, que está constantemente em transformação. Contudo, na sociedade moderna, de acordo com o autor, a "crise de identidade" é vivida na individualidade do sujeito como deslocamento no campo social, cultural e de si mesmo, que antes era unificado. Na dimensão simbólica, identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas, onde segundo Hall (2004) a representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior. E, ao compreender a identidade de forma mutável, instável e plural na sociedade, também nos torna pertencente aos diferentes grupos e espaços sociais do qual o sujeito se insere, participa e se referencia (Hall, 2004). Entre todos os espaços que existimos e nos constituímos, a influência da escola enquanto formadora de subjetividades se destaca em relação a juventude por ser um âmbito atravessado por conflitos e construções sociais que envolvem aspectos socioculturais, políticos, econômicos e raciais, cotidianamente na vida das adolescentes negras. Com os trabalhos de Neusa Souza (1983), aprendemos que não nascemos negras, tornamo-nos ao longo do processo de autopercepção referente as inúmeras violências de gênero, raça e classe que atravessam nossos corpos, isto é, ao tomar consciência das opressões vividas normalmente desde muito cedo, nesse sentido, como tem sido construída a identidade racial de tais jovens pretas e pardas situadas em escolas periféricas? Com isso, entendemos que o cenário de depreciação que a mulher negra sofre em múltiplos espaços lhe direciona a negar sua negritude, colocando em xeque sua identidade 41 racial, Soares (2002) resgata e destaca citando Gomes (1996) que “A identidade racial envolve mais que ter determinado tom de pele; implica em possibilidades de ressignificação, de revisão histórica de sua própria condição e, sobretudo, de se narrar reflexivamente a partir de novas posições de sujeito.” Carla Akotirene (2019) nos convoca e recomenda através da interseccionalidade à uma “articulação das clivagens identitárias” em defesa da identidade política contra as raízes da opressão colonialista operacionalizada pelo racismo cisheteropatriarcal capitalista. Entendendo a educação enquanto ferramenta de transformação social, como um campo importante para promover conhecimento e liberdade, a Lei 10.639/20032 institui a possibilidade de provocar reconhecimento, valorização da história e da cultura afro-brasileira, o que impacta diretamente no processo de construção das subjetividades das pessoas negras, principalmente quando atinge a juventude negra. Entre as muitas frentes de atividade, luta e movimentos políticos e sociais, a escuta analítica, se faz uma ferramenta necessária ao lidar com sujeitos traumatizados pela violência racista, tendo essa ocorrida em ato, seja fruto dos desmentidos históricos ou da hipocrisia social, cujos efeitos poderão ser dos mais variados e implicar em diferentes níveis de sofrimento. O conflito identitário que assola a saúde mental e emocional das pessoas negras, denuncia outra violência que forja tal dúvida e que nos coloniza existencialmente, o desejo de brancura, Neusa Santos (1983). Para as pessoas negras (pretas e pardas), o estranhamento perpassa o que seria um possível reconhecimento de si mesmo na diferença do outro: o que ocorre é um reconhecimento da sua condição de não ser. 3.2.1 Negra-parda? O limbo identitário racial brasileiro e a reivindicação da identidade micro e macropolítica existencial. A carência de definições e representações sociais para os mestiços pode ser vista como um dos fatores que contribui para os conflitos que estamos observando neste trabalho. Isso leva muitos mestiços a aceitarem anular sua identidade na tentativa de se encaixar em movimentos identitários, para depois se sentirem perdidos ao não serem reconhecidos plenamente e 42 constantemente serem lembrados de sua condição mestiça, gerando uma sensação de deslocamento. Neste contexto as pessoas mestiças ficam em uma fronteira que tem sido chamada popularmente de “limbo racial”. (Bueno, 2021, p. 26) No imaginário da sociedade brasileira, de acordo com André (2007), o país é reconhecido como mestiço com a intenção de fundir uma identidade nacional, sendo uma estratégia de instituir o embranquecimento da população. Segundo o autor, o processo de miscigenação decorreu de três maneiras: a primeira, sendo através da violência sexual, dos estupros cometidos pelos senhores de engenhos; a segunda ocorreu por meio dos concubinatos, pois os casamentos inter-raciais não eram permitidos; e a terceira, por meio da chegada dos imigrantes e da “permissão" de casamentos entre os diferentes povos. Para a autora Gonzales, a exploração sexual da mulher negra fundamentou a mestiçagem, porém a elite branca propagou a ideia de que somos resultado da mistura de várias raças, dissimulando a realidade racial. E a partir desse breve contexto histórico e artifícios político-ideológicos, o que prosseguiu foi a noção de que pessoas pardas-mestiças teriam o passe livre ao mundo branco, correspondendo à ideologia do embranquecimento, sendo instaurada a ideia de “democracia racial brasileira” (Gonzales, 1984, p. 228). Contudo, devemos questionar os efeitos que essa mobilidade racial apresenta. Kabengele Munanga fala da condição de instabilidade dos mestiços na Introdução da obra de Eneida Reis (2002), que trata sobre a dubiedade dos “mulatos”: Aqui está o dilema da construção da identidade dos “Mulatos”. Teoricamente, eles têm três opções: optar pela identidade de um dos pais (de um dos grupos); construir a sua identidade mestiça; ficar perdidos sem nenhuma opção. Mas a prática social tem demonstrado que mesmo se o desejassem e o quisessem, os mestiços não seriam vistos totalmente como brancos ou como negros. Ou seja, a opção pela identidade do “branco” não lhes é totalmente franqueada, pois a mestiçagem constitui uma ameaça à identidade daqueles que ainda acreditam na “pureza racial”. Não são raras as situações de competição acirrada em que os indivíduos “mulatos” deixaram de ser chamados de “doutores” para se tornarem “negrinhos” ou “negrinhas” metidos(as). 43 Também não são poucos os depoimentos de jovens mestiços discriminados por negros em diversas situações. Construir a identidade “mestiça” ou “mulata” que incluiria “Um” e “Outro”, ou excluiria “Um” e “outro”, é considerado por mestiços conscientes e politicamente mobilizados, como uma aberração política e ideológica, pois supõe uma atitude de indiferença e de neutralidade perante o processo de construção de uma sociedade democrática, na qual o exercício da plena cidadania, a busca da igualdade e o respeito das diferenças constituem tributos fundamentais. Já que eles também são discriminados e excluídos, eles preferem adotar a identidade do “negro”, não por desconsiderar sua ambivalência no plano biológico ou por ignorar as representações que os dois grupos, branco e negro, têm deles, mas por uma questão de solidariedade política com a maior vítima da sociedade com a qual se identificam e são identificados. Sabe-se que no Brasil, os “Mulatos” e os “Negros” não estão coletivamente no comando da sociedade em todos os planos: político, econômico, intelectual, etc (Munanga, 2002, p. 20). Nesse trecho, Munanga nos fala sobre a ambivalência da condição do mestiço, e explica o caminho que eles tomam em direção à identidade negra, dada a compatibilidade de posições entre pretos e “mulatos”. O limbo racial é, nesse sentido, uma zona que precisa ser analisada, não só pelos indivíduos que se sentem nesse espaço social, é uma questão relevante na garantia de políticas afirmativas destinadas às populações pretas e pardas. Munanga, na mesma introdução do livro “Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não- branco”, reforça a ideia de que “no plano social e político-ideológico, eles [os mestiços] não podem mais manter e sustentar essa ambivalência resultada de sua natureza mestiça” (Munanga, 2002, p. 19). Tal como para a pessoa preta, resta à pessoa parda, para além do passado colonial perpertuado pelo projeto eugenista de miscigenação, associado ao processo de alteridade e construção identitária inerente ao ser humano, o desejo ambivalente de recusar esse significante, representa o significado que ele tenta negar, negando-se, dessa forma, a si mesmo pela negação do próprio corpo. (Nogueira, 1998). Já considerando o cenário fatídico referente ao processo de miscigenação entre diferentes grupos étnicos-raciais no Brasil, não há finalidade em apresentar a convergência entre teorias sobre a miscigenação visando à construção de um corpo que denúncia o limbo 44 identitário-racial por intermédio do entendimento sobre a realidade e corpo do sujeito negro- pardo. Diante disso, uma das principais questões da pesquisa se centraliza em acolher as necessidades da pluralidade de vivências a partir da pigmentocracia, existências e vozes brasileiras que marca a população forçadas ao silêncio que produz um nó na garganta de cada cidadã que não se apresenta como padrão ideal binário racial. Mesmo já compreendendo a miscigenação como marca do nosso país entre teorias eugenistas imigratórias e estupros institucionais, ainda temos como desafio resgatar os efeitos produzidos na historicidade da pessoa parda (mestiça), a fim de construirmos uma narrativa sobre nossa próprio discurso e realidade. E, por essa razão, este trabalho não é apenas uma reflexão teórica feita por intermédio de bibliografias sobre miscigenação e negritude, mas também deriva das minhas vivências enquanto uma pessoa parda. Ressalto que minha participação nessa conversa tem um “ponto de partida”. Eu sou uma jovem parda periférica, bissexual, cis, (a tal da “mulata”), e, como a maioria de nós, desde cedo, nunca compreendi meu lugar nesse debate, além de aprender a invalidar e inferiorizar minha existência, bem como odiar todas as características fenotípicas pretas que compõe meu corpo. Lembro-me de que quando criança esfregava minha pele até ficar vermelha, pensava que a minha cor era sinônimo de sujeira, procurava o lápis "cor de pele" e não encontrava o tom da minha pele. E, ao perceber a violência e os processos de silenciamento velados, fui taxada de "neguinha petulante" nos ambientes escolares ao denunciar o que na época eu chamava de "bullying". Posteriormente, em contextos profissionais; também fui uma universitária cujo professores disseram publicamente que meu lugar não era na universidade, afinal, “uma mulata como eu dançaria muito bem um samba”. Mais tarde, ao clinicar em um espaço juntamente com outras psicólogas, fui a única a ser designada para atuar como faxineira no ambiente. A lista continuaria, contudo, me limito aqui. Foi através do contato com o movimento negro, que entendi sobre o marrom da minha pele não significar sujeira, ou que eu não deveria invalidar minhas posições profissionais sob uma ótica racista. Contudo, também foi por meio do movimento negro que mais uma vez me vi deslocada, e "sem lugar de fala" por não ter a pele retinta e, então, fui posicionada como branca no movimento racial que, até então, eu acreditava que seria por intermédio dele resgatada do racismo. 45 Considerando meu percurso de letramento racial, minha escrita também tem por objetivo corporificar, nomear o lugar racial e meu próprio discurso, afinal, como Neusa Santos nos ensina, "uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo". Finalmente, me direciono a análise do impacto da pigmentocracia para a vida de pessoas pardas para o qual o autor Alejandro Lipschütz (1944) criou o conceito pigmentocracia no seu estudo sobre raça na América Latina, especialmente em relação à questão indígena – o indoamericanismo. Ele critica as teorias