Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP SYRO FERNANDO FENERICH MARASCA ARARAQUARA – SP 2019 SYRO FERNANDO FENERICH MARASCA RAUL SEIXAS: UM LEGADO CRÍTICO E CULTURAL Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado ao Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Ana Lúcia de Castro ARARAQUARA – SP 2019 Marasca, Syro Fernando Fenerich Raul Seixas: um legado crítico e cultural / Syro Fernando Fenerich Marasca. — 2019 40 f. ; 30 cm Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientadora: Profª. Drª. Ana Lúcia de Castro 1. História do Brasil. 2. Indústria fonográfica. 3. Movimento de contracultura. 4. Raul Seixas. I. Título. SYRO FERNANDO FENERICH MARASCA RAUL SEIXAS: UM LEGADO CRÍTICO E CULTURAL Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado ao Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Ana Lúcia de Castro Data da apresentação: 03 / 07 / 2019 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Professora Doutora Ana Lúcia de Castro Universidade Estadual Paulista de Araraquara. Membro Titular: Professora Doutora Maria Aparecida Chaves Jardim Universidade Estadual Paulista de Araraquara. Membro Titular: Professor Doutor Edmundo Antonio Peggion Universidade Estadual Paulista de Araraquara. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP - Campus de Araraquara “A arte existe porque a vida não basta.” (Ferreira Gullar) AGRADECIMENTOS Muitas pessoas, de diferentes maneiras, são co-responsáveis pelos possíveis méritos que esse trabalho possa ter no futuro. Na impossibilidade de me referir a todas, agradeço em primeiro lugar com muita sinceridade a minha professora e orientadora, Ana Lúcia de Castro. Em segundo lugar agradeço de coração aos meus pais, Izilda Fenerich Marasca e Francisco Carlos Marasca, que sempre me apoiaram em todas as minhas decisões e que me depositaram a responsabilidade de fazer deste mundo um lugar melhor para se viver. Agradeço com muita felicidade a minha amiga e professora de língua portuguesa Mara Lúcia Fabricio de Andrade, por ter feito com muito esmero a revisão gramatical deste trabalho. Agradeço também a minha amiga e professora de língua portuguesa Stephannie Campos Rodrigues dos Santos, por ter me ajudado na parte do ABSTRACT (tradução em inglês do resumo) dessa monografia. Agradeço com muita alegria a todos os meus amigos e colegas da UNESP e da cidade de Araraquara-SP, pelos bons momentos vividos, pelo companheirismo durante esse percurso e pelo encorajamento de cada um, carregado de boas energias nesta fase final da graduação do curso de Ciências Sociais. Agradeço também a todos os professores que eu tive na vida, que me possibilitaram inúmeros conhecimentos, ajudando-me na minha formação profissional e humana. Agradeço também aos funcionários da FCLAR, que contribuíram no sentido de compartilharem informações valiosas. Por fim, mas não menos importante, um agradecimento especial a Deus por sempre ter me acompanhado em todos os momentos da minha vida e por suas infinitas e sagradas bençãos de amor, misericórdia e prosperidade para que eu pudesse realizar 100% esse trabalho. A Deus, a todos e a todas, a minha eterna Gratidão! RESUMO Este trabalho consiste em fazer uma conexão entre a trajetória de vida e a obra musical do cantor e compositor baiano Raul Seixas, das décadas de 1970 e 1980, com a História do Brasil, no período da segunda metade do século XX. A partir da biografia do artista, perpassando sua trajetória pessoal de vida em conjunto com sua longa carreira musical, esse trabalho também irá tratar sobre as discussões teóricas pertinentes às áreas da História e da Sociologia, que se articulam com sua produção musical gerada nas décadas de 1970 e 1980. A presente pesquisa pode se tornar importante para se pensar o passado que a sociedade brasileira vivenciou na segunda metade do século XX e demonstrar a importância cultural que Raul Seixas gerou durante esse período. Palavras-chave: História do Brasil. Indústria fonográfica. Movimento de contracultura. Raul Seixas. ABSTRACT This paper consists in doing a link between the life trajectory and the musical work of the brazilian singer and songwriter Raul Seixas, of the 1970s and 1980s, with the Brazilian History context of the second half of the twentieth century. From the biography of the artist, taking into account his personal trajectory together with his long musical career, this paper will also deal with theoretic discussions relevants to the History and Sociology studies, which are articulated with his musical productions done in the period of the 1970s and 1980s. The present research may become important in order to think about the past lived by the brazilian society, in the latter half of the twentieth century, and to demonstrate the cultural importance that Raul Seixas brought forth in this period. Keywords: Brazilian History. Recording industry. Counterculture movement. Raul Seixas. SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................................................................10 CAPÍTULO 1 – RAUL SEIXAS: UMA OBRA, UMA VIDA.............................................. 12 CAPÍTULO 2 – O INÍCIO DA DITADURA MILITAR NA DÉCADA DE 1960 E A INTRODUÇÃO DO ROCK NO CENÁRIO MUSICAL BRASILEIRO.............................19 2.1. BREVE PANORAMA DO CONTEXTO HISTÓRICO, SOCIAL E POLÍTICO NO BRASIL NAS DÉCADAS DE 1960, 1970 E 1980.......................................................................................................................................................21 2.2. BREVE ANÁLISE DO CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO INTERNACIONAL: A GUERRA FRIA...............................................27 CAPÍTULO 3 – O CONCEITO MODERNO DE GERAÇÃO E O MOVIMENTO DE CONTRACULTURA NA DÉCADA DE 1960.........................................................................30 3.1. A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NO BRASIL NA DÉCADA DE 1970......................................................................33 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................... 37 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................... 38 10 INTRODUÇÃO O cantor e compositor baiano Raul Santos Seixas (1945-1989), objeto de estudo desta monografia, é considerado, segundo a crítica musical especializada, um dos pioneiros do rock no Brasil e possui no centro do seu trabalho artístico e musical características bastante ilustrativas do que vem a ser o movimento de contracultura gerado no início da década de 1960. O contexto político e social que envolveu a produção musical massiva de Raul Seixas caracteriza-se pelo período da Ditadura Militar por qual passava o Brasil de 1964 a 1985. Porém, apesar da repressão política ser exercida pelo governo militar, houve na década de 1970 um progresso econômico gerado pelo próprio Estado autoritário, que possibilitou como parte do Milagre econômico brasileiro (1969-1973), a consolidação de uma indústria fonográfica no país. Esse fenômeno, que ocorreu de forma inédita na História do Brasil, beneficiou não só o próprio Raul Seixas, mas outros artistas da época que estavam tentando conquistar espaço dentro da mídia e do mercado da música. A trajetória artística de Raul Seixas permite esse trabalho realizar uma análise desse processo, que envolve o plano cultural em consonância com essa consolidação da indústria fonográfica no Brasil. Além disso, gera possibilidades para se entender de que forma o rock foi introduzido dentro do cenário musical brasileiro. E possibilita discutir o debate moderno sobre o conceito de geração. O contexto internacional, no prisma histórico e político, também consegue ser analisado através da trajetória de vida de Raul Seixas. Situa-se no mesmo período de vivência do artista, o período da Guerra Fria (1945-1991), que agitou o mundo inteiro com a divisão geopolítica de dois grandes blocos: o bloco oriental, liderado pela U.R.S.S. (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e o bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos. Pretende-se, portanto, no primeiro capítulo, abordar a biografia de Raul Seixas desde sua infância na década de 1940 até sua morte ocorrida no final dos anos 80. O segundo capítulo realiza, com o suporte teórico do pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão, a discussão sobre o rock enquanto som universal e 11 introduzido no Brasil no final da década de 1960, e trata também do contexto histórico e político dessa mesma década sobre o início da Ditadura Militar no Brasil. O subcapítulo (2.1) pretende realizar, com a ajuda do instrumental teórico do historiador brasileiro Júlio José Chiavenato, um panorama mais amplo do contexto histórico, social e político das décadas posteriores que se seguiu a Ditadura Militar instaurada em 1964. O subcapítulo (2.2) pretende realizar, com o suporte teórico do historiador britânco Eric Hobsbawm, um panorama mais geral do contexto histórico e político do plano internacional, no intuito de explicar em linhas gerais o que foi a Guerra Fria. No terceiro capítulo, associam-se discussões teóricas abordadas pela área da Sociologia, por meio do conceito de geração e a descrição do que foi o movimento de contracultura surgido na década de 1960. No último capítulo (3.1), é analisado, com o instrumental teórico do cientista social Renato Ortiz, de que forma na década de 1970 a indústria fonográfica foi estabelecida no Brasil. 12 CAPÍTULO 1 – RAUL SEIXAS: UMA OBRA, UMA VIDA Há muito tempo atrás, na velha Bahia Eu imitava Little Richard e me contorcia As pessoas se afastavam pensando Que eu tava tendo um ataque de Epilepsia (de epilepsia). (“Rock 'n' Roll”, 1989) O cantor e compositor baiano Raul Santos Seixas (1945-1989), objeto de estudo desta pesquisa, teve sua identidade ligada ao comportamento rebelde do rock desde cedo, além de conseguir traduzir em sua obra musical as ideias e, consequentemente, os valores do movimento de contracultura. Durante a sua longa carreira musical, manifestou, por meio de suas músicas, propostas de libertação individual e coletiva, ao convocar os seus ouvintes para uma profunda reflexão sobre as questões existenciais, sociais e políticas de seu tempo. A preocupação de Raul Seixas estava em ir na contramão de um padrão estabelecido e propagar suas mensagens ao máximo de pessoas que fosse possível. Raul Seixas em vida procurou relativizar a ciência, a religião, os valores morais e sociais dominantes, buscou também tematizar em seu repertório musical várias questões, entre elas a loucura, a morte e também a suposta existência de discos voadores. Raul Seixas foi um artista que optou pelo rock devido às suas influências musicais vindas da infância, e teve o seu espaço conquistado no mercado da música e na mídia, reservando-lhe várias críticas a respeito de suas intenções. Raul Seixas ocupou o papel central de um ídolo rebelde dentro de sua época e, dessa forma, contestou os valores morais e sociais estabelecidos da sociedade de seu tempo, além disso, ele conseguiu construir em vida um grande público heterogêneo quanto às classes sociais e faixas etárias, graças ao seu trabalho artístico de fácil compreensão. A trajetória de vida de Raul Santos Seixas começa em 28 de junho de 1945 na cidade de Salvador, Bahia. Filho de uma família que integrava a classe média alta da 13 capital baiana, demonstrava desde muito cedo uma postura de questionamento e problematização sobre as questões da vida, da morte, sobre a experiência com o divino, entre outros assuntos de natureza filosófica, espiritual, moral e existencial. Esse comportamento contestador e questionador era atribuído exclusivamente à influência de seu pai, que o instigava a ler vários livros de ontologia, filosofia, lógica, metafísica, além das enciclopédias da época que tentavam de alguma forma explicar o mundo em sua totalidade. O depoimento que se segue, obtido através de uma entrevista concedida por Raul Seixas, revela esse comportamento. Quando eu era guri, lá na Bahia, música pra mim era uma coisa secundária. O que me preocupava mesmo eram os problemas da vida e da morte, o problema do homem, de onde vim, pra onde onde vou, o que é que eu estou fazendo aqui. O que eu queria mesmo era ser escritor. Desde pequeno eu fazia e vendia livros para o meu irmão menor, quatro anos mais moço que eu. Eram gibis incríveis pintados com lápis grossos. Tinha um personagem que aparecia em todas as histórias, um cientista louco. O nome dele era Mêlo, que na língua da gente queria dizer amalucado. Era parte de mim, o cara imaginativo, buscando respostas, o eu fantástico, viajando fora da lógica em uma maquinazinha em que só cabia um passageiro... Mêlo-eu (PASSOS (Org), 1990, p. 13). Necessário destacar também que nessa época Raul era vizinho e amigo de filhos de famílias americanas que trabalhavam para o consulado americano na cidade de Salvador. Devido a essa influência, Raul aprendeu facilmente a falar inglês e conseguiu assimilar e ouvir a novidade da época: o Rock N’Roll. Ele escutava dentro de seu quarto artistas e bandas de grande nome desse estilo musical, tais como: Little Richard, Jerry Lee Lewis, Chuck Berry, Eddie Cochran, Fats Domino, Chet Atkins, Buddy Holly, The Crickets, Bill Haley & His Comets, Elvis Presley, entre outros. O depoimento que se segue, obtido através de uma entrevista concedida por Raul Seixas, revela essa influência. Foi nesse contato que eu mergulhei no Rock’-n’-roll, como quem acha o caminho, aquele sonho maluco de ser cantor. O rock passou a ser todo um modo de ser, agir e pensar. Eu era o próprio rock. Eu era Presley, quando andava e penteava o topete. E era alvo de risos e gracinhas, claro. Eu tinha assumido uma maneira de vestir, falar, agir, que ninguém conhecia. Lá na Bahia, eu estava na frente de todos em matéria do que estava acontecendo no mundo, com relação à música. Claro que eu não tinha consciência da mudança 14 social toda que o rock implicava. Eu achava que os jovens iam dominar o mundo (PASSOS (Org), 1990, p. 43). Influenciado por esse estilo de música importado dos Estados Unidos, Raul tornou-se logo fã ardoroso de Elvis Presley, fundando aos 14 anos um fã-clube brasileiro do cantor (Elvis Rock Club). Raul era um aluno relapso (repetiu várias vezes a segunda série), apesar de muito inteligente e leitor voraz, rapidamente se cansou da escola decidindo trilhar a profissão de músico. Já com os seus 17 anos de idade, o cantor formou, em 1962, junto com os seus amigos de infância, a banda Relâmpagos do Rock, e com ela trilhou os caminhos do Rock N’Roll dentro dos palcos da Bahia. Depois de um tempo, o nome da banda foi trocado para The Panthers, e finalmente para Raulzito e os Panteras, contendo os integrantes: Mariano (baixo), Raul Santos Seixas (vocal e guitarra), Carlos Eládio (guitarra) e Carleba (bateria). Nessa fase da vida de Raul, mais conhecido como Raulzito, havia uma divisão musical dentro da cidade de Salvador: a própria banda de Raulzito que se apresentava no conhecido Cine Roma, e ao mesmo tempo os músicos Tom Zé, Gal Costa, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, que cantavam a Bossa Nova no afamado Teatro Vila Velha. O depoimento que se segue, obtido através de uma entrevista concedida por Raul Seixas, revela esse contexto. Nessa época, a Bossa Nova estava arretada em Salvador. E era uma guerra. De um lado, o Teatro Vila Velha, de outro, o Cinema Roma que era o templo rock, organizado por Waldir Serrão. A Bossa Nova significava ser nacionalista, brasileiro, eu me lembro perfeitamente. Gostar de rock era ser reacionário, entreguista, americanista. Eu era o chefe do rock em Salvador. Tanto que quando eu entrei na Faculdade de Direito, eu era superpichado, torto pelo pessoal do Diretório e olhado como idiotado rock, o entreguista (...) Eu não gostava de Bossa Nova. Tinha ódio de Bossa Nova (PASSOS (Org), 1990, p. 23). A banda de Raulzito conseguiu crescer e ser o maior sucesso da região para tal estilo de música, então de forma constante surgiram oportunidades para se fazer shows no interior do estado da Bahia, mediante a contratos assinados de antemão. O grande sucesso da banda acabou por chamar atenção do então cantor Jerry Adriani, a ponto da banda ser convidada a acompanhá-lo em seus shows na Bahia e em outros estados do Brasil. Aconteceu que a banda aceitou de bom grado o convite de Adriani e depois 15 aceitou também, em 1967, a ousada proposta de gravar um LP (Long-Play)1 intitulado Raulzito e os Panteras, o qual só foi lançado oficialmente em 1968 na cidade do Rio de Janeiro pela gravadora Odeon. Aconteceu que esse LP não conseguiu obter sucesso de vendas, pois na época a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália, tidas como movimentos musicais, dominavam a mídia e principalmente o mercado da música. Esse fracasso do LP trouxe incômodas e desagradáveis consequências para Raul: o quase divórcio da sua esposa norte americana, Edith Wisner, a perda do carro e do apartamento, e o retorno a Salvador, fazendo-o morar inevitavelmente na casa dos pais. Entre os anos de 1970 e 1972, Raul Seixas retorna para a cidade do Rio de Janeiro e se torna produtor musical da gravadora CBS (atual Sony Music), contratado por Evandro Ribeiro, que na época era o então diretor-presidente da gravadora. Nesse ponto, é necessário destacar o quanto de experiência musical Raul ganhou por estar envolvido na produção de vários artistas da época. O depoimento que se segue, obtido através de uma entrevista que Raul Seixas fez à Revista Amiga em 1982, revela esse crescimento musical do artista. Imagine bicho, que Jairo Pires havia saído para a Polygram e havia uma vaga para produtor. Quase não acreditei. Aí vupt, Rio de Janeiro de novo. Produzi Wanderléa, Jerry Adriani, Renato e seus Blue Caps. Fiz música para todo mundo. (...) Saquei iê-iê-iê, maxixe, baião, tudo. Peguei uma tremenda experiência musical, uma maneira de canalizar tudo isso. Um macete. Uma manha (Revista Amiga, 1982). Já em 1971, Raul produz o LP intitulado Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, o qual, na ocasião, foi gravado sem a autorização da diretoria da gravadora. O grupo de compositores era formado por Edy Star, Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Mirian Batucada, além da banda com vários bons músicos para acompanhá- los. Esse LP em especial foi considerado pela diretoria da gravadora “fora do normal”, e logo após o seu lançamento foi retirado de circulação do mercado da música por ordem da diretoria da gravadora. Depois desse acontecimento, dentre outras situações que ocasionaram diversos 1 O disco de vinil, conhecido simplesmente como vinil ou ainda Long Play (LP), é uma mídia desenvolvida no final da década de 1940 para a reprodução musical, que usa um material plástico chamado vinil (normalmente feito de PVC), usualmente de cor preta, que registra informações de áudio, que podem ser reproduzidas através de um toca-discos. 16 desentendimentos entre a diretoria da CBS e Raul Seixas, sua permanência enquanto produtor musical durou até 1972, quando decidiu se transferir para a gravadora RCA Victor. Quando Raulzito passou a ser Raul Seixas, sua nova busca foi se diferenciar dos movimentos musicais que estavam dominando mercado da música e a mídia, direcionando suas intenções para se destacar em meio a um conjunto de grandes músicos e artistas que estavam se destacando na época. Nesse novo momento de sua vida, já em uma nova gravadora para produzir as suas próprias músicas, Raul Seixas se inscreve no Festival Internacional da Canção de 1972, tendo duas de suas músicas classificadas. Com Eu sou eu nicuri é o diabo e Let me sing let me sing, Raul Seixas revela a sua ecleticidade musical, conseguindo juntar o rock com o baião, misturando o som de Elvis Presley com o de Luiz Gonzaga e toda sua influência musical adquirida na infância, mesclando dois ritmos agitados e distintos. Em 1973, já com 28 anos, Raul Seixas se transfere para a gravadora Philips e lança o seu primeiro LP, Krig-há Bandolo!, enquanto artista independente. O seu nome no meio artístico e sua existência enquanto pessoa já estava revelada no grande Festival Internacional, que ocorrera no ano anterior com as suas duas músicas classificadas, porém com esse novo trabalho lançado no mercado da música sua fama aumentou exponencialmente e seu nome passou a ser mais reconhecido dentro do meio musical. Nesse disco, estão músicas marcantes de sua carreira, como: Mosca na sopa, Metamorfose ambulante, Al Capone, Ouro de tolo, dentre outras. Com a mesma gravadora, Raul lançou na sequência o LP Gita (1974), depois Novo Aeon (1975) e Há dez mil anos atrás (1976). Sua produção musical foi frenética e abundante na década de 1970, conseguindo emplacar vários hits2 nas paradas de sucesso e concorrer de forma legítima com os outros artistas da época no mercado da música. Nesse sentido, Raul Seixas emergiu com muita força enquanto artista independente nesse período, se assumindo como um cantor de rock e se lançando como um rocker para o meio musical. No final da década de 1970 para o começo da década de 1980, Raul Seixas continuou com outras gravadoras ao seu lado, porém o seu ritmo de lançamentos de LPs 2 Hit é um termo da língua inglesa que adjetiva uma canção que se tornou muito popular. Embora por vezes seja utilizado para descrever qualquer canção amplamente reproduzida ou campeã de vendas, o termo Hit é normalmente reservado para uma canção que aparece constantemente em uma parada musical através do rádio ou em estatísticas de vendas comercialmente significativas. 17 foi diminuído devido a alguns motivos de ordem profissional e pessoal. Com a gravadora WEA (Warner Music Brasil), Raul lançou na sequência o LP O dia em que a terra parou (1977), depois Mata Virgem (1978) e Por quem os sinos dobram (1979). Logo após, com a gravadora CBS, lançou o LP Abre-te sésamo (1980). A seguir, Sylvio Passos, fundador e presidente do Raul Rock Club, o fã-clube oficial de Raul Seixas, explica em linhas gerais o que se passou nesse momento conturbado da vida do artista. Foi o fim da melhor fase de Raul, herói que manteve a chama da resistência roqueira nos tempos de caretice institucionalizada. Assim como Chico Buarque, ele parece trabalhar melhor sob pressão, combatendo um inimigo visível e poderoso. Ao se findarem os anos Médici, sua produção deu a impressão de se tornar algo frouxo e repetitivo. O público também já não era o mesmo: a aguerrida geração de 1968 afinal trocava os ponchos por ternos, aderindo ao odiado sistema. E a moçada na faixa dos vinte anos se constituía nos filhos espirituais da ditadura, tendo passado a etapa decisiva de sua formação na depressiva década de 1970. Além de já ter dito praticamente tudo que tinha pra dizer, Raul também não achava mais pra quem dar seu recado (PASSOS (Org), 1990, p. 51). Raul Seixas continuou com o Estúdio Eldorado lançando o LP Raul Seixas (1983), depois mudou-se para a gravadora Som Livre e produziu o LP Metrô Linha 743 (1984). Ainda na década de 1980, fez o LP A pedra do gênesis (1988) com a gravadora Copacabana e, por fim, lançou pela gravadora WEA o LP A panela do diabo (1989). Ainda na década de 1980, Raul Seixas se encontrava com sérios problemas de saúde, desde sua diabetes desregulada a crises de pancreatite aguda ocasionadas pelo excessivo consumo de álcool, um velho vício que praticamente o acompanhou a vida inteira. Em 1988, ele iniciou a parceria musical com o baiano e fã Marcelo Nova, vocalista da banda Camisa de Vênus. Os dois fizeram vários shows em diversas cidades nos quatro cantos do Brasil e também compuseram juntos várias músicas. Essa parceria musical foi a última de Raul Seixas, pois durante a sua longa carreira também formou parcerias com outras pessoas importantes, tais como Cláudio Roberto, Paulo Coelho, Kika Seixas, Oscar Rasmussen, dentre outros. Nessa última parceria com Marcelo Nova, Raul lançou pela gravadora WEA o LP A panela do Diabo (1989). Esse LP foi lançado para o mercado da música pela gravadora dois dias antes de seu falecimento que veio acontecer no dia 21 de agosto de 18 1989 na cidade de São Paulo. Foi numa segunda-feira, na parte da manhã. Foi a empregada de Raul que chegou ao seu apartamento que ficava na zona central de São Paulo, quando o encontrou morto em sua cama. Ela imediatamente entrou em contato com a família e o médico do artista. Raul Seixas havia falecido um pouco antes da chegada da empregada ao prédio, pois foi uma parada cardíaca que o atingiu na madrugada daquele dia. Essa notícia se espalhou muito rapidamente e logo as emissoras de TV e de rádio anunciaram o fato ocorrido. A morte de Raul Seixas, juntamente com o seu velório, foram amplamente divulgados pela mídia da época. O corpo foi sepultado no dia seguinte no cemitério Jardim da Saudade, em Salvador, propriamente na sua cidade natal onde viveu sua infância e adolescência. Depois de tantos anos desde seu falecimento, é necessário destacar um grande aumento de pessoas interessadas em sua obra e vida, e também sublinhar o aumento significativo de nobres homenagens ao seu nome tanto no Brasil quanto no mundo. 19 CAPÍTULO 2 – O INÍCIO DA DITADURA MILITAR NA DÉCADA DE 1960 E A INTRODUÇÃO DO ROCK NO CENÁRIO MUSICAL BRASILEIRO O pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão, no seu livro História social da música popular brasileira (1990), faz uma reconstrução histórica da música popular na década de 1960 e identifica de que forma o rock norte americano ocupou o seu lugar no cenário musical brasileiro. Em termos históricos, Tinhorão aponta que, com o acirramento da Guerra Fria nas décadas de 1940 e 1950, devido às atividades bélicas do período, os jovens da década de 1960 que integravam a elite e as novas camadas da classe média emergente do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos identificaram no rock aquilo que pensavam e sentiam sobre toda a situação. Ora, como uma das faces do inconformismo desses jovens da classe média dos países mais ricos do mundo capitalista foi a adesão, na área da música popular, a um ritmo negro-americano que expressava sua marginalidade dentro da mesma sociedade posta em questão, foi sob a inspiração dessa música – o rhythm and blues transformado em rock’n roll pelos brancos revoltados – que se instituiu, a partir da década de 1950, o padrão sonoro destinado a configurar uma música particular do inconformismo jovem (TINHORÃO, 1990, p. 266). Segundo Tinhorão, a partir do movimento musical Tropicalismo, iniciado em 1967, houve uma real tentativa de resgatar a linha evolutiva da música brasileira no mesmo esforço em que João Gilberto e o pessoal da Bossa Nova fizeram no final da década de 1950. Em termos mais amplos, essa tentativa, segundo Tinhorão, era entendida por uma proposta do Tropicalismo em assimilar no seu vocabulário a linguagem universal do rock, da mesma forma que a Bossa Nova fez nos anos 50 quando incorporou no seu âmago a linguagem universal do jazz. Assim, enquanto os criadores de música de linha nacionalista, politicamente preocupados com a invasão do internacionalismo programado pelas multinacionais, reagiam usando recursos da 20 bossa nova (não mais americanizada) na procura de um tipo de canção baseada em sons da realidade rural (Edu Lobo, Vandré) ou da vida popular urbana (Chico Buarque), os baianos ligados ao topicalismo fariam exatamente o oposto. Alinhados com o pensamento expresso por seu líder Caetano Veloso, os tropicalistas renunciaram a qualquer tomada de posição político-ideológica de resistência e, partindo da realidade de dominação do rock americano (então enriquecido pela contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental, acabaram chegando à tese que repetia no plano político-econômico. Ou seja, a tese da conquista da modernidade pelo simples alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no país (TINHORÃO, 1990, p. 258- 259). Nesse sentido, à medida que o Tropicalismo ganhava espaço na mídia (rádio e televisão) no fim da década de 1960, o rock norte americano se adensava dentro do inconsciente coletivo da época. Esse novo produto de importação conseguiu atingir um público jovem que estava emergindo nesse período dentro do Brasil. E a prova estaria em que, mesmo proibidos pela incompreensão incompetente do poder militar – que interrompeu a trajetória do movimento com a prisão de seus líderes, Caetano Veloso e Gilberto Gil – o tropicalismo não deixou, ainda assim, de cumprir seu papel de vanguarda do governo de 1964 na área da música popular: rompidas as resistências da parte politicamente consciente da classe média universitária, que tentava a defesa de uma música de matrizes brasileiras, as guitarras do som universal puderam completar sua ocupação do mercado brasileiro. E, assim, a partir da década de 1970, em lugar do produto musical de exportação de nível internacional prometido pelos baianos com a retomada da linha evolutiva, instituiu-se nos meios de comunicação e da indústria do lazer, definitivamente, a era do rock (TINHORÃO, 1990, p. 260). Paralelamente a esse fenômeno do plano musical, o contexto político brasileiro dos anos 60 iniciava-se no ano de 1960 com a eleição democrática de Jânio da Silva Quadros, acompanhado na vice-presidência por João Goulart. Sua posse, a primeira em Brasília, ocorreu no dia 31 de janeiro de 1961. Jânio, uma vez no poder, estimulou o restabelecimento do equilíbrio financeiro do país e instaurou várias investigações para apurar sérias denúncias de corrupção administrativa, além de sancionar diversas medidas anti-inflacionárias. Sua política externa (abertura comercial e diplomática), incluindo sua particular 21 inclinação em defender a Revolução Cubana (1959), acabou gerando uma forte reação de vários setores da sociedade brasileira contra ele. Porém, após sete meses de governo, Jânio renunciou ao cargo de presidente, surpreendendo toda a nação. Essa sua decisão nunca foi totalmente esclarecida. Na ausência do vice-presidente, João Goulart, que se encontrava visitando a República Popular da China, Ranieri Mazzilli, o então presidente da Câmara dos Deputados, assumia o posto. Logo após esse acontecimento e várias turbulências políticas que envolveram a vida nacional, João Goulart tomou posse da presidência em 1961, em meio a um cenário político desfavorável a sua chegada no Palácio do Planalto. Seu primeiro período de governo representou uma época de manobras e acordos políticos para afirmar a plenitude dos seus poderes presidenciais. Nesse sentido, procurou conquistar a confiança de grupos militares para conseguir apoio e legitimidade no processo democrático. Porém, ao mesmo tempo tentava simpatizar com a esquerda através das chamadas Reformas de base. Esse jogo político tanto com a esquerda quanto com os militares revelou-se perigoso, pelo fato de haver uma multiplicidade de pressão e interesses dos dois lados. A partir dessa situação, foi gerada uma crise política muito acirrada e no dia 31 de março de 1964, as Forças Armadas depuseram o presidente Goulart, iniciando dessa maneira a Ditadura Militar que duraria até o dia 15 de março de 1985. 2.1. Breve panorama do contexto histórico, social e político no Brasil nas décadas de 1960, 1970 e 1980 O historiador brasileiro Júlio José Chiavenato3 no seu livro O golpe de 1964 e a ditadura militar (1994), investiga de que forma transcorreu a Ditadura Militar no Brasil. Entre 1964 e 1985, a Ditadura Militar foi uma realidade para o Brasil e esse período, segundo Chiavenato, foi um momento muito difícil para a nação, pois houve várias distorções de natureza jurídica, ética, política, social que atingiram profundamente e de forma nociva o caráter brasileiro. O regime militar fez, segundo o historiador, com que a tortura se manifestasse como prática comum e também política, e permitiu de forma 3 Júlio José Chiavenato (Pitangueiras-SP, 3 de janeiro de 1939) é escritor e historiador por profissão. De formação autodidata, escreveu vários livros tendo como exemplo máximo o livro Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, lançado em 1979, que chegou a ficar entre os livros mais vendidos da época no Brasil. 22 leviana que a corrupção fosse institucionalizada no país. A história oficial da Ditadura Militar foi escrita pelos militares que estavam no poder. Ou seja, há um universo de documentos, registros, dossiês que tornam “legítima” a história desse acontecimento no país, além de afirmar piamente o teor revolucionário do dia do golpe civil e militar em 1964. O golpe civil e militar de 1964 que ocorreu no dia 31 de março não pode ser considerado uma revolução que ocorreu no Brasil, segundo Chiavenato. Esse acontecimento, para o historiador, foi um retrocesso de ordem política e histórica que gerou muitos prejuízos para a nação. Esse evento revelou um sintoma clássico da tradição brasileira. Nossas “revoluções” – desde a queda da Monarquia – nunca pretenderam mudar o regime político e, menos ainda, apear uma classe do poder. As características “revolucionárias” da pequena burguesia mostram-se claramente: trocam-se os homens ou frágeis partidos que estão no governo, por meio de golpes palacianos e mesmo da luta armada, mas nunca se altera o quadro institucional. As nossas “revoluções” – na verdade, “revoluções” da pequena burguesia, em geral a reboque de forças mais altas que manobram os cordéis – acontecem sempre em nome da legalidade. Mudam-se os homens, mas não se toca na estrutura de poder. Nossas “revoluções” são a garantia às classes dominantes de que, por mais que se mude, tudo fica como está (CHIAVENATO, 1994, p. 8). Nesse sentido, com os militares no poder, inicia-se 21 anos da chamada Ditadura Militar, definida pela eliminação dos antigos partidos políticos fixados no poder e pelas restrições aos direitos e às garantias individuais. O novo regime manteve algumas instituições democráticas em funcionamento: o Congresso Nacional, por exemplo, restrito de seus privilégios tornou-se um mediador das decisões dos seus governos militares, e as eleições, nos níveis de estados e municípios, se processariam dentro das variadas restrições e regras, que se estabeleceriam a partir de 1964. A Ditadura Militar buscou sua legitimação através de uma legislação de exceção, ou seja, uma jurisprudência chamada de Atos Institucionais, que estaria acima da Carta Magna e da Constituição de 1967, a qual mais tarde seria alterada pela emenda constitucional de 1969. O primeiro Ato Institucional formulado pelo alto escalão dos militares foi 23 realizado no próprio ano de 1964, elegendo para a Presidência da República o chefe do Estado-Maior do exército, o então marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que tomou posse em 15 de abril de 1964 e permaneceu no governo até o ano de 1969. Em seguida, a ala radical do governo que era chamada de Linha-dura influenciou o presidente militar Castelo Branco a promulgar o Ato Institucional Número 2, em 27 de outubro de 1965, que eliminava os partidos políticos. Com esse acontecimento, houve a respectiva recomposição dos partidos, constituindo-se dois partidos políticos: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), sendo o primeiro da oposição e o segundo governista (situação). E a esse respeito é necessário pontuar que esses dois partidos na realidade fariam o papel de oposição e situação consentida. Logo após, em 15 de fevereiro de 1966, foi promulgado o Ato Institucional Número 3, que definiu a regulação das eleições indiretas para o cargo das Assembleias Legislativas e para o governo de 11 Estados brasileiros. Em janeiro de 1967, a nova Constituição Federal foi promulgada a partir do Ato Institucional Número 4. Nela mantinham-se o presidencialismo e o federalismo com eleições indiretas para presidente e vice-presidente. Porém, essa nova Constituição permitia ao presidente: decretar o recesso do Congresso; cassar mandatos de deputados federais, senadores, governadores, prefeitos etc., e suspender os seus direitos políticos; demitir funcionários civis e militares sem direito de defesa; decretar estado de sítio sem consultar previamente o Congresso; realizar intervenção federal nos Estados para evitar agitações intensas e para se garantir os respeitos às leis; afastar professores e cientistas universitários dos seus respectivos cargos. Em 1968, houve não só no Brasil, mas no mundo, violentas agitações estudantis que eclodiram na Europa, particularmente na França. Durante esse ano no Brasil, no então governo do presidente militar Costa e Silva (1967-1969), emergiram diversas críticas à Ditadura Militar. Nesse sentido, as forças de resistência e de oposição se organizaram em grandes manifestações que encheram as ruas das principais cidades do país. A famosa Passeata dos cem mil, realizada na cidade do Rio de Janeiro no dia 26 de junho, revelava o descrédito dos cidadãos comuns à permanência dos militares no poder. 24 A conduta radicalmente contrária dos líderes políticos da oposição, aliada às “vozes” das ruas diante das medidas propostas pelo poder Executivo para conter o crescimento da crise interna, fez com que o governo militar reforçasse o seu poder de mando, através do Ato Institucional Número 5 (AI-5), promulgado no dia 13 de dezembro daquele mesmo ano. Ao “perder a identidade”, os militares subverteram o conceito de nacionalidade. Adotaram uma teoria de segurança nacional que ditou a sua ideologia política. Essa ideologia acima da nação, explica a conduta dos militares. Após a tomada do poder, eles desprezaram os políticos, menosprezaram as instituições (Congresso, Judiciário etc.) e instalaram a “sua” ditadura. Mas a ditadura perdeu rapidamente a “pureza original” degenerando-se em um sistema repressivo (CHIAVENATO, 1994, p. 70). Segundo Chiavenato, com o AI-5 em vigor, o Congresso Nacional foi fechado indeterminadamente e mais de 70 deputados federais foram cassados com os seus direitos políticos abolidos. Além disso, intensificou-se a repressão e a censura à imprensa. Nesse momento, qualquer oposição ou resistência real tornou-se impossível, segundo o historiador, pois, diferente dos outros atos, o AI-5 não tinha prazo de validade, o que equivale dizer que a Ditadura Militar a partir daquele momento assumia- se eterna. Estado e burocracia estavam coesos. Isso significa que o governo militar assimilou a máquina burocrática, em todos os seus escalões. Daí por que “ninguém escapou” da repressão ideológica e porque os escândalos de corrupção do governo militar permaneceram tão eficientemente camuflados durante anos (CHIAVENATO, 1994, p. 79). Necessário destacar que, antes do AI-5, desde 1964 já havia muita repressão no cotidiano nacional e que a violência militar se excedia em várias ações de natureza sórdida. Porém, a partir de 1969, com o AI-5 em vigência, foi institucionalizada a tortura, pois nesse período foram intensificadas as guerrilhas urbanas junto com os assaltos a bancos realizados por grupos de esquerda. Desse modo, houve uma organização racional e sistemática por parte dos militares para o uso excessivo da repressão. 25 Durante a década de 1970, o Brasil vivenciou o acirramento da Ditadura Militar até o ano de 1974. O golpe civil e militar que fora desencadeado em 1964 tinha inicialmente um caráter provisório, porém aos poucos foi se desenvolvendo em um regime político ditatorial que restringiu as liberdades individuais. A sociedade brasileira vivia desde 1964 o peso de uma ditadura militar imposta para consolidar a integração forçada do país na divisão interacional da economia, sob a égide dos Estados Unidos e controle do FMI, essa gratuidade da insistência em cutucar o Poder com a vara curta das canções de protesto acabou determinando em 1968 a reação das autoridades sob forma de maior repressão e reforçamento da censura (levando compositores como Chico Buarque e Geraldo Vandré a sair do país, e outros a serem presos e expulsos como Gilberto Gil e Caetano Veloso (TINHORÃO, 1990, p. 253). Paralelamente, o Brasil nessa década viu o seu desenvolvimento econômico despontar por consequência de uma política econômica lançada pelo então presidente militar Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Dessa forma, a Ditadura Militar procurou estabelecer uma legitimação para sua permanência através de grandes realizações econômicas. Nesse sentido, seguiu-se o Milagre econômico brasileiro (1969-1973), no qual a economia brasileira cresceu a uma média anual de 11% e a inflação estabilizou-se em torno de 20% ao ano, isso tudo depois de um período anterior marcado pela necessidade de estabilização inflacionária e por ajustes macroeconômicos a se fazer. Em 1973, a economia superaquecida seria abalada pelo primeiro choque do petróleo. A decisão estratégica tomada pelo grupo que assumiria o poder em 1974 sob o comando do general Ernesto Geisel foi a de reagir ao ambiente adverso aprofundando a política de “fuga para frente” e procurando implementar um programa de substituições de importações que completasse a estrutura industrial e diminuísse a dependência dos insumos importados. Tal opção garantiu taxas de crescimento elevadas em torno de 6 a 7% ao ano, ainda que gerasse também um impressionante e problemático aumento da participação estatal nos investimentos às custas de um crescente endividamento externo (LAHUERTA, 2003, p. 20). Isto posto, no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) foi elaborado o “Programa de aperfeiçoamento do regime democrático”, que de forma lenta e gradual 26 possibilitaria a criação de novos partidos políticos e a participação representativa dos integrantes da sociedade civil em todos os níveis de decisão do Estado. Tal estratégia contribuiu, paradoxalmente, para que se fosse possível a retomada da democracia e o restabelecimento de um governo civil em 1985. No governo do general João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985), o projeto de “Abertura democrática” foi realizado paulatinamente e, dessa maneira, uma reforma partidária foi realizada no Congresso, extinguindo o bipartidarismo no país, possibilitando a formação de novos partidos políticos. A Lei da Anistia, em 1979, também foi aprovada no Congresso, permitindo a volta ao país milhares de exilados políticos que foram banidos pela Ditadura Militar, porém a anistia também beneficiaria todos os suspeitos de tortura, assassinatos e prisões ilegais. Além disso, em 1983-1984, ocorreu o famoso movimento civil Diretas Já em que a sociedade brasileira reivindicou nas ruas de todo o país o direito por eleições presidenciais diretas. Tal acontecimento político, exercido ativamente por cidadãos comuns em todo território nacional, representou a aversão que a sociedade civil tinha da Ditadura Militar, e sua crença no restabelecimento da vida democrática no cotidiano nacional. Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves, candidato das oposições à Presidência da República, derrotou Paulo Maluf, o candidato do governo, dentro do próprio Colégio Eleitoral. Eleito presidente da República, Tancredo Neves não chegou a tomar posse, vindo a falecer em 21 de abril de 1985. Nesse momento, o vice-presidente José Sarney assumiu interinamente a Presidência da República e, com a morte de Tancredo, tornou-se presidente efetivo. Em 1985, com o fim da Ditadura Militar, o Brasil começa um novo capítulo de sua História chamado de Nova República. Com a redemocratização do país iniciada nesse ano, os direitos, as liberdades e as garantias individuais foram restabelecidas na medida do possível, e uma nova Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, assegurou várias e futuras conquistas sociais para a sociedade brasileira. 27 2.2. Breve análise do contexto histórico e político internacional: a Guerra Fria O historiador britânico Eric Hobsbawm no seu livro A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991 (1995), faz uma reconstrução histórica do século XX através do prisma internacional. Segundo Hobsbawm, ao findar a Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), a Europa estava desolada, com pouquíssimos recursos financeiros para recuperar rapidamente sua economia e resolver os seus urgentes problemas sociais ocasionados pelo fim da guerra. O mundo pelo prisma geopolítico havia sido dividido em dois grandes blocos. O bloco oriental, liderado pela U.R.S.S. (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), exercendo a hegemonia ideológica socialista, e o bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos, exercendo a hegemonia capitalista. Os Estados Unidos vivem sob o sistema capitalista, baseado na propriedade privada, na democracia multipartidária e representativa, na busca do lucro, na divisão de classes sociais e na crença do poder do indivíduo para criar a vida em sociedade. Já a antiga União Soviética vivia sob o socialismo, baseado no regime do partido único, na propriedade estatal, na não existência do lucro e das classes sociais, e na crença da coletividade como geradora da vida em sociedade. Logo após a famosa conferência de Potsdam (1945) na Alemanha, o mundo viu emergir dois blocos de influência liderados por dois países que se revelavam como potências e demonstravam expandir-se econômica e politicamente. Nesse sentido, se teve o início a chamada Guerra Fria que durou até a dissolução da U.R.S.S. no ano de 1991. O termo Guerra Fria foi denominado para caracterizar o estado de constante hostilidade nas relações internacionais e diplomáticas entre os dois países, sem assumir a forma de conflito aberto ou luta armada. As origens da Guerra Fria podem ser encontradas no final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) quando, na Rússia, ocorreu a Revolução Socialista (1917), e os Estados Unidos despontavam como grande potência. Nessa época, surgiu um clima de desconfiança no ocidente com a possível expansão do socialismo, que poderia vir a se chocar com os interesses capitalistas. Mas foi com o término da Segunda Guerra Mundial que o antagonismo entre capitalismo e socialismo se acentuou. 28 A peculiaridade da Guerra Fria era a de que, em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra mundial. Mais que isso: apesar da retórica apocalíptica de ambos os lados, mas sobretudo do lado americano, os governos das duas potências aceitaram a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial, que equivalia a um equilíbrio de poder desigual, mas não contestado em sua essência. A URSS controlava uma parte do globo, ou sobre ela exercia predominantemente influência – a zona ocupada pelo Exército Vermelho e/ou outras Forças Armadas comunistas no término da guerra – e não tentava ampliá-la com o uso de força militar. Os EUA exerciam controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia imperial das antigas potências coloniais. Em troca, não intervinha na zona aceita de hegemonia soviética (HOBSBAWM, 1995, p. 224). A partir de então, os dois países passaram à busca do fortalecimento econômico, ideológico, político e militar próprios e de suas grandes áreas de influência. Em 1948, os Estados Unidos deram início à reconstrução financeira da Europa, através do Plano Marshall. Em contrapartida, a União Soviética, em 1949, juntamente com outros países do leste europeu, criou o COMECOM (Conselho de Assistência Econômica Mútua), destinado a promover a autossuficiência econômica do bloco socialista. Após a criação dos planos de ajuda econômica, os blocos passaram a constituir alianças político-militares, visando às suas respectivas defesas através da demonstração de suas capacidades bélicas. Em 1949, foi criada a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), formada pelos Estados Unidos e os países da Europa ocidental, tais como Inglaterra, França, Bélgica, Itália, Alemanha Ocidental, Portugal, Dinamarca, Turquia e Grécia. Em 1955, foi firmado o Pacto de Varsóvia, formado pela União Soviética e os países da Europa Oriental, tais como Albânia, Romênia, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Polônia e Bulgária. O primeiro confronto declarado entre as duas potências ocorreu na trágica Guerra da Coreia (1950-1953), quando a Coreia do Norte, com ajuda militar soviética, invadiu a Coreia do Sul, apoiada militarmente pelos Estados Unidos. Em 1953, com o término da guerra, a Coreia permaneceu dividida entre o Norte e o Sul, mantendo as influências soviética e norte-americana, respectivamente. 29 Os dois lados viram-se assim comprometidos com uma insana corrida armamentista para mútua destruição, e com o tipo de generais e intelectuais nucleares cuja profissão exigia que não percebessem essa insanidade. Os dois também se viram comprometidos com o que o presidente em fim de mandato, Eisenhower, militar moderado da velha escola que se via presidindo essa descida à loucura sem ser exatamente contaminado por ela, chamou de “complexo industrial-militar”, ou seja, o crescimento cada vez maior de homens e recursos que viviam da preparação da guerra. Mais do que nunca, esse era um interesse estabelecido em tempos de paz estável entre as potências. Como era de se esperar, os dois complexos industrial-militares eram estimulados por seus governos a usar sua capacidade excedente para atrair e armar aliados e clientes, e, ao mesmo tempo, conquistar lucrativos mercados de exportação, enquanto reservavam apenas para si os armamentos mais atualizados e, claro suas armas nucleares. Pois na prática as superpotências mantiveram seu monopólio nuclear (HOBSBAWM, 1995, p. 233). A partir do começo da década de 1960, as duas potências com o domínio da energia nuclear (fabricação de armas atômicas), iniciaram uma fase de relativa coexistência pacífica, mesclada por algumas crises e momentos críticos, mas que não levaram a um conflito direto entre os dois países. O fim da Guerra Fria e o nascimento da Nova Ordem Internacional ocorreu no ano de 1989, com a simbólica queda do muro de Berlim, juntamente com a dissolução da U.R.S.S. em 1991. 30 CAPÍTULO 3 – O CONCEITO MODERNO DE GERAÇÃO E O MOVIMENTO DE CONTRACULTURA NA DÉCADA DE 1960 Para recuperar o debate moderno sobre o conceito de geração, é necessário retomar a discussão intelectual que o sociólogo húngaro Karl Mannheim propôs sobre esse conceito em seu livro O problema sociológico das gerações, de 1952. O objetivo central nesta obra foi colocar uma determinada geração sobre o processo histórico- social em relação às bases existenciais e sociais do conhecimento. Ou seja, a geração, neste estudo pormenorizado, pode ser considerada o resultado de mudanças sociais ou de descontinuidades históricas. Nesse sentido, muito além da data de nascimento, há um compartilhamento de jovens da mesma idade/classe de parte de um processo histórico. Mas, para além dessa concepção histórica, existe também a noção de geração que está atribuída ao sociólogo inglês Philip Abrams, que de certa forma expandiu o conceito dos limites que Mannheim havia fixado. Abrams conseguiu relacionar esse conceito à noção de identidade no seu livro Sociologia Histórica, de 1982. Logo em seguida, uniu a relação entre o tempo social e o tempo individual, pontuando sua vinculação aos registros históricos. Dessa forma, o sentido sociológico expressado por esse autor para o conceito de geração pode ser entendido como um período de tempo no qual a identidade é construída a partir de significados e recursos que estão socialmente e historicamente disponíveis. Isto posto, as novas gerações criam sempre novas possibilidades e identidades para sua ação. É necessário notar que tanto para Mannheim quanto para Abrams as descontinuidades históricas de uma época irão traçar os limites do início e do fim de uma geração. No epicentro da definição de novas gerações e suas respectivas identidades sociais, o tempo histórico-social decodificado em processos de mudanças produz o posterior e o anterior a elas. Juntando as definições de geração desses dois sociólogos e de mais outros pensadores que ao longo da história do pensamento também se dedicaram a refletir sobre esse conceito, chegou-se a um consenso. 31 O sentido mais plenamente sociológico, ou macrossociológico – geração, propriamente dita – designa um coletivo de indivíduos que vivem em determinada época ou tempo social, têm aproximadamente a mesma idade e compartilham alguma forma de experiência ou vivência, ou têm a potencialidade para tal (MOTTA, 2010, p. 229). A partir dessa perspectiva definida e moderna no debate sobre o conceito de geração, o presente trabalho irá analisar especificamente a categoria sociológica de geração que Raul Seixas vivenciou: a geração Baby Boomer. Os países dessa geração, incluindo o Brasil, experimentaram um relativo aumento de natalidade, fenômeno esse que ficou conhecido logo após a Segunda Guerra Mundial como Baby Boom. Raul Seixas enquanto indivíduo está naturalmente inserido dentro da geração Baby Boomer (nascidos entre 1943 e 1965) ou a chamada geração 68, pois ele nasceu em 1945 na cidade de Salvador, na Bahia. A geração de 68, da qual Raul Seixas fez parte, foi influenciada fortemente pela revolução cultural ou também conhecida como movimento de contracultura durante a década de 1960. E é importante salientar que os jovens dessa geração eram muito politizados e influenciados por um número muito grande de leituras de cunho revolucionário. Formada praticamente na base da leitura, do rádio e do jornal impresso, essa geração não teve muita influência da televisão. Na verdade, a geração de 68 teve com a linguagem escrita uma cumplicidade que a televisão não permitiria depois. O boom editorial do ano indica um tipo de demanda que passava por algumas inevitáveis futilidades, mas se detinha de maneira especial em livros de densas ideias e em refinadas obras de ficção. Nas listas de best-sellers, convivem nomes como Marx, Mao, Guevara, Debray, Lukács, Gramsci, James Joyce, Herman Hesse, Norman Mailer e, claro, Marcuse (VENTURA, 2008, p. 55). O tempo social-histórico e característico dessa geração à qual Raul Seixas pertenceu remete ao movimento de contracultura, que se originou no início da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos e se prolongou até o fim dela. Foi um momento histórico em que grande parte da juventude da época começou a projetar uma cultura própria, que renegava a tecnocracia do ocidente e a sociedade de consumo ligada ao sistema capitalista. O depoimento que se segue obtido através de uma entrevista que 32 Raul Seixas fez à Revista Amiga em 1982, revela esse contexto. A barra da minha geração é fogo, bicho. Sou do pós-guerra. Nasci quando a bomba atômica caiu em Hiroshima. A minha geração eu costumo chamar de “geração sanduíche”, hoje. Tá no meio, bicho. Crash! Geração espremida. Sofremos pra burro sabe? Juntamos a caretice com a loucura (Revista Amiga, 1982) Nesse sentido, há uma juventude instruída para o campo da ação delineado pela aversão à cultura oficial. Com esse movimento, os jovens tentaram, em última medida, romper com os padrões tradicionais da época em relação à família, governo, Estado, profissão, casamento etc. Esse movimento de contracultura utilizou na época meios de comunicação de massa, como a televisão, o rádio, o jornal impresso, as revistas para invadir a consciência, o comportamento e os valores no plano das ideias, transformando-os radicalmente em suas exigências idealísticas. Logo, um ideário de propagação e contestação para se questionar os valores centrais e fixos fundamentados na cultura ocidental. As origens do termo contracultura estão ligadas à imprensa norte-americana que o gerou nos fins da década de 1960. Além disso, suas mais variadas formas de expressão – o orientalismo, a filosofia hippie com o lema “paz e amor”, o Flower Power, o Black Power, as experiências psicodélicas – emanavam um sentimento de revolta contra a sociedade capitalista ocidental, bem como uma total rejeição aos valores estabelecidos pela cultura hegemônica. A contracultura muitas vezes fora referida por uma busca individual por conhecimento ou um escapismo individualista, porém essa nova forma alternativa de conceber a realidade ofereceu novas formas de sociabilidade para aquela juventude e uma inovadora maneira de se realizar política. Não apenas nos Estados Unidos, mas em todos os lugares onde floresceu, a cultura jovem dos anos 60 foi exatamente sensível e simpática a toda e qualquer movimentação de grupos étnicos ou culturais que se visse nessa posição de marginalidade ou exclusão diante das vantagens e promessas da sociedade ocidental. Além disso, o tipo de luta que estes grupos se viam obrigados a levar adiante – tendo que se valer de um alto grau de inventividade – os aproximava da utopia revolucionária daquela juventude que, por suas ideias e também pela posição que ocupava naquela mesma sociedade, se via na contingência de ter que buscar saídas alternativas para expressar seu descontentamento e fazer valer suas 33 crenças e voz (BAUDRAS, 2008, p. 83-84). O movimento de contracultura, com todo seu peso simbólico, chega ao Brasil no contexto da Ditadura Militar, no final da década de 1960. Raul Seixas, ao tomar contato com essa novidade vinda de fora do país, absorveu e assimilou sua essência da melhor maneira possível. O resultado desse encontro pode ser notado em muitas de suas músicas, principalmente no centro de sua produção musical nas décadas de 1970 e 1980. 3.1. A indústria fonográfica no Brasil na década de 1970 O cientista social brasileiro Renato Ortiz investiga no seu livro A moderna tradição brasileira (2001), a consolidação da indústria fonográfica no Brasil, diante da imposição de um capitalismo na sua fase mais avançada na década de 1970. Ortiz, neste livro, trabalha com alguns temas clássicos do debate intelectual brasileiro, como cultura popular e identidade nacional, e analisa um Brasil moderno em que novas forças de poder aparecem e suplantam antigas formas de dominação. Do cinema, passando pela música, pela arquitetura, pelo teatro, até pelo movimento de urbanização da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, a noção de moderno se relaciona intimamente aos valores e princípios da civilização e do progresso. No Brasil, existe há muito tempo, segundo Ortiz, uma forte dependência aos valores estrangeiros oriundos dos Estados Unidos e da Europa. Esse fenômeno revela um enorme esforço do país em lapidar uma imagem aos moldes de um inventário civilizado que surge de fora dele. Tanto na década de 1940 quanto na década de 1950, é necessário pontuar a forte influência dos modelos estrangeiros oriundos da Europa, e principalmente dos Estados Unidos, sobre a sociedade brasileira. Os padrões europeus vão ceder lugar aos valores americanos, transmitidos pela publicidade, cinema e pelos livros em língua inglesa que começam a superar em números as publicações de origem francesa. Publicações como a Revista da Semana, que se pautava por uma ligação tradicional com o mundo lusíada e 34 europeu, vão aos poucos substituir o interesse pelos destinos da família real austríaca, a princesa Guise, o casamento de Anne na Inglaterra, pelas estrelas de Hollywood (ORTIZ, 2001, p. 71). Segundo Ortiz, paralelamente a esse fenômeno de alinhamento aos valores estrangeiros, é a partir das décadas de 1940 e 1950 que surge no Brasil uma ampla e diversificada série de atividades ligadas a uma cultura popular de massa, que irá de certa forma ser um esforço do país para se construir e expressar uma identidade nacional. Esse fenômeno em particular só é possível pela consolidação da sociedade urbano-industrial no mesmo período e que será responsável por exigir tal demanda. Nesse sentido, é importante salientar que após a Segunda Guerra Mundial a sociedade brasileira se modernizou em diferentes segmentos. A velha sociologia do desenvolvimento costumava descrever essas mudanças sublinhando fenômenos como o crescimento da industrialização e da urbanização, a transformação do sistema de estratificação social com a expansão da classe operária e das camadas médias, o advento da burocracia e das novas formas de controle gerencial, o aumento populacional, o desenvolvimento do setor terciário em detrimento do agrário. É dentro desse contexto mais amplo que são redefinidos os antigos meios (imprensa, rádio e cinema) e direcionadas as técnicas como televisão e o marketing. Sabemos que é nas grandes cidades que floresce este mundo moderno (ORTIZ, 2001, p. 39). No caso brasileiro a respeito desse período, Ortiz constata que é uma fase inicial da sociedade moderna, ou seja, mesmo com todo processo anterior de industrialização e centralização política iniciada por Getúlio Vargas na década de 1930, a sociedade brasileira era ainda muito fortemente marcada pelo localismo e o regionalismo. Não obstante, apesar do dinamismo da sociedade brasileira no pós- guerra, percebemos que ele se insere no interior de fronteiras bem delimitadas. Edgar Carone observa que o relatório da Missão Coke, que visita o Brasil em 1942, dizia que vivíamos “um estágio primitivo de industrialização”. Não é por acaso que os economistas chamam esta fase de “industrialização restringida”, isto é, o movimento de expansão do capitalismo se realiza somente em determinados setores, não se estendendo para a totalidade da sociedade. Em termos culturais temos que o processo de mercantilização da cultura será atenuado pela impossibilidade de desenvolvimento econômico mais generalizado. Dito de outra forma, a “indústria cultural” e a cultura popular de massa 35 emergente se caracterizam mais pela incipiência do que sua amplitude (ORTIZ, 2001, p. 39). Se nas décadas de 1940 e 1950 a sociedade de consumo no Brasil ainda se revelava incipiente, nas décadas de 1960 e 1970 houve uma forte consolidação de um mercado de bens culturais. Esse fenômeno impactou de diferentes formas os diversos segmentos culturais (cinema, música, teatro etc.) que estavam se desenvolvendo no período. A televisão se concretiza como veículo de massa em meados de 60, enquanto o cinema nacional somente se estrutura como indústria nos anos 70. O mesmo pode ser dito de outras esferas da cultura popular de massa: indústria do disco, editorial, publicidade, etc. (ORTIZ, 2001, p. 113). Nesse sentido, Ortiz destaca que os traços que definiram a situação cultural nas décadas de 1960 e 1970 foram o volume e a dimensão produzida do mercado de bens culturais. Ou seja, se até a década de 1950 as produções culturais eram limitadas e restritas, e atingiam uma quantidade muito reduzida de pessoas, a partir da década de 1960 essa questão consegue ser superada e a produção cultural se expande a ponto de atingir uma massa consumidora. Em termos gerais, esse novo período modernizador para a produção cultural reflete uma franca expansão, em nível de distribuição, de produção e de consumo de cultura. Segundo Ortiz, é justamente nesse período que se consolidam os grandes e novos conglomerados empresariais que irão controlar os meios de comunicação e de cultura popular de massa, a partir da década de 1970. Também o mercado fonográfico, que até 1970 conhecia um crescimento vegetativo, a partir desse momento “deu sua arrancada para um verdadeiro e significativo desenvolvimento”. Isto se deveu em grande parte às inúmeras facilidades que o comércio passou a apresentar para a aquisição de eletrodomésticos. Como o mercado de fonogramas se desenvolve em função do mercado de aparelhos de reprodução sonora, é importante observarmos a evolução das vendas industriais de aparelhos eletrônicos domésticos. Entre 1967 e 1980, a venda de toca-discos cresce em 813%. Isto explica por que o faturamento das empresas fonográficas cresce entre 1970 e 1976 em 1375% (ORTIZ, 2001, p. 127). Segundo Ortiz, houve mudanças estruturais que impactaram a sociedade 36 brasileira nesse período das décadas de 1960 e 1970, e estão relacionadas, para o cientista social, a partir dos acontecimentos do golpe civil e militar de 1964. O surgimento do Estado autoritário representa para Ortiz não apenas o sentido político que ganhou forma e sentido até o ano de 1985, mas também as consequências econômicas devido às profundas transformações ocorridas no plano da economia do país. O aspecto político é evidente: repressão, censura, prisões, exílios. O que é menos enfatizado, porém, e que nos interessa diretamente, é que o Estado militar aprofunda medidas econômicas tomadas no governo Juscelino, às quais os economistas se referem como “a segunda revolução industrial” no Brasil. Certamente os militares não inventaram o capitalismo, mas 64 é um momento de reorganização da economia brasileira que cada vez mais se insere no processo de internacionalização do capital; o Estado autoritário permite consolidar no Brasil o “capitalismo tardio”. Em termos culturais, essa reorientação econômica traz consequências imediatas, pois, paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens materiais, fortalece-se o parque industrial de produção de cultura e o mercado de bens culturais (ORTIZ, 2001, p. 114). É justamente no período da Ditadura Militar e mais precisamente na década de 1970, com o chamado Milagre econômico brasileiro ocorrido de 1969 a 1973, que a indústria fonográfica foi estabelecida no Brasil, possibilitando o surgimento de uma produção cultural sem precedentes em termos quantitativos e qualitativos. 37 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da pesquisa em questão, é possível reconhecer e considerar a obra musical de Raul Seixas importante para se pensar o que aconteceu com a sociedade brasileira em termos históricos, políticos e sociais durante a segunda metade do século XX. Tomando como referência e ponto de partida a trajetória de vida de Raul Seixas desde a sua infância na década de 1940 até a década de 1980, com a sua massiva produção musical, pode-se dizer que seu legado artístico ilustra em modesta medida proporcional todo um cenário complexo de acontecimentos políticos e sociais que impactaram tanto o Brasil quanto o mundo. A conexão estabelecida entre a trajetória pessoal e artística de Raul Seixas com a recente História do Brasil permite um olhar mais sensível e crítico desse período em relação direta com as novas gerações que não vivenciaram essa época, e que necessitam de um entendimento histórico mais aprofundado a respeito dessa segunda metade do século XX. Considerando a linha histórica de acontecimentos do passado para o presente, é notável um amadurecimento da sociedade brasileira em relação a muitas questões ligadas ao modo de se operar a via democrática no país. Nesse sentido, por mais que a Ditadura Militar tenha durado 21 anos e sua vigência tenha sido uma experiência dolorosa para o país, a partir de seu término em 1985, juntamente com a chegada da nova Constituição de 1988, a sociedade brasileira conseguiu enxergar e dar valor à vida democrática nascente, que ressurgia das cinzas depois de tanto tempo suprimida pelos militares no poder. Isto posto, Raul Seixas, enquanto um representante de sua geração que trabalhou no plano musical para enviar suas mensagens não só para o Brasil, mas também para o mundo, pode ser considerado um produto icônico da segunda metade do século brasileiro. Sobre sua produção musical, esta tem que ser vista enquanto parte da cultura brasileira, que é tão diversa que acolhe em seu interior uma infinita diversidade de manifestações, cada qual com a sua merecida relevância. O legado musical de Raul Seixas deve ser levado em conta pela riqueza de suas contribuições, não só para o Brasil, mas para a música como um todo. 38 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMS, Ph. Historical sociology. Mallet: Open Books, 1982. BAUDRAS, Jean-Luc. Contracultura. In: RIOT-SARCEY, M.; BOUCHET, T.; PICON, A. Dicionário das utopias. Tradução de Carla Bogalheiro Gomboa e Tiago Marques. Lisboa, Texto & Grafia, p. 83-84, 2008. CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 1964 e a ditadura militar. São Paulo, Editora Moderna (Coleção polêmica), 1994. HOBSBAWM, E. J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1995. LAHUERTA, M. O século XX brasileiro: autoritarismo, modernização e democracia. In: AGGIO, A. & LAHUERTA, M. Pensar o século XX: problemas políticos e história nacional na América Latina, p. 217-247. São Paulo, Editora UNESP, 2003. MANNHEIM, K. The problem of Generations. In Essays on the sociology of kwowledge, edited by P. Keckskemeti, Nova York, Routledge & Kegan Paul, p. 251-273, 1952. MOTTA, Aldo Brito da. A atualidade do conceito de gerações na pesquisa sobre o envelhecimento. Sociedade & Estado, Brasília, Vol. 25, n. 2, maio-ago 2010. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo, 4. ed., Editora Brasiliense, 2001. VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. São Paulo, 3.ed., Editora Planeta do Brasil, 2008. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. Lisboa, Editorial Caminho, 1990. 39 APÊNDICE Memoralista: PASSOS, Sylvio (Org.). Raul Seixas Por Ele Mesmo. São Paulo, Editora Martin Claret, 1990. Revista Consultada – Anos 80: SARDENBERG, W. “Não pertenço a grupo nenhum”. Entrevista. Revista Amiga, 1982. DISCOGRAFIA OFICIAL CITADA NA PESQUISA: 1. Raulzito e os Panteras – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Mono. 78 rpm. (Odeon, 1968). 2. Sociedade da Grã-Ordem Cavernista Apresenta Sessão das 10 (com Edy Star, Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Miriam Batucada) – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (CBS/atual Sony Music, 1971). 3. Krig-Ha, Bandolo! – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (Philips, 1973). 4. Gita – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (Philips, 1974). 5. Novo Aeon – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (Philips, 1975). 6. Há dez mil anos atrás – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (Philips, 1976). 7. O dia em que a terra parou – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (WEA, 1977). 8. Mata Virgem – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (WEA, 1978). 9. Por quem os sinos dobram – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (WEA, 1979). 10. Abre-te sésamo – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (CBS/atual Sony Music, 1980). 11. Raul Seixas – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (Estúdio Eldorado, 1983). 12. Metrô Linha 743 – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (Som Livre, 40 1984). 13. A pedra do gênesis – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (Copacabana, 1988). 14. A panela do diabo – Lançado em vinil, LP, K7 e CD. Estéreo. 78 rpm. (WEA, 1989). LISTA DE MÚSICAS CITADAS NA PESQUISA: “Mosca na sopa” (Raul Seixas, 1973) “Metamorfose ambulante” (Raul Seixas, 1973) “Al Capone” (Paulo Coelho/Raul Seixas, 1973) “Ouro de tolo” (Raul Seixas, 1973) “Rock 'n' Roll” (Marcelo Nova/Raul Seixas, 1989) Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” “A arte existe porque a vida não basta.” (Ferreira Gullar) INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 – RAUL SEIXAS: UMA OBRA, UMA VIDA CAPÍTULO 2 – O INÍCIO DA DITADURA MILITAR NA DÉCADA DE 1960 E A INTRODUÇÃO DO ROCK NO CENÁRIO MUSICAL BRASILEIRO 2.1. Breve panorama do contexto histórico, social e político no Brasil nas décadas de 1960, 1970 e 1980 2.2. Breve análise do contexto histórico e político internacional: a Guerra Fria CAPÍTULO 3 – O CONCEITO MODERNO DE GERAÇÃO E O MOVIMENTO DE CONTRACULTURA NA DÉCADA DE 1960 3.1. A indústria fonográfica no Brasil na década de 1970 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS