WEBER LOPES GÓES Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl Marília 2015 WEBER LOPES GÓES Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, câmpus de Marília, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais (Área de Concentração: Cultura, Identidade e Memória). Orientador: Professor Dr. Andreas Hofbauer Marília 2015 Góes, Weber Lopes. G598r Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl / Weber Lopes Góes. – Marília, 2015. 276 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2015. Bibliografia: f. 215-225 Orientador: Andréas Hofbauer. 1. Eugenia. 2. Brasil - História. 3. Racismo. 4. Conservadorismo. 5. Kehl Renato – 1889 -. I. Título. CDD 305.80981 WEBER LOPES GÓES Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM CIÊNCIAS SOCIAIS BANCA EXAMINADORA 1o Examinador ____________________________________________________________ Professor Dr. Andreas Hofbauer – orientador (Unesp/Marília) 2o Examinador ____________________________________________________________ Professora Dra. Heloisa Pait (Unesp/Marília) TITULAR 3o Examinador:___________________________________________________________ Professora Dra. Terezinha Ferrari (CUFSA) TITULAR Marília, 28 de janeiro de 2015 À minha mãe Marina Lopes Góes, in memorian. Agradecimentos À minha irmã, Dayane. Aos integrantes do grupo de estudos de Guarulhos/SP e Mauá/SP. À equipe do projeto Meninos e Meninas de Rua (Guarulhos/SP e São Bernardo do Campo/SP). Às amigas Nida, Michele e Ortília, que me acolheram em Marília/SP desde o processo seletivo. Aos amigos da moradia da Universidade Estadual Paulista (Unesp): especialmente Gabriela, Clislaine, Bernardo, Bruno e André. Aos amigos com quem tanto conversei sobre a temática da pesquisa, em especial, Wagner e Vinicius. A Sarah, pelo carinho e atenção. À Edilaine, Vilma e Claudimar. Aos amigos que, embora não sejam responsáveis pelas conclusões a que chegamos, leram o texto e sugeriram ricas contribuições: André, Macário, Deivison e Felipe (Choco). Ao pessoal do Kilombagem, especialmente Drão, Hayde, Bergman, Keyla, Talita (Tata). A Zélia por ter cedido os materiais sobre a temática. A Fernanda, eterno carinho. Aos professores do Centro Universitário Fundação Santo André, que influenciaram decisivamente em minha formação, desde a graduação, e no curso de especialização: professora Dra. Lívia Cotrim, professor Dr. Ivan Cotrim, professora Dra. Vania Noelli, professor Ms. Carlos Cesar, professor Dr. Antônio Rago. Ainda na constelação dos professores da Fundação Santo André, meu agradecimento especial à amiga professora, Dra. Terezinha Ferrari, que, desde a graduação, tem, não somente me acompanhado e contribuído para a minha formação, mas trabalhado nas empreitadas que empreendemos e por ter aceitado o convite para compor a banca da defesa. Meu agradecimento especial para Lúcia, pela leitura atenta, meu carinho e amizade. À professora Dra. Vera Vieira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora Dra. Beatriz Abramides, da PUC-SP e Maria Lúcia Barroco, da PUC/SP, com quem dialoguei sobre a temática da pesquisa. À Fundação Oswaldo Cruz – Casa Oswaldo Cruz, especialmente ao Setor de Atendimento à Pesquisa/Departamento de Arquivo e Documentação/COC, onde realizei a pesquisa de campo: especialmente aos trabalhadores Cláudio e Dandara que estiveram à disposição no momento da pesquisa. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por conceber o financiamento da presente pesquisa. Ao professor Dr. Andreas Hofbauer, por estar sempre atencioso, desde o começo da nossa pesquisa e pelas valiosas orientações. Ninguém poderá negar, que no correr dos anos, desaparecerão os negros e os índios das nossas plagas e do mesmo modo os produtos provenientes desta mestiçagem. A nacionalidade embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano! (Renato Kehl) - Não há solução para os males sociais fora das leis da biologia. - Não há política racional, independente dos princípios biológicos, capaz de trazer paz e felicidade aos povos. - Política econômica, conservadora, democrática, socialista, fascista, comunista, todas essas políticas e formas de governo falham se não se inspirarem nos ditames da ciência da vida. - Eis, por que, a política, por excelência, é a política biológica, a política com base na eugenia. (Renato Kehl) Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação, infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências. Pois, fazendo valer a sua opinião, concorreram para interromper e extinguir as investigações. Tudo mais que hajam feito não compensa o que nos outros corromperam e fizeram malograr. Mas os que se voltaram para os caminhos opostos e asseveraram que nenhum saber é absolutamente seguro, venham suas opiniões dos antigos sofistas, da indecisão dos seus espíritos ou, ainda, de mente saturada de doutrinas, alegaram para isso razões dignas de respeito. (Francis Bacon, Novum Organum) Resumo A presente dissertação apresenta as determinações sociais relacionadas à objetivação do movimento eugenista no Brasil a partir da trajetória de Renato Kehl (1889-1974), principal expoente da ideologia eugenista no Brasil. Médico e farmacêutico, de forma aguerrida, defendeu a difusão e implantação do projeto eugênico, realizando conferências em todo o Brasil e em vários países da América Latina. Para Renato Kehl, a elite intelectual brasileira teria como responsabilidade instituir parâmetros da eugenia, isto é, o sucesso dependeria da sua implantação como política pública. Para essa finalidade, funda, em 1918, a Sociedade Eugênica de São Paulo, com a missão de difundir as ideias eugênicas no Brasil e implantar propostas de cariz eugênico. Renato Kehl foi também um dos principais articuladores do movimento de criação e fomento de instituições em nível nacional; em 1929, cria o Boletim de Eugenia, a fim de publicar textos sobre a temática nos âmbitos nacional e internacional, assim como divulgar as propostas de leis baseadas na eugenia e implantadas em países como os Estados Unidos da América e Alemanha. Foi o precursor do movimento no Brasil e defendeu que o povo brasileiro estaria perfeitamente efetivado caso fossem extintos os débeis mentais, loucos, psicopatas, criminosos, delinquentes e “desviados”; epiléticos, alcoólatras e dependentes de drogas ilícitas; doentes (tuberculosos, leprosos, dentre outros); cegos e surdos; disformes, pessoas dependentes da assistência social, moradores de rua, “vagabundos” e indigentes. Palavras-chave: Eugenia. História do Brasil. Ideologia do racismo. Renato Kehl. Pensamento conservador. Abstract This work aims to present the social determinations regarding the objectification of the eugenics movement in Brazil from the path of Renato Kehl (1889-1974), leading exponent of eugenic ideology in Brazil. Medical and pharmaceutical, stiffer way, defended the dissemination and implementation of the eugenics project, holding conferences in Brazil and in several Latin American countries. Renato Kehl Brazilian intellectual elite would establish responsibility eugenics parameters, the success of eugenics depended on its implementation as public policy. For this purpose Renato Kehl founded in 1918, the Eugenics Society of São Paulo, with the mission to spread the eugenic idea in Brazil and implement eugenics – oriented proposals. Renato Kehl was still one of the main organizers of the movement in the creation and development institutions at the national level; in 1929, founded the Eugenics Bulletin in order to publish texts on eugenic theme in the national and international levels, as well as disclose the proposed laws based on eugenics and implemented in countries like the United States and Germany. Renato Kehl was the forerunner of the eugenics movement in Brazil and claimed that the Brazilian people would be perfectly effected if there were the extinction of feebleminded, insane, psychopaths, criminals, delinquents and "diverted"; epileptics, alcoholics and addicted to illicit drugs; patients (tuberculosis, leprosy and others); blind and deaf; shapeless, people dependent on welfare, the homeless, " bums" and destitute. Keywords: Eugenics; History of Brazil; Ideology of Racism; Renato Kehl; Conservative thought. Sumário INTRODUÇÃO: O CONCEITO DE RAÇA E O MOVIMENTO EUGENISTA COMO EXPRESSÃO DO CONSERVADORISMO ............................................................................... 20 O conceito de raça: das origens ao iluminismo ........................................................................... 20 A raça sob o manto da ciência ...................................................................................................... 26 Difusão das ideologias racistas e suas escolas ............................................................................. 33 Francis Galton: o precursor da eugenia como ciência ............................................................... 36 O movimento eugenista nos EUA, França e Alemanha ............................................................. 44 CAPÍTULO I – PARTICULARIDADES DA FORMAÇÃO SOCIAL DO BRASIL E OBJETIVAÇÃO DO PENSAMENTO CONSERVADOR ....................................................... 61 1.1 Delineamentos gerais da formação social do Brasil ............................................................ 61 1.2 O Brasil visto de fora: os teóricos estrangeiros subsidiam as nossas elites ....................... 73 1.3 O pensamento conservador e a importação das teorias europeias “racialistas” para o Brasil ............................................................................................................................................... 80 CAPÍTULO II – RENATO KEHL: O INTERLOCUTOR DO MOVIMENTO EUGENISTA NO BRASIL ................................................................................................................................... 97 2.1 Correspondência com Oliveira Vianna e Monteiro Lobato ............................................... 97 2.2 O ambiente intelectual de Renato Kehl e a campanha eugênica na Europa e EUA ...... 110 2.3 A chegada do movimento eugenista no Brasil.................................................................... 116 2.3.1 Instituições eugênicas ........................................................................................................ 116 2.3.2 Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia ...................................................................... 124 2.3.3 Primeiro Concurso de Eugenia e a Comissão Central Brasileira de Eugenia .............. 130 2.3.4 O Boletim de Eugenia ......................................................................................................... 132 CAPÍTULO III – A EUGENIA: A NOVA RELIGIÃO ............................................................ 139 3.1 A Ciência da Seleção Humana e seus Objetivos ................................................................. 139 3.2 Eugenia: Positiva, Preventiva e Negativa ............................................................................ 142 3.3 Profilaxia ou Dizimação de Delinquentes, Doentes Mentais e Prostitutas? ..................... 145 3.4 A Educação e Sanitarismo (Saúde) e a Objetivação do Eugenismo.................................. 154 3.5 A mulher do ponto de vista eugênico ................................................................................... 166 3.6 Civilização, Darwinismo Social, Malthusianismo e Neomalthusianismo ......................... 174 CAPÍTULO IV – A COMPOSIÇÃO ÉTNICA DO BRASIL E O PROJETO DE POVO EM RENATO KHEL.......................................................................................................................... 180 4.1 Miscigenação, Raça e Branqueamento ................................................................................ 180 4.2 Os dilemas da imigração e a proposta eugênica ................................................................. 199 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 209 REFERÊNCIAS........................................................................................................................... 215 ANEXO A – CARTAS ................................................................................................................ 226 ANEXO B – BOLETIM DE EUGENIA .................................................................................... 247 ANEXO C – JORNAIS ............................................................................................................... 256 ANEXO D – INFORMATIVOS EUGÊNICOS ........................................................................ 266 APÊNDICE .................................................................................................................................. 274 Cronologia de Renato Kehl ......................................................................................................... 274 SIGLAS INSTITUCIONAIS ACM – Associação dos Cristãos Moços AABE – Associação Argentina de Biotipologia, Eugenia e Medicina Social AAdR – Associação Americana de Reprodução AIB – Ação Integralista Brasileira CBE – Congresso Brasileiro de Eugenia CCBE – Comissão Central Brasileira de Eugenia CIC – Conselho de Imigração e Colonização Cide – Congresso Internacional de Eugenia DNSP – Departamento Nacional de Saúde Pública Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz ERO – Eugenics Record Office (Escritório de Registros de Eugenia) Ifeo – International Federation of Eugenic Organizations IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBE – Instituto Brasileiro de Eugenia LBHM – Liga Brasileira de Higiene Mental LPSB - Liga Pró-saneamento Básico PCB – Partido Comunista Brasileiro Sesp – Sociedade Eugênica de São Paulo MSE – Ministério da Educação e Saúde Pública Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Unicamp – Universidade Estadual de Campinas USP – Universidade de São Paulo SIGLAS REFERENTES ÀS OBRAS DE RENATO KEHL A.D.F. – A Cura da Fealdade A.D.S. – Alfabeto da Saúde A.E. – Aparas Eugênicas: Sexo e Civilização B.D.E. – Boletim de Eugenia B.P. – Bio-perspectivas C.P.A. – Catecismo para Adultos F.D.B. – Formulário de Beleza F.H. – Fada Hygia L. E. – Lições de Eugenia M.P.A. – Melhoremos e Prolonguemos a Vida ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO Quando estudamos o tema eugenia e sua trajetória, a partir da Inglaterra, dos Estados Unidos da América (EUA) e da América Latina, verificamos que a perspectiva do projeto de eugenia tinha como um de seus objetivos oferecer ferramentas para solucionar problemas gerados pela consolidação e pelo desenvolvimento das sociedades industriais, sobretudo as situações de pobreza, delinquência, doenças mentais que, nas propostas dos ideólogos do movimento eugenista, eram compreendidos como fenômenos de natureza hereditária. A influência das teorias do darwinismo-social e da Antropologia, no final do século XIX, intensificou as controvérsias sobre o destino da humanidade, isto é, sobre a natureza e os limites do processo civilizatório, que parecia ser o corolário da industrialização que se expandia. Nesse contexto, os conceitos de eugenia, darwinismo-social e racismo passam a fazer parte do pensamento conservador – arcabouço utilizado como instrumento ideal das burguesias clássicas a fim de validar seus projetos societários. Ao consolidar instituições, eventos/congressos, como veículo de propagação do projeto eugênico, aos poucos, o movimento ganha ventilação expressiva em vários países, não somente nos europeus, mas também nos EUA, países latino-americanos e continentes asiático e africano, que vão assimilar a ideologia eugenista. No caso brasileiro, as ideias eugênicas chegam e são incorporadas, num primeiro momento, em tímidos estudos relacionados à saúde e criminalidade. Com a atuação de Renato Kehl, o movimento eugenista toma fôlego, no Brasil. Teórico de intervenção, Kehl passa a realizar conferências sobre o tema, conclamando estudiosos, juristas, gestores públicos, profissionais da saúde e todos aqueles envolvidos e interessados em conhecer os propósitos da ideologia eugênica, julgando-a um instrumento adequado e necessário para enfrentar os problemas sociais advindos do período de consolidação da República. Após a formação de entidades eugênicas, autônomas, ou também as estatais, Renato Kehl enriquece seu propósito de convencer as elites sobre a importância de adotar o projeto eugênico. Edita, então, o Boletim de Eugenia, com a finalidade de publicar artigos sobre a temática relacionando-a às situações política e social no mundo inteiro, em especial no Brasil, que buscava resolver suas contradições internas ancorado na eugenia como plataforma teórica/prática. Inicialmente, esta pesquisa teve como fito investigar o Boletim de Eugenia para identificar a difusão das ideologias sobre racismo; a teoria e prática eugênica; bem como a imigração no contexto das controvérsias das elites sobre o projeto de formação da nação brasileira. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, fizemos boa garimpagem em parte expressiva dos materiais disponíveis no Departamento de Arquivo e Documentação – Casa Oswaldo Cruz: Fundo Renato Kehl.1 E antes de localizar a coleção do periódico, nos deparamos com quantidade significativa de jornais, cartas institucionais, pessoais, rascunhos de artigos que foram publicados em jornais, revistas e livros, além de folhetos, fotos e informativos sobre eugenia. Para conhecer as ideias de Renato Kehl e sua trajetória, nos aprofundamos em sua produção bibliográfica. Por tratar-se de livros raros, atualmente, encontramos algumas dificuldades, visto que as publicações datam do início do século XX, mas identificamos um total de 30 livros, na Biblioteca Nacional, o que demonstra a importância da produção desse teórico. Com as informações coletadas de livros, artigos e outros documentos, nos debruçamos sobre teses, dissertações e livros que tratam da eugenia, sobretudo, com enfoque em Renato Kehl. Na Casa Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Departamento de Pós-Graduação em História da Saúde, deparamo-nos com alguns estudos, em especial, de mestrado e doutorado. Em outras instituições de pós-graduação, encontramos pesquisas sobre eugenia, especialmente no campo da educação e ciências sociais, embora em número reduzido. No Departamento de Pós-graduação, no câmpus da Unesp de Marília, constatamos que há apenas uma recente tese de doutorado, apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências, no Programa de Pós-graduação, intitulada: Eugenia e Literatura no Brasil: Apropriação da Ciência e do Pensamento Social dos Eugenistas pelos Escritores Brasileiros de Ficção Científica (1922 a 1949), de Edgard I. Smaniotto (2012). O levantamento feito sobre pesquisas relacionadas ao movimento eugênico revelou que a produção no campo das Ciências Humanas é lacunar também quanto à biografia intelectual e política de Renato Kehl – um dos propagadores do projeto eugênico no Brasil. Ao identificar essa lacuna, passamos a indagar o porquê da ausência de pesquisas sobre uma personalidade que alavancou o movimento eugenista no Brasil e resolvemos ampliar o foco da nossa pesquisa (entretanto, devido ao tempo escasso, não pudemos nos debruçar sobre todo o acervo documental de Renato Kehl – perspectiva que alimenta sobremaneira nossos próximos passos). Assim, no âmbito metodológico, optamos por selecionar algumas de suas obras consideradas primordiais para captar sua propositura teórica, a saber: Alfabeto da Saúde (1985); Conduta – Conceitos e Preceitos Éticos para Jovens e Adultos de Ambos os Sexos (1958); 1 Documentação doada à Casa Oswaldo Cruz, após a morte de Renato Kehl, por seus familiares. Catecismo para Adultos (1942); Psicologia da Personalidade – Guia de Orientação Psicológica (1940); Bio-perspectivas (1938); Aparas Eugênicas: Sexo e Civilização (1933); Lições de Eugenia (1929); Formulário de Beleza (1927); Fada Hygia (1925); Melhoremos e Prolonguemos a Vida (1923); A Cura da Fealdade (1923); Blastomycóse (1915). Além de sistematizar algumas das obras do autor, utilizamos cartas, identificadas em seu arquivo pessoal, para demonstrar a sua capacidade em catalisar, dialogar e estabelecer relações com intelectuais, tanto do movimento eugenista no Brasil, como em outros países, bem como com intelectuais que elaboravam propostas para o “despontar” do Brasil como “nação”. Assim, elegemos parte da correspondência que consideramos primordial para apresentar o autor em profundidade. O outro passo da presente pesquisa foi a sistematização dos números da coleção do Boletim de Eugenia. Inicialmente, antes de conhecer esse meio de divulgação, não tínhamos a dimensão nem da quantidade de edições (datam de 1929-1932) e menos ainda da quantidade de escritores estrangeiros, intelectuais do movimento eugênico, além de informações sobre as ações das instituições eugênicas no âmbito internacional. Desta forma, consideramos importante destacar o Boletim de Eugenia, indicando seus objetivos e a sua função no seio do movimento eugenista brasileiro. A pesquisa está estruturara da seguinte forma: no Capítulo I – Particularidades da Formação Social do Brasil e a Objetivação do Pensamento Conservador, apresentamos os delineamentos gerais sobre a formação social do Brasil e os processos constitutivos da efetivação da burguesia brasileira e sua expressão conservadora, a partir das leituras e interpretações realizadas pelos teóricos europeus sobre o Brasil. O Capítulo II – Renato Kehl: O Interlocutor do Movimento Eugenista no Brasil apresenta- o como o principal organizador e representante do movimento eugenista no Brasil, a partir da correspondência com vários intelectuais brasileiros, especialmente Oliveira Vianna e Monteiro Lobato e os representantes do movimento eugenista no interior da Europa, EUA e América Latina. A partir das articulações realizadas por Renato Kehl, detalhamos a efetivação do movimento eugenista no Brasil em instituições, congressos, eventos e em seu principal veículo de comunicação entre os eugenistas – o boletim. No Capítulo III – A Eugenia: A Nova Religião, privilegiamos tematizar as proposituras do movimento eugenista a partir da própria produção de Renato Kehl a que tivemos acesso, como artigos em jornais, manuscritos e outros documentos que foram essenciais para nos aprofundarmos na produção do autor e nos permitiu captar a proposta eugênica e o seu significado. O Capítulo IV – A Composição Étnica do Brasil e o Projeto de Povo em Renato Kehl tem como tema as controvérsias e os projetos relativos às questões sobre a miscigenação, raça e o branqueamento e as abordagens do estudioso referente a política de imigração brasileira. Acreditamos que a presente dissertação pode contribuir para enriquecer o Departamento da Unesp, subsidiando e fomentando pesquisas vindouras acerca não só da temática da eugenia, mas do conteúdo do pensamento brasileiro típico de um período marcado pela busca de responder sobre quem é o povo brasileiro, quais os traços da nação e da nacionalidade brasileiras. Nesse sentido, julgamos que esta pesquisa pode ser considerada pioneira ao tratar do principal protagonista do movimento eugenista no Brasil e que, de certa forma, é parte constitutiva da expressão do pensamento conservador brasileiro. 20 INTRODUÇÃO: O CONCEITO DE RAÇA E O MOVIMENTO EUGENISTA COMO EXPRESSÃO DO CONSERVADORISMO O movimento eugenista configura-se como uma reação conservadora que tem por finalidade oferecer subsídios para a superação das contradições sociais, num primeiro momento, nos países do continente europeu, especialmente na Inglaterra e França e, posteriormente, na Itália e Alemanha. Mas com a consolidação do movimento eugenista, os EUA tornam-se referência do movimento eugenista mundial, que, para se consolidar, se nutre das produções teóricas e científicas nas áreas das ciências, paulatinamente consolidadas no final do século XIX, como a Biologia, Antropologia, Sociologia e a Frenologia. Ao se valer das referidas disciplinas, os adeptos do movimento eugênico tematizaram o conceito de raça a partir das suas crenças e ideologias e, ao mesmo tempo, buscaram resolver as questões sociais relacionados à prostituição, delinquência e aos problemas eleitos pelos protagonistas do movimento. Embora o objetivo desta pesquisa seja trazer a lume a trajetória de um dos expoentes do movimento eugenista do Brasil, Renato Kehl, nesta introdução, indicamos, de modo geral, como o conceito de raça é concebido pelos eugenistas, no contexto do processo histórico que culmina na consolidação do conceito de raça e como vai se metamorfoseando de acordo com o desenvolvimento da sociedade. Por fim, ao discorrer sobre o conceito de raça, nosso intuito é oferecer subsídios para conceber o significado do conceito de racismo interligando-o com a ideologia eugênica. O conceito de raça: das origens ao iluminismo O termo “raça” nem sempre teve o mesmo significado, conforme atribuído a partir do século XVII até o XX. Os estudos sobre o tema demonstram2 que o conceito de raça não é 2 Os interessados em se aprofundar sobre o conceito de raça podem consultar: APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai – A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, 1997; AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Anti-racismo e seus paradoxos – reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004; COMAS, Juan. Os mitos raciais. Raça e Ciência, v. I, São Paulo: Perspectiva, 1960; DUNN, L. C. Raça e Biologia. Raça e Ciência, v.II, São Paulo: Perspectiva, 1960; HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Unesp, 2006; KI-ZERBO, J. Teorias relativas às “raças” e história da África. História Geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. Editado por Joseph Ki- Zerbo. Brasília: Unesco, 2010; MUNAGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004; SACARÃO, Germano da F. Biologia e sociedade: o homem indeterminado, v.II, Portugal: Publicações Europa-América, 1989; SANT´ANA, Antônio Olímpio de. História e conceitos básicos sobre o racismo e seus derivados. In: MUNANGA (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e 21 linear, ao contrário, nem sempre o termo foi utilizado tal qual passou a ser concebido contemporaneamente, isto é, classificando os seres humanos em “negros”, “brancos”, “vermelhos” e “amarelos”. Segundo Sant´Ana (2005), a palavra raça vem do italiano razza, que significa família ou grupo de pessoas; razza, no árabe rãs, quer dizer origem ou descendência e tem sua raiz no termo ratio, que significa “razão”, como ordem das coisas, categoria. Segundo Sacarrão (1989), a palavra raça passa a ser utilizada a partir dos séculos XVI e XVIII, com o sentido de qualidade boa ou má das pessoas, dos animais, em expressão como “boa ou raça má”, “raça maldita”, “raça dos príncipes” e dos “reis”, “nobre raça” ou “raça de David”, etc. Em seu livro Uma História do Branqueamento ou o Negro em Questão (2006, p. 100), em especial no capítulo Raça se Impõe, Andreas Hofbauer faz um levantamento bibliográfico a respeito do conceito de raça e seus diversos significados. Neste caminho, verifica que o termo “raça” é oriundo do substantivo latino ratio (ordem, razão, modo, espécie); o conceito de raça, do ponto de vista semântico, vem do radical ra’s, da palavra árabe, significando “cabeça, chefe do clã”, utilizado para identificar um membro, no aspecto genealógico, de um grupo clânico. “Ra’s não apenas indicava a ascendência de um indivíduo, mas determinava seus papéis sociais”. Os portugueses e espanhóis utilizavam o termo para estabelecer uma identidade relacionada com a origem e descendência. As classificações entre os homens eram realizadas para explicitar a qualidade e identidade de determinado grupo, em especial família, assim, raça passa a ser concebido como “raça linhagem”, para identificar uma linhagem de uma nobreza ou dos bispos. Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, o significado do termo raça extrapola as representações relacionadas a linhagem e tona-se mais abrangente. Conforme demonstra Hofbauer (2006, p. 102): A categoria “raça”, dessa maneira, “abra-se” aos poucos e passa a ser ampliada também a grupos humanos maiores, e não mais exclusivamente à elite politica e religiosa. Raça começa a referir-se a seres humanos que já não reivindicam estar ligados por relações de ordem genealógica. À ampliação e divulgação do conceito, acompanhavam o lento processo de enfraquecimento do poder das casas reais europeias e a simultânea ascensão de uma descendência nobre sobreviveria ainda durante muito tempo. É na ampliação das relações humanas, do intercâmbio efetivado pelos seres humanos que o conceito extrapola o âmbito familiar, de elite política ou religiosa e adquire Diversidade, 2005; SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ, 2007. 22 característica pública, desligando-se da hereditariedade, transitando para uma identificação de laços comunitários. Embora haja, nesse contexto, a segregação e hierarquização dos grupos sociais, porém, de acordo com Hofbauer (2006, p. 35), é apenas lentamente, acompanhando reestruturações nos campos social, político e econômico, essa ideia (da cor) passou por um processo de naturalização. Assim, durante muito tempo, a “cor de pele” não foi vista como um dado natural objetivo (ou biológico). “Preto/negro” representava, em primeiro lugar, o mal, o moralmente condenável, o pecado, enquanto o “branco” expressava o divino e a pureza da verdade. A partir do iluminismo, período em que a filosofia é concebida como ferramenta de enfrentamento dos problemas existentes no século XVIII, os filósofos empreendem estudos visando a descentralizar o conhecimento monopolizado no seio das bibliotecas em poder do segmento clerical e, nesse contexto, as questões relacionadas ao conceito passam a ser objeto de reflexão para os filósofos. Segundo Lipko e Pasquo (2008), em fins da metade do século XVIII, Linneo classifica a espécie humana em seis raças, principalmente por meio da cartografia, com o intuito de dividir os seres humanos e, além de estudos cartográficos, utiliza como critério a cor da pele e os comportamentos no que se refere ao temperamento e à postura. Conclui, em seus estudos, que os povos americanos são “tenazes e pacientes”; os asiáticos “soberbos e mesquinhos”; os europeus “vivos e inventivos”; adjetivou os africanos de “astutos e negligentes”. Embora feitas as classificações dos diversos povos estudados por Linneo, não houve a intenção de hierarquizá-los, porém, serviu para classificações posteriores, por exemplo, de Johann Blumennbach (1752-1840) que altera a proposta de Linneo, classificando as categorias como variedades, atribuindo o conceito de caucásio para os europeus; o africano é denominado como etíope; o amarelo como variedade mongólica, considerando os habitantes da Ásia Oriental, incluindo a China e o Japão; entre os americanos, havia os povos de variedade vermelha. Essa nova forma de classificação entre os povos é hierarquizada pelo autor à medida que os caucasóides passam a ser considerados como os mais belos do mundo. Assim, para Dunn e Dobzhansky (1949 [1946]) apud LIPKO; PASQUO (2008), é a primeira classificação biológica hierárquica dos grupos que havia nas variadas partes do mundo. Diferentes pensadores sistematizaram o conhecimento milenar por meio das enciclopédias como, por exemplo, Denis Diderot (1713-1784), que organiza inúmeros conhecimentos, desde o naturalismo, perpassando pela arte, ciência, matemática, anatomia, biologia, filosofia da natureza e política, baseada no experimentalismo herdado de Bacon e Descartes. O ponto de partida dos representantes do período da Ilustração é indagar o que é o homem, o que é a sociedade e, dentre outras questões, encontrar respostas para a sociedade, 23 que estava às vésperas da revolução burguesa, cuja classe – a burguesa – em ascensão, perspectivava politizar as massas com o intuito de consolidar o poder político e desmontar definitivamente a organização societária baseada no poder feudal. Almejando sistematizar o conhecimento, para os filósofos das luzes não havia limite nessa empreitada, pois era necessário se apropriar do conhecimento do mundo, principalmente no que se refere ao ser humano. Não somente as elites, mas os filósofos do século XVIII obtinham seus conhecimentos em relação ao mundo a partir das informações de relatores e viajantes, desde o século XVI, momento em que os colonizadores intensificaram suas viagens aos continentes alhures à Europa. Em A Invenção do Ser Negro: Um Percurso das Ideias que Naturalizaram a Inferioridade dos Negros (2002), a filósofa Gislene Aparecida dos Santos (2002, p. 32), num estudo exaustivo sobre a produção dos filósofos concatenado com a ideia de raça, afirma que a “África, América, Ásia e a Europa são estudados quer in loco, quer através de relatos de viajantes que realizavam constantes expedições pelo interior dos novos continentes3”. Além de Diderot, também David Hume (1711-1776), Georges Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), François Marie Arouet, conhecido popularmente como Voltaire (1694-1778), e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Em suma, é uma filosofia contraposta ao pensamento teológico, a qual se compromete com a razão, cujo homem é o centro e cuja sistematização do conhecimento, realizada por meio da filosofia, era para encontrar respostas a partir da realidade concreta, no seio do mundo dos homens e não por meio da divindade, conforme ocorria na sociedade feudal. Nesse processo de organização e produção sobre o conhecimento acumulado, havia uma corrente de pensadores comprometida com a filosofia do progresso, isto é, em comparação com a sociedade feudal considerada estagnada, os iluministas centraram a sua produção com escopo de impulsionar a sociedade em busca do desenvolvimento da civilização. Os estudiosos das Luzes quando atinavam para a América, associavam esse continente com a escravidão, cujo trabalho compulsório era realizado pelo negro. Embora a finalidade fosse afirmar a universalização dos homens, os iluministas almejavam identificar quais eram as bases e os fundamentos – político e jurídico – que legitimavam o trabalho escravo. 3 Segundo “Michèle Duchet, as bibliotecas de Voltaire, Holbach, Turgot, De Brosses eram ricas em relatos de viagens sobre a África e as Índias Ocidentais, mapas, compilações e histórias gerais sobre os continentes. Outra fonte de informação para os filósofos eram os administradores das colônias que descreviam a vida nas regiões sob seus cuidados. A partir desses relatos, os filósofos construíram sua antropologia, sua teoria política acerca desses povos” (SANTOS, 2002, p. 32). 24 Na medida em que os filósofos vão ampliando seus conhecimentos sobre os povos não europeus, se consolida a terminologia a respeito deles, como “negro”, “hotentote”, “chinês”, “América” e tantos outros que dizem respeito às singularidades humanas. Nesse itinerário, Diderot (1778-1779, Tomo 22, p. 835 apud SANTOS, 2002, p. 32) descreveu a África da seguinte forma: “Não somente sua cor os distingue, mas eles diferem dos outros homens, pelos traços de seu rosto, narizes largos e chatos, lábios grossos, lã no lugar de cabelos, que parecem constituir uma nova espécie de homem”. Desta forma, vemos como os iluministas, por meio da descrição, foram construindo o conceito sobre os africanos, tendo como mote a compreensão sobre as diversidades singulares dos vários povos existentes no mundo. Daí o estudo e a sistematização das culturas, das formas de organização das etnias, principalmente em África. Diderot reconhece a relação estabelecida pelos seres humanos e aceita a existência da miscigenação4; parte do reconhecimento de que a humanidade tem elementos tanto da raça do branco, como da raça do negro. Todavia, por estar atrelado ao pensamento fundamentado no progresso, para o autor, o europeu não deveria se restringir apenas à busca da riqueza existente na América, mas a missão dos brancos europeus seria também levar homens e mulheres, jovens vigorosos e “inteligentes” para constituírem família, elemento típico civilizatório burguês, e os nativos do novo continente assimilariam traços da cultura civilizatória dos ocidentais (MUNANGA, 2004). Embora os filósofos das Luzes, de modo geral, acreditassem na universalização do homem, alguns filósofos, como Voltaire, por exemplo, viam a mistura entre os europeus e os povos de outros continentes, em específico os africanos, como prática inaceitável e inconcebível, pois não era normal o estabelecimento de relações entre povos diferentes. Esse filósofo acreditava que a miscigenação seria uma anomalia para a sociedade ocidental e repudiava qualquer mistura entre os homens de outras localidades que pudesse gerar outras “raças”. David Hume (apud COMAS, 1960, p. 15), dialogando com Voltaire, afirma: “Estou propenso a crer que os negros são naturalmente inferiores aos brancos”. Recusando a ideia de 4 Aqui nos cabe introduzir uma passagem relacionada ao assunto em tela: a América analisada por Diderot já é caldeamento das três culturas, e ali a mestiçagem conservou o melhor de cada raça: adaptação ao clima e ao meio ambiente dos autóctones; a força e os dons artísticos dos negros e as luzes dos europeus. Na América do Norte, uma nova Atenas vai tomar o lugar da Europa fatigada. A regra geral está colocada desde 1770: no Rio de la Plata, os espanhóis eram sitiados pelos “selvagens”. O casamento realizado com as índias parece apropriado para diminuir a extrema aversão pelos “selvagens”. Da união dos dois povos tão estranhos um ao outro nasce a raça dos mestiços, que, com o tempo, torna-se comum em toda a América Meridional. Assim, o destino dos espanhóis de todos os países do mundo é ter um sangue misturado. O dos mouros corre ainda em suas veias na Europa; o dos “selvagens”, num outro hemisfério (MUNANGA, 2004, p. 26). 25 igualdade entre os homens, Renan (1823-1892) e Taine (1828-1893) (apud COMAS, 1960, p. 15), defendem que os “gregos, bárbaros, hindus, o homem da Renascença e o homem do século XVIII foram todos forjados no mesmo molde”. Ao contrário de Voltaire, Buffon acredita que a miscigenação é valiosa para as relações entre os homens, como categoria intermediária entre os homens e que, por meio da mescla entre os povos, a humanidade estaria progredindo. Nesse caminho, partindo da perspectiva naturalista, Diderot e Buffon são os únicos que concebem a miscigenação positivamente; por meio da mistura entre os povos, os seres humanos tomariam proporção universal. Emanuel Kant (1724-1804) não acreditava na concepção de Buffon. Para ele, a mestiçagem parece destinada a estragar o homem: “os produtos bastardos” – escreve Kant, num texto inédito de 1790 – “degradam a boa raça sem melhorar proporcionalmente a raça ruim” (MUNANGA, 2004, p. 28-29). Em seu livro Observações Sobre os Sentimentos de Beleza e de Sublime afirma: Os negros da África não têm por natureza nenhum sentimento superior à frivolidade. O Sr. Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo de um negro que tenha mostrado talentos, e assegura que entre as centenas de milhares de negros que foram transportados de algum lugar de seus países, embora muitos tenham sido colocados em liberdade, ainda assim nenhum foi jamais encontrado que apresentasse qualquer coisa de grande matéria de arte e ciência ou qualquer outra qualidade elogiável, embora entre os brancos alguns continuamente ascendam das mais baixas ralés, e por meio de talentos superiores ganham respeito do mundo. A diferença entre estas duas raças de homem é tão fundamental, e parece ser tão grande com relação às capacidades mentais quanto na cor. (KANT apud AZEVEDO, 2004, p. 121-122). Os iluministas, calcados na ideia de progresso, consolidam uma visão fragmentada e hierarquizada entre os homens. Na tentativa de compreender a universalidade humana, embora presos à concepção de progresso, a naturalização entre os povos é assimilada pela filosofia do Iluminismo, pela qual homens brancos passariam a ocupar a ponta da sociedade – o topo do mundo – e, os negros, a base. Os brancos europeus são os mais desenvolvidos, livres; em contrapartida, os demais povos são guiados pelas necessidades naturais e não conhecem a liberdade; os povos estudados pelos filósofos das luzes se encontravam estagnados, não se desenvolveram, não viviam em sociedade, logo, eram inferiores. Em outras palavras, classificaram e hierarquizaram os povos colocando-os entre “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”; “civilizados” e “selvagens”; povos que detêm cultura “superior” e “inferior”. O pensamento iluminista, ao hierarquizar os povos, constroi um tipo de pensamento sobre os povos não europeus que, de modo geral, têm culturas exóticas, histórias 26 diferenciadas e expressões culturais singulares. Ou seja, são concepções que contribuem para consolidar uma representação de outros povos, a partir da perspectiva da realidade dos europeus. Com o pensamento voltado para a Europa, os filósofos solidificam uma concepção específica de povo pela qual todos os homens estariam referenciados pelos brancos europeus. Para a burguesia, tais ideias serviram de ferramentas para legitimar o controle político e o econômico sobre os povos “estranhos” e contribuíram para efetivar seu projeto para o resto do mundo. Portanto, o pensamento iluminista, dentro das suas especificidades, oferece elementos para a hierarquização entre os povos que mais tarde culmina em mais uma justificativa de domínio sobre os povos não brancos. É nesse quadro que o racismo, no século XVIII, ganha outra roupagem. A burguesia que estava nascendo, alçando maior voo, cavando espaço no seio do Estado para impor suas demandas, prestes a estabelecer o poder político que só se consolida em 1789, elabora os lemas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, com o objetivo de difundi- los em toda a Europa e demais países. Assim se consolida a ideia de universalização do modelo do homem europeu para ser difundido entre outras sociedades. Contudo, as produções dos filósofos do Iluminismo têm suas limitações; os escritos dos filósofos da modernidade evidenciam que, para pensar um tipo de homem era necessário interligar com a raciologia e a consequência é a construção, mistificação e mitificação dos povos externos à Europa e a ampliação do “conceito de raça”5. A raça sob o manto da ciência6 Na passagem do século XVIII para o XIX, uma das questões que pairava nos círculos dos cientistas e intelectuais era a controvérsia a respeito do “processo civilizador” e quem poderia ser concebido como “civilizado”. O primeiro a responder tal indagação foi o Dr. Robert Knox (1791-1862), um dos ideólogos do conservadorismo inglês. Knox estudava crânios e cadáveres, além de exercer o trabalho de cirurgião em Edimburgo. Em seu ensaio publicado em 1850, Raças Humanas, afirma que os negros não poderiam tornar-se 5 Embora o principal expoente do movimento eugenista seja tema do capítulo II desta pesquisa, o conceito de raça utilizado por Renato Kehl não é o apresentado até o presente momento. Isto é, Renato Kehl não concebia raça na perspectiva da antiguidade e tampouco dos iluministas, embora verificassem que as primeiras catalogações dos homens no âmbito racial deram-se no século das luzes, o objetivo dos filósofos foi identificar a universalidade dos seres humanos, perspectiva esta que Renato Kehl não compartilhava. Tais apontamentos ficarão mais evidentes quanto adentrarmos propriamente na produção de Kehl. 6 As bases da consolidação do conceito de raça, para os protagonistas do movimento eugênico, são nutridos a partir do século XIX, período denominado como o Século da Ciência. A denominada “inferioridade” dos povos não europeus e o racismo tinham de ser comprovados a partir da “ciência”, pois os autores apresentados nesse contexto foram fundamentais para balizar o pensamento eugênico, inclusive de Renato Kehl, principal expoente do movimento eugenista no Brasil. 27 civilizados. As raças superiores deveriam dominar as inferiores porque era natural; a raça superior teria de extinguir as mais fracas. O norte-americano Samuel George Morton (1799- 1851), outro estudioso e comerciante de crânios, compartilhava das ideias defendidas por Knox e, ao realizar seus estudos, conclui que havia diferentes espécies no planeta, concebendo os tasmanianos, africanos, indígenas, como inferiores e desprovidos de qualidades humanas. Ainda nessa perspectiva, destaca-se o britânico Thomas Carlyle (1795-1881), renomado historiador e ensaísta, que dedicado aos estudos de literatura alemã, traduz autores de expressão, como Goethe, Hoffman e Schiller, e publica, em 1850, o ensaio Discurso Ocasional Sobre a Questão Negra. Além de ser lido pelo círculo vitoriano, seu trabalho objetiva fazer apologia ao retorno da escravidão nas colônias britânicas, provocando discussões em diversas revistas publicadas na época em que raça era motivo de polêmica. O texto de Thomas Carlyle – uma das súmulas do pensamento conservador europeu – aclamado pelos intelectuais contemporâneos, defende a tese da desigualdade como única forma de manter a permanência da sociedade, cabendo, aos que detinham conhecimento, mandar nos ignorantes; aos homens, dominar as mulheres; aos brancos, subordinar os negros; e, por fim, aos letrados, controlar as massas. O resultado dessa propositura é constatado em 1865, quando a população de Morant Bay, leste da Jamaica, é reprimida pelo governo como resposta ao questionamento do fórum existente no interior daquela região7. O governador Edward Eyre promulga lei para restabelecer a ordem por meio da força, e dá o aval aos soldados para matar todos os manifestantes, num total de 500 mortos, 600 pessoas açoitadas e mil casas incendiadas. A ação repercute na Europa, em particular na Inglaterra, onde chega a ir para o tribunal inglês. Os que foram contrários à ofensiva, acusam o governador de genocídio, que é absolvido, com o argumento de que só a violência controlaria os negros, já que é uma 7 Essa repressão ocorre no período de convulsão social na Jamaica, tendo em vista que os grandes proprietários de terra (brancos) não aceitavam que os ex-escravos tivessem quaisquer direitos e cobravam taxas abusivas e promoviam julgamentos ao povo. Nesse ambiente, surgem rumores de que os latifundiários queriam voltar a escravidão e, além disso, após os massacres dos europeus, durante a Rebelião Indiana de 1857, a população britânica na Jamaica, como em muitas outras colônias britânicas, estava com receio de uma sublevação negra. Nesse contexto, há a tentativa de uma marcha, encabeçada por Bogle (considerado um herói nacional da Jamaica devido à Revolta de Morant Bay) direcionada à sede do governo clamando por justiça racial. Em 1865, ocorre o julgamento de dois negros que residiam na mesma localidade de Bogle. Ele e alguns homens vão até Morant Bay para dar apoio aos acusados, até porque havia mandado de prisão expedido para o próprio Bogle. Um homem seria preso injustamente, e Bogle intercede e evita que a polícia o prenda. Em seguida, volta para sua cidade, Stony Gut, e a polícia passa a persegui-lo. Nessa ocasião, toda a população negra oprimida dà suporte a Bogle. Assim, marcham em protesto para a sede do governo novamente e são recebidas a tiros; cerca de 20 pessoas do grupo de Bogle são mortas. O grupo volta para Stony Gut, perseguido pelas tropas do governo inglês de John Eyre, e assim se constitui a chamada Revolta de Morant Bay, que ocorre no dia 11 de outubro de 1865. 28 linguagem que entendem. A absolvição do governador Eyre é arquitetada por Carlyle, com anuência de outras personalidades proeminentes daquele período, como John Ruskin, crítico de arte; William Makepeace; Thackeray, autor de A Feira de Vaidades; Charles Kingsley, autor de Os Meninos Aquáticos; e Charles Dickens. Todos apoiam o massacre dos jamaicanos. Segundo Skidmore (1989), a burguesia europeia, ao tornar-se potência de classe, tanto econômico quanto politicamente, consolidando os continentes não europeus à sua subordinação imperialista, permite que parcela expressiva de pensadores inicie empreitada com a finalidade de explicar o sucesso da classe à qual estavam a serviço. Os ideólogos tinham de justificar o objetivo da burguesia do velho mundo, mas sob o manto da “ciência”, cujo foco era vangloriar o êxito da burguesia europeia. O racismo não poderia ser justificado somente por meio da filosofia, visto que o século XIX é o período em que se consolidam outras “ciências”; por essa razão, os intelectuais orgânicos da burguesia lançam mão de novos ramos da ciência: a Antropologia e a Etnografia. Tais ciências buscam compreender as “diferenças” entre os vários grupos humanos e os tipos de sociedades que, aos olhos dos europeus, eram estranhos a eles. De fato, na Antropologia Física, já estava contido o conceito de “raça”8, pois as diferenças entre os povos, como os africanos, europeus, mongóis, caucasianos, já eram identificadas (HOBSBAWM, 2001). No âmbito da Antropologia Física, uma discussão precisa ser explicitada e se refere à oposição entre monogenistas e poligenistas, fixistas e transformistas. Os partidários da monogenia defendem a tese de que todos os seres humanos têm origem única, ao passo que os adeptos do poligenismo afirmam que a origem dos seres humanos está nas diferenças e origens raciais; o segundo grupo divergente, no seio da Antropologia Física, é o dos fixistas, cuja crença era que as espécies não se transformavam por ação do tempo ou do meio ambiente; e, por fim, os transformistas, que acreditavam na mudança das espécies ao longo do tempo e subordinada às condições ambientais (LEMOS, 2000). Valendo-se das “teorias das invasões”, os partidários da burguesia europeia passam a justificar o motor da história não a partir das contradições de classes, mas por meio da luta de raças9 e, nessa esteira, consolida-se a Antropologia como a ciência que tem como sustentação 8 “Com efeito, o termo raça é introduzido na literatura mais especializada em inícios do século XIX, por Georges Cuvier, inaugurando a ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos [STOCKING, 1968: 29]. Esboçava-se um projeto marcado pela diferença de atitude entre o cronista do século XVI e o naturalista do século XIX, ‘a quem não cabia apenas narrar, como classificar, ordenar organizar tudo o que se encontra pelo caminho’” [Sussekind, 1990:45]” (SCHWARCZ, 2007, p. 47). 9 De acordo com Lemos (2000, p. 101), um dos pioneiros a conceber essas argumentações foi Thierry e Guizot, ao desenvolverem uma série de trabalhos, ao longo da segunda metade do século XIX. Segundo essa autora, o 29 os conceitos elaborados nas ciências da natureza. Conforme acentua Maria Alzira Lemos (2000, p. 100): Buffon, na História Natural do Homem (1749), aportou as bases deste campo conceitual. Ele teria sido o pioneiro em considerar o ser humano desde o ponto de vista naturalista, ou seja, de uma História Natural geral e particular. A concepção de Buffon funda um saber sobre o homem, presumidamente baseado na observação, constituindo, portanto, uma ciência positiva, “avaliada” como verdade a qual culminaria na Antropologia Física. Na mesma obra, aparece o conceito de degeneração, que passaria, no século XIX, do âmbito da História Natural ao da análise das civilizações. A Antropologia, como nova disciplina, passa a ser utilizada como instrumento de estudo entre o “eu” e o “outro”; na comparação entre os povos sobre suas culturas, religião, formas de organização política, produção econômica; em suma, nada, aos olhos dos antropólogos, deve ser poupado, pois é necessário estudar tudo sobre o outro. A extensão da Antropologia Física envolve a Organologia, que passa a ser conhecida popularmente como Frenologia10, e tem como precursor Franz Joseph Gall11 (1758-1828). Após consolidada, essa ciência passa a ter receptividade em toda a Europa, em destaque na Escócia, e é introduzida nos Estados Unidos da América, por Johan Caspar Spurzheim (1776- 1832), discípulo de Gall. A tese dos partidários da Frenologia12 era comprovar a “inferioridade” dos povos não brancos; nesse caso, os negros, indígenas, asiáticos e até mesmo europeus da região sul. termo Antropologia aparece em 1751 na Enciclopedia, a partir da Fisiologia e, particularmente, a partir de Blumembach (1752-1840) e Camper (1722-1789), “o termo e a noção de Antropologia passam a ser amplamente empregados na via positiva de uma História Natural do ser humano, no sentido que adquiria na segunda metade do século XIX como os trabalhos de Jean-Jaques Chenu e Paul Topinard (1830-1911)”. 10Disciplina base para o pensamento eugênico e da qual Renato Kehl se vale a fim de afirmar o caráter do “homem criminoso”. 11 De origem austríaca e de família de comerciantes, Franz Joseph Gall faz seus estudos de medicina em Estrasburgo, antes de ser recebido como doutor em medicina, em Viena, em 1785 (DARMON, 1991). Anatomista, é o primeiro a realizar o “desdobramento” das circunvoluções encefálicas, a fim de comprovar que o cérebro não é um órgão simples. Segundo Darmon (1991), Gall, quase meio século antes de Broca, fala de localizações cerebrais e demonstra sua existência, quando afirma: “Um esforço mental contínuo não cansa igualmente todas as faculdades intelectuais: o cansaço principal é apenas parcial, de sorte que podemos descansar ainda que continuemos nos ocupando, desde que troquemos de objeto; o que seria impossível se, num esforço mental qualquer, o cérebro inteiro estivesse igualmente ativo” (GALL apud DARMON, 1991, p. 23). Gall defende a tese de que a morfologia craniana é modelada pela forma do cérebro em função da personalidade do indivíduo. Em 1796, para pulverizar seus estudos, promove um curso em Viena, mas as autoridades imperiais o acusam de materialista e é impedido de lecionar sua doutrina. Para Darmon (1991, p. 25), a originalidade de Gall está em seu pensamento criminológico, pois “repousa sobre a singular novidade de suas ideias em matéria de sanção penal. Em sua opinião, a pena deveria ser estabelecida não em função do delito, mas do criminoso. ‘Os graus de culpabilidade e de expiação’, ele escreve, ‘diferem segundo a condição do indivíduo’ (o futuro ‘criminoso nato’ de Lombroso), ou por um indivíduo vítima das circunstâncias (o futuro ‘criminoso ocasional’ de Lombroso). As prisões deveriam, portanto, ser concebidas como casas de educação para todos aqueles que são educáveis, e como locais de internação para os criminosos destinados ao crime em razão de sua organização fisiológica viciosa”. 12 Para uma leitura ampla sobre o tema, ver especialmente o livro do Historiador da Medicina, Pierre Darmon – Médicos e Assassinos na “Belle Époque (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991). Seus estudos abrangem a formação 30 Seguindo o lastro de Comas (2000), essa ciência é híbrida, pois contém elementos da Psicologia Primitiva, Neurociência e Filosofia da Prática que, em pouco tempo, se introduz nas ciências e humanidades do século XIX. Por isso, Comte13 a classifica, em função de seus elementos, como ciência positiva. Outra característica da Frenologia, que tem íntima ligação com a produção de Renato Kehl, é repudiar a unidade entre os homens e, ao afirmar cientificamente que a espécie humana não é homogênea, estabelece padrões e diferenças entre os seres humanos. Ao estudar as partes do corpo do ser humano, Gall afirma que o cérebro é o órgão do espírito que comanda os outros órgãos do corpo. Desta forma, conclui que os atributos morais e intelectuais são inatos aos seres humanos. A preocupação em estudar a anatomia do cérebro tem como centro afirmar que neste estão contidas muitas partes especializadas em termos de funções. A tese de Gall foi assimilada como ferramenta para “justificar as diferenças entre os seres humanos como para inspirar uma maneira de ver a anatomia do cérebro que perdura até nossos dias”. (LEMOS, 2000, p. 103). A escola escocesa concebe a Frenologia como instrumento educativo e ideológico, cuja finalidade é melhorar o acesso dos trabalhadores e da classe média. Introduzido por George Combe (1788-1858), adeptos das ideias liberais, que depositava a crença de que na Frenologia havia o caminho para a melhoria dos indivíduos e para a construção de uma sociedade justa (se o Estado não adotasse a política da Frenologia como instrumento educativo, a consequência seriam trabalhadores com qualidades inferiores14). Em meados do século XIX, essa ciência ganha mais fôlego com a Craniometria Técnica, cujo principal representante é Andrés Retzius, e que possibilitou o desenvolvimento dos estudos quantitativos relacionados às “diferenças” do cérebro humano. Um dos entusiastas pela Frenologia é Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), influenciado pela teoria da seleção social. Logo, a escola darwinista-social – abordada a dessas disciplinas ancorada na corrente positivista, além de abordar os fundamentos da Antropologia Criminal e a Medicina Legal. 13 Augusto Comte (apud LEMOS, 2000, p. 85-86), em seu Curso de Filosofia Positiva, também concorda com a superioridade do europeu: “Sem dúvida, se adverte, no primeiro aspecto e na organização característica da raça branca, e sobretudo com respeito ao aparato cerebral, aspectos químicos e biológicos alguns gérmens positivos de sua superioridade real; de todos os modos, os naturalistas modernos estão muitos longe de coincidir razoavelmente neste aspecto. Além disso, desde o segundo ponto de vista, podemos entrever, de modo um pouco mais satisfatório, diversas condições químicas e ainda biológica, que seguramente influíram, em certo grau, sobre a propriedade eminente dos países europeus de ser até aqui o cenário essencial desta evolução preponderante da humanidade”. 14“Até o momento presente, a massa popular, desfavoravelmente situada para o desenvolvimento de sua natureza racional, tem permanecido essencialmente ignorante e susceptível de se converter em instrumentos de interesses de seus dirigentes ou em vítimas de seus próprios impulsos cegos.” (COMBE, 1848 apud LEMOS, 2000, p. 103). 31 seguir – com profundos estudos de Zoologia e Antropologia, fundou a escola de Antropossociologia e colecionou cerca de vinte mil crânios com o objetivo de estudá-los para comprovar a inferioridade dos povos não brancos. Defendia a tese de que as “raças” são espécies distintas e que o destino dos arianos estava em comandar o mundo e, aos demais, cabia obedecer. Concebia a escravidão como fator natural, inclusive biológico, pois a associava aos animais; para ele, escravizar o outro era semelhante à domesticação do cavalo ou boi. Ao judeu, atribuía inúmeros defeitos. Suas ideias perduraram até a Segunda Guerra Mundial e influenciaram a extrema direita intelectual, inclusive os adeptos do fascismo. Conforme aponta Sacarrão (1989), Lapouge oferece arcabouço teórico aos propagadores do nazismo e é seu precursor imediato. Cabe ainda ressaltar que, em primeira instância na Europa, conforme já abordado, a Frenologia possibilita a criação de importante especialidade no âmbito da Antropologia, qual seja, a Antropologia Criminal, cujo principal representante é o italiano Cesare Lombroso (1836-1909). Nascido em Verona, caçula de cinco irmãos e irmãs e membro de família israelita, entre os anos de 1859 e 1863 atua como médico do exército e, em 1864, promove o curso de Psiquiatria, na Universidade de Pavia, e também dirige o asilo de “alienados”, na mesma cidade. Em 1876, obtém, por meio de concurso, a cátedra de Medicina Legal na Faculdade de Turim. Conforme demonstra Pierre Darmon (1991), Lombroso15 já havia publicado “várias obras sobre a temperatura externa e interna dos cadáveres, sobre os ferimentos causados por armas de fogo e, principalmente, sua obra mestra ‘O homem criminoso’, que foi publicada em 1876 e teve sucesso imediato na Itália e no mundo inteiro.” (DARMON, 1991, p. 36). No ano de 1880, funda seu primeiro jornal L’Archivio di Psichiatria, Scienze Penali ed Atropologia Criminale, e publica uma coleção de livros, cujo fito é propagar suas ideias (DARMON, 1991). Além de escrever artigos, lecionar, obteve posição de destaque no ano de 1885 como presidente do Primeiro Congresso Internacional de Antropologia Criminal, sediado em Roma. 15 É no Sexto Congresso de Antropologia Criminal, realizado em Turim, em 1906, que Lombroso relata a origem e a descoberta que vai inflamar a criminologia: “Em 1870, eu prosseguia há vários meses, nas prisões e nos hospícios de Pavia, em cadáveres e em vivos, pesquisas que visavam fixar as diferenças substanciais entre os loucos criminosos, sem chegar a um resultado: de repente, numa triste manhã de dezembro, encontro no crânio de um malfeitor toda uma longa série de anomalias atávicas, sobretudo uma enorme fosseta occipital média [abertura situada no nível da parte inferior da caixa craniana que dá passagem ao eixo cérebro-espinal] e uma hipertrofia da fosseta vermiana [região mediana do cérebro] análogas às encontradas nos vertebrados inferiores. À vista dessas estranhas anomalias, como se tivesse surgido uma grande planície sob um horizonte em chamas, o problema da natureza e da origem do criminoso pareceu-me resolvido: os caracteres dos homens primitivos e dos animais inferiores deviam reproduzir-se em nosso tempo”. (LOBROSO apud DARMON, 1991, p. 35). 32 Segundo Darmon (1991, p. 37), nesse congresso, Lombroso “impõe suas concepções como se fossem dogmas e afirma sem rodeios que sua teoria do criminoso nato predisposto ao crime por sua constituição física não é passível de discussão por ser resultado da observação positiva dos fatos”. Cesare Lombroso interpretava os atos criminosos como atributos físico e hereditário; dedicou-se a pesquisar a doença mental e foi a partir dessa “ciência” – a Antropologia Criminal – que se intensificaram os estudos sobre a loucura. Assim, a atitude tomada como loucura passou a ser classificada por meio de um atributo moral, logo, concluía-se que relacionava-se com a degeneração de cunho racional16 (SCHWARCZ, 2007). Em seus empreendimentos, Lombroso acreditava fielmente na viabilidade da sua teoria, porém, pouco a pouco, e como inconscientemente, deixa-se invadir pela teorias sociológicas, de sorte que no seu último livro, O crime, causas e remédios [grifo do autor], sem que eu tenha renunciado ao criminoso nato, acaba rendendo uma homenagem às teorias de Lacassagne17./.../. Por natureza, Lombroso era, dizia-se, de uma imensa bondade. Praticava a caridade, não fazia mistério de suas ideias socialistas e inflamava-se como um jovem por todas as grandes causas. Conta-se que na noite de 18 de outubro de 1909 ele foi tomado por um mal-estar cardíaco quando soube da execução do anarquista Ferrer. Morreu algumas horas depois de uma crise aguda de assistolia. Seu corpo foi transportado de seu domicílio de Turim, via Legnano, para o Laboratório de Medicina Legal, para, de acordo com suas ultimas vontades, ser autopsiado por seu genro e aluno preferido, o Prof. Carrara. Mas, na última hora, este não conseguiu decidir-se a realizar a tarefa, que foi confiada ao Prof. Tovo. Seu cérebro, com o peso bastante medíocre de 1.308 gramas, foi confiado ao Prof. Boero e conservado nas coleções do Instituto de Anatomia Normal, segundo seu desejo. (DARMON, 1991, p. 39). No interior do continente europeu, temos registrado na história a consolidação da Sociedade Antropológica de Paris, cujo principal expoente é Paul Broca (1824-1880) que, além dos estudos sobre anatomia, se dedicou a investigar o homem por meio da Frenologia. Nos Estados Unidos, a Frenologia encontra receptividade por meio de Samuel George Morton. O século XIX é palco da reconfiguração do capital, da solidificação das novas ciências e, nesse contexto, ocorreram acirrados debates acerca da abolição da escravatura, dos Estados Unidos da América até o Atlântico Sul. Paradoxalmente, nesse mesmo período, a burguesia financia a sistematização das teorias racistas, a fim de reforçar as diferenças entre os diversos 16 “A Frenologia alcança tal visibilidade que acaba sendo amplamente utilizada. Inventam-se jogos, proliferam cursos, criam-se museus, assim como tomam forças novos modelos artísticos como a caricatura, que encontra na Frenologia vasto material de inspiração.” (SCHWARCZ, 2007, p. 49). 17 Alexandre Lacassagne (1843-1924) é um médico francês e criminologista, e fundador da Escola Lacassagne da Criminologia, com sede em Lyon, e um dos principais opositores da escola de Lombroso. Ao contrário do autor de O Homem Criminoso, Lacassagne acreditava que a raiz da criminalidade não estava na hereditariedade, ao contrário, advertia ser resultado das causas sociais. 33 povos. A forma de conceber os estudos sobre o cérebro tinha como fito “captar” e demonstrar comportamentos, diferenças entre os homens, cujo telos pretendeu legitimar o controle de uma burguesia vitoriosa. Difusão das ideologias racistas e suas escolas Ao elaborar as ideias acerca dos povos não brancos, os ideólogos do racismo vão ramificar escolas, de forma a justificar a “inferioridade” inata de outros povos, ancorados na “ciência”. São escolas como a étnico-biológica, a escola histórica e a denominada darwinismo-social. A primeira (escola étnico-biológica), organiza-se nos Estados Unidos nas décadas de 1840 e 1850. Seus adeptos defendem a tese de que as raças humanas são criadas a partir de transformações diferentes das espécies. Seus expoentes foram Samuel Morton, Josiah Nott e George Gliddon, que publicaram vários estudos para “provar” que havia, nas raças humanas, diferenças fisiológicas. Outro argumento defendido era a diferença entre os brancos, em relação aos negros e índios. Para eles, as diferenças podiam ser constatadas fisicamente e explicariam a criação entre diferentes espécies humana. “Nisso, a teoria ganhou importante apoio por parte de Louis Agassiz (1807-1873), o eminente zoólogo suíço, de Harvard, que se tornou o mais famoso propagandista científico da poligenia na América”. (SKIDMORE, 1989, p. 66). Louis Agassiz (1807-1873) defende a ideia de que as diferenças entre os animais resultam das especificidades existentes nas “províncias zoológicas” da terra, assim, acreditava que as diferenças entre as espécies do gênero humano estariam nas discrepâncias entre o clima das regiões que os homens habitavam. Dessa forma, a “superioridade”, as qualidades mentais e sociais do branco poderia ser explicada pela condição em que se encontrava; as “diferenças” físicas entre os povos poderiam ser explicadas por meio dos traços culturais, daí os argumentos em relação aos povos não brancos, os quais afirmavam que os negros eram inferiores no plano moral e no cultural. Tais referenciais seriam úteis para oferecer uma pretensa racionalização com o objetivo de subjugar os povos não brancos. Embora a escola étnico-biológica tenha seu berço nos Estados Unidos, sua propositura influenciou o continente europeu, em particular a Inglaterra, e, no Brasil, após Agassiz manter contato com antropólogos brasileiros, ministrou cursos no final do século XIX para as elites, cujos temas versavam sobre as “diferenças raciais” inatas até a “degenerescência”, devida à mistura étnica. 34 A escola histórica, segunda do pensamento racista, consolidada nos Estados Unidos da América e na Europa, teve como principal representante o conde de Gobineau18. Para essa escola, as raças humanas são diferentes umas das outras, isto é, acreditavam na diversidade entre os seres humanos, todavia, defendiam a tese da superioridade do branco sobre os demais povos, embasando seus argumentos a partir dos estudos etnográficos e anatomistas. Os expoentes dessa escola explicavam o desenvolvimento da sociedade como sucessões de vitórias obtidas pelas raças criadoras e, nesse caso, elegeram os saxônicos como os vencedores; pulverizaram o ideário de que a raça era determinante na história humana e esse argumento é compartilhado por Gobineau e por aqueles influenciados por seu pensamento: os ingleses Thomas Arnold, Robert Knox e Thomas Carlyle. A abordagem histórica do racismo amplifica o culto ao arianismo e, com Houston Stewart Chamberlain (1885-1927), o mais famoso secretário de Gobineau, membro da Sociedade Gobineau, cujos trabalhos ganham popularidade entre a classe dominante da Alemanha, além de ter sido intitulado como o antropólogo do Kaiser (KLINEBERG, 1966), cujo arianismo19 é assimilado como um dogma na Alemanha após a guerra franco-prussiana – 1870-71. Skidmore (1989, p. 67-68) afirma que: A impossibilidade da sua real verificação conferiu ao mito uma flexibilidade ideológica que tornou aplicável até mesmo na Inglaterra, onde a crença na 18 Em relação à produção teórica de Gobineau, ver o item 1.2 do Capítulo 1 desta pesquisa. 19 Sobre a discussão acerca do termo ariano, Juan Comas (1960, p. 38-39) assim trata a temática em seu texto:“As semelhanças fisiológicas entre o sânscrito, o grego, o latim, o alemão e o céltico observadas por W. Jones (1788) levaram Thomas Young (1813) a adotar o termo ‘indo-europeu’ para designar a raiz comum destas e de outras línguas. E logo se desenvolveu uma corrente que admitia a existência de um povo indo-europeu e J. G. Rhode (1820) o localizou na Ásia Central. Mais tarde J. Von Kalproth sugeriu que o termo ‘indo-europeu’ fosse substituído por “indo-germânico” que se generalizou nas obras de Prichard (1831) e F. Bopp (1833). Em 1840, F.A. Pott sugeriu os vales do Oxo e Iaxarte e as encostas do Hindu-Cuxe como local onde vivera o primitivo povo ariano; embora sem qualquer base sólida, essa hipótese foi aceita até o fim do século XIX. Com Max Müller (1861) difundiu-se a crença na origem asiática dos arianos; Müller repetidamente frisou sua opinião de substituir os termos ‘indo-germânico’ e ‘indo-europeu’ por ‘ariano’, baseado no fato dos povos que invadiram a Índia e cuja língua era o sânscrito se chamarem ‘árias’. Segundo Müller, a primitiva língua implicava a existência de uma raça, “raça ariana”, ancestral comum dos hindus, persas, gregos, romanos, eslavos, celtas e germânicos. Mais tarde, entretanto, reagiu contra a noção do ‘arianismo racial’ e, como veremos adiante, voltou ao ponto de vista de que este era um termo puramente linguístico. J. J. d´Omalius d´Halloy (1848-1864), R. T. Latham (1862), Bulwer Lytton (1842), Adolphe Pictet (1859 – 1864) e outros negaram a propalada origem asiática dos indo-europeus. Benfey (1868) sustentava que os arianos vieram das praias ao norte do Mar Negro entre o Danúbio e o Cáspio. Louis Leiger (1870) os localizou nas praias ao sul do Báltico e J. G. Cunok (1871) na área entre o Mar Norte e os Urais. D. G. Brinton (1890) acreditava que a pátria original dos arianos fora a África Ocidental, enquanto K. F. Johanson (por volta de 1900) admitia o ponto de vista de que as ondas de emigração ariana se originaram do Báltico. Peter Giles (1922) supunha que tivessem vindo das planícies da Hungria. V. Gordon Childe (1992) argumentava como sendo o sul da Rússia o seu local de origem, enquanto G. Kossina (1921) acreditava que procedessem do norte da Europa. Ao mesmo tempo havia outros, como R. Hartmann (1876), G. de Mortillet (1866) e Houzé (1906), que mantinham serem os arianos uma invenção da imaginação de certos escritores. ./.../. Isso nos deve levar à convicção de que a existência do chamado “povo ariano” ou “raça ariana” é um simples mito, uma vez que encontramos critérios puramente subjetivos utilizados na tentativa de determinar sua pátria, sem o menor fundamento cientifico ou baseado em fatos”. 35 superioridade da raça anglo-saxônica tornou-se complementar ao arianismo, em si mesmo. A teoria de que o ariano (ou anglo-saxão) tinha atingido o mais alto grau de civilização e estava, em consequência, destinado, deterministicamente, pela natureza e pela história, a ganhar o crescente controle do mundo – era sustentada por bem elaboradas monografias históricas. As visíveis exceções à tese de que não arianos jamais tinham produzido cultura digna desse nome, levavam a intricadas explicações de uma provável e indireta participação ariana, no jogo da história. Apesar de Chamberlain, genro de Richard Wagner (1813-1883), ser um inglês, defende a superioridade germânica e é defensor da teoria racista do “nórdico loiro dolicocéfalo”; propaga a utilização de termos como “raça teotônica” e “sangue teutônico”. Ao “loiro germânico” cabia colocar a missão divina que tinha a desempenhar e os “teutões” reputava como representantes da aristocracia da humanidade; os latinos não passavam de um grupo degenerado da população. Conclui com suas argumentações que a civilização é produto da “raça teutônica”20, “onde não penetra o elemento germânico não há civilização no sentido em que consideramos”. (COMAS, 1960, p. 41). A darwinista social21, terceira escola, tem como crença a evolução dos “supostos superiores”, baseada na “sobrevivência dos mais aptos” e na competição entre as diversas espécies – nesse caso, entre os homens. Nessa concepção, admitem que há discrepâncias entre as raças humanas, todavia, umas evoluíram e outras permaneceram estagnadas, condenadas à degeneração e resultando no seu desaparecimento. O negro é classificado, pelos darwinistas sociais, como espécie rudimentar, daí a utilização dos estudos de anatomia comparada, Frenologia e Etnografia. Na realidade, do ponto vista cientificista e da burguesia que financiava as escolas racistas, o darwinismo social sofisticou os argumentos que buscavam comprovar a superioridade dos europeus. Por esse fator, a escola darwinista ganha notoriedade no continente europeu e restante do mundo. Nesse sentido, o darwinismo social afia ainda mais a ferramenta do projeto da burguesia monopolista que, insistimos, estava se preparando para a partilha da África e a invasão na Ásia. Essa escola aprimora os argumentos para a agressão nazista, culminando nas Primeira e 20 Comas (1960, p. 41) dá um panorama de como o autor em tela concebia as construções do povo elencado: os “gregos arianos” foram bem-sucedidos nas artes, mas não possuíam o espírito de organização política como resultado da miscigenação entre sua raça e a semítica, contendo essa proporção de sangue negro. Pelo mesmo processo dessa imaginação louca, Júlio Cesar, Alexandre Magno, Leonardo da Vinci, Galileu, Voltaire, Marco Polo, Roger Bacon, Giotto, Galvani, Lavosier, Watt, Kant, Goethe, e muitos outros, são todos considerados “teutões” e Napoleão é considerado provavelmente como descendente dos Vândalos. 21 De acordo com Patrick Tort (2000, p.1120), o termo, impropriamente, denominado “darwinismo social” foi cunhado pelo engenheiro, jornalista, fundador da sociologia política, Herbert Spencer. Contribuiu para a fundamentação das “sociobiologias” ulteriores da história. Para além de ser fielmente recepcionado pelos ultraliberais, sua vertente sociológica representa as aspirações da burguesia industrial inglesa. Para Spencer, a sociedade é um organismo e evolui como tal; a adaptação é a regra da sobrevivência no interior de uma sociedade concorrencial entre os indivíduos, em que os menos adaptáveis são eliminados. Spencer estava tão convicto de seu pensamento que condenava aqueles que queriam ajudar os “menos favorecidos”. Assimilou de Darwin a teoria seletiva, portanto, para ele, havia na sociedade a regra de “sobrevivência dos mais aptos”. 36 Segunda Guerras; em última instância, o darwinismo social possibilita que a burguesia ganhe vigor, cujo ponto de partida é “comprovar” a inferioridade do negro e de qualquer grupo social que não fosse europeu (chineses, japoneses, dentre outros). O principal objetivo era estabelecer a hierarquia entre as raças22, apoiada no rompimento da história unitária, substituindo-a pela história natural. As escolas mencionadas criam argumentos para os precursores do neocolonialismo, a fim de intensificar seu domínio no mundo e, ao mesmo tempo, subordina os diversos povos ao seu bel-prazer, abrindo caminhos para emergir potências como Itália e Alemanha; Inglaterra e França; Estados Unidos e Bélgica. As escolas consolidadas com seus argumentos ideológicos, não somente drenam matérias-primas dos outros continentes e estabelecem seu controle sobre os outros povos, como também oferecem subsídios teóricos para aqueles países que almejam uma identidade enquanto nação e também construir um “tipo” de povo para compor a nação e conduzir seu processo de solidificação. São esses os elementos contidos na produção de Renato Kehl. Francis Galton: o precursor da eugenia como ciência Diante das contradições sociais e tendo em vista o contexto do capitalismo, no século XIX, um dos teóricos que sobressai no seio dos ideólogos da “teoria das desigualdades” é Thomas Robert Malthus (1766-1834). Em 1798, publica a obra Ensaio Sobre a População, cujo principal argumento é moralizar a pobreza. Para Malthus (1996), os seres humanos estavam nascendo numa proporção maior do que a produção de alimentos. Ao abordar a temática da pobreza, atribui o pauperismo aos próprios pobres e propõe como alternativa o controle de natalidade para viabilizar o desaparecimento dos menos “dotados”. Assim, com o controle populacional, a humanidade garantiria a própria existência na terra. O argumento para extinguir os “insignificantes” estava montado. Malthus deposita no Estado a responsabilidade de consolidar meios para frear a reprodução dos pobres e como estes, na sua concepção, eram os culpados por sua pobreza, preconizava políticas de Estado para o controle de natalidade desse segmento. 22Assim como o tipo do negro (...) é fetal, o tipo mongol é infantil. E, de acordo com isso, descobrimos que seu governo, literatura e artes também são infantis. Crianças sem barba cuja maior virtude consiste numa obediência sem questionamentos; (...) Trate-os como crianças. Faça-os fazer o que sabemos que é melhor para eles como é para nós, e todas as dificuldades com a China chegarão a um fim. (apud HOBSBAWM, 2001, 369-370). 37 Malthus, dem decorrência da referida tese23, é saudado pela oligarquia inglesa por oferecer sugestões para extinguir as perturbações sociais. Implícita ou explicitamente, “Malthus teve seguidores que prosseguiram a sua tarefa de impressionar o homem com o perigo da própria multiplicação” (AMARAL, 1979, p. 116). No final do século XIX, esse julgamento restitui um atributo científico a partir das ações encabeçadas pelo primo de Charles Darwin, Francis Galton (1822-1911), que, após constatadas as contradições vivenciadas no seio da sociedade inglesa, atribui natureza biológica aos comportamentos, como, por exemplo, a delinquência, prostituição, entre outros. Após estudar matemática em Cambridge, fica fascinado pelos estudos de estatística24, e descobre as singularidades nos sulcos das impressões digitais, que passam a ser a nova forma de catalogação para identificar criminosos. De acordo com Black (2003, p. 58), “O livro de Galton Finger Prints [Impressões Digitais] exibia em uma página suas dez digitais, como um logotipo pessoal”. Galton é o fundador da ciência eugênica, e disponibiliza as bases teóricas para a compreensão das gerações hereditárias e encontrar a solução para melhorar as características do conjunto da população. Apresentava uma teoria da seleção das características entre os indivíduos, ou melhor, dos grupos sociais. Para Galton, existiam dois grupos distintos: não degenerados e degenerados; os bem-sucedidos, limpos e puros e os sujos e impuros. Logo, a saída para o melhoramento dos homens estava na extinção dos “degenerados” da sociedade. Em seu livro, publicado no ano de 1869, Herança e Eugenia(1988), no capítulo Investigações Sobre as Faculdades Humanas e seu Desenvolvimento, Francis Galton, pela primeira vez, utiliza o termo eugenia e, ao escrever esse trabalho, em nota de rodapé, define o significado do conceito de eugenia: Isto é, em questões que tratam do que se chama em grego eugenes, ou seja, de boa raça, dotado hereditariamente de nobres cuidados. Está a palavra relacionada à eugenia, etc., são aplicáveis igualmente ao homem, aos animais e as plantas. 23Em seu artigo intitulado Explosão Demográfica: a Impostura e suas Implicações, Pompêo do Amaral (1979, p. 116) afirma: “Malthus não teve a ideia original, a respeito. O que preconizava para solução de problemas da humanidade não era outra coisa, com efeito, do que aquilo que muito antes recomendava Buda, que – em país que se tornaria um dos mais populosos do mundo, assolado com frequência pela fome e cuja população nada mais desejava do que procriar – induzia os pais a não terem filhos e as famílias a se extinguirem, proclamando que o melhor, para o homem, seria não ter nascido e apontando, como mal básico, a reprodução, pois importava em estender as cadeias da vida, com seus sofrimentos, a novos seres. Também, na Grécia antiga, a lei e a opinião pública aceitavam o infanticídio – não se reconhece o uso, entre os gregos, de qualquer anticonceptivo – como legítima prevenção contra o excesso demográfico”. 24Sua primeira contribuição data de 1861 quando realizou estudos sobre as estações meteorológicas na Europa; após distribuir questionários sobre o clima europeu, em especial no período de dezembro, ele desenhou mapas climáticos explicitando que as correntes dos ventos marcavam de forma repetitiva transformações na pressão. Esse estudo foi completado em 1863, num trabalho intitulado Meteorografia: ou Métodos de Mapear o Clima”. Tal empresa contribuiu para qualificar os estudos de meteorologia. 38 Desejamos ardentemente uma palavra breve que permite expressar a ciência da melhoria da matéria-prima, que de nenhuma maneira se limita a questões de emparelhamento judiciais, sendo que – e especialmente no caso do homem – toma conhecimento de todas as influências ainda que sejam em grau mais remoto, para dar às raças ou linhagens de sangue mais adequadas, uma maior possibilidade de prevalecer, com mais rapidez o que normalmente perduram fazer, sobre os meios adequados. A palavra eugenics expressaria suficientemente bem a ideia; é, ao menos, uma palavra mais clara e mais geral que viricultura que uma vez me aventurei a utilizar. (GALTON, 1988, p. 104). A eugenia seria o estudo para o melhor cultivo da “raça”. O termo eugenia é oriundo do inglês eugenics, a partir do grego eugénes, que significa “bem nascido”. Etimologicamente, o eugenismo (ou eugenia) é a ciência dos bons nascimentos; fundamentada na Matemática e Biologia, tinha como cerne identificar os “melhores” membros e estimular a sua reprodução e, ao mesmo tempo, diagnosticar os “degenerados” e evitar a sua multiplicação. Galton (2000, p. 129) classifica dois tipos de eugenismo que, de acordo com André Pichot, seria: (...) o eugenismo negativo e o positivo. O negativo pretende impedir a multiplicação de indivíduos supostamente “inferiores” na perspectiva biológica, psicológica ou intelectual. O eugenismo positivo, por outro lado, visa melhorar a sociedade fomentando a reprodução de indivíduos “superiores”, ou até organizando-a, quer em “coudelarias humanas” onde se solicita a reprodutores selecionados que procriem, que graças a bancos de esperma de grandes homens (poder-se-ia, hoje em dia, pensar em banco de óvulos). Registrando e analisando indivíduos, o primo de Darwin esforça-se por mostrar que as características dos seres humanos eram transmitidas de forma progênita. Em 1864, participa da Exposição Internacional de Saúde, em Londres, momento em que apresenta um conjunto de dados empíricos inaugurando o seu Laboratório Antropométrico para registrar, por meio de questionários, características físicas e intelectuais. Além de questionários, sua metodologia contempla oferecer recompensas em dinheiro aos familiares que respondem às suas indagações. Em dez anos, Galton cataloga em média 9 mil registros cujo resultado é a concretização de uma ciência da hereditariedade humana25. Assim, argumentava que “o mundo está começando a dar conta de que a vida do indivíduo é, no sentido real, uma prolongação de seus antecessores”. (GALTON, 1988, p. 116); que as características não se limitam apenas 25 “Os propósitos de suas pesquisas vinham descritos no panfleto promocional da seguinte forma: (1) Para o uso daqueles que desejam ser medidos de diversas maneiras com exatidão, e também para conhecer a tempo os efeitos remediáveis do desenvolvimento, e para conhecer os próprios poderes. (2) Para guardar um registro metódico das principais medidas de cada pessoa, do qual poderá, com algumas restrições razoáveis, obter no futuro uma cópia. Colocando suas iniciais e data de nascimento, mas não o seu nome. Os mesmos serão registrados em livro à parte. (3) Para obter informações sobre os métodos, práticas e usos das medidas humanas. (4) Para experimentação e investigação antropométricas, e para obter dados para discussão estatística”. (GALTON, 1988, p. 19-20 apud DEL CONT, 2008, p. 205). 39 aos aspectos físicos, mas também se manifestam pelas habilidades e pelos talentos intelectuais26 (DEL CONT, 2008). Ao ler a obra publicada em 1859, A Origem das Espécies (2009), de Charles Darwin, Galton conclui27 que seu primo havia identificado que os seres mais “fortes” sobreviveriam, em detrimento dos mais “fracos”. Todavia, argumentava que a tese de Darwin estaria invertida, pois os mais “fracos” estavam proliferando e, assim, acreditava na necessidade de (des)inverter tal lógica. A obra de seu primo torna-se subsídio para sustentar a sua argumentação e, ao mesmo tempo, Galton reivindica para seus estudos a incorporação dos preceitos de Herbert Spencer28 devido à sua concepção teleológica de processo evolutivo, tema fundamental para o seu construto teórico. Assim, Galton acredita que suas teses ganham mais solidez, uma vez que se baseavam nos consagrados Charles Darwin e Herbert Spencer. Os povos africanos são os mais destacados em seus estudos e pesquisas, em que procura determinar a diferença entre as posturas resultantes de causas “sociais” e as de cunho biológico. Pressupõe que o meio social, isto é, dada forma de relação societária não produz determinados comportamentos dos indivíduos, ao contrário, as características comportamentais são genéticas. 26 Nesta direção, Galton, ao iniciar seu livro Hereditary Genius, na Inquiry into its Laws and Consequences (2000, p. 1), afirma: “Proponho-me demonstrar neste livro que as capacidades naturais do homem são hereditárias, exatamente nos mesmos limites em que o são a forma e os caracteres físicos em todos os organismos. Por consequência, como é fácil, apesar destes limites, obter, através de cães ou de cavalos dotados de aptidões particulares para a corrida (...), seria inteiramente possível produzir uma raça humana sobredotada através de casamentos selecionados durante várias gerações consecutivas. Demonstrarei que atos sociais banais, de cujos efeitos nem sequer se suspeita, contribuem incessantemente para a degradação da natureza humana, enquanto outros contribuem para o seu aperfeiçoamento”. 27 De acordo com Tort (2000, p. 210-211), Darwin, na concepção de seus deturpadores, foi o inspirador das teorias das desigualdades, pois, “Durante mais de um século – e para França isso remonta à tradução problemática da Origem da Espécie, prefaciada de modo infeliz por Clémence Royer -, quis-se ver em Darwin o inspirador das teorias desigualitárias modernas, o grande defensor do eugenismo nas suas versões mais duras, o teórico da eliminação dos fracos, o grande legitimador naturalista do expansionismo ocidental e, especialmente, do imperialismo vitoriano, o ideológico fundador do “racismo científico”, o pai efetivo do “darwinismo social” da quase totalidade das sociologias biológicas evolucionistas, o credenciador justificador do egoísmo triunfante dos possuintes (...). Desta extraordinária confusão que ocultou a interpretação exata de Darwin durante tanto tempo, a da qual tantos comentários fundados sobre boatos e tantos prefácios absurdos a uma obra não lida são testemunhos, a responsabilidade cabe em primeiro lugar ao biombo postado à frente do darwinismo pelo evolucionismo filosófico de Spencer, sistema de pensamento que serve como quadro de referência ideológica integrado ao ultraliberalismo radical do industrialismo vitoriano, e já instalado, quanto a seus polos essenciais, quando a teoria darwiniana emerge dentro do contexto saturado de lutas ideológicas que é o da Inglaterra dos anos de 1860”. 28 Spencer era engenheiro, jornalista e fundador da filosofia e da sociologia política e foi fielmente recepcionado pelos ultraliberais. Sua vertente sociológica é a expressão da representação das aspirações da burguesia industrial inglesa. Para Spencer, a sociedade é um organismo e evolui como organismo; a adaptação era para este autor a regra da sobrevivência no interior de uma concorrencial entre os indivíduos, onde os menos adaptáveis seriam eliminados. Ele estava tão convicto de seu pensamento que condenava aqueles que queriam ajudar os “menos favorecidos”. Assimilou de Darwin a teoria seletiva, portanto, para ele, havia em nossa sociedade a regra de “sobrevivência dos mais aptos”. Spencer foi o inventor do termo, impropriamente, “denominado “darwinismo- social”, e criador de todos os paradigmas comuns às “sociobiologias” ulteriores da história”. (TORT, 2000, p. 112). 40 Para comprovar seu argumento, Galton apresenta extensa lista com informações genealógicas, resultado de estudos com famílias, com a finalidade de mostrar que as qualidades, melhores ou as piores, são síntese de um processo natural, logo, pretende comprovar “por meio de métodos genealógicos e estatísticos simples, que a aptidão humana seria uma função da hereditariedade” e nada tem a ver com educação (STEPAN, 2005, p. 30). Em seu livro A Guerra Contra os Fracos – A Eugenia e a Campanha Norte- Americana para Criar uma Raça Superior, o jornalista Edwin Black (2003, p. 59) afirma que Galton acreditava “que a hereditariedade não somente transmitia as feições físicas, como a cor do cabelo e a altura, mas também as qualidades mentais, emocionais e criativas”. Galton utiliza a concepção darwinista de adaptação, concluindo que se os criadores de animais selecionam os melhores de um rebanho, os seres humanos também podem selecionar os melhores. A citação a seguir demonstra qual a sua preocupação no que tange à catalogação dos estudos familiares: A investigação histórica dos percentuais em que as diversas classes sociais (classificadas segundo sua utilidade cívica) têm contribuído para formar a aprovações das diversas épocas em nações antigas e modernas. Existe poderosas razões para crer que o ascenso e queda das nações está extremamente conectado com esta influência. A tendência de uma civilização superior parece que uma tendência a limitar a fertilidade de suas classes superiores por numerosas causas algumas das quais se conhecem bem, outras se inferem e outras seguem estando totalmente obscura. Esta última parece ser análoga e a impede a fertilidade da maioria das espécies selvagens dos jardins zoológicos. Das milhares de espécies que têm sido domesticadas, verdadeiramente em muitas épocas que são férteis quando se restringe a liberdade e são abolidas suas lutas por sobrevivência; os que conseguem e que por outro lado são úteis para o homem, se convertem em domésticos. Talvez exista mais conexão entre esta obscura ação e o desaparecimento da maioria das raças selvagens, quando se põem em contato com a civilização avançada, do que supõem em que tem outras causas concomitantes bem conhecidas. Porém, em que a maioria das raças bárbaras desaparecerão, algumas, com a negra, não. Deveria esperar, por outro lado, que alguns tipos da nossa raça podem converter-se em altamente civilizadas sem perder fertilidade; ainda mais, deveria fazer mais férteis em condições artificiais, como é o caso de muitos animais domésticos (GALTON, 1988, p.168). A partir dessa propositura, Galton reivindica a eugenia como saída para a eliminação da delinquência e da prostituição. A eugenia elevaria a “raça humana” e passaria a ser um arcabouço importante para estabelecer o controle reprodutivo, uma vez estabelecido o controle de natalidade dos supostos “portadores” de “distúrbio social”, a sociedade como um todo seria beneficiada, pois estaria livre dos “viciosos”. Galton vislumbra, ainda, a eugenia como um processo civilizatório para os povos – externos ao continente europeu – que, no seu entender, se encontravam num patamar “não desenvolvido”. Logo, a eugenia forneceria as bases para a expansão civilizatória, o destino dos povos denominados não civilizados estaria nas mãos da classe superior. 41 Na medida em que Galton elabora sua tese, busca alternativas para a sociedade livrar- se dos “degenerados”. É nesse clima que o pai da eugenia sugere que o Estado efetive programas seletivos para as gerações futuras a partir de “políticas de controle de natalidade” para as futuras gerações, a fim de impedir a proliferação daqueles denominados “antissociais”. “Com isso, poder-se-ia não somente discriminar espaços sociais, mas também estabelecer quais características seriam científica e politicamente favoráveis” (DEL CONT, 2008, p. 205). A proposta é padronizar os casamentos, criando regras rígidas de matrimônio, culminando no controle das relações sexuais e na contensão de procriação dos considerados degenerados. O monitoramento de casamento impediria a proliferação de criminosos e degenerados oportunizando a melhoria das pessoas na sociedade. A fiscalização da reprodução de indivíduos “fracos”, a partir de programas sociais dirigidos pelo Estado, deveria estar consoante aos preceitos eugênicos. Por essa razão, Galton (1906, p. 3 apud DEL CONT, 2008, p. 209) afirmava que a eugenia “pode ser definida como a ciência que trata daquelas agências sociais que influenciam, mental ou fisicamente, as qualidades raciais das futuras gerações”. O que está subsumido a esse projeto galtonniano é o encontro de respostas às controvérsias construídas pela própria classe que ele representava, ou seja, Galton tinha de construir propostas para a burguesia industrial do seu tempo. Havia problemas pavimentados, no que tange aos bairros operários da Inglaterra, cujo aglomerado de pessoas favorecia a pulverização de epidemias de doenças e, portanto,