unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP VIVIANE FERREIRA DA SILVA O GÊNERO ENTREVISTA PINGUE-PONGUE NA ESFERA DO JORNALISMO CULTURAL ARARAQUARA – S.P. 2014 VIVIANE FERREIRA DA SILVA O GÊNERO ENTREVISTA PINGUE-PONGUE NA ESFERA DO JORNALISMO CULTURAL Trabalho de Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise do Discurso Orientadora: Prof. Dr. Marina Célia Mendonça ARARAQUARA – S.P. 2014 Silva, Viviane Ferreira da O gênero entrevista pingue-pongue na esfera do jornalismo cultural / Viviane Ferreira da Silva – 2014 128 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara) Orientador: Marina Célia Mendonça 1. Jornalismo. 2. Entrevistas (Jornalismo). 3. Análise do discurso. 4. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovich), 1895-1975. I. Título. VIVIANE FERREIRA DA SILVA O GÊNERO ENTREVISTA PINGUE-PONGUE NA ESFERA DO JORNALISMO CULTURAL Trabalho de Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise do Discurso Orientadora: Prof. Dr. Marina Célia Mendonça Data da defesa: 25/04/2014 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________________________________ Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Marina Célia Mendonça Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras _________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Alessandra Del Ré Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras. _________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Wedencley Alves Universidade Federal de Juiz de Fora – Faculdade de Comunicação. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À minha mãe. AGRADECIMENTOS À Marina, por ter confiado em mim e pelas orientações sempre pontuais e instigadoras. À minha mãe, por me ensinar que jamais devemos parar de sonhar. A meu pai, pelo sorriso franco e acolhedor. Ao Luciano, pela paciência, companheirismo e amor demonstrados. À minha irmã, pelo apoio. Aos meus professores, pelas aulas e conversas esclarecedoras. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros [...]” Bakhtin/Voloschinov (2004, p. 113) RESUMO Este trabalho faz um estudo do gênero do discurso entrevista pingue-pongue na esfera do jornalismo cultural. Para que o estudo seja realizado, o presente trabalho segue a linha teórico-metodológica do Círculo de Bakhtin e seus comentadores, que trata das enunciações e as relações dialógicas produzidas no discurso assim como do ato ético e estético na construção do sentido. Também reflexões realizadas por Sá, Silva e Sobral ajudam a delinear os mecanismos de análise, uma vez que esses estudiosos desenvolvem pesquisas sobre o gênero entrevista pingue-pongue. A pesquisa se preocupa em analisar a construção do acabamento estético a partir das relações dialógicas que se estabelecem entre o eu e o outro e como os valores sociais vão sendo ressignificados nesta esfera. A análise do córpus, composto por três entrevistas pingue-pongues publicadas pela revista Bravo! nos meses de fevereiro, setembro e dezembro de 2012, com personalidades do cenário nacional, respectivamente, Fernando Henrique Cardoso, Marisa Monte e Gilberto Gil, permite perceber o movimento do próprio gênero na esfera jornalística por meio da construção do acabamento estético e do direcionamento temático dados pelo autor. A partir das análises, pode-se levantar indícios de que o gênero estudado apresenta especificidades, como a tendência a um estilo mais literário do autor quando na esfera da cultura, e uma valorização da ordem do privado dos entrevistados, diferentemente do que ocorre em outras esferas. Palavras-chave: análise do discurso, Bakhtin e o Círculo, entrevista pingue-pongue, esfera de atividade. ABSTRACT This research presents the genre of discourse interview ping pong in the sphere on the cultural journalism. For the study to be carried out, this work follows the theoretical and methodological approach of Bakhtin's Circle and his commentators, dealing with utterances and dialogical relations produced in discourse as well as the ethical and aesthetic act for the construction of meaning. Also reflections made by Sá, Silva and Sobral help to delineate the mechanisms of analysis, as these scholars developed research on gender ping-pong interview. The research is concerned with analyzing the construction of aesthetic finish from the dialogical relations which are established between self and other and how social values are being reinterpreted in this sphere. The analysis of the corpus, consisting of three interviews ping pongs published by Bravo! in February, September and December 2012, with personalities from the national scene, respectively, Fernando Henrique Cardoso, Marisa Monte and Gilberto Gil, allows us to understand the movement of the genre itself in the journalistic sphere through the construction of aesthetic finish and thematic direction given by the author. The analyzes point evidence that gender has specific characteristics, the trend towards a more literary style of the author when in the sphere of culture, an appreciation of the order of the private respondents, differently from what happens in other spheres. Keyword: discourse analysis, Bakhtin and Bakhtin’s Circle, ping-pong interview, sphere of activity. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 Indicativo da classe social dos leitores 44 Gráfico 2 Porcentagem de leitores por região 45 Gráfico 3 Porcentagem de leitores por gênero 45 Gráfico 4 Faixa etária dos leitores 46 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11 1. RELAÇÕES DIALÓGICAS ...................................................................... 16 1.1 O SUJEITO DISCURSIVO ....................................................................... 20 1.2 A ENUNCIAÇÃO E OS VALORES IDEOLÓGICOS ................................ 22 1.3 OS GÊNEROS DISCURSIVOS ............................................................... 24 1.4 O ESTILO NA ENUNCIAÇÃO ................................................................. 28 1.5 O ATO ÉTICO E O ATO ESTÉTICO ....................................................... 31 1.6 SUPORTE ............................................................................................... 34 1.7 O ETHOS E A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM .......................................... 35 2. A ENTREVISTA PINGUE-PONGUE NA REVISTA BRAVO! ................. 38 2.1 A ENTREVISTA PINGUE-PONGUE ........................................................ 38 2.1.1 O gênero entrevista pingue-pongue ......................................................... 40 2.1.2 A identidade do sujeito jornalista .............................................................. 42 2.2 O DISCURSO JORNALÍSTICO DA REVISTA BRAVO! ........................... 43 2.3 COTEJANDO AS ENTREVISTAS PINGUE-PONGUES .......................... 51 2.3.1 Entrevista de fevereiro de 2012 ................................................................ 52 2.3.2 Entrevista de setembro de 2012 ............................................................... 64 2.3.3 Entrevista de dezembro de 2012 .............................................................. 78 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 89 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 91 ANEXOS .............................................................................................................. 94 ANEXO A – Edição de fevereiro da Bravo! ...................................................... 95 ANEXO B – Edição de setembro da Bravo! ..................................................... 109 ANEXO C – Edição de dezembro da Bravo! .................................................... 117 INTRODUÇÃO Pretendemos, com este estudo, analisar a importância do acabamento, na verdade, do ato estético, no gênero entrevista pingue-pongue para a construção de sentido no texto e, assim, perceber o movimento produzido para a composição do próprio texto. Procuramos, com o presente trabalho, investigar as relações discursivas que são criadas na elaboração arquitetônica do gênero entrevista pingue-pongue escrita na esfera do jornalismo cultural, assim como as marcas enunciativas que se constroem a partir do que Bakhtin propõe como acabamento estético e as relações discursivas. Este tipo de texto possui uma visibilidade dentro do próprio jornalismo por ser, muitas vezes, o “carro-chefe” da publicação, o qual terá a função de atrair o interlocutor para a leitura. A relevância deste gênero dentro da esfera jornalística é marcada inclusive nos manuais de redação que salientam que o bom repórter é necessariamente um bom entrevistador porque saberá direcionar a entrevista para o assunto que interessará àquele que irá consumi-la – o destinatário. Nosso interesse por este assunto surgiu da experiência com revisão do jornal diário da cidade de Araraquara “Tribuna Impressa”, tendo inclusive, colaborado na edição e diagramação de notícias e entrevistas pingue-pongues políticas e culturais por quase dez anos. Devido a esse interesse, durante a especialização, realizamos um trabalho, em 2011, sobre o gênero entrevista pingue-pongue, entretanto a esfera analisada era a da política, intitulado “Marcadores conversacionais e preservação da face no discurso político: o caso de uma entrevista”. Nesse estudo, atentamo-nos aos mecanismos enunciativos para a construção do ethos do entrevistador. Após essa análise, sentimos necessidade de ampliar o campo de nossa pesquisa no estudo do gênero, e houve um grande interesse por investigar o enunciado como um todo, completo, como afirma Geraldi (2012, p. 28), “para cotejá- lo com outros enunciados fazendo emergirem mais vozes para uma penetração mais profunda no discurso, sem silenciar a voz que fala em benefício de um já dito que se repete constantemente”. Desse modo, a fundamentação teórico-metodológica que norteia todo o nosso trabalho tem por contribuição central os estudos feitos por Bakhtin e pelo Círculo, bem como por seus comentadores, nas esferas da linguagem, das relações dialógicas e da estética, visto que as reflexões produzidas pelo grupo, em textos como Estética da Criação Verbal e Marxismo e Filosofia da Linguagem, e por seus comentadores, como ocorre em Círculo de Bakhtin: Teoria inclassificável, corroboram para um estudo dos processos dialógico-dialéticos, desencadeados durante a constituição de um texto. Serviram também para embasamento teórico os estudos realizados sobre o gênero entrevista pingue-pongue por Cavalcanti (2006), Mendonça (2008), Sá (2011), Silva (2009) e Sobral (2010). Entendemos que, para tentar compreender a enunciação, que se constrói nas relações enunciativas, é importante estudar o papel do eu e do outro no discurso, alternar os sujeitos do discurso e suas funções. Conforme afirma Bakhtin (2003, p.237), “as relações dialógicas devem encarnar-se na palavra, tornar-se enunciação, tornar-se posições expressas na palavra de diferentes sujeitos, por entre aí podem surgir relações dialógicas”. Daí compreender-se que a linguagem tem no texto a sua materialidade, o seu corpo, e nas relações que vão se construindo nas interações com o outro. Essas relações dialógicas podem ser percebidas em um texto escrito por meio do estilo, das escolhas autorais realizadas que constituem o projeto arquitetônico da obra. Essas relações com o mundo nunca se dão de forma direta, porque são concretizadas pelas representações simbólicas existentes no meio no qual os interlocutores estão inseridos. Em outras palavras, as relações entre o eu e o outro são estabelecidas pela materialidade da linguagem que se constitui por meio dos signos. Com isso, ao pensar sobre o acabamento do texto e as marcas discursivas que o compõem, é possível notar que existem diversos discursos entrelaçados: a relação do autor com o texto, do autor com o leitor, do leitor com o texto. Pela elaboração arquitetônica do texto, podemos inferir a preocupação do autor com o olhar do outro, com a imagem que será projetada para o leitor, além de revelar, na produção enunciativa, a qual se dá concomitantemente com o ato, as vozes que constituem o autor visto que não se pode falar em “estilo individual” porque toda obra produzida é uma construção que reflete todas as leituras e influências a que o autor é submetido no decorrer de sua vida. Percebe-se, então, que as relações enunciativas têm ligação direta com o ato estético, pois a obra, ao assumir diversas formas, mostra-se dialógica por se compor das relações estabelecidas entre o enunciador e o grupo do qual faz parte. Ginzburg, em Raízes de um paradigma indiciário, diz que “o texto é uma entidade profunda invisível, a ser reconstruída para além dos dados sensíveis” (p. 158), ou seja, que é necessário que o texto seja esmiuçado em suas singularidades porque, segundo este autor, são os pormenores que dão os indícios para a compreensão da obra. E ao refletir sobre como devemos investigar, analisar um fato, afirma que: Para tanto, porém (dizia Morelli) é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis (...). Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características (...). (GINZBURG, p. 144, 2002) A partir dessas considerações, temos como objetivo principal entender como se dão as relações discursivas na constituição do gênero entrevista pingue-pongue escrita na esfera do jornalismo cultural. Fazemos ainda os seguintes questionamentos, que temos como objetivo responder neste trabalho: 1. O gênero entrevista pingue-pongue na esfera da cultura, dentro do suporte revista, apresenta singularidades com relação a outras esferas? 2. Como as relações dialógicas são construídas para a produção de sentido nesta esfera? 3. De que modo a ação arquitetônica do autor da obra vai possibilitando a constituição do acabamento estético e do estilo neste gênero? 4. Quais seriam os valores sociais veiculados e de que modo eles se apresentariam na esfera da cultura no discurso jornalístico? Há muito para se estudar no campo do acabamento dos gêneros discursivos, mais ainda se pensarmos sobre as marcas discursivas e como elas são determinantes para que se possam vislumbrar as relações que se constroem entre o estético e o ético no discurso e suas implicações para a construção do gênero entrevista pingue-pongue. Optou-se pelo suporte revista para o desenvolvimento deste trabalho porque, diferentemente do jornal diário, que tem por característica o fato noticioso e a brevidade, a revista apresenta uma maior aproximação com o texto literário e permite um aprofundamento maior do que é divulgado. Foram, então, selecionadas, para a composição do córpus deste trabalho, entrevistas, veiculadas, no ano de 2012, na revista Bravo!, que é uma mídia voltada para a área de cultura e entretenimento. Em outras palavras, uma revista que circula na esfera de interesse desta pesquisa. Das doze edições publicadas naquele ano, apenas quatro trouxeram entrevistas pingue-pongues, sendo três com personalidades nacionais e uma internacional – Ingrid Bergman. Assim, optamos por analisar as edições de fevereiro, setembro e dezembro por trazerem entrevistados brasileiros, uma vez que o direcionamento da revista Bravo!, proposto em seu editorial, era “a agenda cultural brasileira”. Com este córpus, pretendemos analisar o acabamento estético das entrevistas em questão, sua forma arquitetônica e o movimento do próprio gênero na esfera jornalística. Para que pudéssemos melhor desenvolver o estudo proposto, dividimos o trabalho, então, em três capítulos. O primeiro, intitulado “Relações dialógicas”, trata das relações enunciativas e da alteridade do sujeito discursivo1 neste gênero. Por isso, há uma preocupação também em refletir sobre a materialização dos valores que são ressignificados pelo sujeito durante o seu enunciado. Ainda neste capítulo aborda-se a teoria bakhtiniana sobre a constituição do gênero, na qual Bakhtin (2003) procura caracterizar essas formas com que organizamos os nossos discursos. No capítulo seguinte, tem-se a discussão não apenas das especificidades, das particularidades, do gênero entrevista pingue-pongue como também da identidade do jornalista neste texto, a fim de mostrar o porquê da escolha do nosso córpus ser a entrevista pingue-pongue na esfera do jornalismo cultural. Ademais, a questão do embate entre o entrevistador e o entrevistado fica muito marcada neste discurso, uma vez que ambos buscam a empatia do leitor e, por isso, se apropriam de máscaras que os auxiliem na constituição da imagem escolhida e deem resposta aos outros sociais, no caso o interlocutor/leitor e o grupo social do qual fazem parte, no momento da enunciação do enunciado concreto. Ainda no capítulo segundo, apresentamos o discurso jornalístico da revista 1 Entendemos aqui sujeito discursivo como o produtor do enunciado concreto no momento da relação dialógica. Bravo!. Nele, são abordados o perfil do leitor e os valores enunciados na revista que são fatores importantes para a composição arquitetônica deste gênero na esfera do jornalismo cultural que é particular, peculiar, e, ao mesmo tempo, tão vasta e rica. Em seguida, debruçamo-nos sobre as análises das entrevistas veiculadas pela revista Bravo! - em fevereiro, com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; em setembro, com a cantora Marisa Monte; e em dezembro com o cantor Gilberto Gil -, procurando observar como o gênero entrevista pingue-pongue se manifesta nesta esfera e como produz sentido neste gênero. 1. AS RELAÇÕES DIALÓGICAS O conceito de dialogismo está diretamente ligado ao de interação, e, portanto, é a base do processo de produção dos discursos e da própria linguagem. Toda enunciação é uma resposta, uma réplica, a algo que já foi ou que será produzido como também uma pergunta a outros discursos, já que o sujeito ao produzir uma enunciação sempre considera o outro ativamente e não passivamente. Por essa razão, tanto o locutor quanto o interlocutor estão em um mesmo nível na produção do discurso, entretanto essa interação entre eles pode se dar de maneira colaborativa ou hostil. Como elucida Bakhtin, O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência dos enunciados anteriores – imanentes dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação, pura e simplesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte. Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados. (BAKHTIN, 2003, p. 292) Tanto locutor quanto ouvinte estão envolvidos no processo de enunciação, que é real, dinâmico, e perpassa pela compreensão exotópica (posicionamento de fora no tempo e no espaço) do outro, visto que ambos precisam saber situar-se enquanto sujeitos discursivos. Por isso, entre ambos – locutor e interlocutor – há uma troca do papel de sujeito do discurso, mostrando que o eu e o outro só existem, só se constituem, a partir da relação que estabelecem entre si, pois o sujeito discursivo2 dialoga com seu interlocutor, que não espera passivamente pelo outro, mas interage com este em um processo responsivo. Como argumenta Bakhtin, O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro. O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um 2 Entendemos aqui sujeito discursivo como aquele que enuncia, o qual é concreto e constituído socialmente. mudo ‘dixi’ percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou. (BAKHTIN, 2003, p. 292) De acordo com o pensamento bakhtiniano, faz-se necessário compreender a enunciação, que se constrói nas relações dialógicas, e para isso é importante estudar o papel do eu e do outro no discurso, alternar o posicionamento dos sujeitos discursivos, porque, enquanto sujeitos, só tomamos consciência do nosso eu e existimos concretamente a partir da relação que criamos com o outro, ao sermos revelados “pelo outro, através do outro, por meio do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 236). Bakhtin (2003, p. 237) afirma que “as relações dialógicas devem encarnar-se na palavra, tornar-se enunciação, tornar-se posições expressas na palavra de diferentes sujeitos, por entre aí podem surgir relações dialógicas”. Em outras palavras, o discurso só se concretiza na sua materialização, de que a palavra é uma possibilidade (outras possibilidades são a linguagem dos gestos, das imagens não- verbais e sincréticas...). Por essa razão, como dizem Clark & Holquist (1998, p. 235), a palavra se apresenta como um “ato bilateral” por ser determinada tanto por aquele que a profere quanto por aquele que a recebe, caracterizando-se como um produto da relação eu-outro. A palavra surge a partir desta interação, como afirmam Bakhtin/Volochinov: Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. (...) A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p.113 IN: Silva, 2009, p. 25) Essa “ponte” existente entre enunciador e destinatário, portanto, permite que se construa essa interação, como a que ocorre entre o entrevistador e os entrevistados na entrevista pingue-pongue. No caso da Bravo!, isso é retratado, como vemos na análise, na sequência deste trabalho, pelas relações que se estabelecem de “camaradagem” entre o editor-chefe e as personalidades nacionais: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a cantora Marisa Monte e o cantor e ex-ministro Gilberto Gil. Neste sentido, portanto, locutor e ouvinte são “iguais”. Ambos carregam, internamente, um auditório social e um imaginário coletivo que moldam suas necessidades, seus atos e seus enunciados concretos. Conforme defende Bakhtin, a palavra sempre é produzida visando um destinatário, qualquer que este seja. E ela expressa os valores, motivos, crenças que o sujeito discursivo carrega consigo de grupos sociais, assim como representa também e com a mesma intensidade os valores do destinatário. No caso dos suportes de texto revista impressa e jornal impresso, o sujeito discursivo carrega ainda os valores da “marca” para a qual trabalha. No córpus, por exemplo, a Bravo! possui sua linha editorial, a qual reflete os valores do seu grupo empresarial. Desse modo, o entrevistador precisa “ser fiel” não apenas aos seus valores (adquiridos na vivência com grupos sociais, atravessados por ideologias específicas), como também aos da revista, daí a escolha incidir sobre o editor-chefe, pela importância das entrevistas, uma vez que este representa o grupo para o qual trabalha. Mas o que diferencia o enunciado de uma frase ou oração qualquer? De acordo com o Círculo, há dois itens “intrinsecamente ligados” que possibilitam realizar essa diferenciação – o pressuposto da alternância e o acabamento, sendo que nos dois existe necessariamente a presença do outro, do interlocutor. Em outras palavras, não há enunciação sem que haja um interlocutor. Sobral coloca luz sobre essa questão ao explanar sobre a necessidade da alternância e do acabamento: (...) todo enunciado implica a alternância entre sujeitos falantes: num dado momento, todo enunciado chega ao fim, e dá então lugar à compreensão responsiva ativa do leitor; o segundo diz que o enunciado é um todo, tem um acabamento, isto é, todo enunciado, uma vez que chegou ao fim, indica que seu autor disse tudo o que pretendia dizer. Vemos nesses dois critérios a presença inevitável do outro. O pressuposto da alternância e o acabamento são precisamente o que permite a resposta do outro; o enunciado envolve quanto a isso três fatores inter-relacionados: a exaustividade, o projeto enunciativo do locutor e as ‘formas típicas de estruturação do gênero do acabamento’. (SOBRAL, 2009, p. 92 e 93) As relações discursivas que vão sendo tecidas nas enunciações do sujeito discursivo com o outro mostram claramente que este, ao compreender o lugar que ocupa no discurso, desenvolve uma posição responsiva em relação ao dizer do locutor e, por conseguinte, passa a alternar o papel com o primeiro, concordando ou discordando, mas usando o discurso de modo equivalente. E é isso que diz Sobral (2009, p. 45), ao referir-se ao confronto de vozes citado pelo Círculo, em que podemos compreender “com clareza” que todo discurso é embate, “lugar de confronto, de presença do outro”, e que, por esse motivo, não é possível conceber um “discurso monológico3 no sentido de discurso que neutralize todas as vozes que não a daquele que enuncia, assim como não se pode julgar idealista a relação eu-tu aí envolvida”. O sujeito que produz a enunciação é compreendido como um ser concreto, mas não real, na verdade, como um sujeito que se apresenta ao outro multifacetado, dividido, incompleto, uma vez que, conforme o contexto, mostra somente uma faceta de si a qual se encaixa à situação apresentada. Segundo Sobral (2009, p. 96), “o sujeito sempre se constitui no discurso como uma personagem de si mesmo, uma ‘máscara’, um ‘papel’ construído na situação em que se encontra”. O discurso só existe, então, a partir de um processo de produção de sentidos realizado por sujeitos e entre eles. Ao entrar nesta “arena”, por mais que existam elementos os quais ele não controle, o sujeito sempre afere o que irá dizer e o que acredita que irá causar com o seu dizer, adaptando e planejando o seu discurso conforme a situação em que esteja envolvido. No entanto, o que é dito sempre é atravessado e constituído pelas ideologias; isso permite um jogo entre o querer dizer do sujeito discursivo e o dizer ideológico dos grupos sociais que o constituem. Além disso, vale a pena ressaltar que o enunciado compõe-se, por aquilo que é dito – a parte visível, tangível do enunciado - e aquilo que é presumido. O discurso seria o ponto de convergência entre esses dois componentes, “sendo assim a unidade em que se manifesta a real natureza da língua (SOBRAL, 2009, p. 103)”. A alternância dos sujeitos, dos falantes, no discurso é o que define os limites de cada enunciado, e é essa alternância que produz o primeiro elemento constitutivo da comunicação discursiva e que, portanto, de acordo com Bakhtin, distinguiria o enunciado da unidade da língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não 3 Entendemos discurso monológico como uma relação na qual não há interação entre o eu e o outro. só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. (BAKHTIN, 2003, p. 261) Quando o ouvinte se posiciona na enunciação para receber e apreender a significação do discurso, concordando ou discordando do enunciado, ele passa a apresentar uma postura ativa e responsiva com relação ao que é produzido no diálogo. O diálogo, segundo Bakhtin (2003, p. 295), “por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal”. Por mais que se apresente curta e aparentemente fragmentada, a réplica no diálogo possui um acabamento específico que mostra os valores ideológicos do sujeito discursivo, possibilitando-lhe uma atitude responsiva, já que ele pode tomar, retomar e respondê-la em qualquer momento. As relações enunciativas têm ligação intrínseca com a problemática do estilo, porque este é interativo e dialógico. E é o que mostraremos mais à frente. 1.1 O SUJEITO NO DISCURSO Como exposto, as relações discursivas se constroem nas interações que se estabelecem entre o eu e o outro e nas alternâncias dos sujeitos discursivos no diálogo. Partindo dessas reflexões, neste item apresentamos a questão da constituição do sujeito na perspectiva teórica adotada aqui. Para o Círculo, este é composto nas suas relações com outros sujeitos e com a sociedade. Mas isso se dá em um movimento recíproco, em que ele depende desta sociedade e desses ‘outros’ para se constituir, assim como eles dependem dele também para existir. Em outras palavras, desse deslocamento, surge o conceito de sujeito, visto que ele só se percebe enquanto sujeito na sua relação com o outro e nos valores que são materializados na palavra. Em todo enunciado, portanto, existem discursos de outros interiorizados. Assim, como bem coloca Silva (2009, p. 26), “tudo que é conteúdo vivido e concretizado verbalmente passa, necessariamente, pela relação eu/outro, o que remete à questão do diálogo”. Todo discurso produzido pelo sujeito está, desse modo, repleto de vozes sociais, as quais o tornam um ser histórico e ideológico. O diálogo surge, constantemente, por meio dessas vozes sociais, que representam os valores, conceitos e ideias da sociedade na qual nos inserimos. De acordo com Pires, Ao produzirmos discursos, não somos a fonte deles, porém intermediários que dialogam e polemizam com os outros discursos existentes em nossa sociedade, em nossa cultura. [...] a relação dialógica é polêmica, não há passividade. Nela, o discurso é um jogo, é movimento, tentativa de transformação e mesmo subversão dos sentidos. O sentido de um discurso jamais é o último: a interpretação é infinita. O que faz evoluir um diálogo entre enunciados é essa possibilidade sem fim de sentidos esquecidos que voltam à memória, provocando neles a renovação dentro de outros contextos. (PIRES, 2002, p. 42) Assim, delineia-se nos escritos do Círculo o conceito de alteridade, em que não há um ‘eu’ como ser, existente, real, se não houver a presença de um ‘outro’. Ou seja, a relevância dos outros (entre eles, o interlocutor) é indiscutível, uma vez que é apenas a partir da sua existência que se constitui o ‘eu’, que possibilita a constituição da subjetividade do sujeito discursivo. Como afirmam Clark & Holquist (1998, p. 228), “o ‘eu’ só pode realizar-se verbalmente com base no ‘nós’”. É possível perceber, durante a reprodução do discurso do outro, tanto a expressão original do enunciado, produzida por outrem, e a atualizada que é expressa por nós, incluída ao discurso. Ademais, as escolhas feitas pelo sujeito discursivo para a constituição do seu enunciado mostram um posicionamento deste com relação às vozes dos outros. Como afirma Pires (2002, p. 49), “em consequência, não só ao locutor cabem os direitos sobre as palavras, mas também ao ouvinte e a todos cujas vozes são ouvidas naquele discurso. A palavra é um drama com três personagens que é representado fora do autor”. Sobral explica bem esta questão ao tratar da construção ideológica do psiquismo: Há assim a integração entre o domínio da construção ideológica do psiquismo e o domínio da participação do psiquismo na construção ideológica da realidade que podemos perceber nos signos da linguagem, nas representações do mundo pela linguagem. A construção ideológica do mundo afeta o psiquismo, mas não pode existir sem ele; ela e o psiquismo estão inseridos no ambiente social e histórico, marcado por divisões de vários tipos, que é tanto seu contexto e condição de possibilidade como produto de sua ação. (SOBRAL, 2009, p. 48) Entretanto, apesar desse sujeito ser constituído por outras “vozes”, não há uma submissão ao coletivo por parte dele que o descaracterize ou despersonifique, ou uma sobreposição sobre o coletivo, ao contrário, ele realiza em sua enunciação escolhas, que o tornam coerentemente responsável por seus atos e obrigações com relação ao seu grupo social, aos outros sujeitos. Esse “sujeito situado”, de acordo com Sobral (2009, p. 30), que é constituído por essas regras sociais e pelas suas escolhas, deixa uma “assinatura em seu ato e, por isso tem de responsabilizar-se pessoalmente por seu ato e se responsabiliza por ele perante a coletividade de que faz parte”. Considerando que, na perspectiva bakhtiniana, não há álibi para a existência, esse “responsabilizar-se” pode não fazer parte do projeto de dizer e viver do sujeito, mas ao dizer ele não escapar do feito (mesmo que isso não seja assumido, é fato consumado e gera consequências no outro) e da possível resposta do outro. Assim, diálogo pressupõe alteridade, responsividade e responsabilidade (esta, no sentido aqui colocado). 1.2 A ENUNCIAÇÃO E OS VALORES IDEOLÓGICOS Toda enunciação carrega valores ideológicos, visto que todo discurso, de acordo com essa perspectiva teórica, é uma resposta a outros discursos sociais e ideológicos. Tanto o sujeito do discurso quanto o interlocutor possuem uma consciência individual/coletiva, que é atravessada pela ideologia, mas que também é dependente desse sujeito. Segundo Sobral (2009, p. 76), “as necessidades sociais a que a palavra, a linguagem, atende estão distribuídas nos numerosos interesses em confronto dos grupos particulares que povoam o todo social”. Assim, enunciar é responder ao discurso do outro com contrapalavras marcadas pelos valores e ideologias com que os sujeitos se identificam e que refletem também o grupo social ao qual pertencem. De acordo com Medvedev (2009), nossas crenças, nossa visão de mundo e conceitos não existem enquanto permanecem em nossa mente, porque só passam a ser realidade a partir do momento que os exteriorizamos, concretizados nas palavras, nas ações, em “forma de um signo especificado”. Cada produto ideológico e todo seu ‘significado ideal’ não estão na alma, nem no mundo interior, nem no mundo isolado das ideias (...) mas no material ideológico disponível e objetivo (...). Cada produto ideológico é parte da realidade social e material que circunda o homem (...). Não há significado fora da relação social de compreensão, isto é, da união e da coordenação mútua das reações das pessoas diante de um signo dado. A comunicação é aquele meio no qual um fenômeno ideológico adquire, pela primeira vez, sua existência específica, seu significado ideológico, seu caráter de signo. (MEDVEDEV, 2009, p. 50) O valor ideológico só tem existência quando é materializado, no signo, na linguagem, ao fazer parte de um enunciado, porque só dentro da linguagem e das suas relações com o grupo é que ele adquire sentido. Esse é um ponto importante dos estudos do Círculo porque a própria concepção de linguagem possui uma dimensão sócio-ideológica e é entendida a partir dos conceitos de ideologia e signo ideológico. Para Bakhtin/Volochínov (2004, p.36), “a palavra é o fenômeno ideológico por natureza”, uma vez que ela passa pelas interações entre o eu e o outro e é influenciada pelas relações externas à língua, materializando a nossa consciência, nossos valores e concepções no mundo real. O enunciado é perpassado por ideologias que fazem parte dos grupos aos quais o locutor pertence e que são sentidas e vivenciadas cotidianamente por ele. Por essa razão, expressam muito mais do que aparentam isoladamente porque o seu valor ideológico só se materializa nas relações entre os sujeitos discursivos. (...) a criação ideológica e sua compreensão somente se realizam no processo da comunicação social. (...) Imaginamos a criação ideológica como um processo interior de entendimento, de compreensão, de penetração e não nos damos conta de que, na realidade, ela está completamente manifesta exteriormente – para os olhos, para os ouvidos, para as mãos – que ela não se situa dentro de nós, mas entre nós. (MEDVEDEV, 2009, p. 49) Para o Círculo, como já foi exposto, o signo é em sua essência ideológico; contudo, ele não reflete apenas o mundo e os valores sociais, mas os refrata também. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. (BAKHTIN, 2006, p. 32) Assim, o signo leva consigo os valores ideológicos dos sujeitos discursivos, ou melhor, carrega suas crenças, conceitos e posicionamentos que são organizados e determinados a partir de índices valorativos. Esses índices, na verdade, são compostos também pelo auditório social que cada locutor possui e com o qual interage durante a sua enunciação. Os índices de valor são ideológicos e sociais, mesmo que sejam realizados pela voz dos indivíduos. Tais índices valorativos estão ligados à composição de um auditório social, uma vez que o falante interage discursivamente a partir de seu horizonte axiológico (valorativo) e que ‘viver significa ocupar uma posição axiológica em cada momento da vida, significa firmar-se axiologicamente’. (SILVA, 2009, p. 28) Desse modo, conforme elucida Silva, o signo só se constitui a partir das interações sociais realizadas entre os sujeitos discursivos, no meio social, pois é neste momento que ele adquire seu valor social. 1.3 OS GÊNEROS DISCURSIVOS Segundo Bakhtin (2003), os gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados elaborados em determinadas esferas da atividade humana, sendo a concepção filosófica de diálogo o seu elemento constitutivo. Sendo assim, essas esferas de atividade determinam a estruturação diversificada dos gêneros, que variam devido à diversidade de usos realizados pelos sujeitos discursivos. Para Bakhtin, a vontade discursiva do sujeito se concretiza antes de tudo na escolha por um determinado gênero, sendo este determinado pela especificidade da comunicação discursiva. Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos um determinado volume, uma determinada construção composicional, prevemos o fim (...). Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir levemente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível. (BAKHTIN, 2003, p. 283) O sujeito, ao optar por certo gênero, conforme afirma Bakhtin (2003), leva em conta tanto considerações semântico-objetais (temáticas) quanto a composição pessoal dos seus participantes. Só após essa escolha, o intuito discursivo do locutor, com toda a sua subjetividade, é então aplicado e adaptado à estrutura do gênero. Os gêneros, tomados nessa perspectiva sócio-histórica, não são somente estruturas linguísticas – não são tipologias textuais, num sentido restrito do termo, entendendo-se o texto fora dos fatores pragmáticos. Digamos que sejam tipologias de enunciados, considerando-se o enunciado como uma unidade concreta de uso linguístico, com um locutor real, uma situação de locução, valores expressivos; e como uma resposta a enunciados já-ditos, uma projeção da compreensão responsiva do outro. (MENDONÇA, 2008) Os enunciados, sejam eles verbais, não-verbais ou sincréticos, refletem as necessidades do locutor dentro de uma determinada esfera da comunicação. Sendo assim, de acordo com a esfera em que são produzidos, apresentam determinadas especificidades que satisfazem a necessidade dessa estrutura. Nas três entrevistas veiculadas pela revista Bravo!, por exemplo, há a preocupação na escolha de uma linguagem principalmente sincrética. Essa escolha não se dá aleatoriamente, mas porque favorece a constituição das características do gênero entrevista pingue-pongue, particularmente nesta esfera - a da cultura – da qual se espera um maior cuidado artístico4 e por propiciar dirigir o olhar do leitor ao direcionamento temático escolhido pelo autor. 4 Como explicado na Introdução, o trabalho apresentado pela pesquisadora, em 2011, como requisito para conclusão do curso de Especialização em Língua Portuguesa e Linguística, cujo corpus era composto por Daí dizer que conteúdo temático, estilo e construção composicional constituem juntamente o enunciado e, por essa razão, são “marcados pela esfera de comunicação”. Assim, cada esfera possui seus tipos regulares, relativamente estáveis de enunciados, denominados gêneros discursivos. Porque é discurso, a prosa só existe na interação. (...) Trata-se de um processo, não de substituição de uma forma discursiva por outra e da consequente polaridade, mas de evolução das próprias práticas significantes de sistemas comunicativos que emergem das interações dialógicas, ainda que cada uma delas tenha seu campo de significação muito preciso. Estamos considerando prática significante tudo o que diz respeito ao universo do discurso em suas diferentes esferas de uso da linguagem, vale dizer, dos gêneros discursivos a partir dos quais se organizam os textos. (MACHADO, 2012, p. 154) De acordo com os estudos bakhtinianos, os gêneros discursivos podem ser classificados em primários e secundários. Bakhtin (2003) faz a distinção entre eles da seguinte forma: os gêneros discursivos primários seriam aqueles da comunicação diária, cotidiana; enquanto que os secundários seriam os da comunicação produzida a partir de códigos culturais elaborados, como a escrita. Essa separação leva em consideração as esferas sociais em que a linguagem é empregada. Desse modo, sobre os gêneros secundários, Bakhtin explica que Os gêneros discursivos secundários surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (...). No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios. (BAKHTIN, 2003, p. 265) Por esse motivo, por um lado os gêneros secundários são aqueles cuja construção demonstra complexidade por provir de sistemas culturais organizados de comunicação, e estão, principalmente, ligados ao enunciado escrito, tais como jornais, ensaios, romances, entre outros. Por outro lado, os gêneros primários, tão relevantes quanto os secundários, circulam nas esferas mais próximas do diálogo cotidiano e oral, como o bilhete, a carta. entrevistas pingue-pongues feitas pelo jornal Tribuna Impressa de Araraquara, na esfera da política, aponta indícios da preocupação neste campo de se evidenciar a linguagem verbal. Os gêneros estão ligados diretamente à comunicação sociocultural humana. Isso explica a vasta variedade de gêneros discursivos porque toda esfera de comunicação abarca incontáveis possibilidades de interação entre os sujeitos. Tanto o gênero primário, segundo Machado (2012, p. 155), quanto o secundário “se modificam e se complementam”. Prova disso é que “um diálogo perde sua relação com o contexto da comunicação ordinária quando entra, por exemplo, para um texto artístico, uma entrevista jornalística”. Isso mostra como a opção por determinado gênero discursivo dentro das possibilidades de uma esfera pode apontar a intenção do autor, já que o contexto comunicativo é preponderante para a compreensão da mensagem. Como afirma Machado (2012) sobre a finalidade dos gêneros, Os gêneros discursivos concebidos como uso com finalidades comunicativas e expressivas não é ação deliberada, mas deve ser dimensionado como manifestação da Cultura. Nesse sentido, não é espécie nem tampouco modalidade de composição; é dispositivo de organização, troca, divulgação, armazenamento, transmissão e, sobretudo, de criação de mensagens em contextos culturais específicos. (MACHADO, 2012, p. 158) Desse modo, pode-se dizer que em razão das necessidades socioculturais, que se apresentam num determinado momento, os gêneros discursivos vão se constituindo, moldando-se de acordo com os anseios das formações culturais em curso. E esses anseios tornam-se ainda mais sensíveis e perceptíveis na esfera da cultura por sua peculiaridade – o cunho artístico -, como explica Machado (...) na esfera comunicativa da cultura tudo reverbera em tudo uma vez que nela as formas culturais vivem sob fronteiras. O próprio discurso alheio pode integrar a cadeia discursiva e ser reprocessado. Nesse caso, os gêneros discursivos de uma esfera da cultura são suscetíveis de deslocamentos, mas não podem ser ignorados como discurso do outro, tal como a bivocalidade da palavra alheia incorporada. (MACHADO, 2012, p. 162) Na verdade, como integrante de uma cadeia discursiva, qualquer forma estável dentro do discurso pode ser agregada novamente à cadeia discursiva e reprocessada e acolhida no discurso alheio. Por isso, conforme o pensamento bakhtiniano, o discurso do outro revela uma “dupla expressividade”, visto que apresenta, concomitantemente, o seu próprio enunciado e a resposta a um enunciado alheio. Assim, é através dos enunciados, os quais reverberam a dinâmica discursiva entre sujeitos no processo de enunciação, que “a língua passa a integrar a vida” e “a vida entra na língua” (BAKHTIN, 2003, p 265). 1.4 O ESTILO NA ENUNCIAÇÃO O estilo pode se apresentar de diversas maneiras e possui um caráter dialógico, composto pelas interações estabelecidas entre o sujeito e os grupos sociais que circundam o seu meio, que refletem as ideologias e também um agir sócio-histórico que surge não apenas do indivíduo ou do social, mas das inter- relações criadas dessa interação. Por isso, como afirma Bakhtin (2003), as relações enunciativas que compõem o estilo são a base do discurso estético assim como de toda composição arquitetônica do gênero. O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento (...). O estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento. (BAKHTIN, 2003, p. 266) Na reflexão sobre a transposição do discurso da interação face a face para o discurso escrito, Bakhtin (2003) propõe o conceito de autor-criador. O estudioso descreve o autor-criador como um componente da obra, ou melhor, como uma consciência que engloba o todo do sentido da obra, cuja posição externa permite dar forma e acabamento estético à personagem e ao mundo habitado por ela, não sendo, portanto, nem o escritor (autor-pessoa), nem o herói. Essa figura constitutiva da obra dá um acabamento estético a ela, mas esse acabamento deve ser construído pelo leitor, só tem resultado na construção feita pelo leitor. No caso do córpus deste trabalho, o dizer estético (o acabamento) do autor- criador da Bravo! vai se revelando, por exemplo, nas escolhas feitas (imagens, boxes, títulos, linhas finas, legendas, cores etc) pelo entrevistador/editor que denotam expectativas de que o leitor seja capaz de inferir os sentidos e o projeto de dizer ali deixados. Assumimos neste trabalho que o autor-criador, como uma figura do discurso, terá sua representação e estatuto enunciativo preservados em todo gênero discursivo, sendo este produzido na esfera artística ou não e independente de suas peculiaridades. Contudo, ao tratar da obra artística, esta difere de gêneros produzidos em outras esferas de atividade. Essa diferença pode ser entendida primeiro, por implicar em um tipo de distanciamento entre o autor e o tópico e entre o autor e o outro, exigido neste tipo de relações discursivas, que é essencial para a tomada de posição do autor em relação ao todo. É o que Bakhtin chama de exotopia (2003). Em segundo lugar, podemos destacar as relações entre a obra e a vida material: de modo geral, a existência de representação das ações e dos personagens difere do mundo da obra, “o mundo criado por ela, o que afasta o discurso estético, ainda mais do que os outros, do que seria uma reprodução da realidade, de resto inexistente”. (SOBRAL, 2009, p. 63) A posição exotópica do autor se define como aquela que lhe permite criar a obra, sendo marcada por seu distanciamento de sua obra, que lhe permite ter uma visão global do enunciado, da enunciação. (...) Seja o discurso mais objetivo ou mais subjetivo, permanece a posição exotópica de seu autor/locutor, porque o autor/locutor nunca representa a si mesmo, nem a seu objeto, mas uma imagem de si mesmo, uma imagem de seu objeto, e, portanto, distancia-se de si/dele em algum grau. O autor do discurso é, repetimos, uma personagem de si mesmo. (SOBRAL, 2009, p.112) Apesar da posição de deslocamento ou aproximação do autor, na obra estética, parecer conferir a este uma superioridade, como se o discurso não se concretizasse na alternância dos diálogos, na verdade, essa posição exotópica apenas mostra sua ação arquitetônica, de “estruturador do discurso”. O sujeito da obra estética, então, ao relacionar-se com o outro, avalia mais marcadamente tanto seu espaço discursivo quanto seu interlocutor e, dessa modulação, realiza escolhas para, ao concretizar suas relações dialógicas, possibilitar a construção de uma imagem que o interlocutor fará deste sujeito, cujos valores e ideologias poderão ser positivos ou negativos para o grupo social no qual se insere, lembrando, segundo Discini, o conceito de ethos de Aristóteles. Segundo o ethos de um enunciador pressuposto a um enunciado, que como totalidade, pode ser um conjunto do qual não importa a extensão numérica, temos o próprio estilo configurado como uma modalidade da compreensão ‘responsiva ativa’. Determinado auditório responde a um orador, fazendo deste determinada representação ou simulacro. Por meio da atenção conferida ao modo de dizer e não àquilo que o orador afirma sobre si mesmo, o outro, como auditório, constrói a imagem responsiva correspondente ao ethos ou estilo do enunciador. (DISCINI, 2010, p. 129) Com isso, o próprio ato composicional passa a ser uma extensão dessa imagem projetada pelo enunciador para o seu interlocutor. É dessa interação, como revela Sobral, entre autor, ouvinte e tópico que se constitui a enunciação e se possibilita ao autor-criador obter seu material para dar forma a seu trabalho. O autor, ouvinte e tópico estão presentes, como elementos constitutivos, em toda enunciação, sendo de sua interação, e como produto e resultado dela, que a enunciação vem a ser. De modo específico, é dessa interação, nos termos descritos com referência ao estilo, que o autor retira seu instrumental de trabalho com a forma e o material da obra, sendo a maneira peculiar de realizar esse trabalho, mesmo respeitando as coerções de gênero da obra, que constitui o estilo. (SOBRAL, 2009, p. 67) Apesar de o enunciado ser uma produção essencialmente singular e, por essa razão, ser capaz de refletir a individualidade do sujeito e seu estilo particular, nele também estarão refletidos e refratados os valores e influências a que for submetido no decorrer de sua vida. Mesmo assim, alguns gêneros são mais capazes do que outros de possibilitar a observância do estilo individual, sendo, segundo Bakhtin, os literários os mais propícios. Mas nem todos os gêneros são igualmente aptos para refletir a individualidade na língua do enunciado, ou seja, nem todos são propícios ao estilo individual. Os gêneros mais propícios são os literários – neles o estilo individual faz parte do empreendimento enunciativo enquanto tal e constitui uma das suas linhas diretrizes (...). A variedade dos gêneros do discurso pode revelar a variedade dos estratos e dos aspectos da personalidade individual, e o estilo individual pode relacionar-se de diferentes maneiras com a língua comum. (BAKHTIN, 2003, p. 284) Logo, como afirma este estudioso, ambos, o gênero e o estilo, possuem um elo inquebrável porque o estilo demonstra as especificidades do “gênero peculiar a uma dada esfera da atividade humana” e este corresponderia a determinados estilos. Por isso, “o estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais” (BAKHTIN, 2003, p. 284). Essa questão, apresentada por Bakhtin, é bastante relevante para a análise do córpus deste trabalho: nas três entrevistas pingue-pongues analisadas, como se vê nos capítulos que seguem, há preferência pela linguagem sincrética e pela elaboração estética do acabamento dado ao enunciado. Nesse caso, nossa hipótese é que o gênero, nessa esfera de atividade (cultural), atualiza os valores e modos de fazer/dizer predominantes na esfera. Conforme exposto, estilo e gênero são um elo inquebrável, porque não há estilo sem gênero e vice-versa. Como afirma Bakhtin (2003, p. 285), ao dizer que se passarmos “o estilo de um gênero para outro, não nos limitamos a modificar ressonância deste estilo graças à sua inserção num gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero”. 1.5 O ESTÉTICO E O ÉTICO NA OBRA Os valores ideológicos do autor são os fundamentos para que se constitua a função estética da obra que possui em si toda a história e cultura do grupo social ao qual o sujeito discursivo faz parte. Os posicionamentos axiológicos (valorativos) do autor da obra, portanto, são expressos por meio do estético e, a partir disso, ele comporá seu enunciado. Assim, é o ato artístico que permeia a transposição do plano da realidade para o plano da obra. Entretanto, segundo Clark & Holquist (1998, p. 229), “a diferença estética funda-se, antes, no grau em que um texto depende do contexto em que é percebido”, ou seja, quanto mais distante da relação com o seu contexto imediato for o texto mais estético ele será, porque se torna aberto a grandes contextos, podendo dialogar com diversas situações e tempos. A obra estética, por ter a preocupação central de apresentar a realidade partindo de cenários e personagens criados, mas distanciados, visto que apenas representa o discurso face a face, mostra uma necessidade na produção discursiva de um acabamento mínimo que está diretamente relacionado ao projeto enunciativo do sujeito, que estabelecerá as fronteiras do seu enunciado, a partir do que queira dizer ou provocar nos interlocutores. Por essa razão, as situações concretas de enunciação e o tema, o objeto de sentido, não podem ser pensados como elementos à parte do projeto enunciativo do locutor, mas sim como partes indissociáveis de uma mesma composição. O evento discursivo estético, além de transfigurar o mundo, como faz todo discurso, o transfigura nos termos de um ‘protocolo’ que é a obra estética (seja prosaica ou estética), um protocolo que tem suas regras específicas: partindo do conteúdo, do material e da forma, a obra estética tem seu ponto alto na forma do conteúdo que apresenta o conteúdo (o mundo humano transfigurado) em termos de uma dada concepção arquitetônica (a forma do objeto estético) que recorre a uma dada forma composicional (a forma do objeto exterior) e ao material verbal. (SOBRAL, 2009, p. 112 e 113) Assim, o discurso estético, como exposto anteriormente, não apenas recria a realidade, mas o faz dentro da obra estética, que possui regras específicas as quais garantem que o conteúdo temático do discurso estético seja apresentado pela própria forma composicional do texto. Podemos dizer, nesse caso, que o gênero do discurso é relevante na definição de como se produz essa relação entre vida e arte. Além das relações entre estilo e gênero do discurso na composição da obra, é preciso destacar que, de acordo com Bakhtin, o ato estético é constituído por duas consciências: a do autor-herói e a do leitor. E esta relação é tão relevante porque todo o discurso da obra, seja ela estética ou não, será arquitetado em torno disso. Dessa forma, o autor precisa assumir posições conforme o grau de proximidade e compreensão que possui do lugar do outro. Assim, na variedade de relações com o outro está a própria chave da constituição do ‘tom’ e do ‘fio’ dos discursos, em seus vários planos – estético, ético, cognitivo, religioso – pelo autor, o que leva igualmente em conta as esferas de atividade em que são possíveis e aceitáveis um dado ‘tom’ e dado ‘fio’. Assim, ser autor é assumir, de modo permanentemente negociado, posições que implicam diferentes modalidades de organização dos textos, a partir da relação do autor com o herói, ou tópico, e com o ouvinte. (SOBRAL, 2009, p. 63) Por isso, segundo Bakhtin (2003, p.177), o sujeito da obra concentra-se no conteúdo, usa-o, “enforma-o”, para tal feito, utiliza-se de um determinado material, submetendo-o ao seu “desígnio artístico, isto é, à tarefa de concluir uma dada tensão ético-cognitiva”. A forma não pode ser entendida independentemente do conteúdo, mas não pode ser independente da natureza do material e dos procedimentos por ele condicionados. Ela é condicionada a um dado conteúdo, por um lado, e à peculiaridade do material e aos meios de sua elaboração, por outro. (...) O procedimento artístico não pode ser apenas um procedimento de elaboração do material verbal, (...) deve ser antes de tudo um procedimento de elaboração de um determinado conteúdo, mas neste caso com o auxílio de um material determinado. De fato, o artista trabalha a língua, mas não como língua: como língua ele a supera, pois ela não pode ser interpretada como língua em sua determinidade linguística, mas apenas na medida em que ela venha a tornar-se meio de expressão artística. (BAKHTIN, 2003, p. 177) Todo discurso, para o Círculo, é composto por um conteúdo, um material e uma forma, com os quais o autor da obra artística trabalha (esse trabalho, no entanto, também se encontra no acabamento que se dá aos enunciados nas outras esferas, prosaicas). Sendo assim, os atos humanos são o conteúdo, o modo de dizer representa a forma, e a linguagem, o material. Contudo, quando o Círculo refere-se à forma, na verdade, seriam duas: a primeira é a forma composicional, ou seja, é a materialidade do texto; já a segunda é a forma arquitetônica e, portanto, a superfície discursiva, a “organização do conteúdo, expresso por meio da matéria verbal, em termos das relações entre o autor, o tópico e o ouvinte”. (SOBRAL, 2009, p. 68) Na obra artística, a forma composicional constrói o objeto externo, e a arquitetônica, o objeto estético. No entanto, não há como se dissociar uma da outra, visto que a organização arquitetônica precisa necessariamente de um material no qual possa moldar seu conteúdo. Como a forma composicional refere-se mais às estruturas textuais e a forma arquitetônica “ao projeto enunciativo do autor”, a atividade do sujeito recai principalmente sobre a última. Daí, dizer-se que a forma composicional é determinada pela forma arquitetônica e não o contrário. As relações enunciativas têm ligação direta com o ato estético, pois ao assumir diversas formas, ele se mostra dialógico porque se compõe das relações estabelecidas entre o autor e os grupos sociais que o influenciam, representado pela imagem social do ouvinte. Como afirma Sobral (2010, p. 76), “as relações enunciativas são a base também do discurso estético”, visto que toda a construção do texto pressupõe um endereçamento do autor para o leitor. 1.6 SUPORTE Todo enunciado tem através da materialidade do suporte sua forma de configurar seus sentidos e valores. Em outras palavras, suporte é o objeto no qual os textos estão inseridos, cuja materialidade permite que o enunciado seja lido, interpretado, compreendido em seus sentidos. De acordo com Chartier (1991, p. 182), é importante considerar o suporte como instrumento participante na construção da significação, uma vez que, segundo esse autor, “é preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor”. O suporte do enunciado concreto tem relação com os sentidos e valores que serão transmitidos para o leitor/ouvinte. Nesse sentido, o suporte escolhido pelo sujeito discursivo influencia e determina como os sentidos serão entendidos pelo outro nas relações discursivas, determina os modos de leitura dos enunciados. A textualização, que são os recursos utilizados pelo autor para a produção dos textos, e a composição, que são os recursos utilizados para a colocação do texto no suporte, são os elementos constitutivos da forma do suporte. Essas ferramentas possibilitam ao autor instaurar mecanismos de leitura e de produção de sentidos ao seu enunciado concreto. Percebe-se que a escolha do suporte e a circulação do discurso por meio dele também implicam em significação e produção de sentidos, uma vez que, como afirma Barzotto, (...) para considerar a forma do portador de texto como partícipe na construção de sua significação é preciso romper com os limites que enformam o próprio texto, dado que uma leitura a eles condicionada pode deixar de tomar em consideração sentidos que podem ser suscitados em um texto, justamente porque a forma do veículo imprime- lhe uma tensão tal que contribui para que alguns sentidos sejam forjados e outros negligenciados. E é preciso romper com os limites do próprio texto, tomado em sua unidade, repita-se, porque a disposição com que ele aparece no veículo faz com que sentidos ancorados em outras formas textuais presentes no mesmo veículo exerçam influência sobre aqueles sobre o qual recai, num momento dado, a atenção do leitor. (BARZOTTO,1998, p. 49) Essa questão é relevante porque demonstra que a escolha do suporte reflete como os signos vebais e sincréticos podem vir dispostos no texto, influenciando ou não leitor nos modos de leitura que fará desses signos. Nas três entrevistas analisadas, por exemplo, há um entrelaçamento entre o que se enuncia na capa, na carta do editor e na entrevista pingue-pongue. No caso, há um direcionamento temático que é proporcionado pelo suporte revista impressa, que permite esse ir e vir do leitor na sua atividade de leitura. 1.7 O ETHOS E A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM NA ENTREVISTA PINGUE- PONGUE Quando da discussão sobre a importância de se considerar o estilo na abordagem dos gêneros do discurso, destacamos a proximidade entre ethos e estilo (DISCINI, 2010). Assumimos, nesta pesquisa, essa proximidade e, neste item, discorremos sobre o conceito de ethos, que entendemos ser produtivo na análise de nosso córpus. Nas entrevistas analisadas, chama atenção a forma como se diz (ethos discursivo) para construir uma identidade de si e produzir um acabamento no enunciado- entrevista. Neste item, esboçamos os conceitos de face e ethos e discorreremos sobre o porquê de o sujeito procurar, ao se expor, criar uma imagem positiva de si. A face, de acordo com Amossy (2005), é a imagem pública que cada indivíduo tem e reclama para si e por isso mesmo quer preservar em um processo interativo. Desse modo, a autoimagem que o sujeito poderá produzir ao seu interlocutor, durante o seu discurso, pode se mostrar tanto negativa (anseio por liberdade de ação e por domínio do próprio território) quanto positiva (anseio por ser aceito pelos outros e desejo de que estes compartilhem as mesmas expectativas), dependendo das escolhas linguísticas, paralinguísticas e, até mesmo, estéticas, que faça. Segundo Amossy (2005, p. 9), “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si”. O locutor concretiza em sua fala, conscientemente ou não, uma apresentação de si, não sendo necessário, portanto, que explicite seus atos, visto que “seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa”. A construção de uma imagem de si mesmo pelo sujeito, durante o enunciado, visando a criar um efeito positivo em seu destinatário corresponde ao que a retórica aristotélica chama de ethos. Os antigos gregos designavam pelo termo ethos a construção de uma imagem de si destinada a garantir o sucesso do empreendimento oratório. Lembrando os componentes da antiga retórica, Roland Barthes define o ethos como (...) os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão: é o seu jeito [...]. O autor retoma assim as ideias de Aristóteles, que afirmava em sua Retórica: ‘É [...] ao caráter moral que o discurso deve, eu diria, quase todo seu poder de persuasão’. (BARTHES, APUD: AMOSSY, 2005, p. 10) Nessa perspectiva, ethos é entendido como o valor que o enunciador atribui a si mesmo pela forma como desenvolve e apresenta sua enunciação, o que ele constrói pela escolha das palavras, pelo estilo “correto e elegante”, pela própria fluência do enunciado. Suas qualidades não são ditas explicitamente, mas implicitamente, pelo modo como se exprime, pelo tom que dá a seu discurso. Explica Maingueneau (2005, p. 70) que “o ethos se desdobra no registro do ‘mostrado’ e, eventualmente, no do ‘dito’. Sua eficácia decorre do fato de que envolve de alguma forma a enunciação sem ser explicitado no enunciado”. O sujeito, durante a interação em que é o principal enunciador (como no caso de palestras, entrevistas, aulas), encontra-se em posição vulnerável, visto que ao manifestar-se expõe publicamente sua autoimagem (face) e, ao fazê-lo, corre, portanto, o risco de apresentar uma imagem negativa ao invés de pôr em evidência o que quer realmente mostrar. Por esse motivo, o enunciador adota estratégias que lhe permitam controlar a construção do seu ethos. De fato, a imagem do enunciador é criada durante a produção de seu discurso pelas escolhas realizadas por ele, porque, como afirma Eggs (APUD: AMOSSY, 2005, p. 31), toda maneira de se expressar é resultante “de uma escolha entre várias possibilidades linguísticas e estilísticas”, portanto, o ethos está fortemente relacionado ao exercício da palavra e não ao ser real. É importante ressaltar que o conceito de ethos deve ser compreendido aqui como a imagem do sujeito que se coloca na enunciação, mostrando-se por meio do seu discurso, e não como o sujeito real; portanto, um ethos discursivo, que se solta do próprio discurso e constrói-se no momento em que o sujeito toma a palavra para si, como explica Maingueneau (1997). No caso deste trabalho, também é preciso destacar que, a credibilidade e a persuasão são de fundamental importância durante a entrevista, já que para alcançá-las o sujeito (o entrevistador e o entrevistado) deve mostrar em seu discurso um ethos discursivo positivo dentro dos valores dos grupos sociais aos quais pertence. Esses aspectos nas relações entre entrevistado-entrevistador, e suas relações com o ethos e estilo, são desenvolvidos na análise dos dados. 2. A ENTREVISTA PINGUE-PONGUE NA REVISTA BRAVO! No capítulo anterior houve a preocupação em mostrar como as relações dialógicas são constituídas no processo de enunciação, assim como os valores ideológicos e o acabamento estético são importantes para a produção de sentido e significado na relação eu-outro. Já, nesta seção, tentaremos mostrar como se configura o gênero entrevista pingue-pongue e as especificidades que ele pode apresentar quando encontrado na esfera da cultura no suporte revista. Para isso, este capítulo está centrado em três relevantes discussões - o gênero entrevista pingue-pongue, o discurso jornalístico da revista Bravo! e a análise das entrevistas selecionadas. 2.1 A ENTREVISTA PINGUE-PONGUE Todo enunciado espera uma resposta e é, ao mesmo tempo, uma resposta ao enunciado do outro e, segundo Bakhtin, para isso, faz uso de instrumentos que possibilitam esse diálogo. Assim, a obra “predetermina posições responsivas do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 298) nas relações discursivas em uma determinada esfera sociocultural. A obra, assim como réplica do diálogo, visa a resposta do outro, uma compreensão responsiva ativa, e para tanto adota todas as espécies de formas: busca exercer uma influência didática sobre o leitor, convencê-lo, suscitar sua apreciação crítica, influir sobre êmulos e continuadores, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 298) Desse modo, quando manifesto na modalidade oral da língua, a entrevista apresenta uma situação comunicativa direta, em que a interação ocorre face a face, podendo ser definida como, segundo Sá (2009, p. 3), “uma técnica eficiente na obtenção de respostas pré-pautadas por um questionário” e sua função principal é a de recolher fatos, informar ou motivar o público. A entrevista é uma atividade interativa que tem por objetivo a informação e procura dar vazão às relações sociais, além de possibilitar entre o entrevistador, o entrevistado e o público uma troca de informações, de experiências e de juízos de valor. Segundo Marcuschi (1983, p. 16), é possível distinguir em uma interação dois tipos de diálogos: o simétrico, em que todos os participantes possuem o mesmo direito à “autoescolha da palavra”, e o assimétrico, no qual “um dos participantes tem o direito de iniciar, orientar, dirigir e concluir a interação e exercer pressão sobre os demais”. Neste último, se considerássemos a proposta de Marcuschi, encaixar-se-ia o gênero do discurso entrevista, como explica Sá: A entrevista define-se por apresentar uma interação assimétrica (...) dado que os papéis dos interlocutores (entrevistador e entrevistado) são distintos. Ao entrevistador cabe escolher o tópico discursivo e a direção da conversação: quando ou como interromper ou terminar (isto fica bem claro na entrevista jornalística), a distribuição dos turnos, o caráter contratual ou polêmico, entre outros. Por sua vez, o entrevistado pode conservar o turno por mais tempo, pois é a ele que se quer ouvir. (SÁ, 2009, p. 2) No entanto, entendemos que essa distinção simétrico versus assimétrico redutora, tendo em vista que, na perspectiva dos estudos bakhtinianos, não é possivel pensar discursos simétricos, fora das relações de poder. Outro aspecto a se destacar é que este gênero, por essa característica de alternância de enunciados, como se houvesse um embate, mostra-se bastante singular em sua composição por envolver em suas práticas o que é dito ou presumido tanto pelo entrevistado quanto pelo entrevistador. Outra especificidade marcante é o peso que a “valoração axiológica” tem neste gênero porque é ela quem comanda a entrevista pingue-pongue. Como afirma Silva, (...) é a valoração axiológica que a faz “movimentar” na edição. Ao envolver o tema do gênero (o entrevistado e seu discurso), o horizonte valorativo, de certo modo, define: o espaço (seção) em que a entrevista deve estar “ancorada”; as perguntas e respostas que devem, de fato, ser publicadas; a extensão textual das entrevistas a serem publicadas, enfim, confere o “tom” apreciativo ao entrevistado e a seu discurso. (SILVA, 2007, p. 3) É essa valoração axiológica – elemento essencial para a composição do signo ideológico - que torna a entrevista pingue-pongue um gênero bastante peculiar porque nele estes índices da valoração axiológica estão presentes não apenas nos temas e assuntos tratados, mas também no diálogo com os outros gêneros que vão constituindo a entrevista e definindo o acabamento estético. 2.1.1 O gênero entrevista pingue-pongue A entrevista pingue-pongue escrita e impressa, como as analisadas neste trabalho, é um discurso retextualizado, uma reenunciação da interação face a face ocorrida entre o entrevistador e o entrevistado. O primeiro precisa, conforme Silva (2007), realizar um enquadramento da sua fala e da do entrevistado, sendo, portanto, um discurso citado, não se tratando da mesma interação ocorrida anteriormente. Desse modo, neste tipo de gênero, ambos - entrevistador e entrevistado – possuem a função de convencer o público, desempenhando, portanto, de acordo com Sá (2009), “um duplo papel na interação: são cúmplices, no que diz respeito à comunicação, e oponentes, quanto à conquista desse mesmo público”. Apesar dessa cumplicidade, o entrevistador acaba por ocupar uma posição privilegiada porque é ele quem irá interpretar, organizar e reescrever a entrevista oral para a sua publicação, realizando uma ressignificação do discurso do entrevistado. Nesse sentido, a entrevista jornalística escrita é uma resposta, uma contrapalavra do entrevistador ao discurso do entrevistado, e nesse sentido ela apresenta uma perspectiva daquele sobre este. É um discurso que, pela forma de composição e pela relação institucionalizada entre entrevistador e entrevistado – veja-se que o jornalista é um sujeito autorizado pelo sistema de apropriação do discurso a realizar a prática da entrevista e a organizar o todo verbal para publicação –, constitui-se ressignificando o discurso do entrevistado. Assim, esse gênero explicita diferentes vozes sociais, pondo em cena uma face do interdiscurso, e é uma prática discursiva que mantém o poder do discurso do jornalista no social. (MENDONÇA, 2008) O diálogo explícito que se estabelece entre os dois sujeitos participantes da entrevista é fator essencial para que o sentido do enunciado seja construído, sendo a entrevista pingue-pongue espaço privilegiado de explicitação dos conflitos ideológicos presentes nas relações entre determinados grupos sociais. Outro fator que irá também influenciar no dizer do autor, segundo Cavalcanti (2006), é o lugar ocupado pelo sujeito discursivo (no caso, o entrevistador) e destinatário desse discurso na estrutura social, uma vez que essas posições na sociedade constituem o dizer e determinam as estratégias discursivas desses personagens, ou seja, “se o sujeito fala a partir do lugar de patrão, suas palavras significam de maneira diferente do que se falasse do lugar de empregado”. Existe, portanto, um jogo de forças que media essas interações entre o sujeito e o outro, e são esses lugares determinados dentro do discurso que proporcionariam a legitimação desse dizer. Outra peculiaridade da entrevista pingue-pongue é o fato de sua ocorrência ser menor dentro de um jornal ou revista do que outros gêneros, inclusive na esfera da cultura (no caso da Bravo!, por exemplo, das doze edições veiculadas em 2012 apenas quatro possuem o gênero entrevista pingue-pongue em sua manifestação escrita e completa). Assim, apesar de esse gênero ser valorizado dentro do próprio jornalismo, ele é diluído em outros gêneros jornalísticos (como reportagens e notícias, os quais se produzem a partir de entrevistas); no entanto, um índice de que é valorizado é que se torna muitas vezes a manchete da capa. Veja-se o caso da Revista Língua Portuguesa (editora Segmento, São Paulo), estudada por Mendonça (2008). Como já exposto, a entrevista é considerada dentro do jornalismo uma forma de destaque e seu uso tem elevada relevância seja no jornal diário quanto em revistas. Por essa razão, considera-se que o discurso jornalístico, principalmente quando pensamos na entrevista pingue-pongue, seja um embate, uma arena, onde jornalista e entrevistado alternam seus dizeres como se estivessem em um enfrentamento para conquistar a empatia do leitor. Daí a posição ocupada pelo jornalista-entrevistador ser tão importante para o gênero entrevista pingue-pongue, na medida em que a escolha desse sujeito não pode ser aleatória, mas carregada de valores simbólicos e determinada por um “status social”, que ajuda a compor o imaginário social. Como afirma Cavalcanti (2006, p. 42), “essas representações imaginárias não ‘caem do céu’ mas resultam de tudo o que foi dito e ouvido, os saberes que circulam em nossa formação social”. Em outras palavras, como o entrevistador é quem irá enquadrar o discurso do entrevistado, ele o faz a partir dos valores sociais que carrega, sendo apenas possível vislumbrar indícios dos participantes da interação face a face. 2.1.2 A identidade do sujeito jornalista Como explicado no primeiro capítulo sobre as relações dialógicas, para Bakhtin (2003), o sujeito é pensado como constituído na relação com o outro. Ele só existe enquanto sujeito discursivo a partir e pelo olhar do outro. Por isso, falar em identidade é falar de heterogeneidade/diferença e a concepção de diálogo explica bem essa questão ao apontar que o discurso provém de outros e carrega os valores sociais do grupo. A identidade do sujeito, segundo Cavalcanti (2006), é constituída pelos valores que circulam na comunidade, pelos traços atribuídos a ele por seu grupo social e pelos quais ele assume para si. Dessa maneira, podemos dizer que a identidade é formada por representações sociais e imaginárias que foram construídas a partir do que foi dito e ouvido durante a composição social dos grupos. São essas representações que permitem que o sujeito assuma seu papel na comunidade. Primeiramente, precisamos esclarecer que pensar na identidade do sujeito jornalista não é o mesmo que pensar o jornalista, o indivíduo, uma vez que, como explicado, aquele é constituído por meio das representações e sentidos produzidos pela comunidade na qual está inserido, ou melhor, ele tem uma posição e papel definidos pelo grupo no discurso jornalístico. Cavalcanti, ao refletir sobre a identidade do sujeito jornalista, diz que: (...) os sentidos atribuídos ao sujeito jornalista, aqueles que se impõem como hegemônicos, são: poucas regras (ou ausência delas), habilidade com a escrita, liberdade de criação, autonomia – traços que aproximam o jornalismo da arte. É no interior dessa representação que o sujeito jornalista constrói sua identidade. (CAVALCANTI, 2006, p. 46) Além desses sentidos atribuídos, Cavalcanti (2007) também afirma que o discurso jornalístico e sua prática reclamam para si as seguintes características: a combatividade5 e a objetividade, marcas tão repetidas e defendidas pelo grupo social que já se cristalizaram no imaginário coletivo. Por esses atributos, a identidade do sujeito jornalista torna-se bastante singular, no sentido de que exerceria um importante papel social – “distribuir o saber, dar ao outro a leitura do mundo (Cavalcanti, 2007, p. 73)”. 2.2 O DISCURSO JORNALÍSTICO DA REVISTA BRAVO! O objeto de estudo desta pesquisa é a entrevista pingue-pongue na revista Bravo!. A escolha desse suporte ocorreu porque o jornalismo de revista, diferentemente do jornalismo diário, cujo enfoque é o fato noticioso, conforme explica Silva (2007), tem por especificidade o comentário aprofundado dos fatos e uma linguagem mais literária. Como nos interessa investigar neste trabalho as relações enunciativas que se constroem entre os sujeitos discursivos – entrevistador/revista Bravo!, entrevistado e leitor -, torna-se, portanto, importante apresentar de que lugar discursivo e valorativo eles vêm. A revista Bravo!, publicação de periodicidade mensal da Editora Abril, foi criada em 1997 e teve suas atividades encerradas em julho de 2013. O periódico tratava em suas páginas dos diversos campos das atividades culturais do país: artes plásticas, como pintura, escultura, fotografia; cinema; música; teatro; dança; e literatura, entre outras manifestações artísticas. Desde o seu início, a revista assumiu o compromisso, tanto pela via impressa – capa (figura 1) – quanto, posteriormente, nas edições on-line, de ser a publicação que apresentaria ao leitor “o melhor da Cultura” nacional no mês vigente da circulação. 5 Ao tratar dessa característica, Cavalcanti aborda a questão do quarto poder que a impressa tem sobre si e por essa razão o jornalista assumiria, segundo a autora, o papel de investigador, aquele que vai atrás da verdade, que está sempre atento ao que acontece ao seu redor e tem a obrigação de fazer justiça. Fig. 1 A publicação possuía uma tiragem mensal de 33.195 revistas, sendo que seu maior nicho eram as vendas por assinatura, que abarcavam 50% desse montante. O seu preço, R$ 14,90, superior ao de muitas outras revistas, se justificava, de acordo com a editora, pela qualidade do material e de seu acabamento artístico. Já o público-alvo da revista era composto, conforme os gráficos a seguir demonstram, majoritariamente pela classe B (gráfico 1) da região Sudeste (gráfico 2). Gráfico 1 CLASSE SOCIAL Gráfico 2 De acordo com o Centro de Políticas Sociais da FGV, a classe B hoje é composta pela parcela da população cuja renda per capita está entre R$ 7.475,00 e R$ 9.745,00, sendo responsável por quase 47% do consumo total do país. Além disso, este grupo ao comprar um produto preocupa-se com o valor agregado e a qualidade que é oferecida. Já com relação ao gênero (gráfico 3) é relevante a predominância do público feminino sobre o masculino, o que influencia fortemente no direcionamento que a revista precisa dar tanto ao seu conteúdo quanto ao seu acabamento estético. Gráfico 3 REGIÃO GÊNERO IDADE A idade média do leitor da revista variava entre os 25 e 34 anos (38%), porém não se pode descartar o grupo entre 35 e 44 anos por ser também relevante, com 26%, conforme se pode observar no gráfico abaixo (gráfico 4). Essa faixa etária, no Brasil, é a que mais consome tecnologia e, segundo pesquisa6 realizada pela Fenapro, a que mais lê jornais e revistas comparada as outras idades. Gráfico 4 Esses dados são importantes porque definem a quem tanto entrevistador quanto entrevistado estarão dirigindo o seu olhar na construção do seu enunciado. Como exposto anteriormente, o gênero entrevista pingue-pongue caracteriza- se, principalmente, pela interação assimétrica uma vez que as posições ocupadas no discurso entre entrevistador e entrevistado são distintas. O primeiro desempenha um papel já balizado no imaginário social e, por essa razão, precisa passar a imagem de alguém sério e preparado para ocupar essa posição. Portanto, a escolha do sujeito da entrevista não pode ser aleatória, mas deveria ser feita por alguém que saberia escolher o tópico discursivo e dar o direcionamento temático. Por essa razão, as entrevistas veiculadas pelo periódico tiveram a assinatura do seu redator-chefe, por seu discurso ser de autoridade pela posição que ocupa dentro do grupo social. 6 Pesquisa realizada pela Federação Nacional das Agências de Propaganda – Fenapro - para o Governo Federal intitulada “Hábitos de Informação e Formação de Opinião da População Brasileira”, publicada em 2010. A função do entrevistador torna-se ainda mais simbólica quando pensamos na proposta editorial da revista Bravo!: BRAVO! é seu ingresso para o mundo da cultura. Uma revista abrangente, que atende um público cada vez mais qualificado. Todos os meses, BRAVO! destaca o que há de melhor na agenda cultural brasileira, seja no teatro e na dança, seja na literatura, no cinema, nas artes visuais e na música. É uma revista vibrante e acessível, que procura tirar da arte e da cultura o rótulo de inatingíveis ou elitistas. Com linguagem leve e agradável, oferece aos leitores um mix de reportagens, entrevistas, críticas e pequenos ensaios. Em cada edição, apresenta uma gama variada de assuntos, aponta tendências, analisa, opina e estimula o debate de ideias. Fórmula que a transformou na principal publicação do gênero no país. Redator-chefe BRAVO! No ano de 2012, das doze edições da Bravo!, dez trouxeram como matéria principal personalidades expoentes da cultura do cenário nacional e internacional, passando pela Literatura, Cinema, Música, Antropologia, entre outros, tais como Nelson Rodrigues (janeiro), Fernando Henrique Cardoso (fevereiro), Selton Mello (março), Antônio Fagundes (abril), Ingrid Bergman (maio), Drummond (junho), Tom Zé (julho), Marisa Monte (setembro), Clarice Lispector (novembro) e Gilberto Gil (dezembro). Dessas, apenas as revistas veiculadas em fevereiro, setembro e dezembro possuem entrevistas pingue-pongues feitas com (ou sobre) brasileiros. São essas matérias que selecionamos para análise: uma entrevista com Fernando Henrique Cardoso, sobre a vida e obra de sua falecida esposa, Ruth Cardoso; uma com Marisa Monte; e outra com Gilberto Gil, que fala sobre Luiz Gonzaga. / 2.3 COTEJANDO AS ENTREVISTAS PINGUE-PONGUES A nossa pesquisa, como já exposto no capítulo 1, tem por fundamentação teórica os estudos feitos por Bakhtin e o Círculo e seus argumentadores. Desse modo, optamos por seguir procedimentos metodológicos propostos por Geraldi (2012) e seus colaboradores, cujas reflexões centram-se na concepção bakhtiana sobre a linguagem. Para Geraldi, é possível, dentro das complexidades que o estudo da linguagem oferece, adotar procedimentos metodológicos, e, com isso, estabelecer regras e princípios particulares a serem seguidos pelo pesquisador para desenvolver seu estudo. A metodologia, portanto, serve como uma aliada no processo de análise dos dados porque, ao traçá-la e acompanhá-la, é capaz de proporcionar “descobertas surpreendentes”. Como afirma Geraldi (2012, p. 24) “dispor de um método é ter corrimãos definindo a caminhada para descobrir o que previamente se conhecia, sem expor-se ao desconhecido”. Tendo em vista os objetivos do nosso trabalho, como apresenta Geraldi no estudo citado, procuramos cotejar os textos, em busca de suas singularidades. Assim, procuramos observar no córpus as relações discursivas e as especificidades do gênero entrevista pingue-pongue na esfera do jornalismo cultural. O córpus é composto por entrevistas pingue-pongues veiculadas entre janeiro e dezembro de 2012 na revista Bravo!. Para a dissertação, dentre as 13 edições, foram cotejadas as entrevistas realizadas com personalidades nacionais, no caso, as edições de fevereiro, setembro e dezembro, cujas figuras centrais foram, respectivamente, Fernando Henrique Cardoso, enfocando a Literatura, Marisa Monte e Gilberto Gil, abordando a Música. A escolha limitou-se a essas três entrevistas porque as outras edições daquele ano não se encaixaram nos critérios que estabelecemos como relevantes para a composição do córpus: a) ser entrevista pingue-pongue, e b) apresentar personalidades brasileiras. Esse último critério justifica-se pelo fato de que, em seu editorial, a revista assume enfocar personalidades e eventos da agenda cultural brasileira. Como o intuito é tentar refletir sobre o enunciado no gênero entrevista pingue- pongue na esfera da Cultura, elencamos durante a análise as seguintes situações, que ajudariam a compor as relações enunciativas e que ressignificam e materializam os valores desses sujeitos discursivos: a) o diálogo dentro do próprio gênero; b) o diálogo entre gêneros dentro de um mesmo suporte (no caso, a revista); c) o diálogo entre este gênero e outros no exterior do veículo. Serão considerados para a construção das relações enunciativas não apenas o conteúdo temático e o estilo verbal, mas, principalmente, a sua construção composicional, porque, como afirma Bakhtin (2003, p. 280), “estes três elementos (conteúdo, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação”. Feitas essas considerações, vejamos como essas relações podem ser observadas na entrevista. 2.3.1 Edição de fevereiro de 2012 Na edição de fevereiro da Bravo!, a revista trouxe como entrevistado o ex- presidente Fernando Henrique Cardoso para comentar a então recente publicação do livro “Ensaios”, de sua esposa Ruth Cardoso, falecida em 2008. Ruth Vilaça Correia de Leite Cardoso foi uma reconhecida antropóloga e professora universitária, atuando em várias instituições, tais como USP, Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso/Unesco), a Universidade do Chile, a Maison des Sciences de L'Homme em Paris, a Universidade de Berkeley e a Universidade de Colúmbia. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, como primeira-dama do Brasil, criou e presidiu o programa Comunidade Solidária,6 de combate à exclusão social e à pobreza, e em 2000, criou a organização não governamental Comunitas, na qual atuou até sua morte. Publicado pela editora Mameluco, o livro “Obra Reunida” (figura 2) traz, nas suas 568 páginas, ensaios produzidos pela ex-primeira-dama em quase cinco décadas de trabalho intelectual – 1959 a 2004. Fig. 2 São 43 textos, ao todo, que revelam como suas ideias inovadoras sobre Estado e sociedade se construíram ao longo dos anos. Nessa publicação, fazem parte os artigos que ela publicou em vida (três deles originalmente em línguas estrangeiras), além de um texto inédito tirado de seus arquivos. Entretanto, não constam os artigos e entrevistas ligados diretamente ao trabalho de Ruth Cardoso no Comunidade Solidária, nem sua tese sobre a imigração japonesa em São Paulo, que compõe um livro independente. Diferentemente das outras duas edições que analisaremos a seguir, a entrevista pingue-pongue da edição de fevereiro7 chamou-nos atenção pelo recorte claro que faz tanto na capa quanto na manchete do que irá abordar: “o legado intelectual”, “a atuação como primeira-dama” e “a vida doméstica”. Esse acabamento deixaria claro o direcionamento temático que será dado à matéria: a problemática de ser mulher no Brasil. O entrevistador usa e enforma as separações dos campos de atuação de Ruth Cardoso apresentando-as com destaque como se a própria antropóloga fizesse essa distinção. A partir dessa forma composicional – a materialidade do texto -, o entrevistador vai assumindo seu posicionamento pelas escolhas de estilo feitas e as relações dialógicas são estabelecidas pela memória, mas sob a perspectiva do olhar do outro. Como pode se observar na capa: 7 Sabemos que há várias leituras possíveis de um mesmo texto, no entanto, este direcionamento foi o que nos chamou mais atenção durante a análise da entrevista em questão. Fig. 3 A opção pelo posicionamento do entrevistado em relação à foto de Ruth Cardoso – atrás – não desvaloriza sua imagem. Apesar de Fernando Henrique Cardoso ser apenas um transmissor das histórias, visto que a vida dela é que será contada, a imagem dele é muito importante no cenário nacional e internacional e traz consigo um discurso de autoridade respeitado e consagrado, portanto não podendo ser deixado de lado, como um mero expectador (“O ex-presidente FHC fala sobre o legado acadêmico, a atuação política e a vida doméstica da antropóloga.”). Por essa razão, entende-se o realce dado a sua imagem – colorida - enquanto a antropóloga é representada por uma foto e em preto e branco – porque ela situa-se no campo da memória. Ela não fala sobre si na capa, mas é mostrada, também por meio do verbal, nas chamadas: “Ruth se sentia insegura”, “FHC fala sobre Ruth Cardoso”, “A atuação como primeira-dama”. A seleção dos elementos da capa possibilitaria a construção de uma imagem de veracidade e de intimidade, como algo que era de conhecimento apenas do casal: “exclusivo” e “Ela se sentia intelectualmente insegura”. Percebe-se, então, a preocupação em apresentar ao leitor a história de Ruth Cardoso, que transitou mais no meio acadêmico e político do que cultural, mas sem menosprezar o conhecimento dos seus interlocutores que majoritariamente pertencem à classe B. Para isso, o entrevistador se utiliza de um outro gênero – o relato – por meio do qual ele pode dar voz a si mesmo e preservar o seu estatuto enunciativo. E assim ele vai marcando uma nova forma composicional para a entrevista pingue-pongue, com relato inicial mais longo que o comum nesse gênero jornalístico, e dando forma ao acabamento estético: Fig. 4 Essa posição exotópica, esse olhar de fora lançado sobre o outro, do sujeito discursivo é revelado pela valoração da palavra legado8, cujo sentido está ligado à memória. Ela é repetida com ênfase em quatro momentos distintos – capa (“o legado acadêmico”), contracapa (“o legado acadêmico”), abertura da matéria (o legado intelectual”) e em uma pergunta durante a entrevista (“Não há risco de se estar supervalorizando o legado acadêmico de Dona Ruth Cardoso por razões políticas?). Assim o entrevistador inicia a primeira parte de seu texto tratando-a como uma herança deixada a todos e é essa escolha que irá marcar o direcionamento temático deste trecho da entrevista. Isso se pode notar pelas duas primeiras perguntas feitas por ele: Fig. 5 As indagações feitas pelo entrevistador carregam vozes sociais e é neste momento que ele dá forma e conteúdo a elas. Ao questionar o entrevistado se ele “já pensou no assunto” se passa a ter a percepção de um pelo outro e inicia-se o “jogo” da relação do eu e do outro. E é nesse interação que se materializa no enunciado a problemática da mulher brasileira, a questão do feminismo e do machismo. 8 O dicionário Michaelis traz como significado para este termo: 1. Disposição, a título gracioso, por via da qual uma pessoa confia a outra, em testamento, um determinado benefício, de natureza patrimonial; doação "causa-mortis". 2 Parte da herança deixada pelo testador a quem não seja herdeiro por disposição testamentária nem fideicomissário. L. cultural: língua, costumes e tradições, que passam de uma a outra geração. FHC: (...) Padecia de insegurança. Bravo!: Insegurança? Não dava a menor impressão. FHC: De fato: os inseguros costumam parecer afirmativos. No fundo, Ruth ignorava o próprio valor. Não possuía uma autoestima muito elevada. (...) Bravo!: Dona Ruth se sentia insegura em que aspectos? FHC: Apenas intelectualmente. No papel de mulher, de mãe ou professora, não. (...) Assim, o direcionamento temático, cujo olhar era voltado para a memória, revela-se ser sobre a questão do feminismo e a imagem que cada um tem de si sobre esse assunto. Desse modo, tanto o ethos do entrevistado quanto do entrevistador vão sendo construídos por meio da valoração axiológica dada por eles no decorrer da entrevista. No decorrer da entrevista pingue-pongue, podemos observar essa preocupação com a imagem que se quer mostrar de si. No caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como as figuras 4 e 5 revelam, o ethos vai sendo revelado aos poucos pelas interrupções, por meio dos posicionamentos: Fig. 6 Fig. 7 O autor-entrevistador se revela mais voltado a um pensamento igualitário, uma vez que seu destinatário é composto principalmente por mulheres com alto grau de estudo e que espera ser representado no seu discurso: Fig. 8 Fig. 9 O olhar lançado sobre o