Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Campus de Franca - SP ANGÉLICA APARECIDA ALVES LOURENÇO Políticas para Educação Inclusiva no Munícipio de Campinas: o que dizem as legislações nacionais e municipais. FRANCA – SP 2019 ANGÉLICA APARECIDA ALVES LOURENÇO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Dissertação de mestrado, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp/Franca. Linha de pesquisa: Política e Gestão Educacional. Orientadora: Hilda Maria Gonçalves da Silva FRANCA – 2019 RESUMO O presente estudo apresenta a pesquisa, cujo tema é a análise da legislação para educação inclusiva na rede municipal de ensino de Campinas, pois acredita-se que a efetivação da educação inclusiva, com a pedagogia centrada nas necessidades únicas de cada estudante, passa pela elaboração, implementação e análise de políticas públicas educacionais. Assim, o objetivo da pesquisa é investigar como a legislação municipal dialoga com a teoria que influencia práticas inclusivas e a legislação nacional. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental com coleta de dados em documentos oficiais, tais como: leis, decretos, resoluções e pareceres nacionais e municipais sobre educação inclusiva. O critério para coleta de dados dos documentos oficiais obedeceu ao recorte de 2008 a 2017 (2008 ano de publicação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e 2017 ano de início da pesquisa). Os dados foram analisados destacando as alterações de um documento para o outro, sobre as seguintes dimensões do tema educação inclusiva: escola inclusiva, formação de professores e atendimento educacional especializado. As dimensões foram escolhidas a partir do que caracteriza a educação inclusiva como novo paradigma educacional. Já para a orientação teórica, o critério foi o estudo de autores referência no tema, reconhecidos pela comunidade cientifica do país. Após a coleta de dados, os mesmos foram reduzidos de acordo com as dimensões já citadas, com o intuito de identificar como cada autor atribui significado ao tema. Contudo, buscou-se conhecer e sistematizar as proximidades e distanciamentos entre a legislação municipal e nacional, assim como a legislação municipal e a teoria sobre o tema. A pesquisa contribuiu para a compreensão de como se configura a legislação para essa educação no Município de Campinas, o que ajudou a identificar avanços e ausências que culminam no ambiente escolar, e que podem ser repensadas pelo Município. Palavras-chave: Educação Inclusiva. Inclusão escolar. Políticas Públicas. Legislação. Educação Especial. ABSTRACT Current paper presents the research, whose subject is a legislation analysis of inclusive education in the Campinas school department. It is understood that an effective inclusive education, accompanied by a pedagogy focused on the demands of each student, consists into elaboration, implementation and analysis of educational public policies. Therefore, research target is to investigate how the city legislation dialogues with a theory that influences inclusive practices and national legislation. Then, a bibliographic and documentary research has been conducted, with data collection in official documents, such as: laws, decrees, resolutions and city and national reviews about inclusive education. Criteria to collect official documents data considered a clipping from 2008 to 2017 (2008, publishing year of Special Education National Policies from the perspective of Inclusive Education, and 2017, starting year of this research). Collected data were analyzed, highlighting document updates regarding the following items of inclusive education subject: inclusive school, teachers training and specialized education attendance. Items were selected considering what characterizes inclusive education as a new educational paradigm. Regarding theoretical orientation, criteria considered a study of subject's reference authors, recognized by national scientific community. After data collection, information has been reduced according to items previously mentioned, in order to identify how each author attributes meaning to this subject. However, research aimed to understand and systematize proximity and distancing points between city and national legislation, and also between city legislation and theory about this theme. Research contributed to an understanding of how the legislation for this education in the city of Campinas is configured, which helped to identify advances and absences that culminate in the school environment, and could be rethought by the city. Keywords: Inclusive education. School inclusion. Public policies. Legislation. Special education. SUMÁRIO 1. Introdução ......................................................................................................................8 2. Educação Inclusiva: um caminho em construção.........................................................13 2.1 Onde estamos?........................................................................................................14 2.2 De onde viemos?.....................................................................................................19 3. Fundamentos teóricos da educação inclusiva................................................................32 3.1 Escola Inclusiva......................................................................................................33 3.2 Formação dos Professores.......................................................................................39 3.3 Atendimento Educacional Especializado................................................................44 4. Políticas para Educação Inclusiva no Município de Campinas: o que dizem as legislações nacionais e municipais...............................................................................46 4.1 Legislação Nacional...............................................................................................48 4.1.1 Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação InclusivaMEC/2008....................................................................................48 4.1.2 Decreto Nº 6.571/2008- Dispõe sobre o Atendimento Educacional Especializado. Revogado pelo decreto nº 7.611, de 2011.............................................................................................................50 4.1.3 Decreto legislativo n º186, de 2008- Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007.............................................................................................................51 4.1.4 Resolução nº4, de 2 de outubro de 2009. Institui Diretrizes operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial......................................................................................................51 4.1.5 Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 - Promulga a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo Facultativo, assinado em Nova York, em 30 de março de 2007............................................................................................................53 4.1.6 Decreto nº 7.612, de 17 de novembro de 2011 - Institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver sem Limite .....................................................................................................................54 4.1.7 Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011 - Dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências................................................................................................54 4.1.8 Lei 12.764, de 27 de Dezembro de 2012 (Lei Berenice Piana) - Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e altera o § 3o do art. 98 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990.......................................................................................55 4.1.9 Programa Escola Acessível - Resolução/CD/FNDE/Nº19/2013 de 21 de maio de 2013. Dispõe sobre a destinação de recursos financeiros, nos moldes operacionais e regulamentares do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), a escolas públicas municipais, estaduais e do Distrito Federal da educação básica, com matrículas de alunos público alvo da educação especial em classes comuns do ensino regular, que tenham sido contempladas com salas de recursos multifuncionais.................................55 4.1.10 Decreto nº 8.368, de 2 de Dezembro de 2014 - Regulamenta a Lei 12.764, de 27 de Dezembro de 2012 (Lei Berenice Piana) - Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.........................................................................................................56 4.1.11 Lei 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) - Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).................................................................................................56 4.1.12 Portaria n º105, 14/10/2015. Dispõe sobre a doação dos itens que compõem as salas de Recursos multifuncionais, ao Distrito Federal, Estados e Municípios que aderiram ao Programa Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais nos termos da Portaria SECADI nº 25, de 19 de junho de 2012 da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão.......................................................................................................57 4.1.13 Decreto nº8.752, de 9 de maio de 2016 - Dispõe sobre a Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica..........................................................................................................57 4.2 Legislação do Município de Campinas...................................................................58 4.2.1 Lei nº13.673, de 16 de setembro de 2009 - Dispõe sobre a obrigatoriedade dos estabelecimentos de ensino no munícipio disponibilizar a carteira escolar inclusiva e dá outras providências. Decreto 17.605, de 05 de junho 2012............................................................................................................58 4.2.2 Lei nº13.908, de 21 de setembro de 2010 - Inclui no Calendário Oficial do Município de Campinas o Dia Municipal de Luta pela Educação Inclusiva, a ser comemorado anualmente no dia 14 de abril, com homenagem e eventos de divulgação.................................................................................58 4.2.3 Resolução SME nº23, de 17 de novembro de 2010 - Estabelece diretrizes e normas para o planejamento, a elaboração e a avaliação do Projeto Pedagógico das unidades educacionais supervisionadas pela Secretaria Municipal de Educação..............................................................................58 4.2.4 Decreto nº17.744, de 22 de outubro de 2012 - Cria Grupo de Estudos com vista a Proposição da Política Municipal de Atenção à Pessoa com Deficiência no Município de Campinas. Revogado pelo Decreto nº17.884, de 25/02/2013.............................................................................................59 4.2.5 Lei 14.252, de 02/05/2012, que dispõe sobre a Matrícula de Deficientes Físicos e Mentais nas Creches e Escolas da Rede Pública Municipal de Ensino. Decreto nº17.784, de 28 de novembro de 2012.............................................................................................................59 4.2.6 Lei 14.384, de 12 de setembro de 2012. Obriga a Prefeitura Municipal de Campinas a instalar rampas de acesso a cadeirantes, sinalização especial para deficientes visuais no piso e elevadores, nas escolas onde funcionam seções eleitorais no município de Campinas.....................................................................................................60 4.2.7 Lei Complementar nº94, de 18/12/2014 - Altera dispositivos das leis nº12.985, de 28 de junho de 2007, que Dispõe sobre o Plano de Cargos, Carreiras e Vencimentos dos servidores do Município de Campinas e dá outras providências, e nº 13.980, de 23 de dezembro de 2010, que dispõe sobre a criação e cargos públicos de provimento efetivo de professor bilíngue, de instrutor surdo e de intérprete educacional de libras/português. ....................................................................................................................60 4.2.8 Lei nº15.073, de 08/10/2015 - Dispõe sobre o Conselho Municipal de Direitos da Pessoa com Deficiência - CMPD e dá outras providências................................................................................................60 4.2.9 Lei nº 15.029, de 24 de junho de 2015 - Institui o Plano Municipal de educação, na conformidade do artigo 6 da Lei nº12.501 de 13 de março de 2006, do Município de Campinas, Estado de São Paulo...........................................................................................................61 4.2.10 Portaria nº13, de 24/06/2016 – SME - Institui a política educacional para pessoa com surdez e com deficiência auditiva na rede municipal de ensino de Campinas................................................................................................62 4.2.11 Resolução nº3, de 17/01/2017 – SME - Fixa normas para o cumprimento dos Tempos Pedagógicos pelos professores da Rede Municipal de Ensino de Campinas, e dá outras providências.......................................................63 4.3 Proximidades e distanciamentos entre a legislação municipal e a teoria sobre educação inclusiva........................................................................................................................64 4.4 Proximidades e distanciamentos entre a legislação municipal e legislação nacional.........................................................................................................................65 4.5 Algumas ideias para o Plano de Intervenção....................................................................................................................67 5. Considerações finais.......................................................................................................68 6. Referências......................................................................................................................70 8 1. Introdução A educação inclusiva no Brasil é resultado de um longo processo histórico, no qual muitos brasileiros, pobres, negros, mulheres, deficientes, dentre outros excluídos do sistema de ensino, lutaram pelo direito à educação pública. Direito exposto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao destacar a educação como um direito social de todos, independentemente de características físicas, sociais, econômicas, culturais e outras. A pesquisa aborda o direito à educação das pessoas com deficiência, transtornos do espectro autista e superdotação, e a educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Para tanto foi estudada a legislação que organiza a educação especial no munícipio de Campinas e no Brasil. A pesquisa se desenvolveu em 3 seções, sendo elas: Educação Inclusiva: um caminho em construção; Educação inclusiva: fundamentos teóricos; e Políticas para Educação Inclusiva no Munícipio de Campinas: o que dizem as legislações nacionais e municipais. O assunto da primeira seção, cujo nome é “Educação Inclusiva: um caminho em construção”, é um resgate histórico da educação como um direito de todos, com estudo de documentos internacionais e nacionais, com foco nas constituições do Brasil. O assunto da segunda seção, cujo nome é “Educação Inclusiva: fundamentos teóricos”, é a apresentação teórica da educação inclusiva a partir das dimensões da escola inclusiva, formação de professores e atendimento educacional especializado. Já na terceira seção, intitulada “Políticas para Educação Inclusiva no Município de Campinas: o que dizem as legislações nacionais e municipais”, o assunto é a legislação nacional e do Município de Campinas sobre educação inclusiva, analisadas a partir do recorte: 2008 – Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva a 2017 – ano de início da pesquisa, seguindo os temas citados no parágrafo anterior. Também é assunto da terceira seção o encontro entre os fundamentos teóricos e as legislações, para conhecer e sistematizar proximidades e distanciamentos entre as legislações nacionais e municipais para educação inclusiva, assim como, as legislações municipais e a teoria. Assim, buscou-se com a análise chegar a um Plano de Intervenção que será sugerido ao Conselho Municipal de Educação de Campinas. A intenção com o plano é a proposta de revisão na legislação municipal e a criação de um grupo de estudo sobre educação inclusiva no CEFORTEPE - Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional “Prof. Milton de 9 Almeida Santos” que oferece cursos, capacitações e grupos de estudos para profissionais da educação do Município de Campinas. A importância do tema justifica-se pela realidade educacional do país, no qual em resposta à demanda de uma escola para todos, desenvolve-se a educação inclusiva. É impossível hoje investigar a educação escolar sem falar em uma escola para todos e na inclusão do estudante com deficiência na rede regular de ensino. O pesquisador David Rodrigues destaca que a educação inclusiva como paradigma educacional “tem certamente protagonizado uma das áreas conceitualmente mais interessantes e dinâmicas do debate educativo contemporâneo” (RODRIGUES, 2007, p.13), pois promove novas bases à educação divergindo da escola tradicional, que não foi planejada para atender aos estudantes com deficiência. Assim, a educação inclusiva é um tema muito discutido e explorado quando se busca a qualidade do ensino em um contexto da escola para todos. Tal concepção de educação é resultado de um longo processo em que o país passou pela exclusão, segregação, integração até chegar na inclusão. Segundo o Censo Escolar 2016, sobre a matrícula na educação infantil, “82% dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades estão incluídos em classes comuns” (BRASIL,2017), o que indica o aumento no acesso à escola regular. Porém, a inclusão não acontece somente pelo acesso à escola regular, mas também pela igualdade de condições que estados e municípios fornecem para a permanência do estudante na escola. Dessa forma, é fundamental investigar como o poder público tem normatizado a educação inclusiva que resultará em políticas públicas para o acesso, permanência e desenvolvimento integral de cada estudante, de acordo com as expectativas e capacidades de cada um. As políticas públicas educacionais devem convergir com as normas que orientam a política inclusiva em território nacional. Dessa forma, diante da educação inclusiva como paradigma educacional do século XXI, pretende-se responder a problemática: como a legislação para a educação inclusiva da rede municipal de ensino de Campinas dialoga com a legislação nacional e a teoria que versa sobre o tema? Para responder tal problemática, três informações são relevantes: a política proposta pelo Ministério da Educação não tem caráter impositivo, o Município de Campinas tem uma política própria de inclusão escolar, e as ações inclusivas das escolas são resultados da elaboração, implementação e análise dessas políticas públicas. 10 Nesse sentido, a pesquisa lança um olhar sobre como o Município de Campinas orienta a educação inclusiva e se a legislação está de acordo ou não com o que os pesquisadores já construíram sobre o tema, para entender como essa legislação se relaciona com o que é proposto pelo Ministério da Educação sobre tal concepção de ensino. Portanto, o objetivo da pesquisa é investigar como a legislação para educação inclusiva da rede municipal de ensino de Campinas dialoga com a legislação nacional e a teoria que versa sobre o tema. Os objetivos específicos são: 1. Apresentar os fundamentos teóricos conceituais da educação inclusiva. 2. Analisar documentos oficiais nacionais e do Município de Campinas sobre educação inclusiva na rede pública de ensino. 3. Conhecer e sistematizar as proximidades e distanciamentos entre a legislação municipal e nacional para educação inclusiva, assim como a legislação municipal e a teoria que versa sobre o tema. 4. Elaborar o Plano de Intervenção. Ao propor investigar como a legislação para a educação inclusiva da rede municipal de ensino de Campinas dialoga com a legislação nacional e a teoria sobre o tema, não se espera um conhecimento acabado, mas considera-se que identificar proximidades e distanciamentos em legislação municipal e nacional seja uma construção tal como todo conhecimento. De acordo com Bachelard (1996, p.24): Logo, toda cultura científica deve começar [...], por uma catarse intelectual e afetiva. Resta, então, a tarefa mais difícil: colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dialetizar todas as variáveis experimentais, oferecer enfim à razão razões para evoluir. Por vislumbrar um conhecimento aberto e dinâmico, foi realizado um trabalho analítico na modalidade qualitativa a partir de pesquisa e análise bibliográfica/documental. A escolha pela modalidade qualitativa advém de sua ampla utilização nas ciências sociais, assim como na metodologia histórica, e da riqueza que tal técnica oferece ao desenvolvimento da pesquisa. A modalidade qualitativa possibilita novas perspectivas de compreensão do fenômeno quando o quantitativo se sobrepõe. Assim, ao usar as técnicas qualitativas, o pesquisador trabalha com dados conceituais e não dados expressos de forma numérica. Segundo Aróstegui (2006, p. 515): Sua aspiração é, portanto, a de classificar, tipologizar, reunir os dados em função de sua qualidade, de suas características - o que necessariamente exige primeiro do pesquisador uma tarefa de conceitualização -, classificando fenômenos de acordo com informações verbais ou 11 verbalizando as informações numéricas. As técnicas qualitativas acabam sempre em informações verbais. Dentre as técnicas de pesquisa qualitativas, tais como a análise documental, técnicas arqueológicas, técnicas filológicas (análise de conteúdo) e pesquisa oral, optou-se pela observação documental. Assim, para investigar como a legislação para a educação inclusiva na rede municipal de ensino de Campinas dialoga com a legislação nacional e a teoria sobre o tema, o estudo pressupõe a análise documental. A visão qualitativa na pesquisa em educação é indispensável, pois a maior parte das fontes escritas é quase sempre a base do trabalho de investigação, com o estudo de documentos. Para Ludke (1986, p. 38), “a análise documental pode se constituir numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja complementando as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema”. A observação documental foi realizada a partir da pesquisa bibliográfica/documental e constitui o método exclusivo da pesquisa. Assim, foi realizada a pesquisa em documentos oficiais nacionais e municipais sobre educação inclusiva (leis, decretos, resoluções e pareceres) e a pesquisa bibliográfica, para apresentar os fundamentos teóricos conceituais da educação inclusiva construídos pelos pesquisadores do tema. A pesquisa bibliográfica é fundamental em toda pesquisa em ciência social, pois configura-se como a base da pesquisa científica e seu conhecimento possibilita saber como o tema foi desenvolvido e avançar em questões não exploradas. Segundo Aróstegui (2006, p.522) “sem a consulta do aparato preciso da bibliografia científica sobre um determinado tema, a qual é possível ter acesso por meio de repertórios variados (...) não é possível definir um projeto de pesquisa ou planejar sua estratégia (...)”. Para que a pesquisa bibliográfica tenha êxito é importante ter bem claro os objetivos. Assim, para o objetivo específico “Apresentar os fundamentos teóricos conceituais da educação inclusiva” a pesquisa sobre as teses, dissertações e livros, produzidos no país, respondeu as seguintes palavras-chave: educação especial, educação inclusiva, políticas públicas para educação inclusiva. A pesquisa resultou em livros, dissertações e teses sobre educação inclusiva de autores com produção relevante sobre o tema segundo as palavras- chave citadas acima. Para o objetivo específico “Analisar documentos oficiais nacionais e do Município de Campinas sobre Educação Inclusiva na rede pública de ensino”, a pesquisa foi com as palavras-chave: escola inclusiva, inclusão escolar, cultura inclusiva, formação de professores, atendimento educacional especializado, educação especial e marcos políticos legais da 12 educação inclusiva. O que resultou em leis, decretos e resoluções disponíveis em sites oficiais, como o do planalto e da Prefeitura Municipal de Campinas, respeitando o recorte proposto (2008 - Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva a 2017 - ano de início da pesquisa). Como parte da pesquisa bibliográfica, o material foi analisado para definir sua utilização ou não, seguindo os seguintes itens: avaliação do título, resumo e introdução. Os artigos, teses e livros interessantes sobre o tema foram selecionados para serem estudados. (TRAINA,2009, p. 30). Com esse caminho metodológico chegou-se aos objetivos: “Conhecer e sistematizar as proximidades e distanciamentos entre a legislação municipal e nacional para educação inclusiva, assim como a legislação municipal e a teoria que versa sobre o tema” e “Elaborar o Plano de Intervenção”, produto do trabalho. Para alcançar tal objetivo, analisou-se o conteúdo da segunda seção. O Plano de Intervenção foi elaborado com sugestões para revisão da legislação analisada e a criação de um grupo de estudo sobre educação inclusiva, com o intuito de disponibilizar para a comunidade a pesquisa desenvolvida e incentivar no município momentos de reflexão e discussão sobre o tema. O Plano de Intervenção será oferecido ao Conselho Municipal de Educação de Campinas. 13 2. Educação inclusiva: um caminho em construção “Tu vens, tu vens. Eu já escuto os teus sinais.” Alceu Valença A educação inclusiva no Brasil desenvolveu-se como resposta à demanda de uma escola para todos e do reconhecimento da diferença inerente a convivência humana. Uma escola pública tradicional, que foi para poucos, torna-se, mesmo que a passos lentos, uma escola para todos, independentemente das condições sociais, financeiras, culturais e físicas dos estudantes. Eles estão vindo, eles estão na escola! A música de Alceu Valença ilustra essa chegada. A chegada de quem estava fora e consequentemente traz mudanças para quem recebe. Assim, é impossível hoje investigar a educação escolar sem falar no processo de inclusão escolar, principalmente desde a década de 1980, ou ignorar os sinais que indicam transformações nas escolas. Não se pode receber bem a todos os estudantes, se é mantido o sistema de ensino que só recebia alguns. A educação inclusiva como concepção de ensino promove novas bases à educação divergindo da escola tradicional, que não foi planejada para atender a todos, inclusive aos estudantes com deficiência, Transtornos do Espectro Autista e Altas Habilidades/Superdotação. Essa concepção de educação também é um tema muito discutido e explorado quando se busca a qualidade do ensino. Para tanto, a primeira seção deste trabalho apresenta o processo de construção da escola inclusiva como uma consequência do direito de todos à educação básica garantido na legislação e que objetiva a prática social. Todo o conteúdo apresentado é resultado do estudo de tópicos sobre educação como um direito de todos em teses e dissertações escritas por Antonia M. Nakayama, Daniele D. A. S. Kobayashi, Solange S. S. Fagliari, Kelly C. B. Silva e Sandra P. S. Batistão; livros escritos por Marcos J. S. Mazzotta, Maria T. Égler Mantoan e Rosângela Gavioli Prieto; legislação nacional, com destaque para as constituições do Brasil; e documentos internacionais. 14 2.1 Onde estamos? A educação inclusiva1 um paradigma educacional do Brasil a ser seguido na elaboração de políticas educacionais e precisa ser vista para além do atendimento oferecido na educação especial. E sim, como um avanço na inclusão social, resultado de um processo histórico de construção da escola para todos, pois como está exposto no Art.205 da Constituição Federativa do Brasil de 1988, a educação é um direito social de todos, independentemente de características físicas, sociais, econômicas, culturais e outras. (BRASIL,1988). A escola inclusiva é um espaço de aprendizagem para todos os estudantes e para o estudante público alvo da educação especial, cujo direito à educação é objeto de estudo desse trabalho. Do ponto de vista legal, foram e são elaboradas políticas públicas2 para efetivar a garantia de vagas, a permanência na escola e ações que confirmem na prática essa inclusão, dentre elas: Programa Escola Acessível, Transporte Escolar Acessível, Sala de Recursos Multifuncionais, Formação Continuada de Professores na Educação Especial e Livro Acessível, exemplos de ações e programas do DPEE - Diretoria de Políticas de Educação Especial em 2018. Alguns documentos nacionais e internacionais (abordados nesta seção), como a Constituição do Brasil de 1988, a Declaração de Salamanca de 1994, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência nº 13.146 de 2015, ressaltam a educação como um direito da pessoa com deficiência, considerando que cada uma possui necessidades que são únicas e que a escola deve acolher e atender a todos, na sala regular e no atendimento educacional especializado. É nessa perspectiva inclusiva, que o atual Plano Nacional de Educação do Brasil (2014- 2024) apresenta metas e estratégias para o atendimento dos estudantes público alvo da educação especial na rede regular de ensino. O objetivo da meta é: universalizar, para a população de quatro a dezessete anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, 1 Não se discute aqui os interesses e intenções capitalistas, neoliberais e globais que interferem e influenciam esse ideal de educação, e não valorizam a diversidade, mas a massificação e fixação dos indivíduos em programas e avaliações que não consideram a diferença individual, local e regional de cada um que compõe esse todo. Busca-se nesse trabalho apresentar a educação inclusiva como um bem valioso, no qual os cidadãos têm os mesmos direitos à educação escolar e condições de usufruí-los. 2 Políticas públicas são entendidas aqui como um conjunto de medidas adotadas (ações, programas, metas, planos) pelo governo para atividades sociais com o intuito de atender a interesses públicos (saúde e educação, por exemplo). Conhecer “o que o governo escolhe ou não fazer” (FLORIDA, 1984), ou como destaca Harold Lasswel, responder a questões como “quem ganha o quê, por que e que diferença faz” constitui parte da definição, das decisões e análise de políticas públicas. 15 o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados. (BRASIL, 2014, p. 33). Na meta 4, fica definido que o público alvo da educação especial, é o estudante com deficiência, Transtornos Globais do Desenvolvimento, cuja nomenclatura atual é Transtornos do Espectro Autista, altas habilidades ou superdotação. Esse público tem direito à Educação Básica: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, e ao Atendimento Educacional Especializado, preferencialmente na rede regular de ensino. Como é usada a palavra “preferencialmente”, isso significa que instituições com serviços especializados continuam existindo. O acesso à Educação Básica e ao Atendimento Educacional Especializado, pressupõe a garantia de um sistema educacional inclusivo, com salas de recursos multifuncionais para tal atendimento. Para isso, os entes federados devem garantir nos seus planos de educação, estratégias para o atendimento das necessidades específicas da educação especial, em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino. A lei 13.005, nos itens III e X do artigo 2 (BRASIL, 2014, p.43), também tem como diretrizes a superação da desigualdade educacional, com destaque para a promoção da cidadania e erradicação das formas de discriminação, pautada no respeito a diversidade e aos direitos humanos. Tal concepção traz aos educadores o conceito de diferença, que não deve ser vista como problema, mas intrínseca a diversidade. Reconhecer a diferença, como inerente a convivência humana e como a riqueza de cada um, é também um princípio da escola inclusiva. Somos todos diferentes, somos um país diverso! E essa diversidade está em todos os lugares, inclusive nas escolas, onde modos únicos de ser e estar no mundo se encontram. Para compreender onde estamos, também pode-se valer de indicadores sociais. O indicador social é usado para a pesquisa acadêmica com o intuito de relacionar a teoria a fenômenos sociais. Também é fonte para elaboração, acompanhamento e avaliação de políticas públicas. Ele “é uma medida em geral quantitativa dotada de significado social substantivo, usado para substituir, quantificar ou operacionalizar um conceito social abstrato, de interesse teórico (...) ou programático (...).” (JANNUZZI, 2009, p.15). Na análise de políticas públicas é fundamental observar e elaborar indicadores que auxiliem as atividades de planejamento e avaliação. No entanto, para educação inclusiva não há indicadores sobre a qualidade da educação das escolas. Alguns deles, sobre a educação 16 pública do Estado de São Paulo, por exemplo, apenas abordam o acesso à sala de recursos e sala regular. 1- Programa Implementação de Salas de Recursos Multifuncionais: esse indicador apresenta a porcentagem das escolas públicas com matrículas de estudantes Público Alvo da Educação Especial contemplados em salas de recursos multifuncionais. No Estado de São Paulo, segundo dados do Censo MEC/INEP, até 49% dos alunos estão matriculados e as escolas contêm 3.717 dessas salas. 2- PDDE – Escola Acessível - apresenta a porcentagem das escolas públicas com matrículas de estudantes Público Alvo da Educação Especial atendidas pelo programa Escola Acessível. No Estado de São Paulo, segundo dados do Censo MEC/INEP, até 49% com 6.215 alunos. 3- Taxa de Inclusão dos Estudantes com Deficiência na Educação Básica: os dados mostram que o Estado de São Paulo está abaixo da média nacional de inclusão. A média nacional é de 79% de inclusão e a do Estado de São Paulo é de 75%, segundo dados do Censo MEC/INEP. 4- Matrículas de Estudantes Público Alvo da Educação Especial na Educação Básica: os dados do Censo Escolar registram a evolução das matrículas de 504.039 em 2003 para 930.683 em 2015, com o crescimento de 85%. Já nas salas comuns, o crescimento foi de 425%, passando de 145.141 estudantes em 2003 para 760.983 em 2015. Os dados sobre matrículas são os mais encontrados e podem ser utilizados para identificar a evolução das matrículas de estudantes público alvo da educação especial na escola pública e na escola particular, pela faixa etária dos estudantes e de acordo com cada deficiência, Transtorno do Espectro Autista ou Altas Habilidades. Também com os dados das matrículas têm-se indicadores sobre o acesso da criança com deficiência à Educação Infantil, ao Ensino Fundamental, ao Ensino Médio, à Educação de Jovens e Adultos, à Educação Profissional e à Educação Superior. No site do Observatório do Plano Nacional de Educação, por exemplo, encontram-se vários dados de matrículas que podem ser agrupados segundo o interesse de análise do pesquisador. 17 Figura 1: porcentagem de matrículas No entanto, o próprio site do Observatório do Plano Nacional de Educação, ao se referir a meta 4, evidencia que não há dados para o monitoramento da meta. Os dados do Censo do IBGE apenas ajudam a traçar um panorama geral da situação. Para monitorar essa meta é necessário comparar o Censo Demográfico e o Censo Escolar, o que seria inviável, pois a compreensão de deficiência em cada um desses censos não é a mesma. Nesse sentido, os indicadores disponíveis apenas apresentam um panorama geral da Educação Inclusiva no Brasil relacionada ao acesso à educação, mas não permitem ao pesquisador analisar a permanência do estudante público alvo da educação especial na escola comum e a qualidade do ensino oferecido a ele. A Educação Inclusiva pressupõe uma pedagogia centrada no estudante, conceito difícil de ser mensurado em indicadores. Mas é essa pedagogia que possibilitará a eliminação dos obstáculos à inclusão, pois de acordo com o art. 2 da Lei Brasileira de Inclusão nº 13.146 de 2015. Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL. Lei nº 13.146, 2015, art. 2.) Dessa forma, a deficiência deixa de estar só na pessoa, mas sim no meio em que vive e tem sua participação efetiva garantida ou não. É também a falta de acessibilidade que o 18 Estado dá para as características de cada um. Na inclusão escolar do estudante público alvo da educação especial, é a escola que deve ser capaz de atender as necessidades de cada um. Infelizmente, ainda são inúmeras as reações negativas a inclusão de estudantes com deficiência na escola regular, vistos como problema. Vagas são negadas e laudos são usados apenas para rotular e definir. Portanto, onde estamos? Um caminho já foi percorrido para chegar à educação como um direito de todos. Alguns, que antes estavam fora, já percorreram esse caminho, chegaram e muitos ainda estão por vir! Para famílias e estudantes que encontram nas escolas a exclusão, o caminhar ainda é doloroso e sofrido. Aos que encontram nas escolas a acolhida desde o ato de matrícula até as situações mais complexas do cotidiano escolar, o caminhar se torna mais leve e agradável. As leis garantem o direito à educação, mas cabe a cada cidadão, incluindo o gestor de políticas públicas, as famílias e a comunidade escolar, garantir a inclusão na prática social. Na escola inclusiva todos devem ser acolhidos e não se pode medir esforços para que o ensino seja de qualidade, para o desenvolvimento e aprendizado de acordo com as características de cada um. Ao estudante público alvo da educação especial, deve ser oferecido um ensino de qualidade na sala comum, assim como para todos, e no atendimento educacional especializado, que garanta o aprendizado e desenvolvimento em condições igualitárias aos demais estudantes. (BRASIL, 1988); (PRIETO, 2006, p.34). Para tanto, a educação inclusiva traz para as escolas a necessidade de mudança na cultura escolar, no olhar dos gestores e dos professores, nas estratégias e práticas de ensino, nas avaliações, nos valores para a convivência, na organização do espaço e tempo e na participação das famílias e comunidades. E essa mudança pode ser ainda mais significativa, quando é pensada e vivida juntos. A inclusão do estudante público alvo da educação especial na sala regular de ensino é resultado de um processo histórico, um avanço nos direitos sociais, um caminho que leva a inclusão social e a uma sociedade inclusiva. A educação inclusiva não é um paradigma educacional pronto e acabado. Entender a conquista da educação para todos como um processo permite verificar avanços na educação brasileira e novas perspectivas em busca da qualidade do ensino. Para tanto, de onde viemos? 19 2.2 De onde viemos? Viemos da exclusão escolar. A oferta de educação na História da Educação do Brasil é marcada pela exclusão de indígenas, mulheres, negros, pobres e pessoas com deficiências. Comumente entendidos como diferentes, sem direito ao ensino, “a ignorância, o abandono, a superstição e o medo contam-se entre os fatores sociais que, ao longo da história da deficiência, isolaram as pessoas com deficiência e retardaram o seu desenvolvimento” (ONU, 1993, p.9). Fato que pode ser observado nas constituições do país. A Constituição Imperial do Brasil, de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, no art.179, sobre a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, garantia a instrução primária e gratuita a todos os cidadãos, mas excluía uma grande parcela da população, tais como negros e escravos alforriados. Além disso, no Art. 8, suspendia o exercício dos direitos políticos para cidadãos com “incapacidade física, ou moral”. Eram considerados cidadãos, segundo o art. 6, apenas: I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil. IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia. V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação. (BRASIL, 1824.) Assim, as escolas primárias não eram para todos, e a Constituição de 1824 não menciona a educação para estudantes com deficiência. A atenção para a pessoa com deficiência no Brasil, não necessariamente com foco na educação, iniciou-se apenas na segunda metade do século XIX, com iniciativas isoladas, como a criação de institutos para o atendimento de pessoas com deficiência visual e auditiva no Rio de Janeiro. Em 1854, foi criado o Instituto Imperial dos Meninos Cegos3 por D. Pedro II e em 1857 o Imperial Instituto dos Surdos-mudos4. Nesses institutos também havia oficinas para 3 Em 1890, o nome foi alterado para Instituto Nacional dos Cegos e em 1891 para Instituto Benjamim Constant- IBC. 20 aprendizagem de ofícios, tais como: tipografia, encadernação, tricô e sapataria. Porém, se restringiam a deficiência visual e auditiva, excluindo as outras. A despeito de se constituir medida precária em termos nacionais (em 1872, com a população de 15.848 cegos e 11.595 surdos, atendiam 35 cegos e 17 surdos), a instalação do IBC e do INES abriu possibilidade de discussão da educação dos portadores de deficiência. (MAZZOTA, 1996, p.29). Em 1891, a Constituição Republicana do Brasil traz alterações para o cenário educativo que acompanham as mudanças do novo regime político. O ensino torna-se laico, cada Estado passou a organizar o seu sistema de ensino e segundo o art.35 o congresso ficou incumbido de: 2º) animar no País o desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura, a indústria e comércio, sem privilégios que tolham a ação dos Governos locais; 3º) criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados; 4º) prover a instrução secundária no Distrito Federal. (BRASIL,1891). Sem mencionar os cidadãos com deficiência, a constituição continuava restringindo quem era considerado cidadão, limitava o direito ao voto e reiterava a suspensão dos direitos dos cidadãos brasileiros por incapacidade física ou moral (BRASIL, 1891, p.71). Nesse período, há registros de atendimentos isolados de deficientes auditivos, físicos, visuais e mentais em alguns Estados da federação, tais como: Amazonas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. (NAKAYAMA, 2007, p. 20). A Constituição de 1934 é a primeira a apresentar um capítulo sobre Educação e Cultura. Nesse capítulo, a educação é destacada como um direito de todos. A educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana. (BRASIL, 1934, art.149). Também é preconizado na constituição o Plano Nacional de Educação que deveria ser elaborado pelo Conselho Nacional de Educação, o financiamento do ensino, e as responsabilidades da União, Estados e Municípios. Para a elaboração do PNE, deveriam ser observadas as seguintes normas: a) ensino primário integral gratuito e de freqüência obrigatória extensivo aos adultos; b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível; 4 Em 1957, o nome foi alterado para Instituto Nacional de Educação de Surdos-INES. 21 c) liberdade de ensino em todos os graus e ramos, observadas as prescrições da legislação federal e da estadual; d) ensino, nos estabelecimentos particulares, ministrado no idioma pátrio, salvo o de línguas estrangeiras; e) limitação da matrícula à capacidade didática do estabelecimento e seleção por meio de provas de inteligência e aproveitamento, ou por processos objetivos apropriados à finalidade do curso; f) reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente quando assegurarem a seus professores a estabilidade, enquanto bem servirem, e uma remuneração condigna. (BRASIL, 1934, art.150). Para tanto, a União, os Estados e o Distrito Federal ficariam responsáveis por reservar uma parte dos seus patrimônios territoriais para os fundos de educação a serem aplicados “em auxílios a alunos necessitados, mediante fornecimento gratuito de material escolar, bolsas de estudo, assistência alimentar, dentária e médica, e para vilegiaturas” (BRASIL, 1934, art.157). Assim, a constituição de 1934, apesar de não mencionar o estudante público alvo da educação especial, apresenta avanços fundamentais no caminho da educação inclusiva. Porém, tal caminho logo se desfez com a Constituição de 1937. Segundo a Constituição de 1937, a educação é vista pela capacidade de recursos dos cidadãos. Para quem não tinha recursos financeiros, o dever do Estado era garantir o ensino pré-vocacional profissional, em instituições profissionalizantes. O ensino primário era obrigatório e gratuito, mas contava com a solidariedade de contribuição mensal dos menos para os mais necessitados no caixa escola. (BRASIL, 1937). Nove anos depois, na Constituição de 1946, o ensino primário oficial é gratuito a todos e os Estados e o Distrito Federal responsáveis por organizar o Sistema de Ensino, “cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de assistência educacional que asseguraram aos alunos necessitados condições de eficiência escolar.” (BRASIL, 1946, art. 172). Para a União, é retomada a aplicação de recursos no ensino, segundo o Art.169 “Anualmente, a União aplicará nunca menos de dez por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.” (BRASIL, 1946). Sobre o atendimento escolar aos estudantes com algum tipo de deficiência, até a década de 1950, havia 40 estabelecimentos de ensino regular (39 estaduais e 1 federal) para deficientes mentais, 14 (1 federal, 9 estaduais e 4 particulares) para deficientes mentais e 22 outras deficiências, 3 instituições especializadas (1 estadual e 2 particulares) e mais 8 (3 estaduais e 5 particulares) dedicadas a outras deficiências5. (MAZZOTTA, 1996, p.31). A partir da década de 50, continuou o crescimento de entidades assistenciais privadas, ampliando-se também o número de pessoas atendidas na rede pública. Houve uma união das entidades assistenciais em federações estaduais e nacionais. O sistema público começou a oferecer serviços de Educação Especial vinculados às Secretarias Estaduais de Educação e realizou Campanhas Nacionais de Educação de Deficientes, vinculadas ao Ministério da Educação e Cultura. (KOBAYSHI, 2009, p.55). O que prevalece até 1950 são instituições de atendimento especializado de deficiências específicas, “a inclusão da ‘educação de deficientes’, da ‘educação dos excepcionais’ ou da ‘educação especial’ na política educacional brasileira vem a ocorrer somente no final dos anos cinquenta e início da década de sessenta do século XX”. (MAZZOTTA, 1996, p.27). Essa inclusão a nível nacional inicia-se com campanhas, tais como: Campanha para Educação do Surdo Brasileiro (1958), Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes da Visão (1958), que foi alterada para Campanha Nacional de Educação de Cegos (1960), e Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais (CADEME- 1960). Na Constituição de 1967, a educação é apresentada como direitos de todos e dever do Estado. O ensino primário é obrigatório e gratuito dos sete aos quatorze anos, e o ensino médio e superior é previsto com o sistema de concessão de bolsas. Isso deixou fora os estudantes com menos condições financeiras e de estudo, pois não conseguiriam restituir as bolsas. Também não é mencionada nessa constituição o atendimento do estudante com deficiência na rede regular de ensino. Mesmo com a organização do sistema de ensino pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Nº 4.024, de 20 de dezembro de 19616, o estudante com deficiência não é inserido na escola regular. A família da criança com doença ou anomalia grave era 5 Para atendimento a deficientes visuais, o Instituto Benjamim Constant, o Instituto de Cegos Padre Chico e a Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Para deficientes auditivos, o Instituto Santa Terezinha e o Instituto Educacional São Paulo. Para deficientes físicos, a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, Lar- Escola São Francisco e a Associação de Assistência à Criança Defeituosa. Para deficientes mentais, o Instituto Pestalozzi de Canoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais do Rio de Janeiro e São Paulo. Informações sobres essas instituições são encontradas no livro Educação Especial no Brasil: História e políticas públicas, escrito por Marcos J.S. Mazzotta. 6 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi prevista na Constituição de 1934 e estabelece a organização do ensino no país. Nela, a educação é compreendida como um direito de todos e poderia ser oferecida no lar ou em instituições de ensino. O ensino é dividido em Educação Pré-Primária, Ensino Primário, Médio, Secundário, Técnico e Superior. Detalha a formação do magistério e a aplicação de receitas de impostos na Educação pela União (12%) e Estados, Distritos e Municípios (20%). Sobre o Público Alvo da Educação Especial, traz um título sobre a Educação dos Excepcionais. 23 isenta de comprovar, para fins trabalhistas, a matrícula em instituições de ensino primário ou que oferecia educação no lar. (BRASIL, 1961, art.30). Essa lei também desobrigava o atendimento do estudante com deficiência no sistema regular de ensino. Ao abordar a educação de “excepcionais”, o art. 88 diz que “deve, no que fôr possível, enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade” (BRASIL, 1961, art.88). Assim, o “no que for possível” era usado para justificar a omissão da União, Estados e Municípios. Com essa omissão em garantir atendimento no sistema geral de ensino, o poder público oferecia bolsas de estudo, empréstimos e subvenções para a iniciativa privada (BRASIL, 1961, art.89), incentivando a institucionalização. No entanto, nessa mesma década, os movimentos sociais pelos direitos humanos criticavam os prejuízos dessa institucionalização, com o intuito de garantir direitos fundamentais e evitar discriminações a um grupo historicamente excluído. (FAGLIARI, 2012). Dez anos depois, sobre o atendimento ao estudante com deficiência, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Nº 5692/71, de 11 de agosto de 1971, para o ensino de 1º e 2º graus, diz que: Os alunos que apresentem deficiências físicas ou mentais, os que se encontrem em atraso considerável quanto à idade regular de matrícula e os superdotados deverão receber tratamento especial, de acôrdo com as normas fixadas pelos competentes Conselhos de Educação. (BRASIL, 1971,art.9). Para o oferecimento do “tratamento especial” foram desenvolvidas algumas ações, como a criação do CENESP - Centro Nacional de Educação Especial em 1973, cujo objetivos, competências e organização encontram-se no Regimento interno (Portaria nº 550 de 29 de outubro de 1975). A finalidade do CENESP era: planejar, coordenar e promover o desenvolvimento da Educação Especial no período pré-escolar, nos ensinos de 1º e 2º graus, superior e supletivo, para os deficientes da visão, da audição, mentais, físicos, portadores de deficiências múltiplas, educandos com problemas de conduta e os superdotados, visando a sua participação progressiva na comunidade, obedecendo aos princípios doutrinários, políticos e científicos que orientam a Educação Especial. (MAZZOTTA, 1996, p.56). Em 1986, pelo decreto nº 93.613, o CENESP foi transformado em SESPE - Secretaria de Educação Especial e transferido do Rio de Janeiro para Brasília. Quatro anos depois, com a reestruturação do Ministério da Educação, a SESPE foi extinta e suas atribuições foram para a Secretaria Nacional de Educação Básica (SENEB), incluindo o DESE - Departamento de Educação Supletiva e Especial. Mas em 1992, após nova reestruturação, a Secretaria de 24 Educação Especial reapareceu como órgão específico do Ministério da Educação. (MAZZOTTA, 1996). Sobre a educação especial, em 1978, a emenda constitucional Nº 12, de 17 de outubro, em artigo único, assegura aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica, por meio de “educação especial e gratuita; assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país; proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários; possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos”. (BRASIL, 1978). Na década de 1960 e 1970, a atenção com os estudantes deficientes volta-se para o encaminhamento ao atendimento preventivo e corretivo da educação especial, muitas vezes distanciado do pedagógico. A própria palavra “atendimento” refere-se ao campo terapêutico, “estavam previstos para seu atendimento: classe comum; classe especial; escola especial; e o atendimento em ambiente domiciliar e/ou hospitalar”. (PRIETO, 2006, p.39). Nesse período, em relação ao direito do estudante com deficiência à educação na classe comum, tem-se a integração escolar, na qual o acesso do estudante era concedido de acordo com a sua limitação. Os estudantes que conseguiam o acesso à classe comum deveriam se adaptar a estrutura, funcionamento e organização da escola e os que não conseguiam eram encaminhados a recursos especializados. Na década de 1980, é a inclusão escolar que contesta os serviços especializados oferecidos, que muitas vezes não respeitavam as características individuais, e significava uma alternativa a rejeição na classe comum. Além de criticar o fato da escola manter-se exatamente como era antes, mesmo com a chegada do público alvo da educação especial. São essas críticas, dentre outras, que perpassam o caminho da educação inclusiva no Brasil, construído como resposta a movimentos internacionais que buscavam garantir o direito de todos à educação e oportunidades iguais. Para tanto, também é importante recordar alguns documentos internacionais. A ONU, por exemplo, declarou o ano de 1981 como “Ano Internacional das Pessoas Deficientes”, no qual os principais objetivos envolviam ajudar o deficiente a se ajustar a sociedade, com atendimento adequado para sua integração e condições de acesso a transportes e ambientes públicos, além da conscientização da sociedade sobre seus diretos e ações de prevenção e reabilitação das pessoas deficientes. (ONU,1981, p.2). O Brasil participou com uma Comissão Nacional, que se dividiu em subcomissões, com objetivos voltados para a conscientização, prevenção, educação, reabilitação, capacitação profissional, acesso ao trabalho, remoção de barreiras arquitetônicas e legislação. 25 O Relatório de Atividades da Comissão diz ser fundamental que a sociedade assuma as necessidades das pessoas com deficiência, compreenda seus “problemas”, limitações e “possibilidades de realizações”. Porém, o atendimento e reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência é justificado pela transformação dos deficientes em contribuintes para os “cofres públicos” e pela redução de gastos, “é necessário ter em mente que os serviços especiais de capacitação do deficiente não constituem um peso no orçamento nacional, pois já é notório que os custos da deficiência são muito maiores, quando não existem serviços de Reabilitação e Educação Especial adequados”.(ONU,1981, p4-5). Assim, segundo a comissão, a deficiência pode ser evitada com ações de prevenção e “transformada” com o atendimento as necessidades básicas da pessoa com deficiência. Essa concepção está presente no “Plano de Ação a curto, médio e longo prazo”7, que se estende a toda década de 1980. No relatório do plano, o destaque foram as atividades que resultaram na conscientização da população brasileira para a integração das pessoas com deficiência na sociedade. Sobre educação, a subcomissão coordenada pela Profa. Rosita Edler, representante do Centro Nacional de Educação Especial — M.E.C, destacou as atividades desenvolvidas a nível nacional, tais como: revisão da política de atendimento; realização de estudos e pesquisas sobre metodologia, confecção de materiais e integração do estudante com deficiência na rede regular de ensino; realização de um concurso de redação para alunos de 5º a 8º séries sobre o tema “Deficiente, pessoa como a gente”; ampliação e criação de serviços de atendimento especializado e cursos de formação para professores especializados, dentre outras. (ONU, 1981, p.21). 7 No Plano são apresentadas ações para cada subcomissão. Sobre educação, as ações foram: I - Curto Prazo 1) Estabelecer modelos para serviços de atendimento educacional. 2) Organizar seminários e congressos a nível nacional sobre Educação Especial. 3) Fomentar o desenvolvimento de recursos humanos em Educação Especial, a nível de 2° Grau. 4) Sensibilizar os Conselhos de Educação (Estaduais e Federal) para os problemas da Educação Especial. 5) Assessorar a SECOM sobre a publicação de material informativo sobre multiplicidade de ações implícitas na Educação Especial. 6) Promover o levantamento de todo o material bibliográfico sobre Educação Especial. 7) Ampliar e reestruturar o atendimento pré-escolar do INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE SURDOS - INÊS e do INSTITUTO BENJAMIN CONSTANT — IBC, visando transformá-los em serviços modelo. 8) Aperfeiçoar e ampliar programa de bolsa de trabalho para educandos deficientes. 9) Publicar documentos relativos à Educação Especial elaborados pelo CENESP. 10) Aperfeiçoar e ampliar o projeto de Assistência Técnica às Secretarias Estaduais de Educação. II — Médio Prazo 1) Estimular a formação de técnicos especializados a nível de 3° Grau. 2) Elaborar o II Plano Nacional de Educação Especial. 3) Normalização da Educação Física para deficientes. 4) Efetuar estudos sobre estatística da Educação Especial. 5) Implementar a modernização da Imprensa BRAILLE. III — Longo Prazo 1) Estimular, nos Estados e Municípios, a criação de serviços de atendimento educacional que objetivem a integração e a normalização. 2) Criar centros de produção de material psicopedagógico. 3) Elaborar o I Plano Nacional Integrado de Assistência ao Excepcional. 4) Estimular a Educação Especial de deficientes adultos. 26 Ainda em 1981, a Declaração de Sunderbeg, de 07 de novembro, ressalta o acesso da pessoa com deficiência à educação, cultura, treinamento e informação como um direito, e “os programas, em matéria de educação e de cultura, deverão ser formulados com o objetivo de integrar as pessoas deficientes ao trabalho e à vida” (art.6), inclusive com projetos urbanos, ambientais e assentamentos humanos para a integração e participação em atividades da comunidade. Em 1982, a ONU lançou o “Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência”. O programa apresentava a situação atual do ensino para as pessoas com deficiência, na qual a deficiência é apresentada, segundo a OMS, como “Toda perda ou anomalia de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica” (ONU,1982, p.6), que de acordo com sua gravidade gera incapacidade ou invalidez. Nos países em desenvolvimento, além disso, o problema das pessoas deficientes vê-se agravado pela explosão demográfica que aumenta inexoravelmente o seu número, tanto em termos relativos quanto absolutos. É, pois, urgentíssimo, como primeira prioridade, que se ajude esses países a desenvolverem políticas demográficas para prevenirem um aumento da população portadora de deficiências e para reabilitar e facilitar o acesso aos serviços àqueles que já tenham deficiência. (ONU, 1982, p.15). A leitura sugere que a pessoa com deficiência é vista apenas como um problema a ser resolvido ou situação a ser evitada, seu modo de ser e estar no mundo não são respeitados e nem sequer reconhecido. Sobre o ensino, o programa informa que nos países em desenvolvimento era inexistente a educação especializada e/ou convencional para a maioria das pessoas com deficiência, e que em apenas alguns países e centros urbanos havia progresso na Educação Especial, com “incorporação” em centros escolares comuns ou programas especiais. (ONU, 1982, p.18). Assim, as propostas em educação voltavam-se para a adoção de políticas públicas para a igualdade de oportunidades das pessoas com deficiência em relação as demais pessoas. Isso abrangia, oferta de ensino, “na medida do possível”, dentro do sistema escolar geral; inclusão nas leis educacionais; implantação de serviços individualizados, acessíveis e universais de acordo com a variedade das deficiências encontradas em uma comunidade; instalações especiais; participação dos pais no processo educativo; e possibilidade de acesso ao ensino superior. É nesse contexto que a Constituição Federativa do Brasil de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, por reestabelecer os direitos sociais dos cidadãos no processo de redemocratização do país, contribui para a afirmação do direito de todos a educação. O Estado 27 tem o dever de garantir a Educação Básica obrigatória a todos, incluindo a Educação Infantil, e o atendimento aos educandos por meio de programas de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde. Nessa Constituição ficou estabelecida a necessidade de elaborar um Plano Nacional de Educação, que dentre outros objetivos conduzisse à erradicação do analfabetismo, universalizasse o atendimento escolar e melhorasse a qualidade do ensino (BRASIL, 1988, art.214). No Plano um dos princípios do ensino é a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.” (BRASIL, 1988, art.206) e o Estado tem o dever de garantir o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino.” (BRASIL, 1988, art. 206). Assim, a educação especial ganha um caráter de inclusão. O estudante com deficiência tem direito à educação como os demais estudantes e ao atendimento especializado na escola regular ou em instituições especializadas. Na década de 1990, dois documentos reforçam o direito de todos à educação. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, conhecida como Declaração de Jomtien, resultado da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, que aconteceu na Tailândia. A Declaração de Jomtien, relembra a educação como um direito fundamental de todos, e admite que “a educação que hoje é ministrada apresenta graves deficiências, que se faz necessário torná-la mais relevante e melhorar sua qualidade, e que ela deve estar universalmente disponível”, e “(...) cada pessoa - criança, jovem ou adulto - deve estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem.” (JOMTIEN, 1990, Art.1), considerando que essas necessidades de aprendizagens não são estáticas e isoladas, mas inseridas em uma política de apoio, que pode ser nutricional, médica, física, emocional, nos setores social, cultural e econômico. A educação básica para todos depende de um compromisso político e de uma vontade política, respaldados por medidas fiscais adequadas e ratificados por reformas na política educacional e pelo fortalecimento institucional. Uma política adequada em matéria de economia, comércio, trabalho, emprego e saúde incentiva o educando e contribui para o desenvolvimento da sociedade. (JOMTIEN, 1990). Ainda sobre políticas públicas, a Declaração de Jomtien, ao considerar o investimento em Educação Básica “o mais importante que se pode fazer no povo e no futuro de um país” (JOMTIEN, 1990), explica que para mobilizar recursos o setor público pode atraí-los de todos 28 os órgãos governamentais responsáveis pelo desenvolvimento humano, aumentando os valores das dotações orçamentárias, melhorando a utilização dos programas e recursos disponíveis, e a realocação de recursos entre setores. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069), afirma que a criança e o adolescente tem direito à educação, à “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.” (BRASIL, 1990, art.53), atendimento especializado para deficientes na rede regular de ensino e que “o poder público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação, com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental obrigatório.” (BRASIL, 1990, art.57). Em 1993, voltando ao cenário internacional, as Nações Unidas publicaram as “Normas sobre Igualdade de Oportunidades para Pessoas com Deficiência”, com intuito de instrumentalizar a elaboração de políticas e ações a favor das pessoas com deficiência, ressaltando que no decorrer dos anos houve uma evolução da prestação de cuidados para políticas educativas e de reabilitação. O Estado é apontado como responsável por tomar medidas adequadas para eliminar os obstáculos que impedem as pessoas com deficiência “o exercício dos mesmos direitos e obrigações que aos seus concidadãos.” (ONU, 1993, p.13). Para tanto, segundo a Norma 6, sobre Educação, o Estado deve proporcionar igualdade de oportunidades para o ensino primário, secundário e superior como parte integrante do sistema de ensino; serviços de intérprete; acessibilidade; programas curriculares flexíveis, material didático de qualidade, ações de formação continuada e professores de apoio. (ONU, 1993). As Normas também preveem o ensino especial em situações em que o sistema regular de ensino não responda as necessidades da pessoa com deficiência, aconselha os surdos e surdos/cegos a serem educados em escolas especiais ou em classes e unidades especializadas no ensino regular, e mesmo assim “Os Estados devem ter por objetivo integrar gradualmente os serviços de ensino especial no sistema regular de ensino”. (ONU, 1993, p.26). Observa-se que nas Normas fala-se em garantia dos direitos da pessoa com deficiência em igualdade de oportunidade com as demais pessoas, mas ao mesmo tempo abre exceções para algumas deficiências, desobrigando o Estado de garanti-las somente no sistema de ensino regular. Em 1994, na “Declaração de Salamanca, Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais”, é reafirmada novamente a “Educação para Todos”, e 29 nesse todos estão as crianças com necessidades educacionais especiais que devem ter acesso à escola regular. A educação é destacada como um direito fundamental de toda criança e cada uma possui necessidades de aprendizagem que são únicas, o que pressupõe uma pedagogia centrada na criança. Assim, “sistemas educacionais deveriam ser designados e programas educacionais deveriam ser implementados no sentido de se levar em conta a vasta diversidade de tais características e necessidades”. (SALAMANCA, 1994, p.1). Para tanto, cabe aos governos aprimorar seus sistemas de ensino para incluir a todos, adotando “o princípio da educação inclusiva em forma da lei ou política, matriculando todas as crianças em escolas regulares, a menos que existam fortes razões para agir de outra forma.” (SALAMANCA, 1994, p.2), trocando experiências com outros países, estabelecendo mecanismos de participação descentralizados de pessoas interessadas no planejamento, revisão e avaliação dos serviços oferecidos, investindo em estratégias de identificação e intervenção precoces, e garantindo programas de treinamento de professores que incluam educação especial. A Declaração de Salamanca configura-se como referência na elaboração e desenvolvimento de políticas públicas, onde se internacionalizou o termo “Necessidades Educativas Especiais” e “Escola Inclusiva”. O termo “Necessidades Educativas Especiais” refere-se às necessidades originarias da deficiência ou dificuldades de aprendizagem e o conceito Escola Inclusiva, refere-se à escola que possui a pedagogia centrada na criança, capaz de educar a todas, com um currículo apropriado, arranjos organizacionais, estratégias de ensino, uso de recurso e parceria com as comunidades. (SALAMANCA, 1994, p.5). O princípio que orienta esta Estrutura é o de que escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras. Aquelas deveriam incluir crianças deficientes e superdotadas, crianças de rua e que trabalham, crianças de origem remota ou de população nômade, crianças pertencentes a minorias lingüísticas, étnicas ou culturais, e crianças de outros grupos desavantajados ou marginalizados. (SALAMANCA, 1994, p.4). A Escola Inclusiva é apresentada como fundamental no combate as atitudes discriminatórias e na construção de uma sociedade inclusiva. Nessas escolas, as crianças com necessidades educacionais especiais podem atingir o máximo progresso educacional e integração social por meio da equalização das oportunidades, recebendo suporte extra requerido para sua educação. Mas, e as Escolas Especiais? 30 Sobre as Escolas Especiais, a declaração destaca que podem servir como centros de treinamento e recursos para Escolas Inclusivas e continuar a prover educação adequada a um número relativamente pequeno de crianças com necessidades educacionais especiais, em situações em que a “classe regular seja incapaz de atender às necessidades educacionais ou sociais da criança, ou quando sejam requisitados em nome do bem-estar da criança ou de outras crianças.” (SALAMANCA, 1994, p.5), além de aconselhar os países que tenham pouca ou nenhuma escola especial a se esforçarem no desenvolvimento de escolas inclusivas e serviços especializados. Por fim, para entender onde estamos na construção da Educação Inclusiva, recorre-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Nela, a educação também é destacada como um direito de todos, um direito público subjetivo, no qual deve haver condições igualitárias de acesso e permanência na escola. Comumente nomeada como a nova LDB, ela substitui as leis nº 4024/61 e a nº 5692/71. Nessas leis anteriores a Educação Especial resumia-se a um ou a dois artigos que a conceituavam como “tratamento especial mediante bolsas de estudos, empréstimos e subvenções”, de acordo com o artigo 89 (BRASIL, 1961), ou, como assegurava o artigo 9º (BRASIL, 1971), um “tratamento especial” aos “alunos que apresentem deficiências físicas ou mentais, os que se encontrem em atraso considerável quanto a idade regular de matricula e os superdotados”. Nota-se, a partir da utilização do termo tratamento, uma alusão ao campo da saúde e um viés clínico. (SILVA, 2014, p.106). Sobre os estudantes com necessidades educacionais especiais, a LDBEN 9394/96 destaca no Art.4, que o Estado deve garantir o atendimento educacional especializado preferencialmente na rede regular de ensino. Em 2013, a redação do texto foi alterada pela Lei Nº 12.796, discriminando quais são os estudantes com necessidades educacionais especiais, sendo eles: “educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação” (art.4) com direito a atendimento especializado transversal a todos os níveis, etapas e modalidades de ensino. O atendimento educacional especializado é complementar ou suplementar ao ensino regular, ou seja, não o substitui. A lei também prevê serviços de apoio especializado na escola regular e atendimento em serviços, classes ou escolas especializadas, quando nessa não for possível. Mas “o poder Público adotará, como alternativa preferencial, a ampliação do atendimento aos educandos com necessidades especiais na própria rede pública regular de ensino, independentemente do apoio às instituições.” (BRASIL, 1996, p.20). 31 Os sistemas de ensino, por sua vez, segundo o art. 59, assegurarão para atender as necessidades educacionais especiais currículos e estratégias específicas, acesso igualitário aos programas sociais suplementares, professores com especialização adequada para atendimento especializado e para o ensino regular, educação especial para o trabalho, “terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados.” (BRASIL, 1996, p.19). Nessa interpretação da LDB, a educação especial configura-se como uma modalidade de ensino transversal a Educação Básica e Superior, que não pode substituir o ensino regular, mas contribuir com a educação inclusiva, “pois se sabe que a tendência atual é que as ações educativas da Educação Especial movimentem-se de forma a promover condições aos alunos com deficiência a escolaridade, eliminando barreiras, favorecendo e qualificando a permanência destes nas salas de aula regular.” (BATISTÃO, 2013, p.42). Nesse contexto, a educação inclusiva é parte de um movimento que tem como princípio romper com a exclusão das minorias, que não tinham acesso à educação. Tem como objetivo acolher e promover o desenvolvimento e aprendizagem de todos, incluindo também, mas não somente, o público alvo da educação especial. Todo o caminho percorrido para chegar a inclusão escolar e as alterações na nomenclatura apresentados nesse trabalho a partir das constituições do Brasil e documentos internacionais correspondem a uma mudança de entendimento sobre educação inclusiva. Para além de garantir vagas e matrículas, a educação inclusiva atenta-se ao que é vivido na escola, ao que é oferecido a todos os estudantes. Entendida dessa maneira, ela propõe novas bases para a educação no país, bases que partem do reconhecimento de quem está na escola, quem é cada estudante, quais são suas potencialidades e necessidades únicas. Mas afinal, quais são os fundamentos teóricos da educação inclusiva? Para responder essa pergunta, a próxima seção apresentará os fundamentos teóricos da educação inclusiva em três dimensões, tais como: escola inclusiva, formação de professores e atendimento educacional especializado. 32 3. Fundamentos teóricos da educação inclusiva. A presente pesquisa “Políticas para educação inclusiva no Município de Campinas: o que dizem as legislações nacionais e municipais” foi desenvolvida a partir da concepção de educação inclusiva e diferença construída com as leituras realizadas e experiências em sala de aula. Assim, a seguir é possível conhecer quais são essas concepções que permeiam todo o trabalho. A concepção de educação inclusiva como paradigma educacional pode ser entendida como resultado de um processo histórico nacional e internacional, no qual destaca-se a educação como um direito de todos. Nessa concepção de educação, todos os estudantes são o centro do processo educativo. Não se discrimina ninguém, mas sim, busca-se alternativas para atender a todos com qualidade e a dimensão humana de cada cidadão, com seus direitos e deveres, é valorizada. Incluir todos os estudantes, inclusive o público alvo da educação especial, é um direito garantido nas legislações vigentes e uma reinvindicação também da sociedade, para que o público alvo da educação especial desenvolva um papel na sociedade como as demais pessoas. Diferente do ensino oferecido somente em instituições especializadas e classes separadas, a educação inclusiva busca acolher e atender a todos os estudantes na sala comum e também no atendimento educacional especializado. A educação especial é uma modalidade de ensino transversal a todas as etapas de ensino. Na perspectiva inclusiva “A educação especial, em sua nova concepção, apenas perpassa e complementa as etapas da educação básica e superior, pois, sendo uma modalidade, não constitui um nível de ensino’ (Mantoan, p204, 2006). Suas atribuições “complementam e apoiam o processo de escolarização de alunos com deficiência que estão regularmente matriculados nas escolas comuns” (Mantoan, p205, 2006). A concepção de diferença8 consiste na compreensão da diferença como inerente a convivência humana. Somos todos diferentes. Assim, a diferença e não o diferente é o que importa no relacionamento com o outro. Na educação inclusiva pensar a diferença é compreender que cada estudante é único, possui talentos e capacidades que são únicas. A atenção do profissional da educação volta-se 8 Caio Augusto Toledo Padilha em sua dissertação de mestrado “Educação e Inclusão no Brasil (1985-2010) aborda como intelectuais como Jacques Derrida e Gilles Deleuze interpretam o conceito de diferença. Para 33 a como atender a todos. Contrária a normalização e homogeneidade, a diferença não é um problema, mas a riqueza do ambiente escolar. Essas concepções serão desenvolvidas nas três dimensões da educação inclusiva abordadas a seguir: escola inclusiva, formação de professores e atendimento educacional especializado. 3.1 Escola Inclusiva No processo de construção da educação inclusiva é imprescindível pensar, refletir e compreender os princípios da escola inclusiva. Uma vez que, nessa concepção de educação não se valoriza apenas ações isoladas de alguns gestores e professores em prol da escola para todos, mas ações que envolvam a escola como um todo contraditória, complexa, tensa, alegre, viva e mutante. Esse trabalho não abordará os problemas da escola pública brasileira do século XXI, nem tampouco discutirá as várias funções que esta assumiu ao longo dos anos9, pois optou-se por apresentar, especificamente, os princípios da escola inclusiva com o intuito de analisá-los juntamente com a legislação do Município de Campinas para educação inclusiva. Uma das dimensões da educação inclusiva a ser analisada nas legislação será a escola inclusiva, conceito desenvolvido neste trabalho por meio de três princípios, sendo eles: escola pública e seus valores; reconhecer e valorizar a diferença e acessibilidade e permanência na escola. (MANTOAN, 2006; RODRIGUES, 2006; PADILHA, 2014; CARAMORI,2014). O primeiro princípio da escola inclusiva é a concepção de escola pública e os seus valores, com o resgate da universalidade do acesso, da igualdade das oportunidades, da continuidade dos percursos escolares e da participação da comunidade local nas decisões e no cotidiano escolar. Todas essas características permitem dizer que a escola é pública, pois “a defesa de uma escola inclusiva está indissociavelmente ligada à defesa dos valores da escola pública.” (BARROSO, 2006, p.276). “para promover a inclusão escolar se torna necessário reforçar a dimensão pública da escola pública, o que obriga a reafirmar seus valores fundadores perante a difusão transnacional de uma vulgata neoliberal que vê no serviço Derrida a diferença é a possibilidade de conceituar um processo e Deleuze afirma a multiplicidade da diferença em seu livro “Diferença e repetição”. 9 Barroso (2006, p.290) destaca a multifuncionalidade da escola devido as necessidades que surgiram ao longo da história da educação, tais funções, dentre outras, envolvem educar, instruir, alimentar, guardar e apoiar socialmente. 34 público a origem de todos os males da educação e na sua privatização a única alternativa”. (BARROSO, 2006, p. 277). Para reivindicar os valores da escola pública, é preciso procurar novas formas de organização pedagógicas e educativas, novas “modalidades de governo e intervenção” que permitam que a escola seja um “espaço público de decisão coletiva, baseada numa nova concepção de cidadania que vise criar a unidade sem negar a diversidade.” (WHITY, 2002, p.20 apud BARROSO, 2006, p.277).10 Nesse processo de atualização frente às mudanças que ocorreram ao longo do tempo na construção de uma escola para todos, é importante debater a regulação das políticas educativas e o papel que o Estado, os professores, pais, e a sociedade possuem nesse processo. (BARROSO, 2006). Esse papel volta-se para uma responsabilidade coletiva, na qual o Estado deve continuar assegurando a manutenção da escola, mas sem ser o único detentor dessa justificação. A escola pública deve ser vista e gerida como um serviço local do Estado, o qual responde a interesses coletivos, promovendo e incentivando os momentos de trocas e decisões coletivas. Uma organização profissional, na qual o educador desenvolve sua ação, como “agente dos interesses do cidadão”, como serviço público de solidariedade social e como associação local com a possibilidade de expressão dos estudantes, familiares e membros da sociedade local.” (BARROSO, 2006, p.291). Para tanto, a equipe gestora da escola inclusiva deve ser comprometida com a participação dos pais, funcionários, estudantes e comunidade. Com a gestão democrática a escola se faz no coletivo, no qual todos assumem o projeto da escola e nas decisões o grupo é ouvido. Isso pressupõe o gestor/diretor como educador, que articula a função administrativa e pedagógica. (DIAS, 2002, p.274 apud TEZANI, 2004, p.81). Vislumbra-se essa gestão democrática participativa no cotidiano escolar, desde as decisões que envolvem a elaboração do Projeto Político Pedagógico até as vivências da sala de aula, pois a proposta pedagógica elaborada a partir da realidade escolar, das necessidades, anseios e expectativas da comunidade trará os compromissos assumidos que culminaram na sala de aula. Assim, na construção da escola inclusiva, deve estar muito claro o contexto, no qual a escola se insere e o público alvo que atende. 10 Para mais informações sobre o comunitarismo nos processos de regulação social, consultar o tópico escrito por Barroso no texto Incluir, sim, mas onde? Para uma reconceituação sociocomunitária da escola pública (BARROSO, 2006) no livro Inclusão e Educação: Doze olhares sobre a Educação Inclusiva. 35 O segundo princípio é reconhecer e valorizar as diferenças, pois quando se pensa em uma escola inclusiva, vislumbra-se uma escola para todos, onde todos são acolhidos, com hospitalidade e prevalece a igualdade de oportunidades, independente das características de cada um. Assim, o primordial na escola é “a experiência com as diferenças, mas sem exclusões, diferenciações, restrições de qualquer natureza e sempre as reconhecendo e valorizando-as como essenciais a construção identitária.” (MANTOAN, 2006, p.186). O reconhecimento das diferenças, que estão “sendo constantemente feitas e refeitas” pressupõe entender que “O aluno da escola inclusiva é outro sujeito, que não tem uma identidade fixada em modelos ideais, permanentes, essenciais.” (MANTOAN, 2006, p.192). Tal concepção requer dos profissionais da escola, inclusive do professor da sala regular, a renovação da sua capacidade de olhar para cada estudante e do reconhecimento dos diferentes modos de ser e de estar no mundo, e de como cada um constrói e desenvolve sua aprendizagem. Todos os estudantes, sem exceção, devem frequentar as salas de aula do ensino regular e a escola inclusiva deve se organizar a partir das necessidades de cada um, pois o compromisso maior da escola é “educar para a liberdade, para a expressão máxima da capacidade de cada um e para a cooperação e o entendimento entre as pessoas.” (MANTOAN, 2006, p. 185). Nesse sentido, não se trabalha a parte com o estudante com deficiência, não se separa os alunos em “normais” ou “deficientes”, nem se estabelece regras específicas e especiais de planejamento e avaliação, mas valoriza-se em toda comunidade escolar a cooperação, o fazer juntos. A aprendizagem se dá no convívio com as diferenças, “como experiência relacional, participativa, que produz sentido para o aluno, pois contempla a sua subjetividade, embora construída no coletivo das salas de aula.” (MANTOAN, 2006, p.192). (...) a escola que pretende seguir uma política de Educação Inclusiva desenvolve políticas, culturas e práticas que valorizam a contribuição ativa de cada aluno para a formação de um conhecimento construído e partilhado - e, desta forma, atinge a qualidade acadêmica e sociocultural sem discriminação. (RODRIGUES, 2006, p.302). Ser professor no contexto da diferença, não significa que cada um aprende por meio de uma metodologia diferente e por isso o professor deverá focar seu trabalho em utilizar metodologias diferentes para um ensino individual, “isso nos levaria a uma escola impossível de funcionar nas condições atuais. Significa, no entanto, que os objetivos e estratégias não são 36 inócuos: todos se baseiam em concepções e modelos de aprendizagem.” (RODRIGUES, 2006, p.305). O professor deve atentar-se as diferenças em sala de aula, pois todos somos diferentes, e possibilitar situações de aprendizagem que aproximem os estudantes entre si e desenvolvam a autonomia. Isso pressupõe entender o currículo como flexível e “tratar as disciplinas como meios para conhecer melhor o mundo e as pessoas que nos rodeiam.” (MANTOAN, 2015, P.66). “Em suas práticas pedagógicas predominam a experimentação, a criação, a descoberta, a coautoria do conhecimento. Vale o que os alunos são capazes de aprender hoje e o que podemos oferecer-lhes de melhor para que se desenvolvam em um ambiente rico e verdadeiramente estimulador de suas potencialidades.” (MANTOAN, 2015, p.66). Nessa perspectiva, as dificuldades são reconhecidas e considera-se as potencialidades e necessidades de cada um, sem oferecer um ensino individual, “mas sim o planejamento e execução de um programa no qual os alunos possam compartilhar vários tipos de interação e identidade.” (RODRIGUES, 2006, p. 315). Mas no cotidiano escolar, como isso pode ser feito, sem o uso de atividades facilitadas ou adaptadas para cada um em um ensino individualizado? O professor ao reconhecer que todos sabem alguma coisa e podem aprender, apresenta o conteúdo curricular11 aos estudantes, depois de atualizar seus conhecimentos, e disponibiliza atividades (situações problema) diversificadas e desafiadoras sobre o tema, de acordo com as experiências e interesses dos estudantes. São eles que escolhem as atividades, planejam como desenvolvê-las, e ao concluí-las compartilham com os demais. O professor acompanha todo o desenvolvimento das atividades e atende as demandas que surgirem. (MANTOAN, 2015, p.73-74). Se no contexto da educação especial a adaptação curricular é realizada para contemplar os estudantes com deficiência, na educação inclusiva é realizada para contemplar todos os estudantes, onde as intenções e ações dos educadores consideram o currículo flexível e aberto às diferenças, pois “cabe à escola capacitar seus docentes e demais seguimentos da 11 Em sua tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Especial, na Universidade Federal de São Carlos, intitulada “ Olhares docentes sobre a inclusão escolar dos estudantes com deficiência na escola comum, Vanderlei Balbino da Costa (2012) explica diferentes concepções sobre as adaptações curriculares no ensino comum, defensores do currículo adaptado a diferentes necessidades (Freire, 1992) e das adaptações curriculares com ensino individualizado para estudantes com comprometimento no desenvolvimento motor, sensorial e intelectual (Blanco, 2005), dentre outros. 37 unidade de ensino, procurando se adaptar visando oferecer educação de qualidade para todas as pessoas, independente se essas são ou não deficientes.” (COSTA, 2012, p.64). Portanto, na escola inclusiva o currículo não é uniforme e a avaliação não é para classificar, quantificar, aprovar ou reprovar os estudantes. O currículo é um espaço de troca, onde se produz política, culturas e identidades, “nos quais os materiais didáticos-pedagógicos funcionam como matéria cuja meta é criação, recriação e inovação do saber e do conhecimento.” (COSTA,2012, p.68). Assim, para adaptar o currículo é fundamental que a comunidade escolar, ou ao menos a gestão pedagógica e professores (do ensino regular e especialistas), conheçam e analisem o currículo oficial do sistema de ensino, confrontando-o com as necessidades, interesses e aspirações de todos os estudantes e da comunidade local, para assim organizar um planejamento flexível que reconheça e valorize as diferenças, “repleto de procedimentos, recursos didáticos, metodologias apropriadas e estratégias adequadas aos estudantes que frequentam o ensino comum, sejam eles deficientes ou não.” (COSTA,2012, p.68). Sem práticas de ensino diferenciadas e discriminação, a escola inclusiva se faz com ações educativas pautadas na cooperação e colaboração, com situações de aprendizagem coletivas, em diversos agrupamentos. Nela, ensina-se os estudantes a: valorizar a diferença pelo convívio com os pares, pelo exemplo dos professores, pelo ensino ministrado nas salas de aula, pelo clima socioafetivo das relações estabelecidas em toda a comunidade escolar- sem tensões, competições, com espirito solidário e participativo. (MANTOAN, 2015, p.66) Como destaca Prieto, uma escola inclusiva reconhece e valoriza a diversidade, destacando a igualdade de direitos dos estudantes, e se faz necessário “identificar constantemente as intervenções e as ações desencadeadas e/ou aprimoradas para que a escola seja um espaço de aprendizagem para todos os alunos.” (PRIETO, 2006, p.36). Prieto defende que o professor deve considerar as diferenças dos alunos e ser capaz de analisar os domínios de conhecimentos deles, as suas necessidades demandadas no processo de conhecimento e “elaborar atividades, criar ou adaptar materiais, além de prever formas de avaliar os alunos para que as informações sirvam para retroalimentar seu planejamento e aprimorar o atendimento aos alunos.” (PRIETO, 2006, p.58). Também deve propor atividades favorecedoras da socialização. Assim, as limitações do sujeito são informações que não podem ser desprezadas na elaboração do planejamento de ensino. 38 Prieto, corroborando com Tezani12, defende a inclusão escolar do estudante com necessidades educacionais especiais na escola regular, por meio de adaptações curriculares, currículo dinâmico e flexível que permita ajustes ao fazer pedagógico e investimentos no capital humano. Em sua opinião, as adaptações curriculares facilitam o acesso dos alunos aos conteúdos escolares, na qual a escola deve dar respostas adequadas para as características de cada um, pois “a inclusão é um desafio a pedagogia: é ensinar o sujeito a pensar, descobrir e criar, equilibrando aspectos afetivos e cognitivos. A educação inclusiva necessita de suportes físicos, materiais, pessoais, técnicos e sociais.” (TEZANI, 2004, p. 63). construir a escola inclusiva, deve-se trilhar o caminho das adaptações físicas e sociais, estabelecendo redes de apoio. A construção desta escola passa pelo caminho do lúdico, das metodologias de ensino diferenciadas, dos ambientes facilitadores da aprendizagem, ou seja, da busca constante e incessante do sucesso escolar e da aceitação das diferenças individuais do aluno. (TEZANI, 2004, p.61). Frases como “metodologias de ensino diferenciadas”, “ambientes facilitadores da aprendizagem”, “busca constante e incessante do sucesso escolar”, “aceitação da diferença”, “inclusão é ensinar a pensar, descobrir e criar”, dentre outras, não se aproximam da concepção defendida nesse trabalho sobre educação inclusiva, pois vem carregada de um peso, que torna o ensinar e o aprender um problema para muitos profissionais da educação, que por esse motivo temem uma escola para todos. Quando se coloca a diferença como uma questão do outro que pode ser resolvida com uma simples adaptação de um currículo, todo o processo inclusivo se restringe ao fazer do professor, que continua sendo o que domina o conhecimento e o transmite para o estudante ensinando “a pensar, descobrir e criar”. Neste trabalho aproxima-se mais da concepção de educação inclusiva, na qual o professor apresenta o conteúdo por ele compreendido e estudado considerando a realidade, necessidades e interesse de todos os estudantes da turma (adaptação curricular), e disponibiliza atividades diversificadas e desafiadoras para todos, com e sem deficiência. E não ensina a “pensar, descobrir e criar”, mas juntamente com os estudantes pensa, descobre e cria. 12 Em 2004, Thais Cristina Rodrigues Tezani em sua dissertação de mestrado no programa de Pós- Graduação em Educação da Ufscar desenvolveu o tema “Os caminhos para a construção da escola inclusiva: a relação entre a gestão escolar e o processo de inclusão”, no qual abordou a importância das adaptações curriculares na construção da escola inclusiva. Para tanto, destacou as orientações do documento “Parâmetros Curriculares Nacionais: Adaptações curriculares: estratégias para educação de alunos com necessidades especiais”. 39 O terceiro princípio da escola inclusiva é ser acessível e possibilitar a permanência de todos os estudantes, por meio da eliminação de barreiras arquitetônicas, garantia de recursos materiais, humanos e rede de apoio, necessários para efetivar a participação de todos os estudantes nos diversos espaços e tempos escolares. Para a escola oferecer uma resposta de qualidade a diversidade de todos os estudantes, faz-se necessário identificar as barreiras existentes que podem obstruir a participação, inclusive do estudante público alvo da educação especial, e eliminá-las. Tais barreiras podem ser atitudinais, arquitetônicas, tecnológicas, na comunicação, na informação e no transporte escolar. Uma resposta que não deixe dúvida a comunidade ao comparar os recursos da escola regular e escola especial, requer atenção da gestão escolar com o intuito de garantir recursos e adaptações, por exemplo: para o estudante com deficiência auditiva o uso da LIBRAS e recursos visuais, para o estudante com deficiência visual o uso do Braile, de reglete, lupa, telelupa e material tátil sinestésico; para o estudante com deficiência física garantir o acesso aos diversos ambientes escolares (TEZANI, 2004). Assim, para efetivar a educação inclusiva a escola necessita ser acessível e garantir o desenvolvimento de todos com o uso de recursos e materiais de acordo com as