1 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUISTA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS GILMARA YOSHIHARA FRANCO A o(ᴙ)dem republicana em Mato Grosso: Disputas de poder e rotinização das práticas políticas, 1889-1917 FRANCA – SP 2014 3 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUISTA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS GILMARA YOSHIHARA FRANCO A o(ᴙ)dem republicana em Mato Grosso: Disputas de poder e rotinização das práticas políticas, 1889-1917 Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- UNESP, como pré-requisito para obtenção do título de Doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura Política. Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp Orientadora: Professora Dra. Márcia Pereira da Silva FRANCA – SP 2014 4 Franco, Gilmara Yoshihara. A o(ᴙ)dem republicana em Mato Grosso: disputas de poder e rotinização das práticas políticas – 1889-1917 / Gilmara Yoshiha- ra Franco. – Franca : [s.n.], 2014. 229 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Profª Drª Márcia Pereira da Silva. 1. Mato Grosso. 2. Brasil - Política e governo . 3. Mato Grosso - história. I. Título. CDD – 981.72 5 GILMARA YOSHIARA FRANCO A O(ᴙ)DEM REPUBLICANA EM MATO GROSSO: Disputas de poder e rotinização das práticas políticas, 1889-1917. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como pré- requisito para obtenção do título de Doutor e História. Área de Concentração: História e Cultura Política. BANCA EXAMINADORA Presidente:__________________________________________________________________ Profª Drª Márcia Pereira da Silva 1º Examinador:_______________________________________________________________ Profª Drª Márcia Regina Capelari Naxara 2º Examinador:_______________________________________________________________ Profº Drº Samuel Alves Soares 3º Examinador:_______________________________________________________________ Profº Drº Paulo Roberto Cimó Queiróz 4º Examinador:_______________________________________________________________ Profº Drº Lincoln Secco Franca - SP, ________ de ________________________ de 2014 6 A revolução de que nos ocupamos foi, sem dúvida, uma obra patriótica, que há de figurar para sempre nas melhores páginas da história de nossa República. Matéria do jornal O Matto Grosso exaltando os confrontos armados ocorridos em Mato Grosso em 1892 Foi a vitória da paz e da ordem, foi a vitória da fraternidade, a vitória do progresso, a vitória da civilização, a vitória da Pátria. Discurso do Presidente de Mato Grosso, D. Aquino, eleito em 1918. É evidente que as culturas se transformam, evoluem. Antoine Prost 7 AGRADECIMENTOS Ao colocar um ponto final na presente pesquisa, iniciada há quatro anos, muitos são aqueles a quem dedico o meu agradecimento. Inicialmente, gostaria de agradecer a minha orientadora, Professora Márcia Pereira da Silva, pessoa que, além de me orientar, e às vezes repetir com muita paciência questões importantes para o encaminhamento da pesquisa, também me acolheu. Tal acolhida foi extremamente importante para conseguir suportar as agruras que as viagens e o desenvolvimento da pesquisa nos impõem. Aos Professores que participaram da minha Banca de Qualificação: Márcia Regina Capelari Naxara e Samuel Alves Soares, os quais, com suas preciosas observações, me fizeram reavaliar questões, rever possibilidades de abordagem e acertar os rumos da escrita desta Tese. Aos demais Professores do Programa de Pós-Graduação em História da Unesp/Franca, que sempre foram atenciosos e diligentes nas diversas circunstâncias em que juntos convivemos. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, tanto pela concessão da Bolsa Doutorado País, que me possibilitou desenvolver, com a tranquilidade necessária, a pesquisa e a redação desta Tese, como pela concessão da Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior, que subsidiou minha estada nos Estados Unidos da América, onde realizei coleta de fontes junto à Oliveira Lima Library. Aos colegas da pós-graduação e da Revista História e Cultura, publicação internacional de responsabilidade do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da Unesp/Franca: Helena Amália Papa, Ana Carolina Viotti, Milena Silveira, Felipe Ziotti Narita, Semíramis Corsi, Natália Ayo Schmiedecke, Sérgio Campos Gonçalves e Estevão Luz, pelas experiências compartilhadas ao longo desse período. Aos meus familiares, em especial ao meu irmão Deilton, ao meu pai, Dorvalino Franco, e ao João, por terem me ajudado a "segurar a barra" nos momentos mais difíceis. À querida Sylvia Cesco que leu e fez a revisão final do texto, contribuindo com dicas preciosas para tornar a leitura mais clara e fluída. Ao meu amigo Carlos Alexandre Trubiliano e aos colegas do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia. 8 A todos aqueles que, direta ou indiretamente, partilharam comigo todas as sensações vividas ao longo desse período, o meu “Muito Obrigada”. 9 FRANCO, Gilmara Yoshihara. A o(ᴙ)dem republicana em Mato Grosso: disputas de poder e rotinização das práticas políticas – 1889-1917. 231 fls. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"-UNESP, Franca-SP, 2014. RESUMO O presente estudo diz respeito às disputas de poder e à rotinização das práticas políticas em Mato Grosso, entre os anos de 1889 a 1917. Trata, mais especificamente, de possibilitar o entendimento dos aspectos constitutivos da cultura política e das formas de manifestação do fazer político no referido Estado a partir da passagem do regime monárquico para o republicano, em um período marcado por grande instabilidade, no qual as disputas envolvendo o controle do mando, levaram à sucessivas interrupções dos mandatos de Presidentes de Estados, aos enfrentamentos armados, organizados por facções partidárias que pretendiam tomar para si o controle do Estado de Mato Grosso a qualquer custo, e à reação daqueles que se julgavam alijados do poder. Desse modo, a análise aqui delineada busca favorecer o entendimento das especificidades inerentes a esse cenário de instabilidade e, posteriormente, a compreensão do processo de rotinização das relações de poder em Mato Grosso em parte do período que compreende a Primeira República. Palavras-Chave: Primeira República. Mato Grosso. Conflitos políticos 10 FRANCO, Gilmara Yoshihara. The republican order in Maro Grosso: power disputes and political prectices routines - 1889 -1917. 231 pages. Thesis (Phd Degree in History) - Social and Human Sciences School, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP, Franca - SP, 2014. ABSTRACT The current study regards the dispute for power and the routine political practices in Mato Grosso State between the years of 1889 and 1917. It tries, more specifically, to help better understanding the constitutive aspects of the political culture and the ways political performances were presented in the aforementioned State since the time monarchy was replaced by the federative regime. The period was highlighted by great instability and political disputes involving power control. It led to consecutive interruptions on the State President’s mandates and to armed confrontations organized by party factions that aimed to gain the political control of Mato Grosso State by any means and regardless the reactions from those who saw themselves as put aside of the power. Thus, the analysis designed in the current study aims to favor the understanding of specificities inherent to this instability scenario and, further on, to the comprehension of the routine process regarding power relationships in Mato Grosso within the First Republic period. Keywords: First Republic. Mato Grosso. Political conflicts. 11 FRANCO, Gilmara Yoshihara. El o(ᴙ)den republicano en Mato Grosso: luchas por el poder y la rutinización de las prácticas políticas - 1889-1917. 231 págs. Tesis (Doctorado en Historia) - Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP, Franca-SP, 2014. RESUMEN El presente estudio se refiere a las luchas de poder y la rutinización de las prácticas políticas en Mato Grosso, entre los años 1889 a 1917. Esto, más específicamente , para permitir la comprensión de los aspectos constitutivos de la cultura política y las formas de manifestación de la formulación de políticas en ese Estado por el paso del régimen de la monarquía a la federal, en un período marcado por una gran inestabilidad, en que las disputas políticas, que involucran el control de mando, llevaron a sucesivas interrupciones de los mandatos de Presidentes de Estados, los enfrentamientos armados, organizados por las facciones partidistas que querían tomar para sí el control político del Estado de Mato Grosso a cualquier precio, y la reacción de los que creían a sí mismos apartados del poder. Por lo tanto, el análisis esbozado aquí busca propiciar el entendimiento de las especificidades inherentes a este escenario de inestabilidad y, posteriormente, la comprensión de la rutinización de las relaciones de poder en Mato Grosso durante parte del periodo que comprende la Primera República. Palabras clave: Primera República. Mato Grosso. Conflictos políticos 12 LISTA DE ABREVIATURAS APMT Arquivo Público do Estado de Mato Grosso BUCDB Biblioteca Universidade Católica Dom Bosco BN Biblioteca Nacional BPGYF Biblioteca Particular Gilmara Yoshihara Franco DOU Diário Oficial da União IA Internet Archive IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGMT Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso IMLMT Instituto Memória Legislativa de Mato Grosso OLL Oliveira Lima Library 13 LISTA DE MAPAS Mapa 1 - A República dos Estados Unidos do Brasil em 1891.............................................27 Mapa 2 - Vias de Comunicação em Mato Grosso - Transporte Fluvial................................56 Mapa 3 - Economia de Mato Grosso na passagem para o século XX...................................62 14 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Receita e despesa de Mato Grosso - 1889/1897....................................................124 15 SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................ 17 Capítulo 1 - No limiar da República: as contestações ao regime monárquico e o cenário político-econômico em Mato Grosso .................................................................................... 35 1.1 A República em questão: as ideias, o debate e o vir a ser do regime republicano no Brasil .................................................................................................................................... 39 1.2 O redimensionamento da economia mato-grossense após a Guerra da Tríplice Aliança ...............................................................................................................................................52 1.3 A face renovada da elite política mato-grossense às vésperas da República ................. 63 Capítulo 2 - Sob o sol de uma nova Era: a reorganização política e as disputas pelo controle do poder em Mato Grosso nos primeiros anos da República ............................. 69 2.1 A alvorada republicana em Mato Grosso: disputas partidárias e instabilidade política.. 74 2.2 Das letras às armas: a derrocada de Antônio Maria Coelho e a consagração da oligarquia Ponce/Murtinho ................................................................................................... 99 Capítulo 3 - Acordos, dissensões, rupturas: a instabilidade como elemento da política republicana em Mato Grosso .............................................................................................. 107 3.1 As lideranças políticas mato-grossenses e sua atuação no cenário republicano na década de 1890 ............................................................................................................................... 110 3.2 Dimensões da instabilidade política em Mato Grosso... ............................................... 130 3.2.1 Em nome dos "elevados intuitos do nosso partido": a ruptura entre Generoso Ponce e os irmãos Murtinho no contexto da Política dos Governadores .................................. 130 3.2.2 O governo de Antônio Pedro Alves de Barros e o recrudescimento da violência entre as facções em conflito ........................................................................................... 141 Capítulo 4 - A Ordem e o Progresso que incomodam: o governo de Antônio Paes de Barros, uma ameaça às tradicionais forças políticas mato-grossenses ........................... 149 4.1 A ascensão: o jornal A Reação e os bastidores da campanha que consagrou a "força" de Antônio Paes de Barros ....................................................................................................... 150 16 4.2 A constituição da ameaça: a política "progressista" de Antônio Paes de Barros como desafio e ameaça aos tradicionais políticos mato- grossenses............................................................................................................................156 4.3 A articulação política contra Antônio Paes de Barros: a Coligação em Mato Grosso..163 4.4 O confronto: "da sua Usina do Itaici às chamas do inferno político", o enfrentamento armado de 1906 e o assassinato de Antônio Paes de Barros ............................................... 168 4.5 "Assassino, tirano, rústico": o ódio e a vingança como elementos da construção de uma imagem "demonizada" de Antônio Paes de Barros ............................................................ 172 Capítulo 5 - Entre a força das armas e o "rigor" da lei... soluções negociadas: a integração da política de Mato Grosso aos pressupostos da ordem .............................. ..179 5.1 O cenário político mato-grossense na década de 1910.. ............................................... 180 5.2 A inter-relação entre desenvolvimento econômico e o fazer político em Mato Grosso na década de 1910 ................................................................................................................... 187 5.2.1 A modernização econômica do Estado nas páginas do Álbum Grafico de Mato Grosso ............................................................................................................................. 187 5.2.2 A face da tragédia ou o lado oculto da modernização mato-grossense: o jogo político-econômico e os bastidores da Caetanada .......................................................... 191 Considerações Finais ............................................................................................................ 210 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 213 Fontes ................................................................................................................................... ..213 Bibliografia .......................................................................................................................... ..215 ANEXOS ............................................................................................................................. ..227 Anexo 1 ................................................................................................................................ ..228 17 Introdução A Revista Illustrada, publicação da imprensa carioca, acompanhou atentamente os rumos da política brasileira em fins do século XIX. Sem eximir-se de tomar posição quanto a temas polêmicos, registrou em textos e charges os momentos finais do Segundo Reinado. Na edição de 07 de dezembro de 1889, a Revista publicou um artigo intitulado "Páginas Cor de Rosa". Nele, a República proclamada dias antes era saudada como tempo promissor. Comparado a uma "nova Minerva, filha da ciência e do livre pensamento", o regime republicano, dizia o artigo, era o fruto do solo revolvido pelo "arado do pensamento". À moda francesa, o articulista descrevia a República de forma resplandecente, tal como uma virgem, trajando vestes alvas e trazendo sobre os cabelos o barrete frígio. Observava ainda que: (...) o povo brasileiro deitou-se obscuro e acordou célebre. No dia 14 [de novembro], ainda as instituições do passado dominavam soberanas sobre o país, que, apenas murmurava. A 15, a aurora que iluminou os céus e a terra brasileira foi a própria República. (...) Não havia dúvida. O que em nossa alegria, em nosso regozijo palpitante, julgávamos uma enganadora ilusão, era simplesmente, a realidade viva e indiscutível. O sol do dia 15 iluminava uma nova era1 (Grifo nosso). O artigo seguia convidando os leitores a saudarem essa nova Era, cuja síntese era a própria República. A ideia de República, que, aliás, não era recente para uma parte dos brasileiros, esteve presente no ideário de publicistas e revolucionários desde o período Colonial, como aponta Sérgio Buarque de Holanda. No Império, o ideário republicano tomou forma na década de 1870. Todavia, a ação dos republicanos adquiriu maior vigor na segunda metade da década seguinte, mais notadamente após a abolição da escravatura, em 1888. Até meados de 1889 não era possível visualizar no horizonte qualquer sinal de intenção consistente dos republicanos em colocar um ponto final no regime imperial. A maior aposta 1 BN. Páginas Cor de Rosa. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, ano 14, nº 570, p. 6. A jovem República: Revista Illustrada. Rio de Janeiro, 14 de dez. 1889, p. 5. 18 para o fim da Monarquia estava na morte de D. Pedro II. Já velho e doente, esperava-se que o Imperador levasse para o túmulo o antigo regime. Enquanto aguardavam o desfecho natural, restava aos republicanos atuar às margens do regime e desferir, pela imprensa, ataques diários contra o regime e contra o próprio D. Pedro II.2 O curso dos acontecimentos, porém, ao mesmo tempo em que deslegitimava a Monarquia, fortalecia o núcleo republicano que tinha, entre seus membros mais atuantes, nomes como os de Quintino Bocaiúva, Campos Salles, Prudente de Moraes, Júlio de Castilhos e a ala militar, concentrada em torno de Benjamim Constant e do Marechal Deodoro da Fonseca.3 Com a Proclamação da República, celebrou-se um novo pacto político, que tinha na autonomia federativa um de seus pilares centrais. Outro aspecto do regime instituído em 15 de Novembro de 1889 era a abertura de possibilidades de acesso ao poder, questão há muito pleiteada pelos atores políticos que viviam às turras com a velha ordem imperial decaída. Passados os momentos iniciais do brado à "aurora republicana", acontecimento que motivou conversas nos espaços públicos e privados e movimentou o noticiário político nos mais diversos jornais no Brasil e até no exterior, desencadeou-se um longo processo de disputas simbólicas4 e materiais em torno da conquista e estabelecimento dos espaços de poder dentro da ordem política instituída. Tais embates envolveram, sob múltiplas formas, as esferas estadual e federal em torno do redimensionamento das instâncias de poder e das práticas políticas afeitas ao conceito de República. O contexto que envolve a passagem do Império para a República já mereceu a atenção de inúmeros estudiosos. Tais pesquisas se debruçaram sobre objetos variados, o que resultou em distintas abordagens. Mesmo quando os trabalhos têm em comum o objeto de análise, produzem diferentes reflexões, pois são tributários do diálogo que o pesquisador estabelece com o tempo e o lugar de onde escreve. Os estudos sobre a República começaram logo após a mudança do regime. Inicialmente, através de artigos publicados em jornais e revistas, os autores expressavam as impressões produzidas no calor dos fatos. Passado algum tempo, mas ainda sob o impacto da mudança, publicações mais alentadas vieram a público. Nas interpretações dos republicanos, 2Cf: HOLANDA, Sergio Buarque de; CAMPOS, Pedro Moacy (Orgs). O Brasil Monárquico declínio e queda do Império. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1971. Vol. 4, Tomo II, Col. História Geral da Civilização Brasileira. 3 Sobre a participação dos militares no contexto que culminou com a Proclamação da República, ver: CASTRO, Celso. A Proclamação da República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 4 Nesta pesquisa não temos o propósito de abordar as questões que envolvem as disputas em torno do imaginário e do simbólico na República brasileira. Sobre o assunto, ver: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o Imaginário da República no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras, 1990. 19 permaneciam as ideias veiculadas ao tempo da publicação do Manifesto Republicano de 1870, entre as quais estava a constante repetição do anátema que considerava a Monarquia "uma flor exótica na América". Entre os intérpretes pioneiros está Felício Buarque que, em 1894, lançou Origens republicanas - estudos de gênese política. Para Buarque, a transformação política era uma evolução linear, mecânica e "o regime republicano sempre constituiu aspiração nacional"5. Em oposição a essa versão estava a de monarquistas como Afonso Celso que, no livro O imperador no exílio, defendeu a tese de que a Proclamação da República fora uma quartelada que transcorreu sem qualquer apoio popular. Nesses primeiros escritos, conforme observa Emília Viotti, são evidenciadas as paixões de momento. São interpretações nas quais republicanos e monarquistas, cada um a seu modo, apresentavam a versão de seu grupo sobre o contexto que culminou com a passagem da Monarquia à República. Emília Viottti afirma ainda que nessas narrativas privilegiou-se a ação das personagens em detrimento das variantes econômicas e políticas que permearam o processo de crise do regime monárquico.6 Nos anos 20 do século passado – decorridas mais de três décadas da Proclamação, com a aproximação do centenário da Independência em 1922, e diante do início da crise que levaria ao fim a Primeira República – pesquisadores promoveram a primeira revisão historiográfica sobre a República no Brasil. Naquele período, destacam-se as obras de Vicente Licínio Cardoso (1924)7 e Oliveira Vianna (1925)8. Tais reflexões foram e ainda são 5 Felício Buarque apud COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 7. ed. São Paulo: Fundação da Editora Unesp, 1999, p. 388. 6 Sobre os escritos de primeira hora, Suely Robles, em trabalho que analisa a ação dos jacobinos no Brasil, aponta também os trabalhos de Joaquim Nabuco: A intervenção estrangeira durante a revolta de 1893 (1932, 9ª ed.); também os de Eduardo Prado e do Visconde de Taunay, dois outros baluartes da defesa da Monarquia decaída, além das publicações em jornais que, mesmo com espaço restrito para levar a cabo qualquer tipo de análise, informavam sobre o tema. Sobre o registro da historiografia que trata da Primeira República, ver: QUEIROZ, Suely Robles R. de. Os Radicais da República. Jacobinismo: ideologia e ação 1893-1987. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, pp. 155/210. 7 Observadores atentos do ambiente de crise que atingia a República na década de 1920, um grupo de intelectuais, entre os quais estava o próprio Vicente Licínio Cardoso, elaboraram uma obra coletiva intitulada À margem da História da República - ideias, crenças e afirmações. Nela, apresentam críticas e apontam como solução uma "reforma dentro da ordem" como alternativa para o regime republicano brasileiro. As proposições de Vicente Licínio, embora não aprofundadas no texto, demonstram um esforço revisionista e contribuem para a interpretação dos anos iniciais da República. Cf: COSTA, E. V.da. op. cit. 8 O estudo de Oliveira Vianna que analisa o fim do Império no Brasil procurou, de acordo com o próprio autor, "historiar ideias". Publicado originalmente em 1925, trata-se de um trabalho de fôlego. A análise empreendida por Vianna começou com a queda do gabinete do presidente do Conselho de Ministros, Zacarias de Góes, em 1868, e passou por todos os momentos de crise vividos pelo regime monárquico desde então. Também influenciado pela crise da Primeira República, o autor deixa entrever seu pessimismo em relação a este regime. Todavia, a posição de Vianna, em relação ao seu próprio tempo, não compromete a importância da obra, ao contrário, oferece indício para pensarmos a atmosfera intelectual e política da década de 1920. Cf: VIANNA, Oliveira. O ocaso do Império. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1959. 20 importantes, não apenas pelo esforço revisionista empreendido pelos autores, mas também, pelas contribuições apresentadas. Mais de trinta anos tinham se passado desde a implantação do regime republicano e as crises numerosas que se manifestaram durante esse período obrigavam a revisão da história. A República revelava todas as suas contradições. Diante do quadro pouco animador oferecido pela realidade presente, uns procuravam encontrar no passado as raízes dos males presentes; outros, idealizavam o passado, consideraram a república o ponto de partida de todos os males. Os historiadores começaram a atribuir aos próprios monarquistas a responsabilidade do sucedido.9 A ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930 e os desdobramentos de seu governo produziam efeitos sobre a República brasileira e suscitavam novos questionamentos. A "certeza" de que a influência das oligarquias havia chegado ao fim e de que, portanto, uma etapa da história republicana havia chegado ao final, teve como um de seus intérpretes José Maria Bello. Para Suely Robles, trata-se de um estudo pioneiro "na medida em que traça pela primeira vez um quadro geral do período republicano. Ninguém o tentara até então, e, de lá para cá, é que foram surgindo outros".10 A intenção de compreender a República produziu farta bibliografia na década de 1950. Naquele período, os trabalhos de Vitor Nunes Leal (1948)11, Leôncio Basbaum (1957), Nelson Werneck Sodré (1958) e Celso Furtado (l959)12 foram marcantes pela influência que exerceram nos debates que os sucederam. 9 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 7. ed. São Paulo: Fundação da Editora Unesp, 1999, p. 450. 10 QUEIROZ, Suely Robles R. de. Os Radicais da República. Jacobinismo: ideologia e ação 1893-1987. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 178. 11 O trabalho seminal de Victor Nunes Leal estabelece o conceito de coronelismo. Elegendo como foco de análise a relação entre o público e o privado e o papel do compromisso na relação coronelística, analisa, em um quadro geral, o papel dos municípios, desde o período colonial até a década de 1940 no cenário político brasileiro. Na Primeira República, Vitor Nunes Leal observa que a despeito da importância das grandes cidades, o volume maior de votantes era proveniente de pequenos municípios e da zona rural, conjuntura que fortaleceu a atuação dos "coronéis". Segundo Nunes Leal, mesmo quando desprovido de riqueza, o "coronel" exercia grande influência local e sua ação poderia ser determinante para o resultado de uma eleição. Dessa forma, dada a fragilidade tanto do poder privado quanto da nascente República, o coronelismo originou-se de uma relação de compromisso estabelecida entre "coronéis" e lideranças políticas – seja em nível municipal ou estadual. Essas alianças garantiam o poder de oligarquias estaduais. De outro lado, analisa Nunes Leal, o governo federal mantinha-se à custa do apoio dos "coronéis" que controlavam os processos eleitorais por meio do chamado voto de cabresto. Sobre o conceito de coronelismo ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. 12 A publicação de Formação Econômica do Brasil, em 1959, constituiu-se, durante décadas, como um dos marcos interpretativos da história econômica brasileira. Juntamente com autores como Roberto Simonsen, Caio Prado Júnior e Aline P. Canabrava, o trabalho de Celso Furtado estabeleceu as bases de um paradigma acerca da economia do Brasil e influenciou a constituição da própria disciplina História Econômica, a partir de então veiculada em instituições como a Universidade de São Paulo, USP. Para maiores informações sobre a obra de Celso Furtado, ver: SZMRECSÁNYI, Tamás. Retomando a questão do início da historiografia econômica no 21 Novas reflexões tiveram lugar na década seguinte.13 Esses trabalhos foram influenciados sobremaneira pelos estudos de Celso Furtado e colocaram em destaque uma abordagem de caráter econômico sobre a Primeira República. As pesquisas pontuam que, naquele período, havia também os ecos que cercavam os debates sobre as teses de Nelson Werneck Sodré.14 Na década de 1970, ganhou força uma nova perspectiva de abordagem: a análise das oligarquias regionais. De acordo com o "balanço bibliográfico" produzido por Ângela de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira, nessa fase a produção historiográfica deu maior destaque ao papel desempenhado pela oligarquia cafeeira e ao protagonismo de São Paulo após 15 de Novembro. Assim, a historiografia do período (...) demonstra [a despeito de sua especificidade] que foi privilegiada a ideia de que a hegemonia política da oligarquia paulista, em aliança com a mineira, sustentava-se na preeminência da economia exportadora cafeeira. Em decorrência, o arranjo político entre São Paulo e Minas ditava de forma nítida a orientação do governo federal.15 Nota-se que esses estudos propunham uma análise in totum do intervalo correspondente à Primeira República. Embora tenham contribuído para a compreensão do período, tais abordagens não atingiam as especificidades das realidades regionais para além dos Estados de primeira grandeza. Ainda assim, mesmo quando voltadas para regiões já bastante influentes desde o Império – como Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Brasil. Nova Economia. Belo Horizonte: Departamento de Ciência Econômicas da UFMG, Vol 14, nº 1. jan-abr, 2004, pp. 11-34. Disponível em: . Acesso em: 12 de junho de 2012. 13 Das reflexões produzidas nessa década cabe destacar as de autoria de Maria Isaura Pereira de Queiroz, especialmente o trabalho O mandonismo local na vida política nacional, publicado em 1969. Esta obra analisa o poder exercido na esfera local e caracteriza o "mandonismo" como face da política coronelística no Brasil. Segundo a autora, na República o centro das ações políticas, assim como no Império, continuou sendo o município e, nele, os coronéis - não só aqueles oriundos da atividade agropastoril - estabeleciam seu mando. O personalismo era um traço marcante desses atores. Conforme dissemos anteriormente, embora seja reconhecida a necessidade constante de revisão dedos modelos que padronizam a interpretação do político na Primeira República, é indiscutível a contribuição que trabalhos como o de Maria Isaura, entre outros, pois nos permitem pensar o político no contexto tratado nesta pesquisa. Cf: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira. São Paulo: IEB, 1969. 14 A produção historiográfica de Nelson Werneck Sodré não pode ser dissociada de sua militância política. Membro do PCB, seus trabalhos aproximam-se das premissas marxistas da III Internacional Comunista. Vinculado ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB– Nelson era marxista convicto e, segundo ele próprio, seu trabalho intelectual era engajado. Em Formação Histórica do Brasil, buscando compreender o processo histórico brasileiro utilizando o materialismo histórico como referencial teórico, pautou-se na oposição entre a oligarquia agrário-mercantil e a burguesia nacional industrial representada pelas classes médias para a condução de suas reflexões. 15 GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Marieta de Morais. In: Primeira República: um balanço historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v 02, nº 04, 1989, p. 249. 22 Grande de Sul e, claro, São Paulo, o qual era atribuído papel de protagonista do período Republicano – esses estudos não consideraram as clivagens intrarregionais. Ainda como uma tentativa de compreensão holística, mas sob perspectiva multidisciplinar e temática, vieram a público, na década de 1970, os dois volumes que compõem a análise do período republicano da História Geral da Civilização Brasileira. Esse projeto, que havia começado na década anterior sob a coordenação de Sérgio Buarque de Holanda, foi marcado pela heterogeneidade de colaboradores. A fase republicana, elaborada sob a coordenação de Bóris Fausto, apresenta um painel da economia, da política e da sociedade depois de 15 de Novembro. Em grande medida, os textos ali contidos são resultados de pesquisas realizadas anteriormente pelos autores convidados a colaborar com o referido projeto. Pródiga em estudos sobre a República, nessa mesma década de 1970, pesquisas apontavam a necessidade de se pensar o tema sob um viés regional, com o fito de verificar os desdobramentos do regime republicano nos Estados. Nesse sentido, observou Maria Isaura Queiroz: seria indicado que diversas monografias fossem efetuadas em locais e regiões diferentes, a fim de identificar as várias formas que podem tomar as relações entre os mandões políticos e seus sustentáculos nas urnas, assim como as várias formas de ascensão sócio-política e econômica.16 Em certa medida, foi a partir dessa década que apareceram os primeiros estudos que procuraram compreender a Primeira República sob a perspectiva de abordagem regional. Naquele momento, notou-se a contribuição dada por pesquisadores brasilianistas, entre os quais estão Joseph Love (1975; 1982), John Wirth (1975), Robert Levine (1975), que “desenvolveram (...) um projeto comparativo sobre as elites oligárquicas nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco, abarcando o período da Proclamação da República ao Estado Novo". Além deles, a pesquisa de Eul Soo Pang (1979) que estudou a atuação das oligarquias na Bahia entre os anos de 1889 e 1934 também se destacou.17 Cabe notar que os estudos dessa época, demaneira geral, pautaram suas análises pelo modelo18 que tomava como 16 Apud FELIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. 2ª ed.(ampliada e revisada). Porto Alegre: Editora da UFRS, 1996, p.32. 17 GÔMES Ângela de Castro; FERREIRA, Marieta de Morais. In: Primeira República: um balanço historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v 02, nº 04, 1989, p. 247. 18 Compreendemos como modelo explicativo as interpretações da realidade concreta da qualse extrai um conceito – uma palavra ou ideia – capaz de sintetizar a realidade observada. Em nosso entendimento o problema de apoiar-se incondicionalmente em determinado modelo explicativo é que, quando tomados a priori e 23 pressuposto a hegemonia que resultou da aliança entre as oligarquias paulista e mineira. Amparados pela economia exportadora cafeeira, esses estados teriam influenciado a condução da política, tanto na esfera federal quanto nas demais regiões do país, através da chamada política dos governadores.19 Chegando ao fim do século, por ocasião da abertura política pós-governos militares, a nova realidade suscitava questionamentos de toda ordem. Nesse sentido, a partir da década de 1980, uma nova leva de trabalhos que abordavam a Primeira República veio a público. Tributários da aproximação do centenário da Proclamação, do processo de redemocratização do Brasil, e também frutos dos novos Programas de Pós-Graduação na área das Ciências Humanas, essas pesquisas incorporaram gradativamente os paradigmas teóricos que têm estreitado os laços entre a História e a Cultura – o que permitiu e estimulou novos olhares sobre a Primeira República.20 As pesquisas desse período apresentam, em sua maioria, um caráter fragmentário e/ou temático em relação à “Primeira República” enquanto objeto de estudo; instituíram novas problemáticas em relação ao tema e as análises passaram a ser marcadas por questões que vão além do papel das oligarquias – como por exemplo, as obras de Nicolau Sevcenko (1984), Flora Sucekind (1987), José Murilo de Carvalho (1987,1990). No que diz respeito à Primeira Republica em Mato Grosso, existem estudos monográficos de vários tipos. Esses trabalhos, em sua maioria, são tributários da ideia de que a transição do Império para a República foi tranquila se comparada com as décadas que se seguiram. Nesse sentido, o artigo de Virgílio Corrêa Filho, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, foi pioneiro. Com o título A República em Mato Grosso, o texto foi publicado em duas partes: a primeira em 1933 e, a segunda, em 1935. Nele, o autor descreveu a turbulência dos anos iniciais do período republicano na região. Uma versão de A República em Mato Grosso foi incorporada ao livro que Corrêa Filho lançou em 1969, intitulado História de Mato Grosso. confrontados com a complexidade e diversidade do caso concreto, ou seja, a um dado lugar, os mesmos, não raro, se mostram insuficientes. 19 Essa interpretação, em boa medida, é questionada por Cláudia Viscardi, a qual será abordada no Capítulo 3 desta tese. Cf: VISCARDI, Cláudia Maria R. O teatro das Oligarquias: uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. 20 A influência dos pressupostos que passaram a ser incorporados pela produção historiográfica, como a História Cultural e a Cultura Política pode ser observada, por exemplo, nos seguintes trabalhos: SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 2003; ________ A Revolta da vacina: mentes insanas e corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984. Além dessas pesquisas, datam da década de 1980 os trabalhos de Renato Lessa, José Murilo de Carvalho, Maria de Lourdes M. Janotti, Marieta de Moraes Ferreira, entre outros, que se caracterizam por estreitarem os laços entre política e cultura. 24 Membro da tradicional família Corrêa da Costa – que tinha entre seus membros atores que tomaram parte das disputas políticas ocorridas em Mato Grosso no início da República – o trabalho não é tomado aqui sem a cautela da crítica recomendada por Michel de Certeau. Apesar disso, não se pode negar a contribuição da obra desse autor para o entendimento do período, até mesmo por se tratar de um dos registros mais consultados acerca do início do período republicano na região. A narrativa de Virgílio Corrêa Filho pautou, a nosso ver, as interpretações que se seguiram e por essa razão, é tomada aqui como fonte de pesquisa.21 Na esteira dos trabalhos acadêmicos que emergiram com foco nas realidades estaduais, a pesquisa de Valmir Batista Corrêa, intitulada Coronéis e bandidos em Mato Grosso – 1889 a 1943 – foi precursora. Fruto de tese de doutoramento concluída em 1985, o texto aborda o uso da violência nas disputas pelo controle político da região; a investigação de Batista Corrêa constitui um avanço nos trabalhos disponíveis até então e aponta caminhos para pesquisas futuras. Ainda no final da década de 1980, Manoela Novis Neves publicou sua pesquisa sobre as elites em Mato Grosso. O trabalho dessa pesquisadora, mesmo tendo como recorte temporal os anos de 1945 a 1965, incursiona em fases precedentes e apresenta uma síntese das disputas oligárquicas no Estado durante a Primeira República. Mais recentemente, dois estudos acadêmicos debruçaram-se sobre a interpretação do político em Mato Grosso ao longo da Primeira República. O primeiro deles, intitulado Elites e práticas políticas em Mato Grosso na Primeira República (1889-1930), de autoria do professor João Edson de Arruda Fanaia, aborda a formação da elite mato-grossense. Esse é um estudo que avança significativamente no sentido de usar conceitos como os de cultura política para a verificação das hipóteses levantadas pelo autor. O trabalho mapeia a origem socioeconômica dos atores que compõem a elite governamental mato-grossense: local de nascimento, grau de instrução e profissão. Embora contribua para a apresentação de elementos que caracterizem o fazer político da "elite", o trabalho permite que novas interpretações avancem no que concerne as diferenciações entre as facções e as práticas políticas locais no interior dessa própria elite. Mais recentemente, veio a público a pesquisa de Lauro Virgínio de Souza Portela, Uma República de muitos coronéis e poucos eleitores: coronelismo e poder local em Mato 21Além de Virgílio Corrêa Filho, os trabalhos de Rubens de Mendonça e Lenine Póvoas são registros importantes sobre o período republicano em Mato Grosso, conforme se pode verificar em: MENDONÇA, Rubens. História do Jornalismo em Mato Grosso. Mato Grosso: Imprensa Oficial, 1963; PÓVOAS, Lenine C. O ciclo do açúcar e a política em Mato Grosso. 2ª ed. Cuiabá: IHGMT, 2000; ALVES, Lourembergue. Caetanada: violência e luta armada como estratégia de obtenção e manutenção de poder. São Paulo: Scortecci, 2002. 25 Grosso (1889 – 1930). Embora também adote o recorte temporal clássico (l889-1930), tal estudo busca ir além da interpretação conceitual mais comum sobre o coronelismo e traz importantes elementos que permitem a compreensão da singularidade da atividade política em âmbito local. O autor destaca o uso político dos postos da Guarda Nacional em Mato Grosso para a arregimentação de homens e armas para formação das "legiões patrióticas" e "divisão de combates" no processo de manipulação do resultado das eleições no Estado e a legitimação do mando como elementos centrais em sua análise. Embora trate-se de contribuições significativas, consideramos que o estudo sobre a Primeira Republica em Mato Grosso ainda tem diversas questões não respondidas. Mesmo considerando que pesquisas mais abrangentes já tenham dado respostas para demandas relativas ao político na Primeira República, pareceu-nos instigante investigar quais foram as dimensões e características específicas da cultura política do Estado após a Proclamação da República. Em outras palavras, interessa-nos saber como foram feitos os arranjos políticos, quais as estratégias utilizadas por grupos/partidos para disputarem os espaços de poder e, finalmente, quais as variantes que explicam a instabilidade que perdurou ao longo de aproximadamente três décadas na região. Nesse sentido, a inquietação que move a presente pesquisa é ainda uma resposta às observações feitas por Maria Isaura Queiroz nos anos 1970, qual seja a de desenvolver uma avaliação sobre a política republicana tendo como locus de análise a realidade local. A hipótese que norteia o presente estudo é a de que a instabilidade e os conflitos políticos em Mato Grosso foram motivados pela inserção tardia de membros da elite da região aos preceitos e práticas que pautam o fazer político republicano. Explica-se: na passagem do regime monárquico para o republicano havia em Mato Grosso uma elite composta por atores ligados à grande propriedade de terras (usineiros de açúcar, criadores de gado), a diversos ramos do comércio, militares e profissionais liberais que amealharam capital político e/ou econômico ao longo das décadas de 1870 e 1880 e que viram na República a oportunidade de se consolidar politicamente. Assim, após a Proclamação da República, organizaram-se em grupos e/ou partidos e passaram a disputar entre si o controle do poder em âmbito estadual. Essas disputas desencadearam um cenário de instabilidade cujo período mais intenso se deu entre os anos de 1889 e 1917 – ocasião em que ocorreram três enfrentamentos armados, denominados por parte da historiografia como revoluções. Na segunda metade da década de 1910 uma série de transformações socioeconômicas e políticas contribuíram para o redimensionamento do fazer político em Mato Grosso 26 ajustando as práticas que até então tinham contribuído para dar forma a um ambiente politicamente instável, aos pressupostos da ordem22 republicana. O objetivo central desta Tese é compreender os matizes desse cenário de instabilidades que ensejou os conflitos ocorridos em Mato Grosso nos anos iniciais da República, bem como as estratégias utilizadas pelos grupos/partidos para conquistar e se manter no poder. Para tanto, pretendemos analisar as características da cultura política de um Estado (Mato Grosso) que orbitava no interior do federalismo hierarquizado da primeira República; interpretar em que medida a relação dos atores políticos com o sistema partidário local e nacional contribuiu para o instável cenário da região; considerar a capacidade de mobilizar a imprensa e de acionar homens em armas como formas de luta pelo poder, enquanto parte da dinâmica e da estratégia das disputas pelo controle político em âmbito local; analisar como se deu o processo de rotinização das práticas políticas locais, ou seja, o fim dos conflitos resolvidos por meio das armas. A definição do recorte temporal da pesquisa engloba os anos de 1889 a 1917. Como dito anteriormente, o estudo se inicia com Proclamação da República e vai até momento em que houve uma intervenção federal em Mato Grosso. A periodicidade leva em conta a fase de maior instabilidade política no Estado. Nesse caso, a opção por essa abrangência temporal se dá pelo interesse de nossa investigação em compreender a dinâmica da instabilidade, suas motivações e os significados das disputas políticas, o que, no limite, permitirá compreender as dimensões da cultura política republicana em Mato Grosso. Quanto ao recorte espacial da pesquisa, é importante lembrar que os limites territoriais de Mato Grosso em fins do século XIX não são os mesmos da atualidade. Situado na porção Centro-Oeste do Brasil, com uma vasta faixa de fronteira, nos limites com Paraguai e Bolívia, a região de Mato Grosso, no recorte temporal dessa investigação englobava os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e parte do território que compreende o atual Estado de Rondônia, conforme pode ser verificado no Mapa 1. Segundo dados do censo de 1890, a população total era de 92.827, segundo dados do censo de 1890. Desses, 27.093 residiam na capital, Cuiabá. O Estado possuía uma extensão territorial de aproximadamente 1.500.000 Km². 23 22 Por ordem, entendemos não só aquilo que estava dentro da legalidade, mas, também, o conjunto de valores implícitos que pautaram a política ao longo da Primeira República. Em outras palavras, entendemos como ordem, um conjunto de práticas - legais e/ou culturais - que permitiam o fluxo normal de eleições e o cumprimento de mandatos. A palavra ordem tem, portanto, o sentido oposto de instabilidade. 23 Para a informação referente à extensão territorial de Mato Grosso, ver: BPGYF. CARDOSO AYALA, S.; SIMON, F (Orgs). Álbum Gráfico de Mato Grosso. Campo Grande: IHGMT, [1914] 2011, Tomo I, p. 93. Cf: 27 MAPA1: A REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL EM 1891 Modificado a partir de: COELHO, João. 1891. Disponível em: . Ainda quanto à definição do espaço da pesquisa, informamos que o fato de estar situado em uma zona de limite geográfico e que o conceito de fronteira implica em inúmeras PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2001. 28 interfaces24, o que nos interessa é o conceito geográfico em seu sentido estrito, ou seja, a fronteira física. Da mesma maneira, utilizamos o termo região25 apenas para designar a porção de territórios que compunham Mato Grosso no período em foco. No que diz respeito ao espaço, este será tomado aqui, não apenas como uma dimensão física, tangível, mas como o lugar das vivências, das trocas e do conflito social. Na sua concretude e pluralidade, o espaço tem aqui, por exemplo, o formato de jornal, meio pelo qual se materializavam os conflitos políticos que analisamos. Os jornais compõem a principal fonte de pesquisa para o desenvolvimento do presente estudo. A escolha da mídia impressa como fonte de pesquisa do político no Brasil não é recente, como mostram os trabalhos Gilberto Freyre (1966), Fernando Henrique Cardoso (1962) e Emília Viotti da Costa (1999). Mais recentemente, com a reinterpretação do próprio conceito de fonte, a veiculação impressa de informações tornou-se, indiscutivelmente, um rico manancial de pesquisas como demonstram os trabalhos de José Murilo de Carvalho (1987, 1990), Isabel Lustosa (2000), Maria Helena R. Capelato e Maria Lígia Prado (1980), por exemplo. O estreitamento dos laços entre pesquisa histórica e jornais impressos tem, cada vez mais, atraído a atenção de pesquisadores, sejam aqueles ligados ao estudo do político ou a outras vertentes da análise historiográfica. Para o presente estudo, tomamos os jornais como o espaço dos enfrentamentos políticos, uma vez que, destituída de espacialidade para a fomentação de discursos e ideias, a elite mato-grossense fez uso da imprensa – que, aliás, ela mesma produzia –, para debater e difundir projetos. Os grupos dialogavam entre si por meio das páginas que publicavam. Quando a esfera deixava de ser o debate político, era a violência que decidia o resultado das disputas. Tais publicações contavam com periodicidade diária, semanal ou quinzenal. É importante considerar ainda que a mídia impressa tem se apresentado no contexto da renovação dos estudos da história política como fonte indispensável, que “cotidianamente registra cada lance dos embates na arena do poder”26. 24 Entendemos que a ideia de fronteira remete a um conceito polissêmico e de limites tênues (fronteira da sexualidade, da feminilidade, da civilização etc.). Desse modo, por ser um conceito passível de muitas abordagens e longa discussão, nos limitamos, de forma objetiva a apontar que na presente pesquisa aportaremos a questão sob a perspectiva geográfica. 25 Para José D´Assunção Barros, região pode ser caracterizada como "uma unidade definível no espaço, que se caracteriza por uma relativa homogeneidade interna com relação a certos critérios", e são inúmeros os critérios que podem atribuir sentido a uma determinada região. Sobre o assunto, ver: BARROS, José D´Assunção. História, região e espacialidade. Revista de História Regional, UEPG, v.10, nº1, 2005, pp. 95-128. 26 LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.) Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 128. 29 A nação brasileira nasce e cresce com a imprensa. Uma explica a outra. Amadurecem juntas. [...] A imprensa é, a um só tempo, objeto e sujeito da história brasileira. Tem certidão de nascimento lavrada em 1808, mas também é veículo para a reconstrução do passado.27 Tomar jornais como fonte, contudo, não significa pensá-los como receptáculos de verdades; ao contrário, a partir de sua parcialidade, dos grupos que os mantinham, até porque os produziram para isso, o que pretendemos é compreender como se construíam as disputas, quais os interesses envolvidos, como os conflitos são justificados e como procuravam personificar e legitimar as lideranças políticas; enfim, “olhar os documentos e decodificá-los a partir de seus usos e finalidades”28. Em outras palavras, o uso desse tipo de fonte permitirá interpretar o universo da política local, situando-a em um âmbito maior, e a cultura política republicana brasileira no espaço temporal adotado como recorte desta pesquisa. Além dos jornais, utilizamos também a documentação oficial produzida no período, as mensagens de governo que contêm o balanço anual das atividades dos Presidentes de Estado, as memórias biográficas, além da bibliografia disponível sobre o assunto. Quanto aos pressupostos teóricos que orientam esta pesquisa, trabalharemos sob o paradigma conceitual que baliza os estudos de cultura política. A partir da década de 1960, os estudos que têm o político como objeto de análise tornaram-se alvo de intenso debate, resultando daí novas dimensões para esse campo de pesquisa. Entre os trabalhos que contribuíram para o que alguns denominam de "o retorno" do político está o livro The Civic Culture, obra dos pesquisadores estadunidenses Gabriel Almond e Sidnei Verba. Na década seguinte, os estudos do político também ganharam novo fôlego na França. Ali, o político ganhou novas dimensões quanto aos objetos, fontes e perspectivas de análise. Desde então, o ranço que estigmatizou por décadas esse tipo de pesquisa vem sendo questionado. Dentre os teóricos que se dedicaram ao tema está Serge Berstein, que define cultura política como uma instância na qual “o real e suas representações se cruzam”. Berstein não 27 MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de. (Orgs). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 8. Entre os trabalhos precursores no uso do jornal como fonte está Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX de Gilberto Freyre, publicado ainda na década de 1960, em que, como enuncia o próprio nome da obra, o autor utilizou-se das descrições de escravos nos anúncios de jornais como fonte. Mais recentemente, a defesa de Pierre Norra para o uso de novas fontes contribuiu sobremaneira para que os jornais e outros vestígios, até então menos utilizados como fontes de pesquisa, fossem alçados a uma nova condição, passando a servir amplamente como fonte para pesquisa. No Brasil, tanto os estudos de Tânia Regina de Luca como os de José Murilo de Carvalho (1987, 1990) e Maria Helena Rolim Capelato em um trabalho conjunto com Maria Lígia C. Prado (1980) demonstraram a viabilidade do uso do jornal como fonte. Cf: CAMARGO, Ana Maria de Almeida. A imprensa periódica como fonte para a história do Brasil. In: Anais do V Simpósio Nacional da Anpuh. Vol. II. São Paulo: s/ed.,1971, pp. 223-239; LUCA, T. R. de. op. cit. 28 MESQUITA, Eni Sâmara; TUPY, Ismênia S. S. T. História & Documento e metodologia de pesquisa. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.61. 30 propõe conferir ou atribuir ao estudo do político foros de autonomia hermenêutica em que o pesquisador possa lançar mão de fórmula teórico-metodológica única, hermeticamente fechada, separando o político de outros níveis da vida em sociedade; ao contrário, para esse autor, o estudo do político “é fenômeno de múltiplos parâmetros, que não leva a uma explicação unívoca, mas permite adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos”. O estudo do político, segundo Berstein, está situado na “encruzilhada da história cultural e da história política”, e se constitui como possibilidade de “explicação dos comportamentos políticos por uma fração do patrimônio cultural adquirido”. A noção formulada por Berstein sugere a uma coexistência de cultura política no plural, ou seja, a simultaneidade de culturas políticas em um mesmo contexto histórico. De acordo com sua proposição, “é evidente que no interior de uma nação existe uma pluralidade de culturas políticas, mas com zonas de abrangência que correspondem às áreas dos valores partilhados”.29 Dentro desse arcabouço maior que tenta situar a compreensão dos valores e das práticas que orientaram a política republicana em Mato Grosso sob uma perspectiva cultural, nos valemos ainda do conceito de experiência formulado por Edward Palmer Thompson. Autor da obra Formação da classe operária inglesa, publicada originalmente em 1963, Thompson defendeu que a modernidade não era natural e aceita por todos como positiva, bem como ressaltou a existência de particularidades na formação da classe operária inglesa em contraposição aos tradicionais modelos explicativos dos defensores do marxismo ortodoxo.30 Ao tratar do making ou o fazer-se da classe operária inglesa, Thompson deu importância à experiência – conceito segundo o qual as concepções de uma dada categoria de trabalhadores não podem ser consideradas de forma unívocas e nem uniformes. Elas podem, sim, ser construídas na relação que os indivíduos estabelecem entre si, permeadas pelo conflito entre e intra grupos e ainda em diálogo com o os valores presentes no momento em que se formam, do qual fazem parte a educação, a religião, a economia, bem como os demais 29Ao esforço feito por Berstein em conceituar o político e apontar horizontes teóricos à proposta de estudos, entre os historiadores, somam-se os trabalhos de dezenas de especialistas – sobretudo aqueles ligados à escola francesa do político, como os de René Rémond, Jean Pierre Rioux e Pierre Rosanvallon que têm sugerido abordagens do político – demonstrando a viabilidade de análises centradas nos aspectos teóricos da matéria. Sobre o conceito de cultura política ver: BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre (et al). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998; RÉMOND, René. (Org) Por uma história política. 2º Ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003; ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político (nota de estudo). História, São Paulo, 15: 27-39, 1996. 30 Thompson rompeu com a historiografia oriunda de ilustres membros do Partido Comunista, (dentre eles, Eric J. Hobsbawm e Raymond Wiliams). Ao escrever sua tese cujo título em inglês é The making of working classes adotou uma abordagem de caráter cultural para o tema que analisa o processo de formação da classe operária inglesa, desprezando conceitos estabelecidos a priori. 31 mecanismos de (ex)pressão social. Desse processo, resulta a formação da classe operária, cuja ideologia não pode ser identificada como um conjunto de pensamentos dados pela condição social, mas, sim, pela formulação oriunda da (re)significação possível pela experimentação do viver, marcada pelo espaço e tempo históricos. Nas palavras do autor: O fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. Nem devemos imaginar alguma força exterior - a revolução industrial - atuando sobre algum material bruto, indiferenciado e indefinível da humanidade, transformando-o em seu outro extremo (...).31 (Grifo do autor). Procedendo a uma longa análise das condições socioeconômicas e das experiências que fizeram parte na formação dos trabalhadores entre fins do século XVIII e meados do século seguinte, o autor concluiu que "a classe operária formou a si própria tanto quanto foi formada". Nesse sentido, o texto de Thompson torna possível avaliar a pertinência de se questionar categorias dadas, a priori, como a de classe operária. Tomamos o conceito de experiência para pensar a República no Brasil. Isso porque, ainda segundo Edward P. Thompson: Os valores não são “pensados”, nem “chamados”; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem nossas ideias. São as normas, as regras, expectativas etc. necessárias e apreendidas no “habitus” de viver; e apreendidas, em primeiro lugar, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida e toda a produção cessaria.32 Assim, consideramos que a análise do período republicano brasileiro requer um exame que considere as múltiplas experiências vivenciadas, a partir da qual se pode compreender a formação da configuração do novo regime. Para tanto, avaliamos como fundamental apreender as experiências políticas particularizadas; no caso em questão, as que deram a forma da face republicana em Mato Grosso. Partindo dos conceitos apresentados anteriormente (cultura política e experiência), examinamos como se desenvolveram as práticas políticas republicanas, bem como se 31 THOMPSON. Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. 3 vol. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 17. 32Idem. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 194. 32 estabeleceram os conflitos armados pelo poder em Mato Grosso, no período que engloba a presente pesquisa. Por fim, nos valemos do conceito de racionalização dos costumes, desenvolvido por Norbert Elias, para compreender, em que medida, as transformações socioeconômicas pelas quais passou o Estado de Mato Grosso ao longo da década de 1910, se refletem no fazer político – de modo a influenciar para que a instabilidade, traduzida sob a forma de interrupção de mandatos de Presidentes de Estados e confrontos armados, oriunda de disputas intraoligárquicas presentes na política mato-grossense desde a Proclamação da República, chegassem ao fim.33 Este trabalho está dividido em cinco Capítulos. No Capítulo 1, discutimos a natureza difusa das ideias republicanas que ganharam espaço, sobretudo na imprensa, a partir de movimentos de contestação da "ordem imperial" que surgiram na década de 70 do século XIX. A análise empreendida, baseada na bibliografia que discute o tema, nos permitiu concluir que não havia um modelo republicano consistente antes da Proclamação da República; em outras palavras, não havia um projeto futuro para a República, mas, sim, um diálogo, no sentido da crítica, voltado ao Império. Em regiões como Mato Grosso, essas ideias eram ainda mais inconsistentes e não conseguiram traduzir-se, sequer, em movimentos contrários ao Império. Em seguida, analisamos como as forças políticas estavam colocadas em Mato Grosso em relação à "ordem imperial"; as transformações econômicas que propiciaram o surgimento de uma nova elite na região após a Guerra da Tríplice Aliança e a chegada da propaganda republicana em Mato Grosso. No Capítulo 2, analisamos o instável cenário político mato-grossense após a Proclamação da República, as estratégias que os grupos/partidos utilizaram para organizar-se e disputar o controle do Estado nos anos iniciais do governo republicano. À época, dois eram os principais grupos: O Partido Nacional, posteriormente denominado Partido Nacional Republicano, e o Partido Republicano. Com atores oriundos, em sua maioria, dos quadros dos antigos partidos do Império - o Liberal e o Conservador - os novos partidos republicanos, liderados, de um lado, por Antônio Maria Coelho – militar indicado pelo Governo Provisório para assumir o governo de Mato Grosso após a Proclamação da República – e, de outro, por Generoso Ponce e os irmãos Joaquim e Manoel Murtinho, protagonizaram entre os anos de 33 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Trad. Ruy Jungmannn; revisão, apresentação e notas, Renato Janine Ribeiro. Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. 33 1889 e 1892 a primeira cena do conflituoso processo de rotinização da política republicana verificada em Mato Grosso. O Capítulo 3 trata dos elementos que pautaram a instabilidade política em Mato Grosso no período republicano, em um momento no qual, em âmbito nacional, através da chamada política dos governadores, o governo de Campos Salles buscava um arranjo para sanar a instabilidade verificada desde a Proclamação da República. Para tanto, analisamos o cenário local na virada do século XIX para o século XX, ocasião em que a oligarquia mato-grossense – consolidada sob a liderança de Generoso Ponce e dos irmãos Joaquim e Manoel Murtinho – chegou ao fim. Para abordar a instabilidade política em Mato Grosso, em um período em que a tendência geral era de estabilidade/estabilização, a premissa adotada nesse Capítulo é a de reconhecer a existência – dentro da oligarquia mato-grossense – de núcleos personalísticos de poder. Na medida em que tais núcleos se fortalecem, interesses divergentes em torno de figuras políticas fortes – como Generoso Ponce e os irmãos Joaquim e Manoel Murtinho - se instalam; somadas à ambição pelo o controle exclusivo dos postos políticos, estas divergências acabam precipitando as cisões intraoligárquicas, que são seguidas de perseguição e morte dos que foram alijados do poder. O Capítulo 4 interpreta o momento em que se verifica o ápice da instabilidade política no Estado, processo que culminou com o assassinato do então Presidente, Antônio Paes de Barros. Desse modo, o ponto de partida é a análise do cenário que resultou em sua eleição para o cargo para o governo de Mato Grosso, em 1903, em aliança com os irmãos Manoel e Joaquim Murtinho. Em seguida, abordamos a estratégia de Antônio Barros para afastar seus aliados e conquistar autonomia política, momento em que percebemos o início da campanha de seus opositores para tirá-lo do poder. Por fim, verificamos o reordenamento das tradicionais forças políticas do Estado - os Murtinho (ex-aliados de Antônio Paes de Barros), Antônio Azeredo, Generoso Ponce e os Corrêa da Costa – que, unidas, deflagraram o conflito de 1906, culminando com a morte do Presidente Antônio Paes de Barros. O Capítulo 5 investiga o processo de rotinização das práticas políticas em Mato Grosso, verificado a partir de meados da primeira década do século XX. Para tanto, analisamos a inserção do Estado em uma "era de progresso e modernização", a partir da inauguração das ferrovias Madeira-Mamoré e Noroeste do Brasil. O pressuposto por nós adotado é o de que a modernização econômica se traduziu em modernização política, contribuindo, dessa forma, para o redimensionamento do comportamento e o fazer dos membros da elite local, levando-os a abandonar os enfretamentos armados como estratégia e 34 linguagem políticas. O objetivo do Capítulo é compreender os motivos que envolvem o redimensionamento do fazer político, no que diz respeito à maneira como os conflitos mais intrincados – em momentos de divergência e cisões –deixam de ser resolvidos através das armas como ocorria até então. Em outras palavras, o que se busca nesse item é compreender o processo de inserção do Estado mato-grossense aos preceitos e práticas que pautam o fazer político republicano. 35 Capítulo 1 No limiar da República: as contestações ao regime monárquico e o cenário político-econômico em Mato Grosso Ai, quando eu vim de minha terra/ despedi da parentaia (sic)/Eu entrei no Mato Grosso, dei em terras paraguaia (sic)/ lá tinha revolução/enfrentei fortes bataia, ai, ai.. (sic).34 O trecho que serve de epígrafe à abertura deste Capítulo é parte de uma canção de domínio popular, intitulada Cuitelinho. A letra faz referência a uma palavra que se tornou comum ao vocabulário político mato-grossense durante a Primeira República: revolução. À primeira vista, a revolução mencionada na música pode sugerir a situação de conflito que envolveu países do Cone Sul América do Sul, por ocasião da Guerra da Tríplice Aliança35. No período em que a região foi palco da guerra, "entrar em Mato Grosso" e "dar em terras paraguaias", segundo o relato do Visconde de Taunay36, significava estar diante de um 34 Cuitelinho é uma canção de domínio popular. O título da música é uma designação regional que se dá ao beija- flor e a canção já foi interpretada por cantores como Milton Nascimento, Renato Teixeira e Pena Branca e Xavantinho. Informações sobre a canção estão disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cuitelinho. Acesso em 30 de mai. de 2014. 35 A Guerra da Tríplice Aliança é parte do capítulo que envolveu várias tensões entre os países que compreendem o sul da América do Sul no século XIX. As origens do conflito estão relacionadas, sobretudo, à ausência de acordo que estabelecesse os limites fronteiriços entre Brasil e Paraguai. As tratativas objetivando fixar os marcos de limite na área em questão remontam ao período colonial, época na qual Paraguai e Brasil estavam sob os domínios de Espanha e Portugal, respectivamente. Depois de terem se tornado Estados independentes, a questão fronteiriça não chegou ao fim. O Paraguai revindicava uma fração do território localizado ao sul da província de Mato Grosso e o controle da navegação do Rio Paraguai. Duas eram as razões que fundamentavam as pretensões do governante paraguaio Francisco Solano Lopes: a primeira era obter o controle da navegação pelo Rio Paraguai – pois somente pelo curso desse rio o país vizinho tinha acesso ao mar, o que o tornava vital para a economia daquele país; a segunda referia-se à intenção de explorar os ervais nativos existentes no sul de Mato Grosso, tendo em vista que a erva ali encontrada, a Ilex Paraguaiensis, era amplamente consumida como bebida pelas populações platinas. Ocorre que a navegação pelo Rio Paraguai também era vital para o comércio e a comunicação da província de Mato Grosso e, além disso, não havia por parte do Império brasileiro qualquer pretensão de ceder territórios da província mato-grossense ao Paraguai. A ascensão de Solano Lopes ao poder, em 1862, acirrou as questões que a diplomacia não havia colocado termo ao longo do tempo. Em 1864, enquanto Brasil e Argentina encontravam-se às voltas com guerra civil que opunha Blancos a Colorados no Uruguai, Solano Lopes, aproveitando-se do momento conturbando, aprisionou o navio brasileiro Marquês de Olinda, dando início à guerra. O primeiro momento do conflito foi marcado pela invasão do sul de Mato Grosso por tropas paraguaias. A vila de Corumbá, principal reduto das forças invasoras, só foi retomada em junho de 1867, por meio de uma ação comandada pelo então Coronel Antônio Maria Coelho. A província de Mato Grosso, frente secundária da guerra, teve suas parcas atividades econômicas profundamente afetadas durante o período do conflito. Para mais detalhes sobre a invasão paraguaia ao território de Mato Grosso e o curso da guerra como um todo, ver: DORATIOTO, Francisco F. M. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 23-188. 36 O relato sobre a expedição organizada pelo Exército brasileiro para dar combate às tropas paraguaias que haviam invadido o sul de Mato Grosso foi redigido por Alfredo d´Escragnolle Taunay, então membro da Comissão de Engenheiros que compunha a tropa. O texto, publicado originalmente em 1868, narra a atuação das 36 cenário de combate, atravessar cidades e lugarejos que tinham sido invadidos por tropas paraguaias – muitos dos quais permaneceram ocupados até 1868 –, se deparar com espaços que foram palco de batalhas. Lugares onde os efeitos da guerra que opôs a Nação Guarani à Aliança formada por Brasil, Uruguai e Argentina se materializavam em prédios e casas queimadas, em soldados e civis mortos e, por vezes, deixados pelo caminho, insepultos; tomar conhecimento, por meio do relato dos sobreviventes, do destino trágico daqueles que foram vitimados pelos combates, pela fome, por doenças como o cólera, ou ainda ouvir a narrativa dos que, entre o lamento e a esperança, aguardavam o dia em que pudessem retomar sua rotina. Muito embora o conflito tenha causado danos de toda ordem à população mato- grossense, o fim da guerra-guaçu – “guerra grande” em guarani – significou um período de renovação para a província. Houve, então, um processo de revivescência da economia local: parte dos engenhos de produção de açúcar e demais subprodutos da cana foram modernizados; o maquinário rudimentar foi substituído por sistemas de produção mais eficazes; a erva-mate – planta nativa no sul do Estado, consumida em forma de chá ou como chimarrão, bebida típica do sul do Brasil e de países platinos – passou a ser explorada de forma sistemática, assim como o látex, base de fabricação da borracha. Ocorreu ainda a retomada da criação do gado e do beneficiamento de seus derivados. Aliado a isso, verificou- se um conjunto de ações que implicaram em melhoria das vias de comunicação entre Mato Grosso e a região platina que se refletiu na expansão da economia local. Assim, o ano de 1870 constituiu-se em uma espécie de turn-point para a economia mato-grossense, marco de um recomeço. Na esteira do incremento do cenário econômico que o fim da guerra descortinou, verificou-se o surgimento de uma "nova" elite política na região. Parte de seus atores dessa nova elite atuou politicamente ainda durante o Império, muitos, entretanto, conquistaram espaços de atuação e poder somente com a Proclamação da República. Enquanto em terras mato-grossenses o ano de 1870 marca o início do processo de reordenamento econômico com significativas implicações políticas, em outras regiões do Brasil a data é tomada como um divisor de águas na história do Império. Desde então, o forças brasileiras e a tentativa frustrada do Coronel Camisão, comandante da tropa, de invadir a fazenda Laguna, no Paraguai, para conseguir víveres para os soldados que estavam famintos. A tentativa redundou em um grande fracasso, conforme registrado na obra de Taunay. Depois da publicação do texto, o autor foi laureado com títulos honoríficos por D. Pedro II. Cf. TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. São Paulo: Martin Claret, 2003. 37 regime monárquico passou a ser alvo de severas críticas.37 As discordâncias de grupos que se encontravam marginalizados em face da estrutura central de poder, adquiriram expressões mais concretas, de maneira que as fissuras na estrutura da velha ordem permitiu-lhes entrever indícios do esboroamento dos pilares que a sustentavam. Nos vãos, as vozes dissonantes ganhavam força. Nesse sentido, o Manifesto lançado pelos republicanos na imprensa carioca em 1870 é reconhecidamente um marco. O documento é simbólico não necessariamente "pelo conteúdo ideológico que poderia encerrar", mas por ser o registro do surgimento de uma agremiação que contrariava a ordem vigente.38 O movimento de contestação ao regime era polifônico e envolveu políticos e intelectuais de diversos matizes ideológicos. As diversas correntes de "livres-pensadores, iconoclastas e rebeldes" estavam situadas no interior da chamada "Geração de 1870". A denominação "Geração" não faz referência a um grupo específico, vinculado à determinada instituição, mas ao conjunto de atores, com elos entre si ou não, que estavam "profundamente interessad[os] e engajad[os] nas questões pátrias", se engajando nas discussões colocadas em debate nos anos finais do Império.39 No que tange ao ideário republicano que toma forma na esteira do pensamento daquela "Geração", é importante acentuar que os debates tinham extensão e profundidade variadas, tanto em face do alcance das ideias propagadas, como em razão do envolvimento de adeptos à causa, nas mais diversas regiões do Brasil. Também é discutível a existência ou não de um projeto acabado de República no interior de cada uma das vertentes republicanas. Todavia, não se pode negar que a discussão promovida pela chamada "Geração de 1870" ia ao encontro 37Sérgio Buarque de Holanda, assim como outros autores, situa o início da crise do Império datada no ano de 1868. Segundo ele, com as mudanças políticas engendradas naquele momento, "começa a crescer a onda que vai derrubar a instituição monárquica". Na esteira de autores como Maria Teresa C. de Mello, o presente estudo toma como referência para tratar a mencionada "crise” o ano de 1870, por ser esta a data do término da Guerra da Tríplice Aliança e também do Manifesto Republicano. A partir de então, a Instituição Monárquica e o Imperador D. Pedro II passam a ser alvos constantes de críticas. Na tentativa de dar uma resposta ao amplo leque de demandas como a questão servil, a reforma eleitoral, a autonomia das províncias, etc., muito se discutiu no Parlamento e reformas foram propostas. O cotidiano dos debates movimentou o noticiário e inflamou opiniões. Para os limites da discussão aqui proposta, nos interessa observar os matizes da ideia republicana que ganhou força naquele momento. Para uma discussão mais aprofundada sobre o período final do Segundo Reinado, ver: HOLLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. (História Geral da Civilização Brasileira. Tomo 2. Vol. 7); MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República consentida: cultura democrática e científica do Final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora UFRRJ (Edur), 2007. 38 Cf: DEBES, Célio. A propaganda republicana em São Paulo. In: LAPA, José Roberto do Amaral (Org.). História Política da República. Campinas, SP: Papirus, 1990, p. 107. 39 Cf: MELLO, M. T. C. de. op. cit. p. 93. 38 da crise imperial, contribuindo para colocar em xeque os pilares da "ordem imperial"40, favorecendo sobremaneira a queda da já combalida Monarquia brasileira. Para que possamos compreender as bases da instabilidade presente no cenário político mato-grossense, no período compreendido por este estudo –1889/1917 –, o Capítulo propõe fazer um breve recuo no tempo e observar, no cenário descortinado na década de 70 do século XIX, a ideia de República presente nas contestações ao regime monárquico e à emergência de uma nova elite em Mato Grosso, oriunda, em larga medida, do reordenamento da economia local após a Guerra da Tríplice Aliança. A análise aqui encetada é relevante, na medida em que o reordenamento econômico que desencadeou o processo de recomposição da política em Mato Grosso – após a Guerra da Tríplice Aliança, responsável pelo surgimento de uma nova elite política local – foi literalmente "atropelado" pela Proclamação da República. A mudança do regime, ocorrida no contexto dos questionamentos à Monarquia, e que foi acentuada a partir da década de 1870, gerou um quadro de grande instabilidade, agravado em Mato Grosso pela ausência de uma elite política consolidada. Desse modo, a partir das asserções de Isabel Marson – segundo a qual "a política é uma categoria complexa que imbrica variadas modalidades de eventos, episódios, instituições e se manifesta em diferentes instâncias constitutivas das sociedades históricas" –observamos que o cenário abordado no presente Capítulo conjuga o entrecruzamento das três dimensões da cultura política brasileira: a longa duração, a conjuntura ou média duração e o acontecimento. A primeira, traduzida sob a forma de valores e práticas há muito consolidadas no fazer político colocado em questão pelo movimento republicano; a segunda, representada, respectivamente, pelos cenários nacional, onde se desenvolviam os questionamento ao regime imperial e local, em que se verificam, na esteira do redimensionamento econômico descortinado no pós-Guerra da Tríplice Aliança, uma nova elite política. E a terceira, o acontecimento, engendrado pela mudança do regime político brasileiro em 15 de Novembro de 1889.41 40 Por "ordem imperial" estamos denominando o conjunto de valores e práticas políticas instituídas pelo Partido Conservador após as revoltas regenciais e que, segundo Ilmar Mattos, conferiram sustentação ao Império brasileiro durante o reinado de D. Pedro II. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2004. (Estudos Históricos). 41 Ao mencionarmos as três durações na história, a saber: longa, média e curta duração, também estamos nos valendo das reflexões que Isabel Marson estabelece sobre os postulados originalmente firmados por Fernand Braudel na obra "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo à Época de Felipe II". Cf: MARSON, Isabel Andrade. "A dimensão política da história": comentários e contrapontos. In: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles; PRADO, Maria Ligia Coelho; JANOTTI, Maria de Lourdes M.(Orgs). A história na política, a política na história. São Paulo: Alameda, 2006, pp. 25/33. 39 A intenção em tratar inicialmente os contextos nacional e local dos anos 1870 até a Proclamação da República se justifica em razão de que, embora pareçam dissociados, esses acontecimentos se interrelacionam em face da Proclamação da República. A análise da sobreposição dos cenários - nacional e local - nos anos que antecedem a queda do Império é, nesse sentido, fundamental para que possamos dimensionar o outro significado da palavra revolução que a canção Cuitelinho sugere, ou seja, o de que, durante a Primeira República, "entrar em Mato Grosso" significava tomar contato com um ambiente político instável. Naquele cenário, palavras como: instabilidade, cisão, disputa, recomposição e revolução passaram a referenciar o universo das práticas políticas locais, traduzindo a ação de atores e seus respectivos grupos/partidos em disputas pelo controle do mando que se tornaram comuns no Brasil, após a Proclamação da República. 1.1 A República em questão: as ideias, o debate e o vir a ser do regime republicano no Brasil A propaganda em prol da República no Brasil chegou tardiamente a Mato Grosso.42 Distante da agitação política que tomava forma na Corte e em províncias como São Paulo e Rio Grande do Sul, em Mato Grosso o primeiro jornal republicano foi fundado em 1883. A República se contrapunha ao Império, ao Imperador, e questionava os pilares centrais da política vigente à época. Na esteira de matérias que tinham como mote a crítica ao Império, o periódico promovia a propaganda republicana, apresentando como referências de discurso as ideias de progresso material e moral, liberdade de ensino e religiosa, entre outras. Em certos artigos, A República fazia alusão ao “progresso” como alavanca fundamental para o desenvolvimento da sociedade; apontava os preceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade como ideias caras à República43; citava a Revolução Francesa como exemplo de movimento que conseguiu extirpar a Monarquia, regime de governo que, para o jornal, não coadunava com a atmosfera intelectual e socioeconômica do século XIX. 42 No que diz respeito ao conceito e à prática política republicanos, é forçoso pensar que ao menos uma fração da sociedade mato-grossense tivesse conhecimento de como funcionava esse regime de governo. Localizada na fronteira entre as Repúblicas do Paraguai e da Bolívia, e tendo como principal via de comunicação o curso fluvial da Bacia do Prata – cujo trajeto incluía Uruguai e Argentina, que também eram Repúblicas – supõe-se que para os mato-grossenses que transitavam por essas áreas a ideia de república não era, de todo, estranha. Todavia, para os efeitos da discussão aqui proposta, interessa-nos pensar, apenas, as possíveis relações entre o ideário republicano veiculado em diversas regiões do Brasil e sua repercussão em Mato Grosso. Sobre o regime republicano na América de colonização espanhola, ver: SANTOS, Luís Cláudio Villafane G. O Império as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia (1822-1899). Curitiba: UFPR, 2002. 43 APMT. Monarchias. A República: Cuiabá, 24 de mai. de 1883, p.1 40 Nos exemplares disponíveis de A República44, chamou atenção o fato de que, à exceção da proposta de descentralização administrativa defendida pelo jornal como medida imprescindível para o "desenvolvimento das províncias", o discurso veiculado pelo periódico apresentava o regime republicano a partir de ideias gerais, dos "bons" exemplos oriundos da experiência francesa e estadunidense. Cabe notar, todavia, que a tônica do discurso carregado em tintas contra a Monarquia, empreendido por A República, não ultrapassava, de forma efetiva, os limites da retórica. A rigor, A República pode ter informado os mato-grossenses sobre a situação política de finais do Império, mas não resultou em grupos suficientemente organizados para gerar um partido republicano na província. Entre os mato-grossenses que podem ser denominados republicanos estavam Francisco Agostinho Ribeiro, José da Silva Rondon, Joaquim Duarte Murtinho45 e Antônio Azeredo. Os dois primeiros, embora críticos do Império, exerceram cargos de Deputado Provincial junto à Assembleia mato-grossense por diversas vezes ao longo da década de 1880. Joaquim Murtinho era filiado ao Partido Liberal de Mato Grosso e candidatou-se a cargos políticos na tentativa de representar sua terra natal na Corte, porém foi sempre preterido. Mantido à margem das esferas de poder do Império, defendeu a República. Tanto ele como Antônio Francisco Azeredo (Antônio Azeredo) viviam no Rio de Janeiro e lá compuseram o seu universo de atuação contra o regime monárquico.46 Se em Mato Grosso foi efêmera a adesão ao movimento republicano, o mesmo não se deu em outras localidades mais ou menos afastadas da Corte. Há registros de formação de clubes, partidos e a circulação de diversos periódicos que se intitulavam republicanos desde a 44 No APMT estão disponíveis para consulta os primeiros cinco exemplares do periódico A República, a saber, os números veiculados nos dias 03, 10,17, 24 e 31 de maio de 1893. A análise do conteúdo do periódico foi realizada a partir desses números e da obra de MENDONÇA, Rubens. História do Jornalismo em Mato Grosso. Mato Grosso: Imprensa Oficial, 1963. 45 De acordo com Maria Teresa C. de Mello, a defesa da causa republicana por parte de Joaquim Murtinho se fez juntamente com outros profissionais como Enes de Souza e Timóteo da Costa a partir da Escola Politécnica no Rio de Janeiro, local onde Murtinho trabalhava como lente. Cf. MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República consentida: cultura democrática e científica do Final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora UFRRJ (Edur), 2007, p. 30. 46 Ao longo da presente pesquisa, os únicos registros que encontramos acerca da movimentação republicana em Mato Grosso, antes da Proclamação da República, estão em Virgílio Corrêa Filho e Oliveira Vianna. Os autores classificam o movimento da região como "incipiente". Vianna aponta a existência de um periódico e três clubes republicanos na então província do Império. No entanto, reconhecemos que faltam estudos para melhor dimensionar em extensão e profundidade os efeitos da propaganda republicana em Mato Grosso. Sobre o assunto ver: CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1969, pp. 579/581; VIANNA, Oliveira. O ocaso do Império. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1959, pp.106/108. 41 década de 70 do século XIX para diversas regiões do Brasil.47 Chama atenção a importância que a palavra escrita teve no debate político de fins do Império no Brasil. No último quartel do século XIX, através das folhas da Corte e mesmo do interior, (...)[o debate político] acirrou-se centrado em três temas recorrentes: as crises entre a Igreja e o Estado (a chamada Questão Religiosa), a insatisfação dos militares para com o Império (a chamada Questão Militar), acirrada em 1886 com a discussão pela imprensa entre o coronel Cunha Matos e o ministro da Guerra, e a campanha da Abolição. Todas elas foram habilmente trabalhadas pela pena dos jornalistas de plantão, contrapondo uma Monarquia que sufocava a uma República que libertava.48 A propaganda republicana teve, na imprensa, um meio privilegiado de circulação. Os jornais eram tidos, mais do que qualquer outro expediente, como espaços de disputas e propagação de ideias diversas, vindas de diferentes grupos de oposição ao Império. Esses grupos foram descritos de muitas formas pela Historiografia. Convém destacar que estudiosos classificaram os republicanos de maneiras diversas, embora pequena fosse a diferença entre eles. Na visão de Silvio Romero, o movimento republicano situa-se no interior da chamada "Geração de 1870" que, a partir de pressupostos "importados" como o positivismo, spencerianismo e o liberalismo, teceu críticas à realidade social brasileira. Sujeito de seu tempo, Romero acompanhou de perto os acontecimentos que culminaram com a queda da Monarquia. Apostando na República como símbolo de um futuro promissor, o intelectual logo mudou de posição: "na direta proporção em que sua desilusão crescia, aumentava também o seu conservadorismo, suas posições antiliberais e mesmo reacionárias. O pensamento de Sílvio Romero é claramente uma dissidência à direita do projeto republicano vitorioso em 15 de novembro”49. Para Oliveira Vianna, outro intelectual que teceu duras críticas à República na década de 1920, o movimento de contestação ao Império surgiu da dissensão liberal de 1868 e era 47 Depois do Manifesto Republicano, marco fundante do movimento republicano que veio a público em 1870, novas formas de disseminação do ideário republicano surgiram, mais ou menos timidamente, em diversas localidades do Brasil. Conforme aponta Vianna, "o campo de irradiação do ideal republicano" – quer seja através de jornais, clubes ou partidos – era "pouco extenso a 15 de Novembro de 1889". Mesmo na província do Rio de Janeiro onde se localizava a sede da Corte, um dos principais lócus da propaganda republicana – o Partido Republicano – foi fundado "apenas em novembro de 1888". Sobre a distribuição geográfica de jornais, clubes e partidos republicanos, ver: VIANNA, Oliveira. O ocaso do Império. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1959, pp. 81-120. Sobre o processo que culminou com a queda da Monarquia e o início da República no Rio de Janeiro e São Paulo, ver: FERREIRA, Marieta de Moraes; KORNIS, Mônica Almeida (Orgs.). A República na Velha Província. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1989, p. 37. 48 MARTINS, Ana Luiza. Imprensa em tempos de Império. In:________; LUCA, Tânia Regina de. (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p.73. 49 SCHERER, Marta Eymael G; ALMEIDA, Luiz Alberto S. de. Silvio Romero, um crítico do século XX. Terra roxa e outras terras - Revista de Estudos Literários. vol. 16, set. 2009, pp.15-25. Disponível em: . Acesso em: 07 de jul. de 2012, p. 21. 42 mesmo inevitável diante do contexto do continente americano em que vicejavam repúblicas em meio ao Império. Segundo o autor, a sociedade da década de 1870 partilhava a convicção de que "a fonte de todo o mal estava na vontade, ou antes, na voluntariedade, que diziam antiliberal e caprichosa, de D. Pedro"50. A percepção de Vianna interessa-nos, todavia, em razão das formulações que Ângela Alonso fez, em 2002, em um trabalho no qual dialoga com as acepções de Vianna. A autora divide os opositores do Império em “liberais republicanos”, “novos liberais”, “positivistas abolicionistas” e “federalistas científicos”, agregando todos sob a denominação de “Geração de 1870”. Para ela, esses grupos tinham feições teóricas distintas e distintas eram suas ideias de República, mesmo sendo eles provenientes da elite social e econômica do Império. Alguns vinham de setores decadentes da agricultura, outros da produção agrícola mais destacada (como os cafeicultores paulistas), mas a maioria era vinculada à economia urbana. Nem todos falavam de República. Entre eles também estão aqueles que propunham reformas na estrutura do próprio Império. A visão de Romero analisada por Alonso, como já salientamos anteriormente, exemplifica o pensamento historiográfico da década de 1920. Para Ângela Alonso (2002), os questionamentos feitos à política imperial pela "Geração de 1870" explicam-se pelas restrições do acesso a cargos e prebendas, o que impôs a eles o agir às margens do centro da política imperial. Embora quase todos tivessem acesso à formação superior, não partilhavam de uma formação acadêmica em comum e nem mesmo eram de uma mesma região do país. De composição heterogênea, o que os grupos tinham em comum era a posição social próxima à daqueles que ocupavam os cargos políticos e administrativos que os críticos do Império também desejavam.51 O estudo de Ângela Alonso deixa claro que os ventos republicanos sopravam em diferentes direções. Para os liberais republicanos, grupo composto essencialmente por homens 50 VIANNA, Oliveira. O ocaso do Império. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1959, p. 82. Não desconhecemos o fato de que a obra de Oliveira Vianna e de outros autores como Sílvio Romero, produzidas na década 1920, devem ser compreendidas no contexto de crise da Primeira República, ocasião em que estavam em questão os pressupostos do modelo liberal-oligárquico adotado pelo regime. O Ocaso do Império, livro mencionado no presente estudo, foi originalmente publicado em 1925 e é, segundo Teresa Malatian, "uma tentativa de reabilitação do Imperador no exercício do poder moderador". Mesmo transbordando a atmosfera que cerca o momento de sua escrita, o texto que trata o final do Império sob perspectiva política e sociológica é uma referência para se discutir a atuação da chamada "Geração de 1870" e oferece dados e elementos que nos permite compreender as dimensões do movimento republicano nas mais diversas regiões do Brasil, incluindo a então província de Mato Grosso. Cf: MALATIAN, Teresa. O retorno do César Caricato. In: BRESCIANI, Maria Stella; SAMARA, Eni de Mesquita; LEWKOWICZ, Ida. Jogos da política. São Paulo: Anpuh, Marco Zero, Fapesp, s/d. pp.171-181. 51 Embora existam interpretações intermediárias entre um autor e outro, a menção que fazemos nesse trecho às obras de Silvio Romero e Oliveira Vianna é dada em função da diferença de abordagem por ele propostas à chamada "Geração de 1870" em relação ao trabalho de Ângela Alonso, dissonância essa tributária de influências teóricas e temporais que, em grande medida, permitem novas interpretações sobre um dado tema. 43 de profissões urbanas – cujos membros mais atuantes eram Quintino Bocaiúva, Salvador de Mendonça, Aristides Lobo e Lopes Trovão, todos profissionais de imprensa – "a república aparecia (...) como concretização do ideal norte-americano no self-made-man"52. Para os chamados novos liberais – vinculados por laços de natureza diversa com a "velha" elite liberal e adeptos da Monarquia – as reformas eram apontadas como solução para a modernização e a continuidade do regime. Para os positivistas abolicionistas, entretanto, a pedra de toque das contestações ao Império era a questão servil; o grupo, que tinha o positivista Miguel Lemos entre seus principais teóricos, não afastava a possibilidade de manutenção da Monarquia e acreditava que o Brasil "possuía condições necessárias para transitar do mundo feudal para o capitalismo"53, mas, para isso, era imprescindível abolir a escravidão. Entre os federalistas científicos, as teses de Alberto Sales e Assis Brasil refletem a inadequação do regime monárquico para a realidade social brasileira, sendo a República o caminho seguro para a adoção da autonomia das províncias e do "progresso" almejado pelo grupo. As ideias vindas de fora também inspiravam a jovem oficialidade militar. A partir desse repertório, combatiam o Império identificando-o como a representação de privilégio e atraso, e a República como uma Era da razão, do cientificismo e progresso. Como nota Celso Castro, entre os jovens oficiais adeptos da República "não havia clareza a respeito de como a República vindoura seria organizada"54. O autor ressalta ainda que "a falta de definição a respeito de como seria a Repúblic