UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP JESSICA DE CASTRO GONÇALVES Humor com dessabor: uma análise das tiras da Mafalda no contexto escolar ARARAQUARA – S.P. 2015 JESSICA DE CASTRO GONÇALVES Humor com dessabor: uma análise das tiras da Mafalda no contexto escolar Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP/Araraquara, para a obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais Orientadora: Luciane de Paula Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES-DS ARARAQUARA – S.P. 2015 JESSICA DE CASTRO GONÇALVES Humor com dessabor: uma análise das tiras da Mafalda no contexto escolar Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP/Araraquara, para a obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais Orientadora: Luciane de Paula Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES-DS Data da defesa: 16/03/2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Doutora Luciane de Paula Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Membro Titular: Profa. Doutora Rosineide de Melo Centro Universitário Fundação Santo André Membro Titular: Prof. Doutor Odilon Helou Fleury Curado Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Aos meus pais, meu companheiro, meus amigos e professores, estes outros tão importantes na minha constituição como sujeito. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, pela luz e capacidade concedida; Agradeço aos meus pais, Silvana e Elson, por sempre me incentivarem e por se doarem para que aqui eu pudesse estar; Agradeço ao meu companheiro, Célio, pelas noites não dormidas, pelo ombro sempre estendido, pelas conversas, pelo apoio e paciência infindável. Agradeço à minha orientadora Luciane de Paula, por acreditar em mim mais do que eu mesma acredito, por ver em mim algo que eu nem sempre consigo ver, pelas cobranças que geraram conhecimento e crescimento e por ser esse outro bakhtiniano, capaz de a partir de sua visão externa, permitir minha completude através de um infindável diálogo; Agradeço à minha irmã, Jacqueline, pelas conversas e pelo fornecimento de estratégias para ‘desbloquear’ a escrita; Agradeço à Nicole, por estar sempre ali, em todos os momentos, sem nunca faltar, sejam bons ou ruins, auxiliando-me, aconselhando-me e sendo mais do que uma simples amiga, uma irmã; Agradeço às professoras Renata e Marina, pelas aulas que permitiram o desenvolvimento desse trabalho e pelas contribuições fornecidas no exame de qualificação que alargaram os meus horizontes; Agradeço à professora Rosineide de Melo, pelas grandes contribuições e o grande incentivo fornecidos no debate do Selin; Agradeço à banca de defesa, Professores Odilon e Rosineide, pela possibilidade de reformulação e melhoramento; Agradeço aos companheiros de mestrado, pelos ininterruptos diálogos, tanto na calmaria quando no desespero, em especial, José Radamés, Patrick, Luíza, Cadu, Cezinaldo, Thiago, Marly, Camila e Nathalia; Agradeço aos grupos de pesquisa GED e SLOVO e seus membros por me propiciarem mais crescimento como pesquisadora; Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da FCLAr e à UNESP Agradeço à CAPES pelo fomento concedido à realização da pesquisa. A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. Manoel de Barros (1998) RESUMO Esta pesquisa volve os olhares para os enunciados de alguns alunos pré-vestibulandos do Colégio Adventista de Tupã sobre as tiras da Mafalda. Diante da ocorrência dessas em atividades escolares, livros didáticos e avaliações, estes alunos apresentaram discursos diversos sobre as tiras e sobre a própria personagem Mafalda durante as aulas de língua portuguesa ministradas pela pesquisadora deste trabalho. Muitos afirmaram não se interessarem pela leitura destas e não compreenderem as críticas e os efeitos de humor ali contidos. O objetivo geral deste estudo é investigar os fatores envolvidos no ato de ler tal gênero que acarretam certo desinteresse e incompreensão, quando em contexto escolar/avaliativo. Discutem-se para isso as concepções de humor e do gênero tira apresentadas pelos alunos nas atividades de leitura proposta em forma de estudo de caso. Reflete-se ainda sobre a abordagem da tira como gênero discursivo em contexto escolar/avaliativo, a partir da análise desta no material didático utilizado pelo grupo em estudo e das respostas dos alunos às relações de humor e crítica presentes no gênero. Com essa finalidade realizou-se um estudo de caso que propôs atividades de leitura de tiras retiradas da obra Dez anos com Mafalda e trabalhadas em contexto escolar, em uma turma do terceiro ano do Ensino Médio de um colégio da rede privada de ensino em Tupã/SP, o Colégio Adventista. As atividades foram realizadas nas aulas de língua portuguesa, dentro e fora de contexto avaliativo. Utilizam-se como aparato teórico deste estudo os conceitos de gênero/enunciado, ato, ideologia/signo ideológico e sujeito, conforme pensados pelo Círculo de Bakhtin/ Medviedév/ Volochínov. Propõe-se ainda uma metodologia fundamentada nas ideias de cronótopo, exotopia, alteridade e voz discutidas pelo círculo russo. As categorias de análise propostas surgem do próprio método de realização do estudo de caso. Na tira da Mafalda, vista como um signo ideológico, averiguamos pontos de vista de discursos diversos, sob os quais se constroem sentidos. Sua leitura, em contexto escolar/avaliativo, dialoga com diferentes discursos, ideologias, sujeitos e envolve posicionamento dos alunos em relação a estes. Ao pensar no ato, sob a ótica do círculo russo, como algo social, responsivo e responsável, analisamos neste trabalho a constituição dos enunciados desses alunos, sujeitos concretos e históricos, diante dessas tiras, em meio às relações ideológicas presentes na escola, e os sujeitos envolvidos no contexto escolar. Palavras-chave: tiras; escola; gênero; enunciado; sujeito. ABSTRACT This research turns one's eyes to the statements of some pre-school students of the Adventist College in Tupa on the comic strips of Mafalda. Given the occurrence of these in school activities, textbooks and reviews, these students presented several speeches about the strips and about the character Mafalda during the Portuguese language classes taught by the researcher of this study. Many said they did not become interested in reading these and did not understand the criticism and the effects of humor contained therein. The aim of this study is to investigate the factors involved in the act of reading this genre that carry certain disinterest and misunderstanding when in school / evaluative context. We discuss for this the conceptions of humor and gender strip submitted by students in reading activities proposed in the form of case study. It reflects also on the approach of the strip as a discursive genre in school / evaluative context, from the analysis of the teaching materials used by the studied group and the students' answers to the relations of humor and criticism present in the genre. To this end there was a case study that proposed reading activities with strips from the work Ten years with Mafalda and worked in schools, in a class of third year high school students in a college of a private school in Tupa / SP, the Adventist College. The activities were held in the Portuguese language classes, in and out of evaluative context. Here are used as theoretical apparatus of the study gender concepts / statement, act, ideology / ideological and subject sign, as designed by the Circle of Bakhtin / Medviedév / Volochínov. It is further proposed a methodology based on the chronotope of ideas, exotopy, otherness and voice discussed by the Russian circle. The categories of analysis proposals arise from the very method of conducting the case study. In strip Mafalda, seen as an ideological sign, ascertain the views of many speeches, in which we build senses. Its reading, in school / evaluative context, dialogue with different discourses, ideologies, subject and involves placement of students in relation to these. When thinking about the act, from the perspective of the Russian circle, as something social, responsive and responsible, we analyze in this paper the formation of statements of these students, concrete and historical subjects, before these strips, amid the ideological relations present in schools and subjects involved in the school context. Keywords: strips; school; genre; statements; subject LISTA DE FIGURAS Figura 1 Meme odeio a Mafalda 20 Figura 2 Comunidade do Orkut Nome: Mafalda 21 Figura 3 Desenho de Daniel Paz em homenagem aos 51 anos de Mafalda 29 Figura 4 Tira da Mafalda sobre liberdade 31 Figura 5 Tira da Mafalda para explicitar constituição da tira 32 Figura 6 Tira da Mafalda para explicitar constituição da tira 32 Figura 7 Tira de Alexandre Siqueira utilizada em exercício no material didático 44 Figura 8 Tira do personagem Hagar, o terrível, utilizada em exercício no material didático 45 Figura 9 Tira de Pietro Antoglioni, utilizada em exercício no material didático 46 Figura 10 Tira de Hagar, o terrível, utilizada em exercício no material didático 46 Figura 11 Tira de Heber Pintos, utilizada em exercício no material didático 47 Figura 12 Tira de Calvin, utilizada em exercício no material didático 48 Figura 13 Tira de Heber Pintos, utilizada em exercício no material didático 49 Figura 14 Tira da Mafalda, utilizada em exercício no material didático 50 Figura 15 Tira de Mort Walker, utilizada em exercício no material didático 52 Figura 16 Tira de Heber Pintos, utilizada em exercício no material didático 52 Figura 17 Tira de Steve Breen, utilizada em exercício no material didático 53 Figura 18 Tira da Mafalda utilizada na atividade de interpretação da tira I em grupo, oral, realizada pelos alunos 58 Figura 19 Tira da Mafalda utilizada na atividade de interpretação II, escrita, individual, dentro da sala de aula, não avaliativa 59 Figura 20 Tira da Mafalda utilizada na atividade de interpretação III, individual, escrita, realizada fora da sala de aula, não avaliativa. 59 Figura 21 Tira da Mafalda utilizada na atividade de interpretação IV, individual, escrita, fora da sala de aula, avaliativa, realizada pelos alunos 60 Figura 21 Tira da Mafalda utilizada na atividade de interpretação IV, individual, escrita, fora da sala de aula, avaliativa, realizada pelos alunos 61 Figura 23 Tira utilizada na atividade de interpretação 2 de estudo de caso 114 Figura 24 Tira utilizada na atividade de interpretação III escrita no estudo de caso 118 Figura 25 Tira utilizada na atividade de interpretação II escrita do estudo de caso 124 Figura 26 Tira utilizada na atividade de interpretação III escrita do estudo de caso 125 LISTA DE GRÁFICO Gráfico 1 Respostas obtidas à pergunta 1 O que você gosta de ler? do questionário de leitura 1, aplicado aos alunos. 87 Gráfico 2 Gosto de leitura de tiras apresentado pelos alunos em resposta ao questionário de leitura 1. 107 Gráfico 3 Espaço em que os alunos leem tiras segundo respostas deste ao questionário 1 109 Gráfico 4 Interpretação conferida pelos alunos ao enunciado ‘MUNDO DOENTE” presente na tira proposta na atividade de interpretação escrita II, individual, dentro de sala, não avaliativa 115 Gráfico 5 Interpretação conferida pelos alunos ao enunciado ‘cotovelos esbarrando no tinteiro” presente na tira proposta na atividade de interpretação escrita III, individual, fora da sala de aula, não avaliativa 119 Gráfico 6 Análise das respostas dos alunos quanto à presença ou não de humor na atividade de interpretação II 124 Gráfico 7 Análise das respostas dos alunos quanto à presença ou não de humor na atividade de interpretação III 125 Gráfico 8 Análise das respostas dos alunos quanto à presença ou não de humor na atividade de interpretação IV 128 Gráfico 9 Análise das respostas dos alunos quanto à presença ou não de humor na atividade de interpretação V 128 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Quantidade de produção em tiras presente no material didático utilizado pelos sujeitos de pesquisa 42 Tabela 2 Tabela com dados obtidos a partir das pesquisas 2, 3 e 4 do questionário de leitura 1 (Anexo BI). Aborda a quantidade de alunos que gosta ou não de ler tiras, os motivos para o gosto ou desgosto, os locais de leituras desta e os tipos de produção conhecidas pelos alunos. 88 Tabela 3 Tabela produzida a partir das respostas as atividades de leitura de tiras da Mafalda na modalidade escrita, individual, avaliativa e não avaliativa, mostrando a opinião dos alunos sobre a interpretação da tira, a presença ou não de humor nesta e a presença ou não de crítica nesta. 92 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15 O riso em quadros ..................................................................................................................... 15 Implicações de um gênero na sala de aula ................................................................................ 16 A problemática ......................................................................................................................... 19 1 ESTUDO DE CASO: O CONTEXTO ............................................................................... 26 1.1 Mafalda: o contexto de uma voz que contesta ................................................................ 28 1.1.1 “O que você gostaria de ser se você vivesse”: nasce a Mafalda de Quino ...................... 28 1.1.2 “Shhh!... Fale baixo, estou com um doente em casa”: o mundo doente de Mafalda ...... 30 1.1.3 “O bom de ir para a escola é que a gente pode ter conversas literárias”: a composição das tiras ..................................................................................................................................... 31 1.2 A rede de educação adventista ........................................................................................ 35 1.3 O Colégio ........................................................................................................................ 37 1.4 O terceiro ano do ensino médio: os sujeitos de pesquisa ................................................ 38 1.5 O ensino de Língua Portuguesa no Colégio Adventista de Tupã ................................... 39 1.6 As tiras de humor no material didático do Colégio Adventista de Tupã ........................ 41 1.7 As atividades do estudo de caso ...................................................................................... 54 2 SUBSÍDIOS TEÓRICOS: O CÍRCULO DE BAKHTIN E OS ESTUDOS SOBRE LINGUAGEM, IDEOLOGIA, ATO E SUJEITO .......................................................... 63 2.1 A interação (relação enunciado/sujeito como princípio) .................................................... 64 2.2 A linguagem .................................................................................................................... 64 2.3 Enunciados/gêneros......................................................................................................... 65 2.4 O Diálogo ........................................................................................................................ 68 2.5 Ideologia .......................................................................................................................... 69 2.6 O ato e o sujeito............................................................................................................... 72 2.7 O riso e suas formas ........................................................................................................ 73 3 MEDOTOLOGIA: OS SUJEITOS NO TEXTO ............................................................ 75 3.1 O caráter humano da pesquisa ............................................................................................ 75 3.1.1 O cronótopo e o movimento exotópico como princípio metodológico ........................... 79 3.1.2 A alteridade como metodologia ....................................................................................... 81 3.1.3 A(s) voz(es) no texto ....................................................................................................... 82 3.2 O método sociológico-dialético-dialógico e as categorias de análise ................................ 84 4 VOZES SOBRE VOZES: ANÁLISE DOS ENUNCIADOS DOS ALUNOS ............... 86 4.1 A aplicação das atividades de leitura das tiras da Mafalda e dos Questionários ................ 86 4.2 Análise dos enunciados: posicionamentos e valorações na sala de aula ......................... 95 4.3 Análise dos enunciados: a concepção da tira na sala de aula ........................................ 104 4.4 Análise dos enunciados: a concepção de humor na sala de aula ................................... 121 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 132 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 135 ANEXOS ............................................................................................................................... 138 15 INTRODUÇÃO O riso em quadros Tira, tira de humor, tirinha, tira cômica. Um gênero discursivo ao qual se atribuem muitos nomes1. Com narrativas estruturadas em quadros, na articulação do verbal e do visual, as várias produções dessa, com seus diferentes conteúdos e estilos, narram, satirizam, humorizam, ironizam e criticam. Nelas se estabelecem diálogos entre discursos diversos e embates entre posicionamentos ante a realidade, em uma pequena ou grande temporalidade, já que são lidas por sujeitos de diferentes contextos sociais, históricos e culturais. Nessa relação entre a linguagem verbal e a visual, se produzem as diversas significações nesse gênero. Mendonça (2010) destaca a presença dessa fusão entre imagem e texto verbal nas sequências dos quadrinhos como a grande responsável pela produção de sentidos. Ramos (2010), conjuntamente, considera quaisquer tipos de produção em quadros (tiras, cartoons, charge, etc.) detentores de uma linguagem autônoma, já que segundo o autor, esses possuem mecanismos próprios que representam os elementos narrativos. Os balões, as cores, as onomatopeias, os aspectos gráficos das letras e a forma de representação do pensamento e da fala, entre outros elementos, contêm significados e desempenham funções semânticas e estilísticas na narrativa, juntamente com a linguagem verbal. Ler tiras é voltar- se, portanto, não só à narrativa em si, mas às especificidades de sua composição. Várias são as produções desse gênero, tanto no Brasil, como no mundo. Dentre as estrangeiras, destacamos a argentina Mafalda de Quino; as norte-americanas Calvin & Haroldo de Watterson, Hagar, o Horrível de Dick Browne, Garfield de Jim Daves e Peanuts de Charles Shulz. Já entre as brasileiras podem ser citadas Níquel e Náusea de Fernando Gonsales, Gato e Gata de Laerte e as denominadas webcomics, criadas e divulgadas na internet, Armandinho de Alexandre Beck, e Quadrinhos ácidos de Pedro Leite. O seu surgimento está, muitas vezes, veiculado à esfera de atividade jornalística. Os assuntos abordados como temas das tiras, publicadas periodicamente (diária e semanalmente), 1 Privilegia-se neste trabalho o uso da nomenclatura ‘tiras’, para se referir à produção desse gênero como um todo. Essa opção fundamenta-se na discussão desenvolvida por Ramos (2007, 2010) sobre a existência de diferentes nomes conferidos por leitores e pesquisadores a este gênero, apresentada com maior enfoque no capítulo 5. De acordo com o autor, essa diversidade de termos em relação a um mesmo gênero retrata a dificuldade de compreensão deste, bem como o escasso número de pesquisa sobre o assunto. Como justificativa, o autor opta por denominar o gênero de tira, pois diante a tantos nomes (tira, tira de humor, tirinha, tira cômica, tira jornalística) o único que se repete é tira, em função da forma do gênero. Como o objeto de estudo dessa pesquisa são os enunciados dos alunos sobre as tiras e não essas especificamente, optou-se neste trabalho pela nomenclatura tira, sem discussões aprofundadas quanto aos seus tipos. 16 podem ou não estar ligados ao contexto imediato de produção, estabelecendo ora uma relação maior, ora uma menor com os discursos e acontecimentos do momento de sua publicação. A criação e a leitura dessas, no entanto, não se restringem somente a esse espaço. Muitas são elaboradas com vistas a serem lidas na internet, outras surgem em jornais, mas são deslocadas desses para a leitura, com outros objetivos, em diversos contextos e lugares. Há tiras em livros, em almanaques, em blogs, nas redes sociais e também na escola. Nesse último espaço, sua leitura, atrelada a exercícios e provas, pode se tornar uma necessidade para a obtenção de nota e de aprovação em avaliações. Surgem consequentemente diversas opiniões e relações com esse gênero, que, apesar de ter como função principal, em muitos casos, a geração do humor, pode causar outros efeitos nos estudantes quando na sala de aula. Neste estudo volvemos os olhares e vozes aos enunciados de alunos do terceiro ano do ensino médio de uma escola da rede privada de ensino, surgidos na leitura de tiras, quando em contexto escolar/avaliativo. Entretanto, antes de apresentarmos a problemática motivadora deste trabalho, é necessário fazer uma breve sumarização da configuração e da entrada desse gênero no contexto escolar, para entender este lugar de onde emergem esses enunciados com opiniões nem sempre favoráveis à leitura deste gênero discursivo. Implicações de um gênero na sala de aula Presente em provas, livros didáticos e nos variados exercícios, a tira é utilizada atual e frequentemente no ensino de língua materna, estrangeira e também de diversas outras disciplinas escolares, como história, geografia e biologia, por exemplo. Produzidas em jornais, blogs e almanaques, com vistas a entreter, as tiras tornam-se, na escola, recursos didáticos para trabalhar leitura, produção e conteúdos curriculares, submetidas a diferentes abordagens. Por várias décadas, contudo, esse uso das tiras foi condenado. Ramos (2010) e Cirne (1977) discorrem sobre a não aceitação delas como um gênero para o ensino em sala de aula. Segundo esse último, os quadrinhos em geral eram tidos como subliteratura prejudicial ao desenvolvimento intelectual das crianças, considerados por certos sociólogos como os principais responsáveis pela delinquência juvenil. O autor cita a existência de códigos morais que regiam as produções editoriais do gênero, limitando os assuntos a serem abordados. Em decorrência, a entrada desses na escola, nos livros didáticos e nas provas, acontece tardiamente, na década de 70. 17 Outro fator que retarda a presença de tiras e também de outros gêneros não literários e não canonizados no contexto escolar é a concepção de ensino de língua materna no país. Ensiná-la, inicialmente, era sinônimo de trabalhar textos considerados do cânone, com vistas a apresentar aos alunos modelos e regras de boa escrita. Em 1920, com o projeto de escolarização das massas e de ampliação do acesso à escola à população brasileira, as aulas de língua materna estavam fundamentadas, de acordo com Santos (2007), no ensino da gramática e na leitura de clássicos canonizados. Aprender língua portuguesa era aprender a falar e a escrever bem. Para isso era necessário o contato com textos bem escritos, e o aprendizado de regras que levassem à produção desses. No entanto, a partir da década de 70, com o desenvolvimento da teoria da comunicação, o estudo da língua passou a ser fundamentado na necessidade de uma diversidade de gêneros na escola. Santos (2007), ao discutir a mudança na concepção de ensino e a inserção dessa variedade genérica na escola, retrata como plano de fundo deste momento uma educação considerada fator incidente diretamente no desenvolvimento do país. Diante desse pensamento e influenciado, conforme a autora, pela teoria da comunicação, o ensino fundamentou-se na concepção de língua como instrumento de comunicação. A presença de diversos tipos de textos na sala de aula e no livro didático tornou-se, neste contexto, a solução para o preparo do aluno à convivência em sociedade. Não houve, porém um abandono completo daquela concepção antiga de língua. Apesar da inclusão de uma diversidade de gêneros discursivos na sala de aula, em muitos momentos a leitura proposta visava somente à focalização desses como textos compostos de formas linguísticas a serem analisadas em seu âmbito estrutural. O ensino da escrita e da leitura neste momento marcou-se por uma abordagem que se alicerçava na compreensão do texto, a partir de suas estruturas internas, desligado das práticas sociais que o contextualizavam, nas quais ele fora produzido e enunciado. A leitura era percebida como uma atividade de decodificação serial de um texto sem referência a quaisquer aspectos que estejam fora dele, uma atividade meramente mecânica, passiva e desprovida de avaliações por parte do leitor, cujo trabalho é demonstrar a rede de relações internas ao texto para dela extrair uma significação latente. (SANTOS, 2007, p. 17) Apesar da inclusão de uma diversidade textual, essa não era colocada sempre, de acordo com Santos (2007), pensando na função social dos textos. Estes eram trabalhados como conjunto de estruturas a serem lidas e interpretadas sem olhar seus contextos de produção e circulação. Sob a ótica do Círculo de Bakhtin/Medviédev/Volochínov, uma leitura de decodificação, como aquela proposta neste momento, segundo a autora da citação 18 acima, não é possível, pois o aluno como um sujeito sempre vai assumir uma atitude responsiva perante qualquer enunciado, sendo essa estimulada pelo educador ou não. Mesmo que a abordagem vise uma falsa decodificação, o aluno responde ativamente a qualquer enunciado, mesmo que não exteriorize sua resposta. O aparecimento de variados textos na sala de aula e nos livros, portanto, não significa uma transformação completa da abordagem se eles não forem trabalhados como enunciados produtos de interações sociais, a serem lidos e compreendidos por um viés crítico por parte do leitor. As próprias tiras, conforme Ramos (2010), apareciam nesse contexto como introdução e ilustração a/de capítulos do livro de língua portuguesa, e a função social delas não era sempre abordada. O final da década de 70 e o início da de 80 são retratados por Santos (2007) como momentos de discussões acerca dos objetivos e objetos de ensino vigorantes até o momento e reflexões acerca dos currículos. Essas se desenvolveram em torno da concepção de língua não mais como instrumento, mas como um espaço de interação, influenciada pelos estudos linguísticos na área do discurso em expansão no período. Na década de 80 e 90, sob a visão da autora, as questões acerca do ensino da língua materna no Brasil giraram em torno da presença de uma diversidade de gêneros dentro da escola. Estes foram colocados como centro do ensino de língua e deviam ser trabalhados tendo como referência as situações reais de seu uso e suas funções na sociedade. Novos gêneros, além daqueles canonizados, adentraram as salas de aula, inclusive as tiras, pois “só a partir do domínio destes diferentes tipos textuais é que o aluno ser[ia] capaz de responder satisfatoriamente às exigências comunicativas que enfrenta no dia-a-dia”.( SANTOS, 2007, p. 18) Apesar desse discurso de diversidade textual e do ensino de língua pautada na função social do gênero discursivo em sala de aula, nem sempre as características genéricas de forma, conteúdo e estilo, discutidas por Bakhtin (2011), são trabalhadas na escola. Mesmo diante de uma mudança na concepção de ensino de língua materna, prevalecem ainda hoje abordagens que reduzem um gênero ao texto/pretexto, para trabalhar gramática e a falsa decodificação de sinais linguísticos. A própria tira entra nos livros didáticos muitas vezes por uma questão editorial, pela exigência do PCN. Isso pode estar relacionado a uma maior facilidade e comodidade por partes dos docentes em exporem regras gramaticas do que promover maior compreensão do gênero em toda sua complexidade (forma, estilo, conteúdo) por parte dos alunos, nem sempre uma tarefa fácil ao docente. Todavia o humor, como característica marcante do gênero, e a linguagem autônoma dos quadrinhos, apontada por Ramos (2010), deixam de ser trabalhados, ficando algumas vezes em segundo plano frente a análises das 19 formas e significados das estruturas gramaticais ali contidas. As aulas de língua materna nem sempre privilegiam o trabalho com as produções de sentido a partir das relações de humor, ironia e subentendidos no gênero. Bunzen (2007) cita as diferentes abordagens dos gêneros discursivos nos livros didáticos e na sala de aula: leitura e compreensão, estudo de marcas linguísticas, exemplos para produção textual, entre outros, segundo o autor, é a atuação pedagógica que pode gerar ou não a existência de um trabalho com texto ou com gênero, pensando ou não na sua função social. Como consequência, a tira pode aparecer submetida a diferentes tipos de abordagens no contexto escolar. Veiculada a exercícios e avaliações, a leitura dela pode aparecer, em muitos momentos, somente pela necessidade de responder a questões de gramática e de interpretação de texto. As características do gênero, como exposto no início, ficam algumas em segundo plano ou nem são abordadas em função da atividade de identificação, classificação e decodificação das estruturas linguísticas. O humor, em torno do qual ela se arquiteta em muitos momentos, não é trabalhado, mesmo sendo um dos principais elementos na sua composição. Essas diversas possibilidades de abordagens na sala de aula e o constante aparecimento desse gênero discursivo nas avaliações, e também em outros contextos, vai gerar diferentes opiniões (favoráveis ou contrárias), por parte de alunos, sobre o gênero tira na escola2. Este trabalho surge em meio a essa problemática, ao propor a discussão de enunciados de alunos de uma turma do terceiro ano do ensino médio acerca de tiras presentes no contexto escolar/avaliativo. A problemática Durante a minha atuação como docente de Língua Portuguesa no ensino fundamental e no ensino médio no Colégio Adventista de Tupã, no estado de São Paulo, entre os anos de 2011 e 2013, constatei a existência de diferentes posicionamentos ante a tira,3 dentro e fora do período e do espaço da sala de aula. Entre os alunos do ensino médio deste colégio (em 2 Parte-se da ideia de que essa opinião conflituosa sobre tiras apresentada pelos alunos não está presente somente no contato com ela dentro da sala de aula, mas em outros contextos, como internet, revistas entre outros. Apesar disso, este trabalho, na condição de uma dissertação de mestrado, privilegiou, como corpus delimitado, o estudo de enunciados de alunos sobre as tiras dentro do contexto escolar. Deixaremos a leitura no contexto não escolar para outros estudos futuros, no entanto não se despreza neste momento a influência desse outros espaços nos discursos apresentados pelos estudantes. 3 Na condição de pesquisadora, mas também docente dessa turma foi possível observar vários posicionamentos de aceitação, incompreensão e até rejeição não só às tiras, mas também a diversos outros gêneros visuais, verbais e verbo-visuais. No entanto delimita-se como corpus desse estudo a leitura das tiras em detrimento de outros gêneros discursivos, por serem essas as mais criticadas e rejeitadas na sala deste estudo de caso em particular. 20 período pré-vestibular), eram comuns discursos de desinteresse, crítica e incompreensão a certas produções do gênero, principalmente quando presentes em exercícios nas apostilas e principalmente nas provas. Estes afirmavam serem as questões que envolviam o ato de interpretá-las as responsáveis pelo mau desempenho nas avaliações, inclusive nas de língua portuguesa. Entretanto, ao serem desvinculadas do contexto do vestibular e das provas, as tiras não eram avaliadas da mesma maneira pelos estudantes, já que os alunos do ensino fundamental II do mesmo colégio, mais especificamente dos sétimo e nono anos (salas em que eu também lecionava), não impregnados ainda pelo discurso do vestibular, consideravam- nas textos agradáveis e preferíveis a outros colocados pela escola como leitura necessária. Nas aulas de língua portuguesa das turmas pré-vestibulares, na realização de exercícios e provas, as críticas mais frequentes por parte dos alunos dos primeiro, segundo e terceiro anos do ensino médio desse colégio surgiam na leitura das tiras de uma personagem muito utilizada no contexto escolar: a Mafalda. As dificuldades estavam relacionadas principalmente à compreensão do significado desses enunciados e a não identificação do humor neles contidos, um dos elementos mais requisitados nas questões das provas que os envolviam. Os alunos afirmavam serem as tiras da personagem críticas e não humorísticas. Essas reclamações surgiam principalmente durante a leitura dos textos da personagem em provas e em exercícios da apostila. Concomitantemente às opiniões e às reações desses alunos, foi observada na internet e nas redes sociais a existência de semelhantes discursos de oposição à presença das tiras da personagem nas provas de português. Ao mesmo tempo em que pré-vestibulandos do específico colégio criticavam as tiras da Mafalda, principalmente em contexto avaliativo, circulavam na internet as seguintes declarações: Figura 1 - Meme odeio a Mafalda Fonte: Página do Facebook PréVest#DáDeprê4 4 Disponível em: Acesso em set. 2014. http://www.facebook.com/PréVest#DáDeprê 21 Figura 2- Comunidade do Orkut Nome: Mafalda Fonte: Página da comunidade Nome Mafalda da desativada rede social Orkut5 O primeiro dos enunciados acima foi publicado em uma página da rede social Facebook, chamada PréVest#DaDeprê, onde são realizadas postagens que satirizam o momento e as dificuldades envolvendo a preparação para a prova do vestibular. Essa publicação obteve um total de 2.782 curtidas e 237 compartilhamentos (dados obtidos no acesso em 26 de setembro de 2014), o que mostra uma repercussão considerável dessa opinião. Já a segunda imagem se refere a uma comunidade da rede social Orkut (desativada no dia 30 de setembro de 2014). Além dessa, foram encontradas outras nove comunidades nesta mesma rede social em que a Mafalda, vinculada ao contexto escolar/avaliativo, era apontada como causadora de mau desempenho em provas de português, reproduzindo o discurso do primeiro enunciado. Outra que também apareceu na internet foi a afirmação relacionada à não existência de um viés engraçado nas tiras da personagem. De acordo com a descrição de uma comunidade criada em 2009, esta se destinava “só pra quem nunca gostou da Mafalda ou nunca achou graça nas tirinhas” (Comunidade Eu odeio a Mafalda do Orkut, acesso em 2014). Isso surge em contrapartida ao prestígio que as tiras da personagem possuem no mundo e em nosso país. Publicada pela primeira vez na década de 1970 na revista Arte Nova, a personagem foi a única produção argentina no gênero a ter a obra completa traduzida e publicada no Brasil. Mafalda circulou em diferentes espaços até adentrar ao contexto escolar e ter a obra Toda Mafalda incluída no Projeto Nacional da Biblioteca na Escola (PNBE). Segundo um estudo realizado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, em fevereiro de 2014, publicado no Blog dos Quadrinhos, do professor da Universidade Federal 5 Disponível em: Acesso em set. 2014 http://www.orkut.com/nome:mafalda 22 de São Paulo e pesquisador deste gênero Paulo Ramos, as tiras e os quadrinhos em geral são preferências de leituras pelos alunos da rede pública estadual de ensino, superando poemas, romances e outros gêneros propostos. Isso também se contrapõe aos discursos de incompreensão e rejeição apresentados acima. Tanto nas redes sociais como nas turmas do Colégio Adventista de Tupã, é possível constatar que a rejeição demonstrada está ligada à leitura dessas tiras em provas, e mais do que à personagem, há um posicionamento à sua presença na sala de aula e nas avaliações6. Logo, surgiu como uma das primeiras hipóteses deste trabalho, que o conflito na leitura e no entendimento dessas tiras possivelmente estaria muito relacionado à necessidade de sua leitura no contexto escolar/avaliativo. No entanto, apesar da escolarização poder ser um dos motivos para a crítica, essa merece ser investigada, pois a simples obrigatoriedade da leitura na escola não pode ser considerado único fator na explicação para a existência de tais posicionamentos e único agente responsável por tal desgosto. A personagem argentina está nas provas, no livro didático, nas bancas, nas livrarias e na televisão, lida por adultos, jovens e crianças. Os alunos leem-na e precisam responder a perguntas a partir dessas tiras, mas como são essas perguntas? De que forma esse gênero é trabalhado na sala de aula? A leitura realizada na escola é a mesma realizada fora dela? O que envolve sua leitura neste contexto específico? Como os alunos reagem aos discursos de uma tira produzida em um contexto sócio-histórico-cultural diferente daquele em que estão inseridos e que muitas vezes nem conhecem? Em que medida, a forma como as tiras são trabalhadas na escola proporciona o surgimento de opiniões contrárias e de desinteresse em relação às tiras da personagem? Dentre as hipotéticas causas, levantadas por nós, relacionadas a esse desafeto, estão o possível não conhecimento e a não compreensão da linguagem e da estrutura do gênero pelos alunos, e a frequência das tiras da Mafalda na sala de aula e nas avaliações. A nossa premissa é a de que essas causas ocorram devido, principalmente, a esses dois últimos fatores. No entanto, por se persistir esse conflito na leitura das tiras fora do contexto escolar, propõe-se também como hipótese que esse desgosto não é algo particular do espaço da escola, mas um conflito mais amplo e complexo do que apenas a não aceitação do estudante a um texto proposto em atividades e provas na disciplina de língua portuguesa. Acreditamos que essa problemática está ligada a uma relação conflituosa entre sujeito e linguagem . 6 Delimitou-se como corpus desse estudo enunciados de alunos sobre as tiras no contexto escolar pois mesmo os discursos de rejeição às tiras da Mafalda fora da escola traziam como foco de sua crítica a presença dessa na escola. 23 Como esse estudo surgiu da atuação dessa pesquisadora como professora, propõe-se neste trabalho analisar os enunciados de alunos sobre as tiras dentro da escola para observar os fatores presentes na recepção desses enunciados neste espaço específico. Não se exclui, todavia, a influência de valores, atos, ideologias entre outros elementos do contexto não escolar. Apesar disso delimitamos neste momento nossa investigação à leitura desse gênero dentro da escola. Diante dos pronunciamentos de alunos dos segundo e terceiro anos do ensino médio desse colégio, acerca das tiras, no contexto escolar/avaliativo, propusemo-nos a analisar os enunciados de um grupo de estudantes, decorrentes da leitura das tiras da personagem, dentro e fora do contexto avaliativo, para investigar esses discursos de incompreensão tão presentes nas turmas do ensino médio do Colégio Adventista de Tupã. Para o acesso a esses discursos, propôs-se o seguinte estudo de caso: delimitou-se um corpus de seis tiras retiradas da seção Assim vai o mundo da obra Dez anos com Mafalda. As tiras selecionadas possuem como temática a crítica feita pela personagem à humanidade e ao mundo, frente aos conflitos ocasionados pelo ser humano. Estas foram selecionadas por permitirem um diálogo mais amplo com o contexto social e histórico dos alunos, sem se restringirem muito aos acontecimentos sociais e históricos de sua época de produção7. Todavia, acredita-se que mesmo essa possibilidade de um diálogo com o contexto de recepção, a leitura das tiras não exclui a presença do momento de escrita e publicação destas no ato de leitura. Além disso, estas foram escolhidas para serem trabalhadas em atividades de leitura e interpretação que girassem em torno da compreensão do humor, da temática e da tira como gênero, principais dificuldades demonstradas pelos alunos. Estas atividades foram propostas a treze alunos da turma do terceiro ano do ensino médio do Colégio Adventista de Tupã. As hipóteses apresentadas anteriormente surgiram da atuação da pesquisadora deste trabalho como docente no ensino médio dessa escola; como consequência, esses alunos, por se constituírem alunos do terceiro ano deste segmento, e havendo cursado todo o ensino médio nesse colégio, foram selecionados para participarem desse estudo de caso As tiras foram trabalhadas como atividades, dentro e fora da sala de aula e dentro e fora do contexto avaliativo, com vistas a investigar, durante a aplicação dessas atividades, o ato de leitura dos alunos frente às da Mafalda. Mais do que analisar os enunciados proferidos 7 As tiras da Mafalda foram produzidas na Argentina entre 1964 e 1973 e por serem publicadas em periódicos diários e semanários, estabelecem um forte vínculo com os acontecimentos na Argentina e no mundo deste momento (guerra fria, movimentos de contracultura, guerra do Vietnã, viagem do homem à lua, sucesso dos Beatles), os quais serão detalhados no capítulo 2. 24 em respostas às tiras da Mafalda, objetivou-se com esses exercícios olhar para a leitura do gênero discursivo tira na sala de aula, observando a relação dos alunos com a linguagem verbal, visual e a construção do humor e dos sentidos nas tiras, investigar a concepção do gênero pelo aluno e a relação que esse estabelece na escola, diante das ideologias e sujeitos que ali vigoram, já que o sujeito é sempre influenciado pelo outro. Almejamos, nesse estudo, discutir a compreensão do humor e dos sentidos nas tiras apresentadas por estes alunos, já que a não identificação do engraçado está presente na sala de aula em estudo e nos enunciados circulantes na internet. O nosso objetivo também é pesquisar quais são os elementos envolvidos na leitura desse gênero discursivo no contexto escolar (a compreensão do gênero, as relações entre sujeitos em sala de aula e as ideologias dentro da escola), para pensar as abordagens da leitura deste na sala de aula, em sistemas de avaliação, e em questões nos livros didáticos, podendo ou não contribuir para uma rejeição dos alunos pré-vestibulandos ao gênero. Este estudo restringiu-se à análise dos enunciados dos estudantes do terceiro ano do ensino médio de uma escola da rede privada de Tupã frente aos discursos das tiras. Almejamos refletir sobre o gênero tira e seu uso em ambiente escolar; investigando o ato responsivo dos alunos frente a essas tiras e o trabalho dos docentes com as mesmas no ambiente escolar. Além disso, as atividades aplicadas e analisadas permitiram uma discussão sobre a ideologia no contexto escolar, a concepção do gênero e do humor apresentada pelos alunos. Essa pesquisa torna-se relevante por se propor a investigar a postura destes alunos frente a esses textos, relacionados ao contexto da avaliação escolar (em especial, voltada ao vestibular). Ainda tem como objetivo discutir os enunciados dos alunos sobre a tira, um enunciado dialógico e ideológico produzido em um determinado contexto, mas que mantém diálogo com discursos variados e que lidos em outros contextos estabelecem outros diálogos. Acreditamos, com isso, poder contribuir com os estudos de gêneros discursivos e seu uso na educação. A teoria que fundamenta nossa pesquisa, como nos propusemos a pensar nos gêneros discursivos, será a dos estudos do Círculo Bakhtin/Medviédev/Volochínov. A partir das discussões sobre ideologia, linguagem, enunciado, gênero, sujeito, ato, cronotopo e exotopia do círculo russo, estabelecemos a fundamentação e os pilares metodológicos desse estudo. Além disso, foram propostas categorias de análise a partir da metodologia proposta na aplicação das atividades e dos dados obtidos. A divisão deste trabalho se apresenta da seguinte maneira: 25 No primeiro capítulo, é apresentado o contexto do estudo de caso realizado nesta pesquisa. Apresentam-se o colégio, os alunos, as ideologias constituidoras da concepção de educação nesta escola, seu material didático e as atividades propostas no estudo de caso. O objetivo deste é contextualizar os alunos participantes do estudo de caso e enunciadores do corpus a ser analisado, para entender o lugar sócio-histórico-cultural de onde emergem esses dizeres. Neste capítulo também se discute sobre o contexto de produção das tiras da Mafalda. Apresentam-se os principais acontecimentos da época de escrita das tiras da personagem, os quais, mesmo não tão explícitos naquelas utilizadas na pesquisa de campo, podem estabelecer diálogos e influência na leitura dos alunos. Pensa-se sobre como se constroem, em algumas das tiras propostas nas atividades aos alunos, as significações e o humor nos enunciados da personagem. No segundo capítulo, apresentam-se os conceitos de Bakhtin utilizados como fundamentação para este estudo: ideologia, ato, enunciado/gênero, discurso, sujeito/alteridade. Este capítulo, denominado arquitetônica da interação, traz pensamentos do círculo russo acerca da natureza das relações entre sujeitos, os quais embasam a análise dos enunciados dos alunos. No terceiro capítulo, são discutidas as concepções metodológicas que envolvem esse estudo. Como essa pesquisa lida com sujeitos cujos enunciados se constroem de acordo com escolhas valorativas nas diversas interações dos quais participam, é necessário refletir sobre a metodologia na pesquisa em ciências humanas. São propostos pilares metodológicos para este trabalho a partir de conceitos discutidos pelo Círculo de Bakhtin/Medviédev/Volochínov. Ademais, são propostas categorias de análise de dados a partir da metodologia utilizada na aplicação das atividades no estudo de caso. No quarto capítulo, analisam-se as atividades de leitura e questionários propostos aos alunos na pesquisa de campo. É discutida cada uma das atividades detalhadamente a partir de três grandes núcleos temáticos: as valorações e ideologias em sala de aula, as concepções de humor na história e na sala de aula e as concepções de gênero apresentadas por eles. Dentro de cada um destes, a análise está organizada segundo as categorias de análise apresentada no capítulo três. 26 1 ESTUDO DE CASO: O CONTEXTO O objeto de análise desta pesquisa, a partir do qual se instauram as discussões teórico- metodológico-analíticas aqui construídas, são os enunciados de um grupo específico de alunos sobre as tiras da Mafalda. Esses advêm do estudo de caso proposto como parte da pesquisa, realizado na turma do terceiro ano do ensino médio do Colégio Adventista de Tupã. Entretanto, para que se possam estabelecer, neste texto, diálogos entre o corpus e a teoria, os estudos do círculo de Bakhtin/Medviédev/Volochínov, bem como surgir outros dizeres a partir das problematizações aqui instauradas, é necessário primeiramente nos deslocarmos para o locus desse estudo. Este capítulo se estrutura a partir do conceito de exotopia, um dos pilares metodológicos desse trabalho discutido, mais adiante no capítulo Metodologia: os sujeitos no texto. Bakhtin (2011) destaca a exotopia como o deslocamento de um lugar para outro. Esse movimento exo (para fora) tópico (de um espaço) é colocado pelo teórico russo como uma saída realizada pelo sujeito do espaço, no qual está situado, para outro. Entretanto, o espaço, ao estabelecer forte ligação com o tempo, no pensamento bakhtiniano, é mais do que um lugar físico, mas um espaço social, histórico e cultural. Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento. (BAKHTIN, 2011, p. 23) Isso posto, este capítulo se constitui um ato exotópico, por permitir-nos um deslocamento para o contexto de desenvolvimento do estudo de caso. Apesar disso, esse movimento não nos exige uma direção real e corpórea até a cidade de Tupã, no interior de São Paulo, até o Colégio Adventista, à sala do terceiro ano do ensino médio, local de realização do estudo de caso. Primeiramente porque essa sala não está mais lá. Além de que o colégio que lá está não é mais o mesmo desta pesquisa. Não porque ele tenha deixado de existir ou obtido outro nome. Ele, como instituição de ensino, ainda se encontra lá, no entanto os sujeitos mudaram e as relações entre eles também. O contexto social e histórico já não é o mesmo, nem existem as mesmas interações e relações ideológicas idênticas àquelas em que os enunciados analisados neste trabalho surgiram. Deslocar-se de seu espaço para outro, exotopicamente, neste trabalho, é voltar-se para o contexto de realização desse estudo de caso, seu lugar social, as relações sociais ali 27 presentes, hierárquicas e ideológicas, e tentar compreendê-las com os olhos dos sujeitos que delas participaram. É também sair de sua situação e ir para a teoria fundamentadora desse estudo, os estudos do Círculo de Bakhtin/Medviédev/Volochínov. Todavia, esse movimento não é um negar de si próprio, pois ele exige também um voltar para o seu lugar e olhar com os próprios olhos, aquilo, visto com os olhos dos alunos e da teoria, instaurando sobre este texto a própria voz (tanto do pesquisador como do leitor). Além disso, por se constituir o corpus desse estudo de enunciados sobre as tiras de humor da personagem Mafalda, é necessário também contextualizar histórica, social e ideologicamente essas produções com as quais os alunos estabelecerão diálogos em suas leituras. Portanto o deslocamento aqui também envolve um mover-se para o momento sócio- histórico-ideológico das tiras de humor da Mafalda. Neste capítulo, contextualizaremos, portanto, o estudo de caso. Serão apresentadas informações sobre a produção da Mafalda, a rede de educação adventista, a filosofia educacional, o colégio da cidade de Tupã, os alunos (sujeitos de pesquisa) e o material didático utilizado por eles. A partir dessa contextualização, já expomos as formas como o gênero tiras aparece abordado no material didático deste colégio para que, em conjunto com os discursos mais frequentes de críticas às tiras da Mafalda, possamos apresentar as atividades propostas aos alunos como parte dessa pesquisa sobre a qual discorremos. Na seção 1.1 são apresentadas informações sobre as tiras da Mafalda, sua produção, suas temáticas e sua configuração como um gênero discursivo. Na seção 1.2 é apresentada a filosofia educacional da rede de educação adventista, uma instituição de caráter religioso. Essa informação se torna relevante para entender o meio ideológico no qual se constituem os enunciados dos alunos, suas interações, a constituição dos discursos e a formação de grupos sociais na sala de aula. Na seção 1.3 são expostos dados do colégio ao qual pertencem os sujeitos participantes dessa pesquisa, com vistas a contextualizar, socialmente, o público pertencente ao colégio, o material didático e a concepção de avaliação ali vigorante. Na seção 1.4 é apresentado o perfil dos participantes da pesquisa, bem como a organização dos grupos dentro da sala de aula, a partir de uma organização social calcada nas valorações religiosas existentes dentro da sala de aula. Na seção 1.5 apresenta-se a proposta de ensino de língua portuguesa para entender o lugar que o gênero discursivo ocupa dentro do material didático e da proposta pedagógica a qual esses alunos são submetidos. Na seção 1.6 apresentamos algumas das tiras presentes no material didático, para compreender os tipos de leitura desse gênero proposto aos alunos. Na seção 1.7 são expostas as atividades apresentadas aos alunos, 28 sujeitos da pesquisa, no estudo de caso, a partir das quais se obteve o corpus analisado no capítulo cinco desse trabalho. 1.1 Mafalda: o contexto de uma voz que contesta Nesta seção, apresenta-se o contexto de produção das tiras da Mafalda utilizadas nas atividades de leitura propostas no estudo de caso, parte dessa pesquisa. É exposto o momento sócio-histórico-cultural-político no qual foram criados e publicados esses enunciados de autoria de Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino. Além disso, discute-se a configuração temática, composicional e estilística das tiras da Mafalda por meio de duas tiras retiradas da Obra Dez Anos com Mafalda da seção “Assim vai o mundo”, sendo uma delas utilizadas no estudo de caso. Não se intenta uma análise e discussão profunda sobre a produção e sobre as tiras, já que o nosso objeto de análise são os enunciados dos alunos sobre as tiras da personagem. No entanto, o deslocamento para o momento de criação é muito importante, pois, apesar de a leitura ocorrer em cronótopos diferentes, o diálogo entre contexto de produção e de recepção se faz e o passado fala no presente. Como veremos no capítulo sobre metodologia, um dos pilares metodológicos desse trabalho é a presença de muitas vozes no desenvolvimento da pesquisa e no tecer desse texto. Por conseguinte, para apresentar o contexto de produção e publicação das tiras bem como os fatos históricos e sociais presentes em suas temáticas, nada mais instigante do que a presença da própria voz da criança adulta: a Mafalda. Por esse motivo o título de cada seção será composto de enunciados proferidos pela “pequena contestadora”, nome dado por Humberto Eco, em tiras presentes na obra Dez Anos com Mafalda, de onde se retiraram as utilizadas no estudo de caso. Na seção 1.1.1 apresentaremos a trajetória da produção da tira da personagem entre 1964 a 1973. Na seção 1.1.2 serão apresentados alguns dos ocorridos na Argentina e no mundo da década de 1960 e 1970. Na seção 1.1.3 será apresentada a configuração temática, estilística e estrutural das tiras da personagem, por meio da análise de duas das tiras da personagem. 1.1.1 “O que você gostaria de ser se você vivesse”: nasce a Mafalda de Quino 29 Figura 3 - Desenho de Daniel Paz em homenagem aos 51 anos de Mafalda Fonte: Site bocamaldita8 Daniel Paz, humorista e desenhista argentino, publicou no aniversário de 51 anos de nascimento da Mafalda o desenho acima, no qual retrata a personagem, ainda bebê, sendo criada pelo autor argentino, Quino, Joaquín Salvador Lavado Tejón. Esse processo é representado pelo ligamento de Mafalda à cabeça do escritor por um cordão umbilical. Todas as tiras da personagem foram publicadas entre 1964 a 1973 por Quino. Sua produção, como uma característica do próprio gênero, voltou-se para publicações periódicas em jornais e teve uma data de início e uma de fim. Quino só criou as tiras dessa personagem nesse período de tempo e encerrou a produção quando achou que ela tinha cumprido o seu propósito. O surgimento da Mafalda está ligado ao universo publicitário. A pedido de um amigo, Miguel Brascó, Quino criou a primeira tira da Mafalda para uma agência de publicidade argentina, Agens Publicidad. Essa requisitou uma produção em que aparecesse uma família, cujos nomes das personagens começassem com M, a fim de realizar a propaganda de eletrodomésticos da marca Mansfield no jornal Clarín, sem que este percebesse a intenção comercial. Quino cria então pela primeira vez Mafalda e seus pais. Contudo, o intento publicitário foi descoberto e esta não foi publicada. Após esse episódio, Quino levaria suas tiras para o jornal Primeira Plana e então começaria a publicação dessa personagem no mundo jornalístico. A trajetória de publicação das tiras perpassa três principais periódicos argentinos, respectivamente: Primeira Plana, El Mundo e Siete Días Ilustrados. No primeiro e no último jornal as tiras eram publicadas semanalmente, já no El Mundo essa ocorria todo dia, tendo as originadas nesse momento, um maior vínculo com os acontecimentos do cotidiano. 8 Disponível em: 30 Os temas, críticas e humor presentes nas tiras da Mafalda estabelecem diálogos com os acontecimentos sociais, culturais e políticos da época. Como enunciados ideológicos, concretos e dialógicos segundo a concepção do Círculo de Bakhtin, elas dialogam com o momento de ditadura vivida pela Argentina e por outros países como o Brasil, bem como com os conflitos pós-segunda Guerra Mundial. Mafalda foi chamada por Umberto Eco de “pequena contestadora” ao se configurar uma personagem com posicionamento crítico, reflexivo e questionador ante o mundo, à sociedade e à ação dos outros sujeitos que a rodeiam. Quino cria-a como uma criança questionadora em um meio conflituoso entre diferentes outros com as quais se relaciona (pais, professores, amigos [Susanita, Manolito, Felipe, Liberdade, Miguelito], seu irmão caçula [Guile], entre outros). Estes são configurados pelo autor como personagens típicos da classe média. 1.1.2 “Shhh!... Fale baixo, estou com um doente em casa”: o mundo doente de Mafalda Como já dito acima, as tiras da personagem argentina dialogam com os acontecimentos da argentina e do mundo nas décadas de 1960 e 1970, momento de publicação e produção dessas. Nesta seção apresentaremos sumariamente alguns desses acontecimentos, no mundo e na Argentina. As tiras são enunciados que emergem em situações histórica, sociais e culturais concretas. Nesta condição, apresentam-se nelas tensão entre opiniões, críticas acerca de um determinado fato. As tiras da Mafalda surgiram em um período agitado política e culturalmente na Argentina e no mundo. A sua leitura e o seu entendimento é interessante, e quando realizadas tendo em vistas o contexto de produção adquirem significados outros. Na Argentina, de 1946 a 1955, instauraram-se os dois mandatos de Juán Domingo Perón, cuja política econômica estava marcada por aspectos fascistas e de forte industrialização. Após a saída de Perón do poder, a Argentina passou por momentos de instabilidade política, em que o governo do país ora estava nas mãos de civis, ora nas de militares, ocorrendo vários golpes. Isso só vai se estabilizar com a volta de Perón ao poder em 1973. Com sua morte em 1974, e a ascensão de sua esposa ao poder, houve novamente instabilidade política, instaurando-se o golpe militar de 1976. Na America Latina, vários países também enfrentaram ditaduras militares, onde a liberdade ficou reduzida ao nada. Como forma de representação disto, Quino cria a pequenina personagem liberdade, representação da redução desta aos indivíduos durante a ditadura. 31 Figura 4 - Tira da Mafalda sobre liberdade Fonte: Quino (2010) No panorama mundial também a situação era conflituosa pela instauração da guerra fria, ou seja, conflito econômico e político entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. O comunismo era condenado e suas ideologias e seguidores, alvos de perseguição e tortura nos regimes ditatoriais. Destaca-se ainda neste momento a guerra no Vietnã, com a invasão das tropas norte- americanas e o surgimento de movimentos de paz. É neste momento que se tornam intensos movimentos de contracultura como o movimento Hippie. 1.1.3 “O bom de ir para a escola é que a gente pode ter conversas literárias”: a composição das tiras A significação nas tiras da Mafalda, dentre os vários temas abordados, se constrói nessa relação que a personagem principal, uma menina criança, estabelece com os outros ao seu redor. Por meio disto, ela posiciona-se reflexivamente não só aos integrantes de seu 32 universo fictício, mas ao micro e ao macro universo por meio do questionamento acerca das atitudes das demais personagens. Estes representam de certa forma, um microcosmo social da humanidade como um todo. A própria voz que fala pertence a uma criança; no entanto, essa não é caracterizada como tal, e assume um tom contestador que questiona o comportamento dos pais, amigos e da humanidade como um todo. A pequena garota, uma criança, contesta acontecimentos e atos considerados comuns aos seus pais, aos seus colegas e até mesmo aos meios midiáticos e autoridades. A presença de um conflito de posicionamentos ideológicos é constante na tessitura do discurso verbal e visual das tiras da personagem. A pequena Mafalda está sempre refletindo sobre comportamentos triviais e ideologias oficiais, bem como posicionamentos alienados acerca dos acontecimentos sociais. Na condição de uma criança, coloca-se de forma reflexiva diante não só dos acontecimentos mundiais como também da postura dos outros em relação a estes. Nas tiras abaixo é possível perceber a dinâmica dialógica e ideológica na composição dos enunciados produzidos por Quino. Figura 5 - tira da Mafalda para explicitar constituição da tira Fonte: Quino (2010, p. 68) Figura 6 - tira da Mafalda para explicitar constituição da tira Fonte: Quino (2010, p. 68) 33 Conforme as discussões do círculo russo de Bakhtin/Medviédev/Volochínov, os gêneros diferenciam entre si segundo o estilo, a forma e a composição, utilizados com diversos propósitos e intenções em cada ato comunicativo. Nas tiras dessa personagem percebe-se que a significação é produzida no estabelecimento de diálogos entre personagens que se posicionam valorativamente em relação a outros (pensando no microuniverso) e ao mundo (pensando no macro universo). Assumindo uma posição valorativa frente ao mundo, Mafalda opõe seu ponto de vista e seu posicionamento aos de outras personagens: Felipe e o pai da garota, e ao mesmo tempo ao mundo de conflitos. Nas duas tiras, percebemos a constituição das personagens nessa relação com os seus diversos outros. Mafalda se constitui como sujeito contestador frente à condição do mundo, colocado em diálogo pelos discursos sobre este provindos da mídia e o que ela observa. Felipe se constitui como sujeito na relação com a Mafalda e com a visão de um globo terrestre sobre a cama. O pai da Mafalda se constitui como sujeito na relação com a Mafalda, com a criança marginalizada e com os colegas da repartição. Ao pensar nessas tiras como enunciados que se constituem na interação em sociedade, pode-se pensar na constituição dos sujeitos, ideologias e posicionamentos em relação ao macro universo. É possível, a partir desse pensamento, perceber diálogos entre discursos e embates entre posicionamentos ideológicos diversos. Felipe e o pai da Mafalda representam sujeitos que assumem posições alienadas em relação à condição do mundo. Estes semiotizam a voz daquela ideologia oficial, de um mundo ordenado, em boas condições. Na primeira tira Felipe, ao pensar em doente, acredita ser esse um ser humano e se espanta diante de um globo sobre a cama, esse despertar acerca da situação doente do mundo em que ele vive, mas não tinha percebido. É possível observar no plano visual essa mudança no estado de Felipe. O mesmo é possível observar no personagem Pai. Na linguagem verbal percebemos certa ironia quanto ao pensamento de Mafalda como doente. Entretanto, no visual, frente a um menino de rua, percebemos sua alteração, seu despertar para os problemas do mundo. Já Mafalda representa a contra-palavra, a voz do despertar, do contrapor, aquela que assume a responsabilidade de alertar acerca de algumas condições de alienação – no caso das tiras em análise, a ideia de que o mundo está doente. Os sujeitos Pai e Felipe neste contexto, não se constituem em sujeitos que não possuem posicionamentos no ato de viver, mas, segundo Bakhtin (2010), são sujeitos que assumem um falso álibi, ou seja, uma posição axiológica e conformista, ao não olharem criticamente para a realidade que os rodeia. 34 Na primeira tira, ao chegar à casa da Mafalda, Felipe recebe da Mafalda a afirmação de que há um doente naquele lugar. Automaticamente, ele pensa em pessoas (mãe, pai). Todavia, ao chegar ao quarto e ouvindo as negativas de Mafalda, ele observa fixamente o globo terrestre sobre a cama. O mesmo acontece com o pai da personagem, que ironiza a ideia da filha de um mundo doente, acamado. Contudo, ao encontrar uma criança mendigando na rua, compreende o sentido da “doença” enunciada pela filha, reflete sobre isso e adere à ideia, reproduzindo-a no serviço por se apresentar preocupado, o que causa estranhamento de outros, que, espantados, sequer questionam ou refletem sobre tal ideia, apenas repetem, sem entender o sentido das palavras proferidas pelo personagem trabalhador, em ressonância ao discurso de Mafalda e à situação vista. Nessa segunda tira, o pai da Mafalda aparece como representação de uma massa alienada, controlada pelo sistema vigente, que trabalha e vive sem posicionar-se criticamente a situação do mundo em que está inserido. A mesma postura é possível encontrar nos companheiros de repartição que também não compreendem a ideia de um mundo doente, vivendo em concordância com aquilo que é imposto pela mídia e por aqueles que detêm o poder. No entanto, o pai sofre um choque de realidade ao prestar atenção na criança de rua e, como estava pensando, de maneira irônica, no que Mafalda havia dito e compreender os sentidos do termo “doente” empregado pela filha, no último quadrinho, ele aparece em um processo de desalienação e despertar da consciência possível, disparada pelo contato com a realidade, desde o início metaforizada pela sua filha. Esse despertar angustiante o coloca num patamar diferente, em oposição aos colegas de trabalho, ainda alienados de si e do outro. O humor nessas tiras da Mafalda arquiteta-se em meio a essa complexidade expressa acima. A voz de uma criança, não característica à uma criança, e ligada a um posicionamento ideológico que contesta e contrapõe as posições de outros (adultos e crianças) em relação ao contexto social de produção é grande geradora do humor na tira. Neste jogo entre o verbal e o visual, os quais contribuem ativamente para a produção de sentido na tira, mais o conflito entre ideologias e os diálogos estabelecidos entre discursos dentro e fora da tira, se dá o humor. Toda esta estrutura da tira da personagem ocasionou na Espanha, em sua publicação inicial, devido à censura, na capa dos livros da Mafalda, a existência de uma indicação ‘para adultos’. O próprio autor da personagem afirmou o seguinte Eu sempre pensei na Mafalda para os adultos. Como eu já disse, o Primera Plana era um semanário político que aparecia no jornal El Mundo, na página oito, que era a seção editorial do jornal. [...]. Quer dizer, é certo que cada história da Mafalda tinha por objetivo fazer uma crítica social, era pensada 35 com essa finalidade. Por outro lado, devo especificar que nenhuma história da Mafalda foi censurada, ao passo que me censuraram em muitas outras páginas de humor. (QUINO, 2010, p.2) Um fator que indica a complexidade dessa produção é que inicialmente a Mafalda foi construída para ser uma campanha publicitária de produtos eletrodomésticos da Marca Mansfield. Todavia, o jornal em que as tiras fossem publicadas não poderia perceber que a intenção das tiras era a divulgação comercial dos produtos. No entanto, essa intenção foi descoberta, a publicação recusada pelo jornal. Qual seria o motivo dessa recusa? Mafalda critica, contesta e fala verdades do mundo, verdades estas que também falam ao nosso mundo atual. Entretanto, a sua leitura em muitos momentos também pode se referir ao contexto dos leitores. Como um enunciado concreto, este, ao ser lido por sujeitos, que segundo o círculo de Bakhtin/Medviédev/Volochínov, são concretos e únicos, situados no tempo e no espaço, vai estabelecer diálogos com outros discursos, nos diversos atos de leitura seja em uma pequena ou grande temporalidade. A significação do “mundo doente” vai ser construída na relação entre o discurso da personagem da tira e os discursos relacionados à condição do mundo no momento de leitura da ou considerando o seu momento de produção – depende do conhecimento de mundo do leitor. Os sujeitos que leem estabelecem diversas relações de alteridade. Cada um posiciona- se em relação a si próprio, ao discurso das tiras (pensando ou não no contexto de produção destas) e aos discursos dos outros, em seu contexto de leitura. O outro está presente na constituição dos sujeitos das tiras e na constituição dos sujeitos leitores. Cada um, ao se colocar como leitor, assume uma posição e atua em relação ao conteúdo existente na tira e ao contexto de sua leitura, produzindo novos sentidos. Para entender o contexto em que se realizou a leitura dos alunos, a relação deles com o gênero, as ideologias que cercaram o contato dele com as tiras, é necessário antes falar sobre escola, sua ideologia educacional e também de seu material didático, para entender como as tiras aparecem aos estudantes. 1.2 A rede de educação adventista A proposta de uma educação adventista surge do interesse dos professantes da denominação religiosa Adventista do Sétimo Dia de concederem aos seus filhos uma formação acadêmica fundamentada em princípios cristãos. Com a necessidade de um ensino- aprendizagem voltado para a formação do sujeito em sua integridade (mental, física e 36 espiritual) a partir dos ensinamentos bíblicos, inaugura-se em 1875, em Michigan, a primeira escola adventista do mundo. De natureza confessional, privada e filantrópica, essa rede de educação está atualmente presente em todos os continentes do planeta. Divididas em regiões administrativas segundo sua localização geográfica, as instituições de ensino do estado de São Paulo são mantidas pelo IPAES, Instituto Paulista Adventista de Educação e Assistência Social. Este compreende sete associações administrativas, sendo o colégio no qual se realizou o presente estudo de caso pertencente a uma dessas. Os princípios e objetivos educacionais são uniformes em relação a todos os colégios. Eles estão fundamentados na missão de promover, através da educação cristã, o desenvolvimento integral do educando. De acordo com a ideologia dessa proposta educativa, o aluno é visto como um ser humano integral, pleno e holístico, dotado de capacidades físicas, cognitivas, emocionais, sociais e espirituais, as quais precisam ser estimuladas e desenvolvidas todas no processo educacional. São desenvolvidos programas e projetos que busquem o trabalho de todas essas capacidades do aluno, visando sua formação integral. A educação adventista propõe além do ensino de disciplinas nas diversas áreas para o desenvolvimento cognitivo/intelectual, atividades que visem ao trabalho físico, social, emocional e espiritual dos alunos. São propostas nas disciplinas escolares conteúdos para o desenvolvimento cognitivo, e também atividades esportivas, sociais, ambientais, artísticas e de lazer para o desenvolvimento físico e emocional, além do incentivo do relacionamento com Deus, considerado criador, conforme a concepção da instituição, por meio de aulas de ensino religioso e programações especiais. A educação adventista visa ser um sistema educacional fundamentado nos princípios bíblico-cristãos. Os seus objetivos, a partir desses parâmetros gerais, estão relacionados ao conhecimento de Deus, da Bíblia, cuidado da natureza, formação integral (mental, espiritual e física) de cidadãos, cuidado com a saúde, desenvolvimento do senso crítico e reflexivo, da autonomia e da preocupação com o outro nas relações sociais. Essa filosofia educacional fundamenta-se na concepção de Deus, como criador do universo e de tudo o que nele há, e na do homem como criatura racional. Este é visto como possuidor da necessidade de voltar-se para aquele, em um processo de restauração. Além de visar o desenvolvimento pleno e equilibrado dos potenciais humanos, o ensino está fundamentado nos estudos bíblicos e busca promover a comunhão entre Deus e o homem. A religião é compreendida pela educação adventista como o processo de se religar a Deus (religião do verbo latim religare). Em decorrência desse entendimento, a ideologia 37 educacional estimula a prática da religião, em conjunto com todas as disciplinas, pensando-a muito mais do que a participação em denominações específicas, mas como um processo de religamento com Deus. Essa rede de educação está fundamentada na ideologia adventista do sétimo dia. Essa denominação religiosa acredita na bíblia como uma revelação literal de Deus ao homem. Apesar desse livro ter sido escrito por seres humanos, essa ideologia religiosa crê na inspiração desse por Deus. A nomenclatura Adventista do Sétimo Dia advém da crença no advento de Jesus Cristo (o retorno desse a terra para a restauração do planeta às condições de perfeição, igual a quando foi criado por Deus, e o extermínio de todo mal e forma de pecado) e, na condição de criacionistas e interpretadores literais da bíblia, a crença no Sábado como o sétimo dia de descanso, abençoado e santificado por Deus como um tempo de resguardo das atividades diárias e dedicação à vida espiritual. Na condição de discípulos de Cristo, a principal missão dessa ideologia religiosa é o discipulado, ou seja, a pregação das mensagens bíblicas a todas as pessoas. Os Adventistas ainda acreditam em um estilo de vida pautado na temperança mental, física e espiritual, dedicando-se a um maior cuidado da saúde e da vida espiritual por meio de uma alimentação mais saudável, um estilo de vida não sedentário e um vigiar quanto ao que ver, ouvir e comer. As informações acima se tornam relevantes para compreendermos de qual contexto ideológico educacional surgem os enunciados e qual a ideologia que norteia as atividades, material didático e a própria organização social dentro da sala de aula. 1.3 O Colégio O Colégio Adventista, no qual foi realizado o estudo de caso proposto, foi fundado na cidade Tupã, no estado de São Paulo, no ano de 1995. Como já informado na seção anterior, essa instituição é de natureza filantrópica e possui um programa de bolsas de estudo, com descontos de 100% e 50% para os alunos com necessidades financeiras. Consequentemente, o colégio de Tupã, apesar de localizado em um bairro nobre, possui alunos de várias classes sociais. Em 2013, ano de realização do estudo de caso, o colégio era composto por um total de dezessete turmas. Os primeiro, segundo e terceiro anos do ensino médio eram compostos, respectivamente, por quinze, dezessete e treze alunos. O número reduzido nessas turmas deve- se ao fato de haver na cidade outras escolas com sistemas pré-vestibulares sem esse viés religioso. Dentre as instituições privadas de ensino na cidade de Tupã, esta é a única escola de 38 caráter religioso O quadro de alunos e professores não é composto somente por professantes da religião adventista do sétimo dia, havendo ali estudantes de diferentes outras denominações religiosas. A proposta educacional para o ensino médio, segmento ao qual pertencem os alunos participantes dessa pesquisa, visa além de toda essa concepção apresentada na seção anterior, à formação para a aprovação no vestibular. Há uma parceria com uma empresa de consultoria de vestibular, denominada WilVest, a qual o auxilia na preparação dos alunos para o vestibular. Essa empresa concede aos docentes um sistema virtual de preparação de provas e listas de exercícios a partir de questões do vestibular, as quais estão agrupadas em temas e classificadas segundo os seus níveis de dificuldade, exigência de análise, avaliação e provas de vestibulares. A avaliação nessa instituição está fundamentada, de acordo com o Projeto Pedagógico de 2013 da Associação Paulista Oeste (região administrativa a qual ele pertence), disponível em todas as unidades dessa instituição de ensino, numa concepção formativa, a qual valoriza a efetiva aprendizagem e não só a obtenção de notas. Conquanto, o sistema avaliativo no ensino médio na escola de Tupã envolve primordialmente a aplicação de provas, listas de exercícios e simulados de vestibulares e realização de trabalhos (de diferentes naturezas). Duas avaliações escritas são obrigatórias no bimestre, numa proporção de valor de 8/10, no entanto o professor pode complementá-las com outras formas de avaliar o aluno ao longo do processo de ensino-aprendizagem. Observa-se que, apesar dessa proposta formativa da avaliação escrita é priorizada nesse valor de 8/10, com questões dissertativas e de múltipla escolha, voltada mais para a obtenção de nota. Ao pensar no aparecimento da tira em sala de aula, sua leitura vincula-se, por conseguinte, à necessidade de aprovação por meio de respostas corretas, dado presente nos enunciados dos alunos analisados a seguir. 1.4 O terceiro ano do ensino médio: os sujeitos de pesquisa A turma dos sujeitos participantes da pesquisa foi composta por 13 alunos pré- vestibulandos, todos cursando o terceiro ano do ensino médio no ano de 2013. No início das atividades, a professora de língua portuguesa desses era a pesquisadora e autora deste texto; todavia, devido ao recebimento de fomento para a realização do estudo, houve alteração para outra docente. 39 A faixa etária desse grupo de sujeitos variou entre 16 a 18 anos, com 11 do sexo feminino e 2 do masculino. Pertencente à classe média e à média baixa, parte dos alunos integrantes da pesquisa, no ato de realização dessa, possuía bolsa de estudo de 50% e 100%, num total de 40% do grupo, devido a necessidades econômicas ou por serem filhos de funcionários do colégio. Todos os participantes deste estudo cursaram o ensino médio completo e, no mínimo, uma das séries do ensino fundamental nesta instituição de ensino. Apenas um dos alunos professava a mesma religião daquela à qual pertence o colégio. O grupo de maior destaque na sala de aula pertencia a outra denominação protestante religiosa. Esse grupo preponderante era o que mais se destacava nas aulas, tanto em relação à participação como em relação ao desempenho. Em alguns momentos, dentro da sala de aula do terceiro ano do ensino médio, esse grupo de alunos, pertencente à mesma denominação religiosa, compartilhava com os outros alunos de outras crenças, suas ideologias e filosofias. No entanto, esses nem sempre estavam interessados e acessíveis às palavras do grupo. Com isso instaurava-se na sala relações hierárquicas entre alunos pertencentes a um grupo social de maior destaque, e com maior voz nas aulas, e outros de grupos menores, sem tanta participação. Tudo isso criava a organização social e hierárquica dessa sala e a formação de grupos sociais em relações de poder dentro da sociedade da sala de aula. A religião, como um dos sistemas ideológicos surgidos na interação social, de acordo com Bakhtin (Medvedév) (2012), torna-se nessa sala de aula um organizador das relações sociais, à medida que por meio das crenças religiosas se formam os grupos na sala de aula. 1.5 O ensino de Língua Portuguesa no Colégio Adventista de Tupã No projeto pedagógico da Associação Paulista Oeste, de 2013, seguido pelo Ensino Médio do Colégio Adventista de Tupã, entregue a todos os professores do Colégio da Associação Paulista Oeste, as competências e habilidades a serem desenvolvidas no ensino de Língua Portuguesa estão divididas em três seções: Representação e Comunicação, Investigação e Compreensão e Contextualização Sociocultural. Segundo essas divisões, são elas, respectivamente, as seguintes  saber confrontar opiniões sobre as diferentes manifestações da linguagem verbal; compreender e usar a língua portuguesa como uma língua materna geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade; saber usar as tecnologias de comunicação na escola e em outros contextos da vida. 40  ser capaz de analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, sabendo relacionar texto ao contexto de produção e recepção; recuperar a cultura, imaginário e memória coletiva pelo texto literário; articular as diferenças entre língua oral e escrita.  pensar a língua portuguesa como fonte de acordos, condutas sociais e representação simbólica das experiências humanas; entender os impactos das tecnologias da comunicação, em especial da língua escrita nos processos de produção e no desenvolvimento do conhecimento na vida social. Observa-se nas competências e habilidades acima uma preocupação muito marcante, principalmente nos dois primeiros tópicos quanto à necessidade de o aluno conhecer e saber compreender a linguagem verbal. No primeiro tópico afirma-se que o estudante precisa saber confrontar as diferentes manifestações da linguagem verbal e no segundo da necessidade de analisar os recursos expressivos da mesma. Entretanto, apesar de citar a linguagem oral, onde está a importância da não verbal? Por acaso uma pintura ou uma música não são também enunciados compostos de uma linguagem, com sentidos a serem compreendidos? E a tira, tão conflituosa de entendimento entre os alunos, sujeitos dessa pesquisa, não é composta pela tensão entre o verbal e o não-verbal? Constata-se que o ensino do gênero é caro a essa proposta pedagógica, principalmente quando atentamos para o tópico dois, em que “analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, sabendo relacionar texto ao contexto de produção e recepção;” (idem, p. 63). Percebe- se que o retratado aqui é o trabalho com gêneros discursivos e não com uma tipologia textual, já que há uma preocupação em analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, pensando no texto situado em contextos em diálogo (produção e recepção). Contudo, novamente surge um questionamento: mas são gêneros somente aqueles de linguagem verbal? Compreenderia o aluno a tira se fosse dela excluída o visual? A preocupação com o gênero existe, mas parece haver um ocultamento das formas de linguagens não constituídas pela palavra. As tiras aparecem no material didático proposto ao ensino médio, apesar disso, nem sempre são abordadas como um gênero a ser relacionado a contextos de produção e recepção, e, nos momentos em que isto ocorre, o não verbal nem sempre está presente. Atentemos agora para os gêneros e o aparecimento do não verbal no material utilizado pelos alunos. As apostilas de disciplina de língua portuguesa do ensino médio são compostas de quatorze fascículos do Sistema Interativo de Ensino da Casa Publicadora Brasileira. Os dez 41 primeiros trazem conteúdos a serem trabalhados ao longo do ensino médio, do primeiro ano até a metade do terceiro. Já os últimos quatro são destinados à revisão geral de tudo o que foi ministrado ao longo de todo o segmento. Cada fascículo da disciplina está estruturado da seguinte maneira: uma por bimestre, num total de quatro ao ano. Cada um destes tem de 2 a 7 módulos, separados de acordo com o assunto a serem abordados. A primeira metade de cada módulo destina-se ao trabalho de gêneros discursivos, já a segunda volta-se mais a reflexão sobre a estrutura da língua, em seus níveis semânticos, sintáticos, morfológicos (parte gramatical). Cada módulo sempre está organizado em subseções: “Pensando sobre o texto”,” Partindo para o conceito”, “Aplicando a teoria’, ‘Atividades’, De olho no vestibular.’ Essas não aparecem, contudo, em todos os módulos. Todavia, as seções ‘Pensando sobre o texto’, ‘Atividades’ e ‘De olho no Vestibular’ são as que mais se repetem. Os gêneros discursivos estão presentes ao longo dos 10 fascículos, e cada módulo é iniciado pela leitura de um tipo de gênero, de linguagem verbal ou visual. Geralmente a seção “Pensando sobre o texto” é a parte inicial e a partir dessa trabalha-se o assunto naquela seção, partindo para teoria. No entanto, o texto nem sempre é trabalhado como um gênero, tendo em vista suas funções sociais e seus contextos, muitas vezes aparecem para a aplicação da teoria a ser ensinada naquele módulo. Esse material sofreu uma reformulação no ano de 2011-2012. Essa foi gradual, pois as apostilas antigas foram substituídas da seguinte forma: no ano de 2012, foi atualizado o material didático do primeiro ano do ensino médio. Em 2013, o material didático do segundo do ensino médio. Em 2014, o do terceiro do ensino médio. Essa mudança contribuiu principalmente para a modificação e acréscimo de mais exercícios. A turma de sujeitos participantes desse estudo de caso, por cursar o ensino médio de 2011 a 2013, utilizou as apostilas antes dessa reformulação. Por esse motivo, os dados e exercícios apresentados nesse capítulo foram retirados do material didático antigo, não mais utilizado pela escola. 1.6 As tiras de humor no material didático do Colégio Adventista de Tupã Como esta pesquisa intuiu analisar os enunciados dos alunos sobre as tiras, neste momento traremos alguns exercícios em que esses gêneros estavam presentes. Ante a isto será possível conhecer alguns dos tipos de atividades com tiras que os alunos, participantes do estudo de caso, realizaram ao longo do ensino médio. Isto ocorre de forma a contextualizar a leitura desse gênero realizada pelos estudantes em sala de aula, a fim de discutirmos os 42 discursos de conflitos e as concepções apresentadas por eles na realização dos questionários e nas atividades de pesquisa. Além disso, essas atividades foram uma referência para a elaboração daquelas utilizadas no estudo de caso. Nos dez fascículos utilizados por esses alunos do primeiro até a metade do terceiro ano do ensino médio, está presente um total de quarenta tiras. Elas aparecem de diferentes maneiras, com variados objetivos didáticos e veiculadas a vários exercícios sob as mais diversas abordagens. Quanto às produções de tiras presentes nos fascículos, foram contabilizadas as seguintes, ao longo do material didático dos três anos do ensino médio: Tabela 1 - Quantidade de produção em tiras presente no material didático utilizado pelos sujeitos de pesquisa Tiras Quantidade Tiras de Heber Pintos 9 Calvin e Haroldo de Bill Watterson Hagar, o terrível 5 Hagar, o terrível 3 Tiras de Arionauro 3 Tiras de Alexandre Siqueira 3 Recruta zero de Mort Walker 2 Tiras de Pietro Antoglioni 2 Frank & Erneste de Bob Thaves 1 Zezé de Greg, Briam Walker e Chance Browne 1 Mafalda 1 Garfield de Jim Daves 1 Tiras de Walter Lang 1 Tiras de Sara Campos 1 Xodós da vovó, de Steve Breen 1 Os pescoçudos de Caco Garlhardo 1 Piratas do tietê, de Laerte 1 Níquel e Náusea de Fernando Gonsales 1 Hip Hip & Chimarrão 1 43 Sem identificação de autor ou título 2 Observa-se acima que a tira que aparece em maior quantidade no material didático do Ensino Médio é a do autor adventista Héber Pintos. Isso mostra já uma marca ideológica, pois em uma apostila de um colégio que prioriza tiras de um autor da mesma crença religiosa desse há valoração. Isso mostra que o pedagógico está bastante fundamentado também no religioso. Apesar dessa diversidade de tiras presentes nos fascículos, um objetivo em comum permeia todas elas: o trabalho do conteúdo proposto no módulo em que aparecem. As tiras ocorrem em função do que está sendo ensinado, na maioria das vezes, e não em função de si próprias, do próprio gênero. Tanto que, em nenhum dos primeiros módulos de cada volume destinado à exploração de gêneros discursivos, elas são abordadas como foco principal. Isto confirma toda aquela polêmica que inicia este trabalho sobre a entrada da diversidade textual nos livros didáticos e na escola, e a não abordagem do gênero em si, mas a utilização deste como um suporte para se ensinar estruturas gramaticas e exercitar. Serão apresentados agora alguns desses exercícios com tiras, para exemplificar o tipo de leitura proposta aos alunos participantes do estudo de caso nos fascículos. O objeto não é analisar os exercícios, já que o corpus desse trabalho compõe-se de enunciados dos alunos sobre as tiras da Mafalda, mas apresentá-los ao leitor para que esse conheça como as tiras são colocadas a esses sujeitos de pesquisa nas apostilas. Isso fundamenta a discussão futura que realizaremos sobre a concepção de tira presente nos enunciados dos alunos. Além disso, é necessária a apresentação desses exercícios neste momento, pois foi durante a realização destes que surgiram grande parte dos discursos de incompreensão das tiras impulsionadores desse trabalho. A partir dos questionamentos dos alunos mais recorrentes é que se formularam as questões de pesquisa, apresentadas na próxima seção. Durante todos os dez módulos aparece apenas uma vez, nas seções explicativas, a definição de tira. Ela é conceituada pelo material didático como um texto “porque retrata a interação entre duas pessoas que trocam mensagens verbais numa dada situação e com um propósito específico”(Cardoso; Imayuki; Peres, 2006, p. 7). Essa é a definição de tira que os alunos recebem. Ao longo dos exercícios também aparecerá outro conceito: “A tirinha é um gênero textual que pode provocar o riso irônico de situações do cotidiano”. No primeiro trecho percebe-se uma definição da tira de acordo com o material didático. Segundo o trecho, tira é um texto que retrata uma interação entre duas pessoas que trocam mensagens verbais. Esta definição se mostra de maneira equivocada ao se observarem produções de tiras em que há somente uma pessoa enunciando, ou às vezes nenhuma ‘pessoa’ mas outros tipos de 44 personagens, e ainda momentos em que não trazem nenhum linguagem verbal, somente visual. Apesar de as tiras não serem o objeto de estudo é importante ressaltar que essa definição é vaga e equivocada. O material didático confunde o gênero: quem enuncia é confundido com a estrutura composicional desse, composto por personagens ou não. O único contato que o aluno possui com alguma explicação sobre esse gênero em específico ao longo dos três anos do ensino médio é com essa definição geral que confunde autoria, produção e gênero com personagem. Isso torna-se relevante pois analisaremos mais a frente a concepção destes gêneros apresentados pelos alunos. Na análise das tiras abaixo observaremos que há em um dos fascículos do ensino médio uma tira do personagem Hagar, o terrível, onde há só um personagem em uma tira enunciada não por personagens, como afirma o livro, mas pelo autor.. Além do mais há tiras, como esta a seguir, onde há outros personagens que não são necessariamente pessoas. Figura 7 - Tira de Alexandre Siqueira utilizada em exercício no material didático Fonte: Cardoso; Imayuki; Peres (2006, p. 23) A segunda definição de tira, presente em um dos exercícios, a denomina gênero textual. Isto confirma a problemática apresentada na introdução desse trabalho: a presença de gêneros discursivos nos materiais didáticos abordados não como gênero, mas como textos para a análise de estruturas linguísticas. A abordagem não se fundamenta no estudo discursivo, mas na tipologia textual. Esse problema pode ser exemplificado pelo exercício abaixo 45 Figura 8 - Tira do personagem Hagar, o terrível, utilizada em exercício no material didático Fonte: Cardoso; Imayuki; Peres (2006, p. 32) As questões atreladas às tiras acima foram as seguintes 1. Transcreva todos os substantivos da tira. 2. Anote, se houver, o determinante dos substantivos transcritos. 3. O efeito de sentido gerado pela tira é o humor resultante da resposta do espelho. Qual a ideia implícita na resposta dele? 4. Transcreva o núcleo de cada sintagma nominal sublinhado. a) O espelho sugeriu que Helga é uma mulher feia b) A afirmação do espelho de Helga assustou-a c) Aquela distinta esposa do Hagar encontrou uma resposta severa. Na atividade acima observamos esse privilégio do trabalho com as estruturas linguísticas em detrimento dos sentidos e valorações contidos nas tiras. A leitura proposta voltou-se à identificação e classificação de estruturas linguísticas. Antes mesmo de indagar o aluno sobre a compreensão da mensagem e dos sentidos ali contidos, já houve o questionamento quanto à estrutura gramatical. O gênero discursivo, naquela concepção bakhtiniana, de enunciado utilizado na interação social real, tornou-se um simples pretexto para o estudo de gramática. Há a pergunta três, onde o humor aparece questionado para ser interpretado. No entanto, esta questão aparece solta, no meio de outras cuja intenção é a forma linguística, sem preocupação alguma com o sentido e com os objetivos comunicativos da tira de humor. 46 Abaixo há outra tira presente em um exercício na seção destinada ao ensino de ortografia, utilizada com o único propósito de trabalhar o conteúdo curricular proposto no módulo Figura 9 - Tira de Pietro Antoglioni, utilizada em exercício no material didático Fonte: Cardoso; Imayuki; Peres (2006, p. 24) Na pergunta presente no material didático sobre a tira de humor acima, questionou-se aos alunos sobre o preenchimento correto das lacunas em branco existentes em algumas das palavras do exemplo anterior. Não houve nenhuma indagação neste momento sobre os sentidos provenientes da leitura da linguagem verbal e visual que compõe o gênero, bem como problematização da reação de sujeitos (expressa na linguagem visual) ante as palavras daquele que ocupa a posição social de um político. As ideologias e significados presentes na tira não foram trabalhados, pois o objetivo, ao trazê-la na seção “Ortografia”. foi exercitar os conhecimentos gramaticais sobre esse tema. Outro exercício trouxe a tira do personagem Hagar, o Terrível Figura 10 - Tira de Hagar, o terrível, utilizada em exercício no material didático Fonte: Cardoso; Imayuki; Peres (2006, p. 12) 47 Esse enunciado apareceu em um exercício dentro da seção destinada ao ensino de sinônimo e antônimo no material didático, ligado às seguintes perguntas: 1. Se você pudesse substituir por apenas duas palavras o seguinte trecho do primeiro quadrinho “... não sou tão jovem quanto eu era...”, sem que ele perdesse seu sentido básico, que palavras seriam essas? Sugestão de resposta: Sou velho 2. Faça o mesmo com o seguinte trecho do terceiro quadrinho “... não (sou) tão velho quanto ainda vou ser...”. Sugestão de resposta: Sou jovem 3. Em sua opinião a tirinha encerra uma mensagem otimista ou pessimista? Por que? 4. As palavras jovem e velho são antônimos perfeitos? Justifique sua resposta. Observa-se que mais uma vez a tira de humor, vinculada a uma atividade, aparece submetida a uma abordagem em que a leitura é proposta para a resolução de questões. Além disso, as perguntas voltam-se prioritariamente para o conteúdo gramatical trabalhado no módulo. Nas questões 1, 2 e 4, o principal objetivo foi testar os conhecimentos dos alunos quanto aos antônimos e sinônimos. O trabalho com a interpretação do discurso conti