VITOR NUNES LAGES Universidade pública, cisnormatividade e justiça social: Uma análise das políticas afirmativas e as demandas de pessoas trans universitárias Marília/SP 2024 Câmpus de Marília Vitor Nunes Lages Universidade pública, cisnormatividade e justiça social: Uma análise das políticas afirmativas e as demandas de pessoas trans universitárias Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de Concentração: Cultura, Identidade e Memória. Orientadora: Profa. Dra. Lídia Maria Vianna Possas Coorientadora: Profa. Dra. Daniela Cardozo Mourão Marília/SP 2024 L174u Lages, Vitor Nunes Universidade pública, cisnormatividade e justiça social : uma análise das políticas afirmativas e as demandas de pessoas trans universitárias / Vitor Nunes Lages. -- Marília, 2024 318 p. : tabs., fotos Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: Lidia Maria Vianna Possas Coorientadora: Daniela Cardozo Mourão 1. Ações afirmativas. 2. Identidade de gênero. 3. Ensino superior. 4. Transfobia. 5. Justiça Social. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). VITOR NUNES LAGES UNIVERSIDADE PÚBLICA, CISNORMATIVIDADE E JUSTIÇA SOCIAL: UMA ANÁLISE DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS E AS DEMANDAS DE PESSOAS TRANS UNIVERSITÁRIAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________ Profa. Dra. Lidia Maria Vianna Possas (Orientadora) Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília) ____________________________________________ Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ-RJ) Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) ___________________________________________ Prof. Dr. Evandro Piza Duarte Universidade de Brasília (UnB) Marília, 30 de setembro de 2024. AGRADECIMENTOS Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Marília, por ter sido o lar onde este trabalho pode ser realizado. Agradecimento que estendo a todos/as os/as docentes, servidores/as e colegas com os quais caminhei junto no mestrado. Em especial, à professora Maria Valéria Barbosa, e aos professores Paulo Teixeira, Aluisio Schumacher, José Geraldo Poker, Andréas Hofbauer, Marcos Cordeiro e Agnaldo dos Santos, às servidoras Aline Morais, Luciana, Aparecida Coutinho e Regina Etó e aos servidores Adilson Junior, Mateus Ianae e Paulo Teles, aos colegas Noah Machado, Enndiel Mendes e Giovanna Borges. Às minhas orientadoras professoras Lídia Maria Vianna Possas e Daniela Cardozo Mourão, pelo acolhimento na universidade, por me apresentarem novas perspectivas que me fizeram refletir sobre a importância de outras políticas institucionais, e pela disponibilidade para conversar sobre este trabalho. À professora Jaqueline Gomes de Jesus, por me honrar com sua participação na minha banca avaliadora e, desde a qualificação, tecer críticas e sugerir bibliografias que foram fundamentais para o aprofundamento deste trabalho. Ao professor Evandro Piza Duarte, por todo o aprendizado nesses anos de orientação e cooperação em trabalhos, por suas críticas sinceras e oportunidades que me apresenta, e por aceitar compor minha banca avaliadora. Ao professor Paulo Eduardo Teixeira e à professora Valdenia Pinto de Sampaio Araújo, por gentilmente aceitarem ler esta dissertação e comporem minha banca como suplentes. Ao Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG/Unesp), por também ter se tornado um lar em minha trajetória na Unesp, onde conheci pesquisadoras incríveis preocupadas com as violências interseccionais vividas por mulheres, reunidas para estudar e discutir textos especialmente voltados a esse problema no espaço acadêmico. Agradeço especialmente a amizade e o apoio de Camila Rodrigues e Bruna Oliveira. Aos outros projetos de pesquisa e extensão que integrei, muito importantes na minha formação: Programa de Educação Tutorial (PET/UnB), Rexistir – Núcleo LGBT (UnB) e Grupo de Pesquisa, Retórica, Argumentação e Juridicidades (GPRAJ/UnB). À Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da UNESP (CAADI), pelo diálogo e pelos convites para integrar atividades formativas à comunidade acadêmica da universidade, em especial ao professor Leonardo Lemos de Souza. A todas as pessoas que colaboraram com o estudo inicial sobre a política do nome social nas universidades públicas, realizado no âmbito da disciplina “Prática e Atualização do Direito – Diversidade e Justiça”, ministrada pelo professor Evandro Piza Duarte, na Faculdade de Direito da UnB. À minha mãe, Solange Lages, uma felicidade tão grande de tê-la hoje viva e com saúde e um privilégio de ter crescido com seu exemplo de dedicação afetuosa à docência em suas múltiplas faces, no ensino, na pesquisa e na extensão onde trabalhou (UESPI). Perdi muitas histórias e risadas por não desligar a mente deste trabalho. Agradeço sua compreensão, acolhimento e incentivo. Ao meu pai, José Lages, pelo incentivo e apoio, e por dividir comigo os cuidados com minha mãe, suprindo ainda minhas ausências nas vezes em que eu precisei de um dia inteiro de dedicação a este trabalho. Ao meu irmão, Danilo Lages e a minha cunhada Bruna Lages, pelo apoio e incentivo, e pelo pacotinho de amor que trouxeram ao mundo nesses últimos meses, minha afilhada Cecília, que muito me alegrou nessa reta final de escrita. À minha psicóloga Marília Silva, pela longa jornada juntos, acredito que há mais de dez anos entre idas e vindas, um processo incessante de me conhecer e lidar com os conflitos que habitam em mim e no mundo. À toda minha família, avô, tias, tios, primas e primos, e às minhas amigas, pelo incentivo, afeto e por tantos momentos felizes. Às instituições de ensino superior públicas, onde tenho construído minha trajetória acadêmica e profissional, por serem um local de resistência política ao reacionarismo em crescimento no país, a partir de bases sólidas produzidas pelo conhecimento científico e pela abertura democrática às demandas dos movimentos sociais. Aos/às pesquisadores/as e colaboradores/as dos trabalhos analisados nesta dissertação, especialmente às pessoas trans que neles compartilharam suas vivências, meu profundo respeito e agradecimento. Ao movimento social de travestis e transexuais, fundamental em todas as conquistas de direitos de pessoas trans e demais pessoas LGBTI+, com o qual pretendo contribuir através deste trabalho. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. RESUMO As políticas afirmativas que visam promover o ingresso e a permanência de pessoas trans (travestis, transexuais, transgêneras e não binárias) no ensino superior têm como fundamentos políticos e jurídicos-constitucionais a igualdade material e a justiça social, ausentes devido à histórica desigualdade social fundada pela cisnormatividade, matriz de gênero que repercute gravemente em todos os âmbitos de suas vidas, com destaque em suas trajetórias escolares e no mundo do trabalho. Esta dissertação tem como objetivo analisar essas políticas institucionais promovidas pelas universidades públicas brasileiras e entender a participação de discentes trans nesse processo de luta individual e coletiva para ingressar e permanecer no ensino superior, e, a partir de suas perspectivas, compreender como essas políticas poderiam avançar para melhor contribuírem com a reparação dos prejuízos culturais e econômicos da cisnormatividade. Para isso, analiso o conteúdo dos documentos das políticas do nome social e dos documentos das políticas de cotas na graduação de todas as universidades públicas (federais, estaduais e municipais) que as instituíram. Em relação à política do nome social são 89 universidades que a regulamentaram, e em relação às cotas na graduação, são 14. Especificamente sobre as cotas, avanço sobre as atuais discussões que problematizam a autodeclaração e a heteroidentificação. Abordo também as políticas específicas estabelecidas por algumas universidades através de normativas sobre banheiros e sobre o combate à discriminação, ao assédio e a outras formas de violência. Além disso, realizo uma revisão de literatura de 27 teses e dissertações elaboradas por pessoas trans ou que tiveram sua colaboração através de entrevistas ou outras metodologias, que busca destacar suas narrativas sobre suas vivências antes e durante a universidade, suas lutas individuais e coletivas por acesso e permanência no ensino superior, suas demandas por reconhecimento, cidadania e inclusão não supridas e suas propostas de aprimoramento dessas políticas. Ao todo, são 169 pessoas trans, entre autoras (9) e colaboradoras (160). Suas narrativas também ajudam a pensar sobre o enorme contingente de pessoas trans evadidas da escola ou na luta pela sobrevivência nas ruas desse país, que não tiveram a mesma oportunidade. Os dados da realidade, teorias empíricas e as narrativas apresentadas demonstram a urgência de ações em vários âmbitos, tanto na educação básica quanto no ensino superior, como o combate à discriminação, com formação continuada em gênero e sexualidade e responsabilização de agressores, bolsas de estudos, aprimoramento do nome social, cotas na graduação, pós- graduação, concursos públicos e cursinhos pré-vestibulares, auxílio na busca por cidadania, transição de gênero e emprego, apoio psicológico, levantamento de dados, entre outras ações articuladas entre administração, ensino, pesquisa e extensão. Enfim, há um campo estabelecido e crescente de lutas e pesquisas sobre inclusão e permanência de pessoas trans no ensino superior brasileiro, formado por pessoas trans e cis aliadas, que exigem mais esforços por inclusão, reparação e justiça. Palavras–chave: políticas afirmativas; identidade de gênero; cisnormatividade; justiça social; transfeminismo; reconhecimento; redistribuição; universidade; análise documental; revisão sistemática de literatura. ABSTRACT Affirmative policies aimed at promoting the access and retention of trans individuals (including travestis, transsexuals, transgender, and non-binary people) in higher education are grounded in the political and constitutional principles of substantive equality and social justice. These principles address the historical social inequalities rooted in cisnormativity—a gender framework that profoundly affects all aspects of trans individuals’ lives, particularly their educational trajectories and participation in the workforce. This dissertation seeks to analyze these institutional policies implemented by Brazilian public universities and to understand the role of trans students in the individual and collective struggle for access to and retention in higher education. It further explores, from their perspectives, how these policies might be improved to better address the cultural and economic harms caused by cisnormativity. To achieve this, I analyze the content of documents related to social name policies and affirmative action policies for undergraduate admissions across all public universities (federal, state, and municipal) that have implemented them. Regarding social name policies, 89 universities have established regulations, while 14 have implemented quota policies for undergraduate programs. Specifically concerning quotas, I examine current debates on self-identification and external verification processes. I also discuss specific policies established by some universities, including regulations on restroom access and measures to combat discrimination, harassment, and other forms of violence. In addition, I conduct a literature review of 27 theses and dissertations authored by trans individuals or developed with their collaboration through interviews or other methodologies. This review highlights their narratives regarding their experiences before and during university, their individual and collective struggles for access to and retention in higher education, their unmet demands for recognition, citizenship, and inclusion, and their proposals for improving these policies. Altogether, the study encompasses 169 trans individuals, including 9 authors and 160 collaborators. Their narratives also shed light on the vast number of trans people who have dropped out of school or who struggle to survive on the streets of Brazil, lacking the same opportunities. The empirical data, theories, and narratives presented in this study underscore the urgency of implementing actions across various domains, from basic education to higher education. These actions include combating discrimination through continuous training in gender and sexuality, holding aggressors accountable, providing scholarships, improving social name policies, implementing quotas in undergraduate and graduate programs, public service exams, and preparatory courses, and offering support for citizenship, gender transition, employment, and psychological assistance. Additionally, they emphasize the importance of data collection and other coordinated measures involving university administration, teaching, research, and community outreach. In conclusion, there is an established and growing field of activism and research focused on the inclusion and retention of trans individuals in Brazilian higher education, led by both trans and cis allies. This field demands greater efforts to advance inclusion, reparation, and justice. Keywords: affirmative policies; gender identity; cisnormativity; social justice; transfeminism; recognition; redistribution; university; document analysis; systematic literature review. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Cartazes fixados nas portas dos banheiros da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) .................................................................................................................... 122 Figura 2 – Cartazes fixados nas portas dos banheiros da Universidade de São Paulo (USP) .......................................................................................................................................... 123 Figura 3 – Cursos ofertados após a Portaria que institui a Política de Enfrentamento a diversas formas de assédio, preconceito e discriminação na UNESP (2022) ....................... 130 Figura 4 – Treinamento sobre nome social na UNESP (2023) ........................................... 131 Figura 5 – Corpolíticas e Rexistências: 1º Seminário de Ensino, Pesquisa & Extensão LGBTI+ da Universidade de Brasília (UnB) (2017) ........................................................... 132 Figura 6 – Amostra dos encontros extensionistas do Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG/UNESP) (2022-2023) ............................................................................. 133 Figura 7 – Cartaz de divulgação da seleção para pessoas trans na graduação da UFSB (2018) .......................................................................................................................................... 168 Figura 8 – Mobilização estudantil pelas cotas trans na UnB – “Seminário Trans UnB”, “Marcha Cotas Trans Já” e Reunião com Reitoria (Julho/2024).......................................... 172 Figura 9 – Cartazes de apoio a cotas trans na UnB para divulgação nas redes sociais (2024) .......................................................................................................................................... 173 Figura 10 – Esquema do Plano de Ação Educacional de Ribeiro (2020) para a UFJF ........ 261 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Quantidade de normativas sobre o nome social nas universidades públicas brasileiras do primeiro levantamento (ago/2019) para o segundo (fev/2023)......................... 88 Tabela 2 – Quantidade de normativas sobre nome social de universidades públicas do último levantamento (fev/2023), por ano e por região...................................................................... 90 Tabela 3 – Lista de universidades públicas e s uas normativas sobre nome social (2023) ..... 91 Tabela 4 – Universidades públicas com resoluções de cotas para pessoas trans em cursos de graduação (até ago/2024) ................................................................................................... 144 Tabela 5 – Resumo das resoluções sobre cotas trans na graduação das universidades públicas brasileiras (até ago/2024) ................................................................................................... 156 Tabela 6 – Dissertações e teses de (e com) pessoas trans sobre inclusão trans no ensino superior (levantamento Jan/2024 - BDTD) ......................................................................... 178 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABH Associação Brasileira de Homens Trans ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade ADO Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental AGU Advocacia-Geral da União ANDIFES Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior ANTRA Associação Nacional de Travestis e Transexuais BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações CAADI Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da Unesp CAPC Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea CEFETs Centros Federais de Educação e Tecnologia CELGBT Conselho Estadual dos Direitos da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais CEPE Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão CEPT Comissão Especial para Pessoas Transgêneras, Transsexuais e Travestis CGCO Centro de Gestão do Conhecimento Organizacional CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CNCD/LGBT Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT CNJ Conselho Nacional de Justiça CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CONAE Conferência Nacional da Educação CPAf Comissão de Políticas Afirmativas da UFABC CPF Cadastro de Pessoa Física CRAIST Centro de Referência e Assistência Integral para a Saúde Transespecífica DCE Diretório Central dos Estudantes DIAFF Diretoria de Ações Afirmativas DIAP Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar EAD Ensino à Distância ECA Estatuto da Criança e Adolescente ENAH Encontro Nacional de Homens Trans ENCCEJA Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos ENEM Exame Nacional do Ensino Médio ESCS Escola Superior de Ciências da Saúde FAE Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (FAE Centro Universitário) FHC Fernando Henrique Cardoso FIES Fundo de Financiamento Estudantil FMI Fundo Monetário Internacional FONAPRACE Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis FURB Universidade Regional de Blumenau FURG Universidade Federal do Rio Grande GEMGe Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Educação, Mulheres e Relações de Gênero Gemma Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa GESEPE Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Sexualidade nas Práticas Educativas GT Grupo de Trabalho IBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBRA Instituto Brasileiro de Transmasculinidades IES Instituições de Ensino Superior IESP Instituto de Estudos Sociais e Políticos IFs Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LGBTI+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Intersexos e outras pessoas com identidades ou expressões de gênero ou sexualidade desviantes da cisheteronormatividade LIEG Grupo de Pesquisa Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero MEC Ministério da Educação MEI Micrompreendedor Individual MI Mandado de Injunção MJC Ministério da Justiça e Cidadania NCT Núcleo de Consciência Trans da UNICAMP OAB Ordem dos Advogados do Brasil OMS Organização Mundial da Saúde PA Processo Administrativo PCD Pessoa com Deficiência PDT Partido Democrático Trabalhista PGAS Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social PIAPE Programa de Apoio Pedagógico aos Estudantes PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos PNDS Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde PNE Plano Nacional de Educação PPG Programa de Pós-Graduação PROAE Pró-Reitoria de Assistência Estudantil PROAF Pró-Reitoria de Ações Afirmativas PROAFE Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade PROCIT Pró-Reitoria de Comunicação, Informação e Tecnologia da Informação PROUNI Programa Universidade para Todos PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PSOL Partido Socialismo e Liberdade PT Partido dos Trabalhadores RCPN Registro Civil de Pessoas Naturais RE Recurso Extraordinário REUNI Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais PAE Plano de Ação Educacional PTI Parque Tecnológico de Itaipu PUC-PR Pontifícia Universidade Católica do Paraná RG Registro Geral RU Restaurante Universitário SEBEC Serviço de Bem-estar a Comunidade SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos SIMS Secretaria de Estado de Inclusão e Mobilização Social SINAES Sistema de Avaliação da Educação Superior SJDH Secretaria de Justiça e Direitos Humanos SM Salário-Mínimo STF Supremo Tribunal Federal SUS Sistema Único de Saúde TCC Trabalho de Conclusão de Curso TERF Feminismo Radical Trans-Excludente TGEU Transgender Europe TP Treinamento Profissional TSE Tribunal Superior Eleitoral UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina UE Universidade Estadual UEA Universidade do Estado do Amazonas UEAP Universidade do Estado do Amapá UEC Universidade Estadual do Ceará UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana UEG Universidade Estadual de Goiás UEM Universidade Estadual de Maringá UEMG Universidade do Estado de Minas Gerais UEPA Universidade do Estado do Pará UEPB Universidade Estadual da Paraíba UEPG Universidade Estadual de Ponta Grossa UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERN Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UESB Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESC Universidade Estadual de Santa Cruz UESPI Universidade Estadual do Piauí UF Universidade Federal UFABC Universidade Federal do ABC UFAC Universidade Federal do Acre UFAL Universidade Federal de Alagoas UFAM Universidade Federal do Amazonas UFAPE Universidade Federal do Agreste de Pernambuco UFBA Universidade Federal da Bahia UFC Universidade Federal do Ceará UFCA Universidade Federal do Cariri UFCAT Universidade Federal de Catalão UFCG Universidade Federal de Campina Grande UFCSPA Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre UFDPar Universidade Federal do Delta do Parnaíba UFERSA Universidade Federal Rural do Semi-Árido UFES Universidade Federal do Espírito Santo UFF Universidade Federal Fluminense UFFS Universidade Federal da Fronteira Sul UFG Universidade Federal de Goiás UFGD Universidade Federal de Grande Dourados UFJ Universidade Federal de Jataí UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora UFLA Universidade Federal de Lavras UFMA Universidade Federal do Maranhão UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMT Universidade Federal de Mato Grosso UFNT Universidade Federal do Norte do Tocantins UFOB Universidade Federal do Oeste da Bahia UFOP Universidade Federal de Ouro Preto UFOPA Universidade Federal do Oeste do Pará UFPA Universidade Federal do Pará UFPB Universidade Federal da Paraíba UFPE Universidade Federal de Pernambuco UFPel Universidade Federal de Pelotas UFPI Universidade Federal do Piauí UFPR Universidade Federal do Paraná UFR Universidade Federal de Rondonópolis UFRA Universidade Federal Rural da Amazônia UFRB Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRR Universidade Federal de Roraima UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFS Universidade Federal de Sergipe UFSB Universidade Federal do Sul da Bahia UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UFSCar Universidade Federal de São Carlos UFSJ Universidade Federal de São João del-Rei UFSM Universidade Federal de Santa Maria UFT Universidade Federal do Tocantins UFTM Universidade Federal do Triângulo Mineiro UFU Universidade Federal de Uberlândia UFV Universidade Federal de Viçosa UFVJM Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri UM Universidade Municipal UnAC Universidade Aberta Capixaba UnB Universidade de Brasília UNCISAL Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas UnDF Universidade do Distrito Federal Professor Jorge Amaury Maia Nunes UNEAL Universidade Estadual de Alagoas UNEB Universidade do Estado da Bahia UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESPAR Universidade Estadual do Paraná UNICAMP Universidade Estadual de Campinas UNICENTRO Universidade Estadual do Centro-Oeste UNIFAL-MG Universidade Federal de Alfenas UNIFAP Universidade Federal do Amapá UNIFEI Universidade Federal de Itajubá UNIFESP Universidade Federal de São Paulo UNIFESSPA Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará UNILA Universidade Federal da Integração Latino-Americana UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira UNIOESTE Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIPAMPA Universidade Federal do Pampa UNIR Universidade Federal de Rondônia UnirG Universidade de Gurupi UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIVASF Universidade Federal do Vale do São Francisco UPE Universidade de Pernambuco UP Universidade Pública URCA Universidade Regional do Cariri USP Universidade de São Paulo UTFPR Universidade Tecnológica Federal do Paraná VUNESP Fundação para o Vestibular da UNESP SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 19 2. TEORIAS QUEER E TRANSFEMINISTAS E O PROBLEMA DO GÊNERO PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS: CONCEITOS E DEBATES INTRODUTÓRIOS ........... 37 2.1 Virada epistemológica no conceito de gênero: do sexo biológico à performatividade 38 2.2 Cisnormatividade contra identidades, performances e performatividades trans e não binárias: corpos e vivências diversas por reconhecer e incluir .......................................... 48 3. EXCLUSÃO SOCIAL TRANS E A URGÊNCIA POR RECONHECIMENTO E REDISTRIBUIÇÃO: DADOS, TEORIAS CRÍTICAS E NOVOS DIREITOS .............. 61 3.1 Dados da realidade da marginalização cultural e econômica da população trans brasileira: uma nova coletividade bivalente em Fraser ..................................................... 62 3.2 Negação do reconhecimento em Honneth: os impactos na escola e as conquistas trans no âmbito jurídico-político brasileiro ............................................................................... 75 4. NOME SOCIAL: UMA ANÁLISE DO CONTEÚDO DAS NORMATIVAS UNIVERSITÁRIAS ........................................................................................................... 86 4.1. Metodologia do levantamento das normativas e de suas análises ............................... 87 4.2. Ano de publicação, região geográfica e as normativas de cada universidade ............. 88 4.3. Fundamentações das normativas ............................................................................... 98 4.4. Destinatárias das normativas: definições, erros e omissões ........................................ 99 4.5 O que se pode alterar: prenome, agnome, sobrenome? Limites e omissões ............... 103 4.7 Prazos e locais para o requerimento: restrições e omissões ....................................... 106 4.8 Respeito do nome social no tratamento oral ............................................................. 109 4.9. Uso do nome social em documentos internos .......................................................... 110 4.10 Uso do nome social em documentos externos ........................................................ 110 4.11 Retificação dos documentos universitários após mudança no registro civil ............. 112 4.12 Estratégias para permitir sua (in)eficácia ................................................................ 113 4.13 “Gambiarras legais” e seu duplo sentido ................................................................ 115 5. OUTRAS POLÍTICAS ESPECÍFICAS PARA PESSOAS TRANS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS: BANHEIROS, BOLSAS, COMBATE À DISCRIMINAÇÃO E AO ASSÉDIO E POLÍTICA DE EGRESSOS .......................... 121 6. COTAS TRANS: ANÁLISE DAS NORMATIVAS PARA A GRADUAÇÃO E AS LUTAS EM DISPARADA ............................................................................................... 138 6.1. Fundamentação das normativas............................................................................... 138 6.2. Metodologia de busca das normativas ..................................................................... 141 6.3. Resumo e análises dos critérios de cada política universitária ................................. 144 6.4 Resultados, avaliações e propostas parciais .............................................................. 167 6.5. Contexto geral das cotas em outras universidades e na pós-graduação..................... 170 7. NARRATIVAS DE PESSOAS TRANS UNIVERSITÁRIAS SOBRE SUAS LUTAS POR ACESSO E PERMANÊNCIA: UMA REVISÃO DE LITERATURA DE TESES E DISSERTAÇÕES DE (E COM) PESSOAS TRANS ...................................................... 176 7.1 Metodologia da revisão e dados quantitativos dos trabalhos ..................................... 176 7.2 Revisão e Discussões ............................................................................................... 181 7.2.1 Sobre Nós (des)organizados (Céu Cavalcanti, 2016, UFPE) ........................... 182 7.2.2 “Notas” de uma vida (Roberta Polak, 2016, UNICENTRO) .......................... 185 7.2.3 Será que temos mesmo direitos a universidade? (Fausto Scote, 2017, UFSCar) ............................................................................................................................... 189 7.2.4 Nome social como política pública nas universidades estaduais do Paraná (Aline da Silva, 2017, UEL) ................................................................................... 196 7.2.5 Subjetividades em trânsito (Crishna Correa, 2017, UFSC) ............................. 198 7.2.6 Identidade de gênero e reconhecimento (Carlos Butkovsky Junior, 2017, UFES) ............................................................................................................................... 199 7.2.7 Formação das pessoas transexuais na UFS (Adriana dos Santos, 2017, UFS) 202 7.2.8 Transgêneras nos espaços universitários (Gisele Castelani, 2018, UFSCar)... 208 7.2.9 Estudantes transexuais e travestis, acessibilidade, direitos e formação na UFF (Priscila Nascimento, 2018, UFF) ........................................................................... 211 7.2.10 Um corpo potente fazendo das dores possibilidades de asas (Valdenia Araújo, 2018, UFPI) ............................................................................................................ 217 7.2.11 (Trans)passando os muros do preconceito e adentrando a universidade (Emilly de Souza, 2019, UFRN) .......................................................................................... 219 7.2.12 Dos saberes e outros trânsitos (Keo Silva, 2019, UFSC) .............................. 226 7.2.13 Cidadanias precárias (Izaque Ribeiro, 2019, UFSM) ................................... 229 7.2.14 Inclusão de pessoas trans na UFPel (Kelli Watanabe, 2019, UFPel) ............ 232 7.2.15 Vivências transmasculinas em espaços educacionais de nível superior do Sul do Brasil e a multiplicidade espacial (Adelaine Santos, 2020, UEPG) .................... 236 7.2.16 Políticas Públicas para a inserção e permanência de travestis e transexuais no ensino superior (Karen da Rosa, 2020, USP) .......................................................... 241 7.2.17 A educação é uma catapulta para a liberdade (André Oliveira, 2020, UFPR) ............................................................................................................................... 244 7.2.18 Mulheres trans universitárias (Marlyson Pereira, 2020, UNESP) ................. 247 7.2.19 TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação (Sara York, 2020, UERJ) ... 252 7.2.20 O aprimoramento das políticas institucionais para a garantia do acesso e da permanência das pessoas trans na UFJF (Luana Ribeiro, 2020, UFJF) .................. 260 7.2.21 Mares, currículos e criaturas marinhas (Catarina Moreira, 2020, UFRJ) ..... 265 7.2.22 As trajetórias escolares de homens trans (Samuel Araújo, 2021, UFJF) ....... 267 7.2.23 Existe 'universidade' em pajubá? (Brume Iazzetti, 2021, UNICAMP) .......... 270 7.2.24 Cisnormatividade e presenças trans em universidades públicas da Bahia (Marília Matos, 2022, UFBA) ................................................................................. 278 7.2.25 (TRANS)formando no Ensino Superior (Rosilaine Silva, 2022, UFU) .......... 281 7.2.26 Vivências de estudantes trans* na UFMA (Cibelle Silva, 2023, UFJF) ......... 287 7.2.27 Os corpos das mulheres travestis e a sua exclusão no processo educacional (Antonellla de Lima, 2023, UNILA) ....................................................................... 291 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 294 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 302 19 1. INTRODUÇÃO Inicio o estudo do tema da inclusão e permanência das pessoas trans no ensino superior em 2019, no âmbito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, onde fiz graduação. No período, projetos de extensão como a Rexistir – Núcleo LGBT e a Corpolítica e disciplinas como “Prática e Atualização do Direito – Diversidade e Justiça”, fizeram diferença nas tradicionais formas cisheterocentradas de pensar a universidade, o corpo, o direito e a política naquele espaço. Como resultado dessa primeira etapa do estudo (2019-2021), publiquei, em 2021, em parceria com o professor Evandro Piza Duarte e com a colega Maria Leo Araruna, e a partir da contribuição inicial das colegas da disciplina e dos referidos projetos de extensão, um artigo com o título “Gambiarras legais” para o reconhecimento da identidade de gênero? As normativas sobre nome social de pessoas trans nas Universidade Públicas Federais (2021a). Esse artigo, após um levantamento das normativas de todas as universidades federais sobre o nome social, buscou analisá-las a fundo para compreender o conteúdo de seus artigos em relação à garantia de direitos de reconhecimento da identidade de gênero no âmbito universitário. Revisado e aumentado, transformou-se em livro, que agregou o conjunto das normativas das 63 universidades federais analisadas e uma normativa-modelo que produzimos a partir das melhores ideias encontradas e das reflexões críticas que estabelecemos (Lages; Duarte; Araruna, 2021b). Esse artigo foi o pontapé inicial para esta dissertação, que me trouxe até aqui, assim como as normativas sobre o nome social das universidades representaram também um laboratório para as lutas por diversas outras políticas de inclusão e permanência que vêm gerando conquistas. Com os estudos realizados para esta dissertação, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Marília-SP, na linha de pesquisa Cultura, Identidade e Memória, e, também, no Grupo de Pesquisa Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG), elenquei algumas das principais reivindicações por políticas normativas, conquistadas em algumas universidades, para focalizar o estudo, além da própria política do nome social: i) o respeito ao uso de espaços segregados por gênero, como banheiros e vestiários, segundo sua identidade de gênero; ii) o combate a assédio, discriminação e violências; iii) auxílio financeiro para viabilizar a permanência; vi) as cotas para pessoas trans na graduação, pós-graduação e concursos públicos para docentes e técnico-administrativos; v) entre outras políticas de inclusão e permanência adjacentes a estas que também são mencionadas. 20 O foco do estudo nas instituições ensino superior (IES) públicas1 leva em consideração o histórico de promoção de políticas de inclusão de grupos vulneráveis no ensino superior público promovido pelos governos e à maior abertura verificada nessas instituições às lutas desses grupos e seus movimentos estudantis. Durante os dois primeiros mandatos de Lula (PT) (2003-2010), houve uma retomada dos investimentos na rede pública federal de ensino superior, por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), que aumentou o número de IES públicas e seu número de matrículas. Por outro lado, também criou programas de financiamento estudantil e a concessão de bolsas em instituições privadas (o FIES e o PROUNI), que ao mesmo tempo proporcionaram a possibilidade de estudos de nível superior a quem não poderia pagar, mas também representaram a continuidade da expansão do mercado privado (Chacon; Calderón, 2015). O que faz com que as IES públicas, apesar de crescerem, continuarem reduzindo sua participação no percentual de matrículas no ensino superior, alcançando, em 2022, 22% desse total, com 2,08 milhões de matrículas nesse nível de ensino, entre graduação e pós-graduação, em Faculdades, Universidades, Centro Universitários, Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e Centros Federais de Educação e Tecnologia (CEFETs) (SEMESP, 2024). Desse universo de IES públicas, este estudo concentrou sua análise sobre as lutas e políticas desenvolvidas dentro das universidades públicas, que representam 36,9% das IES públicas (SEMESP, 2024), devido a sua organização institucional similar e seu foco específico no ensino superior2. 1 A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, criada em 2008, pela Lei nº 11.892, de 29 de dezembro, sendo atualmente constituída por um conjunto de instituições: i) Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs); ii) Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); iii) Centros Federais de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca do Rio de Janeiro (CEFET-RJ) e de Minas Gerais (CEFET- MG); iv) Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais; e v) Colégio Pedro II. Os IFs e os CEFETs oferecem educação básica, profissional e superior, esta última, tanto em nível de graduação quanto de pós- graduação lato e stricto sensu. Em 2019, considerando todos os campi, eram 661 unidades de institutos federais distribuídas em todas as 27 unidades da federação, mais de 1,4 milhão de matrículas, em todos os níveis de ensino. Apesar disso, esta pesquisa concentrou sua análise sobre as políticas das universidades públicas, dado sua organização institucional similar e seu foco específico no ensino superior. (Disponível em: https://ifrs.edu.br. Acesso em: 06.08.2024.) 2 Verifica-se a expansão do número de IES e matrículas ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (PSDB), especialmente a partir de 1995, na esteira de um conjunto de políticas neoliberais que colocaram a educação superior como sujeita à privatização (Chacon; Calderón, 2015). Em 1980, eram 882 instituições de ensino superior, entre públicas e privadas, patamar que permaneceu o mesmo por 15 anos. No entanto, de 1995 a 2000, houve um crescimento de 32%, no número de IES (1.180). De 2000 a 2005, esse número saltou 83% (2.165). De 2005 a 2010, aumentou mais 10% (2.378). E de 2010 a 2022, mais 9%, alcançando 2.595 instituições (SEMESP, 2024). Essa expansão também é observada no número de matrículas. De 1980 a 1996, houve aumento de 36%, especialmente nos últimos anos do período, saindo de 1,38 para 1,87 milhão. De 1996 a 2002, um salto de 88%, atingindo 3,52 milhões. De 2002 a 2010, 82%, chegando a 6,41 milhões. De 2010 a 2022, o crescimento foi de 47%, atingindo 9,44 milhões de matrículas (SEMESP, 2024). No entanto, é no setor privado e na modalidade à distância (EAD) onde a expansão é mais forte. A EAD já representa uma participação de 45,9% https://ifrs.edu.br/saiba-mais-sobre-os-ifs-institutos-federais-atendem-54-mil-estudantes-em-40-municipios-gauchos/#:~:text=IFs%20no%20Brasil,1%2C4%20milh%C3%A3o%20de%20matr%C3%ADculas. 21 Em 2012, durante o primeiro mandato da presidente Dilma (PT) (2011-2014), foram aprovadas as cotas sociais e raciais nas IES públicas federais, através da Lei Federal nº 12.711/2012, com a reserva de até 50% das vagas de graduação a estudantes de escolas públicas, numa composição que estabelece também um percentual mínimo de negros. A atual legislação federal de cotas nas IES públicas, após diversas reformas – a última sancionada em novembro de 2023 (Lei nº 14.723/2023) –, reserva atualmente 50% das matrículas a discentes oriundos integralmente do ensino público, pobres, pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência. Ao mesmo tempo, muitos estados brasileiros3 criaram também suas leis estaduais de cotas para suas IES, ou, na ausência dessas leis, as próprias instituições estaduais, como a UNESP, no Estado de São Paulo, utilizando-se do princípio constitucional da autonomia universitária (art. 207), adotaram sistemas de cotas similares à Lei Federal. Em 2023, o número de vagas através do sistema de cotas nos cursos de graduação das universidades estaduais brasileiras se equiparou ao de não cotistas pela primeira vez na história, segundo levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemma), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) (Freitas et al, 2022; Mattos; 2024).4 No caso das federais, as vagas reservadas já superam as demais desde 2016 (Freitas et al, 2022). Na soma das federais e estaduais, em 2023, o número de vagas para cotas na graduação foi mais de 201 mil (52% do total de 387 mil vagas). Na medida em que as universidades públicas crescem e diversificam sua comunidade acadêmica, novas tensões e demandas por democracia adentram seus muros, como as lutas sociais de pessoas trans (travestis, transexuais, transgêneros e pessoas não binárias) analisadas nesta dissertação, em busca de inclusão e permanência nas universidades. Essas políticas para pessoas trans, assim como a opção por estudá-las nesta dissertação, se justificam pelas do total de matrículas em 2022, com mais de 4 milhões, enquanto o setor privado concentra 78% do número de matrículas, uma expansão de 1,1% em relação ao ano anterior (SEMESP, 2024). 3 O Estado do Piauí, por exemplo, adotou em 2008, através da Lei Estadual nº 5.791/2008, cotas de 30% a alunos de escola pública nas vagas disponibilizadas por suas instituições de ensino superior estaduais. Mais recentemente, em 2021, a Lei de Cotas Estadual do Piauí foi alterada pela Lei 7.455/2021 para ampliá-la para no mínimo 50% de suas vagas para alunos que tenham cursado integralmente o ensino médio na rede pública, e que tenham renda per capita de até 1,5 salários-mínimos. Também dispôs 45% destas a pessoas negras, quilombolas e indígenas. E ainda avançou sobre a pós-graduação, dispondo 30% das vagas de mestrados e doutorados a estudantes negros, quilombolas e indígenas oriundos do ensino médio e superior públicos e 10% para pessoas com deficiência (PIAUÍ, 2008; 2021). 4 Em 2023, as universidades estaduais destinaram 61.898 vagas para a ampla concorrência (estudantes não cotistas), o equivalente a 50,1% do total, e 61.589 para cotas, ou seja, 49,9%. Uma diferença de apenas 309 vagas em um universo de mais de 123 mil. Na soma das federais e estaduais, o número de vagas para cotas foi mais de 201 mil (52% do total) em 2023. No ano anterior, em 2022, havia sido de 182.200 (50,3% do total) (Mattos; 2024). 22 evidências de sua exclusão social histórica. Apesar disso, essa população vulnerável ainda não encontrou reconhecimento nas legislações oficiais de cotas para ingresso no ensino superior. Pessoas trans não se identificam com o gênero socialmente atribuído a partir de seus órgãos genitais e constroem suas subjetividades e seus corpos de um modo distinto ao ditado pela cisnormatividade. Em decorrência desse afastamento às rígidas normas de gênero, são alijadas da sociedade, sofrendo violências no seio da família e perante toda a sociedade, geralmente desde a infância e adolescência, com drásticas repercussões na educação formal e no mercado de trabalho. Apesar da omissão do Estado brasileiro em coletar dados acerca desse grupo social, o que se caracteriza como uma histórica transfobia institucional (Trindade, 2015), pela primeira vez uma pesquisa com recursos públicos apresentou dados amplos que confirmam a vulnerabilidade social dessa população. Trata-se da pesquisa publicada em 2021 pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), contratada pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura Municipal de São Paulo, com recursos de emenda do vereador Eduardo Suplicy (PT/SP), que entrevistou 1.788 pessoas trans, entre travestis, mulheres trans, homens trans e pessoas não binárias, entre dezembro de 2019 e novembro de 2020, residentes da cidade de São Paulo. Quase metade dessa população é oriunda de outras cidades e regiões do país, especialmente do Nordeste (19%). São dados aterradores sobre escolaridade, trabalho, renda, moradia e violência, interseccionados pelo gênero e pela raça, que compartilhamos nesta dissertação. Antecipamos aqui alguns deles. Sobre escolaridade, por exemplo, a pesquisa confirma a inferioridade da escolarização da população trans desde o ensino fundamental, com níveis mais alarmantes no ensino superior, já que não é obrigatório. Apenas 12% das pessoas trans completaram esse nível de ensino (CEDEC, 2021). Comparando-se com a totalidade da população residente de São Paulo, segundo dados da PNAD Contínua de 2019 (IBGE, 2020), 27,1% de seus moradores haviam concluído o ensino superior, quase três vezes mais. Quanto à renda, há uma enorme (67%) concentração nas faixas de 1/2 (meio) a 1 (um) salário-mínimo (SM) (33%) e de 1 (um) a 2 (dois) SM (34%). Mas parcela significativa (22%) sobrevive numa situação ainda pior, com menos de 1/2 (meio) SM (16%) ou até mesmo sem renda alguma (6%). Comparando-se com o grupo total da população da cidade de São Paulo, em 2021 (IBGE, 2021)5, também se verifica uma concentração nas mesmas duas faixas de renda (de meio a um SM e de um a dois SM), no entanto, com uma porção bem menor da população 5 Disponível em: https://www.negocios.prefeitura.sp.gov.br/dados/cidade. Acesso em: 10.06.2024. https://www.negocios.prefeitura.sp.gov.br/dados/cidade 23 (49,3%). A outra diferença significativa está na faixa superior de rendimento, enquanto apenas 11% da população trans recebe acima de 2 (dois) SM, 29,3% da população em geral recebe este mesmo valor, percentual quase três vezes maior (CEDEC, 2021). Quanto ao trabalho, parcela significativa da população trans exerce a atividade da prostituição como fonte única de sobrevivência ou como complemento de renda: 73% das autoidentificadas como travestis afirmaram recorrer ou já ter recorrido à prostituição em algum momento (CEDEC, 2021). Confirmando os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), que apontam que as travestis e mulheres trans que estão na prostituição são as maiores vítimas de violência física e transfeminicídio (Benevides, 2024), a pesquisa da CEDEC (2021) revelou que, entre as entrevistadas que estão ou já estiveram nessa atividade, 74% já sofreram violências físicas, enquanto as que nunca estiveram o percentual diminui para 26%. Os locais onde as violências mais ocorreram foram, principalmente, a rua, a escola e a casa dos pais ou familiares (CEDEC, 2021). A superação desse cenário de extrema transfobia e desigualdade passa pela inclusão e permanência das pessoas trans no ensino superior, foco desta dissertação, o que lhes possibilitaria melhores condições no mercado de trabalho e habitarem outros lugares no imaginário simbólico/cultural, apesar das persistentes desigualdades no mundo do trabalho mesmo para quem tem diploma, como mostram os dados para mulheres e negros, e de outros gargalos que não estão sob total domínio das universidades, como também abordaremos. Porém, inicialmente, cabe um breve histórico do desenvolvimento externo da primeira política abordada nesta dissertação, o nome social, que foi incorporada pelas universidades possibilitando sua inserção e permanência com maior dignidade. O nome social é o nome pelo qual pessoas trans “se identificam e preferem ser identificadas, enquanto o seu registro civil não é adequado à sua identidade e expressão de gênero” (Jesus, 2015a, p. 102). Aponta-se que o nome social foi reivindicado em instâncias oficiais pela primeira vez em 1996, durante a IV Conferência Municipal de Saúde, em Santos (SP), pelo Grupo Filadélfia. A proposta, apresentada pela ativista Indianarae Siqueira, seria para que travestis e transexuais fossem respeitadas em sua identidade de gênero e nome social em caso de internações em unidades de saúde (Carrijo et al, 2019). Esse pedido seria atendido em sua integridade apenas em 2009, com a Portaria nº 1.820/2009, do Ministério da Saúde, que dispõe, entre os direitos dos usuários da saúde, serem atendidos pelo nome social quando travestis ou transexuais. No âmbito da educação, a Portaria nº 1.612/2011, do Ministério da Educação (MEC), determinou o respeito ao nome social de pessoas trans nos órgãos do MEC, 24 o que incluem as IES públicas federais, e o Decreto Presidencial nº 8.727/2016 expandiu essa determinação a todos os órgãos da administração pública federal. Normativas similares dos estados também passaram a ser emitidas no período, a exemplo da Lei estadual nº 5.916/2009, do Estado do Piauí6, do Decreto estadual nº 55.588/2010, do Estado de São Paulo7 e do Decreto estadual nº 43.065/2011, do Estado do Rio de Janeiro 8. A Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), em 2009, foi a primeira universidade federal a publicar uma resolução interna regulamentando o uso do nome social em suas dependências. E, em 2012, foi a vez das estaduais, com a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, na dianteira da regulamentação. Desde 2014, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) passou a aceitar inscrições com o nome social de pessoas trans. Mas em suas Sinopses Estatísticas disponíveis no sítio eletrônico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP)9, há registros iniciais apenas em 2015, com 278 solicitações de uso do nome social em todo o Brasil. No ano seguinte, em 2016, foram 431 solicitações atendidas. Em 2023, foram 1.513 pedidos de inscrições com o uso do nome social por pessoas trans. Em nove anos (2015-2023), soma-se 4.575 inscrições com o uso do nome social no ENEM, 50,3% nos estados do Sudeste, 25,1% no Nordeste, 13% no Sul, 6,5% no Centro-Oeste e 5% no Norte. São milhares de pessoas trans de todo o Brasil, em geral, adolescentes de até 18 anos, que estão no ensino médio ou acabaram de conclui-lo, que ao sonharem ingressar numa universidade pública, tiveram um incentivo a mais para disputar uma vaga ao terem suas identidades de gênero legitimadas e reconhecidas durante o processo seletivo. A V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as) das IFES – 2018, publicada em 2019, realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis (FONAPRACE) vinculado à Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), coletou pela primeira vez dados sobre a identidade de gênero de estudantes matriculados nas 63 universidades públicas federais. Do total de 1.200.300 respostas, constatou que havia 11.114 pessoas discentes que se identificavam como pessoa trans ou não binária, o que corresponde a 0,93% da comunidade acadêmica (0,14% eram mulheres trans, 0,14% homens trans e 0,64% pessoas não binárias). Percentual similar em todas as regiões do Brasil (Norte – 1,03%; Nordeste - 0,92%; Sudeste – 0,86%; Sul – 1%; Centro- 6 Disponível em: https://www.normasbrasil.com.br. Acesso em: 10.06.2024. 7 Disponível em: https://www.al.sp.gov.br. Acesso em: 10.06.2024. 8 Disponível em: https://leisestaduais.com.br. Acesso em: 10.06.2024. 9 Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/sinopses-estatisticas/enem. Acesso em: 22.06.2024. https://www.normasbrasil.com.br/norma/lei-5916-2009-pi_151493.html https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2010/decreto-55588-17.03.2010.html https://leisestaduais.com.br/rj/decreto-n-43065-2011-rio-de-janeiro-dispoe-sobre-o-direito-ao-uso-do-nome-social-por-travestis-e-transexuais-na-administracao-direta-e-indireta-do-estado-do-rio-de-janeiro-e-da-outras-providencias https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/sinopses-estatisticas/enem 25 Oeste – 0,87%) (ANDIFES, 2019). Foi, no entanto, a última coleta de dados divulgada pela organização. Esses dados apontam que a presença da população trans nas universidades públicas ainda representa cerca de metade das estimativas populacionais de pessoas trans no Brasil, que se aproximam de 2%, segundo pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), da UNESP, liderada pelo Prof. Dr. Giancarlo Spizzirri, e publicada na Revista Scientific Reposts. O estudo ouviu 6.000 pessoas em 129 municípios de todas as regiões do país e constatou que 0,33% autoafirmaram-se homens trans, 0,33% mulheres trans e 1,19% pessoas não binárias, sem diferenças significativas em cidades do interior e das capitais (Spizzirri et al, 2021). Há que se considerar, ainda, que o levantamento foi realizado em um momento em que as políticas de reconhecimento do nome social nas universidades já estavam em fase mais consolidada, capturando, portanto, a inclusão e permanência de mais pessoas trans na universidade que em um período anterior ao início dessa política. É necessário a continuidade da coleta e divulgação de dados sobre identidade de gênero nas universidades públicas para a avaliação da efetividade das políticas desenvolvidas. Assim como também é urgente que o Estado brasileiro divulgue dados oficiais sobre a população trans, para fins de desenvolvimento e aprimoramento de políticas públicas, dentro e fora das universidades. O IBGE afirma que irá calcular pela primeira vez o tamanho da população trans, travesti e não binária através da nova Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, que contém perguntas sobre a identidade de gênero. Os resultados devem ser divulgados no último trimestre de 2024.10 As políticas de reconhecimento do nome social passaram a surgir como resposta a uma maior interlocução dos movimentos trans com partidos políticos (Facchini; França, 2009). A partir dos governos do PT, de Lula e Dilma (2003-2015), de centro-esquerda, foram crescentes as conquistas advindas do governo federal e do Poder Judiciário, destacando-se o respeito ao nome social de pessoas trans em escolas, universidades e em atendimentos de saúde, a possibilidade de realização de cirurgias de redesignação genital e hormonização gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS)11 e vagas reservadas para trans em pós-graduações de universidades públicas. Do Judiciário, a união estável e o casamento homoafetivo, a adoção homoparental, a alteração diretamente em cartório de nome e sexo nos documentos oficiais, 10 Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br. Acesso em: 06.08.2024. 11 Apesar de ser hoje um serviço oferecido gratuitamente pelo SUS, é um direito que não tem sido efetivado, pois é baixo o número de unidades credenciadas no país que realizam consultas e procedimentos que compõem o que o Ministério da Saúde nomeia como “Processo Transexualizador” (Roncon et al, 2019; Almeida et al, 2019). https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-10/ibge-vai-estimar-tamanho-da-populacao-trans-e-travesti-no-brasil 26 sem necessidade de cirurgias ou decisões judiciais, para pessoas trans, a possibilidade de homens gays e bissexuais doarem sangue e a criminalização da homotransfobia. No Poder Legislativo, as contradições da sociedade brasileira apresentaram-se de forma mais acentuada que nos outros Poderes, impedindo qualquer aprovação de legislações protetivas à dignidade humana de pessoas LGBTI+12, numa omissão histórica declarada inconstitucional pelo STF em 2019 (a mesma decisão que reconheceu a homotransfobia como crime de racismo). A omissão, iniciada na Constituinte, prevalece até hoje (2024), mas passou por diferentes fases que refletem as movimentações na política brasileira (Lages, 2024). A falta de iniciativas sobre o tema no Congresso prevaleceu até meados da década de 1990. A partir daí até meados dos anos 2000, iniciou-se uma fase de apresentação de propostas favoráveis a direitos LGBTI+, ainda que em baixa quantidade em comparação aos dias de hoje. Como reação, a partir de 2007, o conservadorismo e o reacionarismo passaram a também disputar com o progressismo emergente a hegemonia de proposições, com projetos que pretendiam impedir direitos ou dificultar ainda mais a vida de pessoas LGBTI+ (Lages, 2024). No entanto, foi a partir de 2015, após conquistas políticas e sociais promovidas pelos outros Poderes, e após o crescimento da visibilidade de parte dessa população nas diversas mídias e representações sociais (Facchini; França, 2009; Duarte; Lages, 2021; Lacerda, 2019), que uma onda de extrema-direita dominou o Congresso Nacional, com a explosão de projetos de lei de cunho homotransfóbico, que propõem regredir políticas recentemente aprovadas (Lages, 2024; Lages, 2023). A omissão no sentido como é popularmente conhecida, como inércia ou marasmo, durou apenas a primeira metade do período pós-constituinte (1988-2014). Na segunda metade do período (2015 em diante), a identidade de gênero e a sexualidade passaram a ser temas centrais nas eleições e consequentemente na atuação dos políticos no Congresso Nacional. A omissão tornou-se sinônimo de perseguição, com propostas e discursos que ameaçam direitos humanos e constitucionais fundamentais de pessoas LGBTI+, inclusive de crianças e adolescentes, e que tem provocado ruídos e falsas simetrias com projetos autonomeados “Escola Sem Partido” ou contra a “Ideologia de Gênero”, já desqualificados como inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Muitos deles expõem e incentivam a violência contra o grupo, além de perseguirem e ameaçarem diretamente parlamentares de esquerda, especialmente mulheres e LGBTI+, que, em ruidosa minoria, lutam pelos direitos dessa população. Em 2019, o até então único parlamentar gay no Congresso Nacional, Jean Wyllys, viu-se obrigado a se autoexilar no exterior por razões de segurança. Na 12 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Intersexos e outras pessoas com identidades ou expressões de gênero ou sexualidade desviantes da cisheteronormatividade. 27 atual legislatura, temos presenciado episódios reiterados de ofensas públicas transfóbicas contra as duas primeiras parlamentares trans no Congresso Nacional, Erika Hilton (PSOL/SP) e Duda Salabert (PDT/MG), por parte de colegas deputados e deputadas, que deslegitimam sua identidade de gênero, sem maiores consequências. Essa nova onda de extrema-direita elegeu em 2014 o “Congresso mais conservador desde 1964”13 (marco da instauração do Regime Militar no Brasil, a partir de um golpe de Estado). Esse Congresso foi responsável por, em 2016, destituir Dilma, do PT, de seu mandato como Presidente da República. Nos anos seguintes, a onda reacionária elegeu cada vez mais políticos ao Poder. Em 2018, após a prisão de Lula, líder da oposição, em primeiro lugar nas pesquisas, foi eleito como Presidente da República um ex-parlamentar assumidamente homofóbico (TWTV, 2013)14, de quase três décadas de Congresso Nacional, de extrema-direita, que foi sustentado politicamente no cargo pelo Legislativo durante todo o seu mandato (2019- 2022), mesmo após mais de uma centena de pedidos de impeachment apresentados no Congresso Nacional, embasados em ampla lista dos mais variados crimes de responsabilidade. Bolsonaro conseguiu a artimanha de vincular o reacionarismo literalmente ao seu nome, a onda de extrema-direita iniciada no Congresso em 2015 passou a ser identificada como “bolsonarismo”, o que tornou possível o rompimento da tradição social-democrata que ocupou a presidência desde a redemocratização. Desde sua eleição, denunciamos as reiteradas manifestações de grande parcela da sociedade favoráveis a um golpe de estado liderado pelas Forças Armadas e por Bolsonaro, contra as instituições democráticas como o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), contra as urnas eletrônicas e contra o resultado das eleições de 2022 que consagrou sua apertada derrota para Lula na tentativa de reeleição. Apesar disso, em 2022, houve uma eleição recorde de parlamentares conservadores e reacionários, sob a insígnia bolsonarista, em substituição a muitos parlamentares da direita tradicional, apelidada de “centrão”, que são mais fisiológicos. Logo após as eleições, houve uma tentativa real de golpe de estado promovido por integrantes do governo Bolsonaro em conluio com militares e policiais, apoiado por parcela da população que acampava, desde a derrota nas urnas, em frente a quartéis, exigindo ações. Essa horda bolsonarista, incentivada e financiada, invadiu e destruiu os prédios dos três Poderes no 13 A partir de levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) (Caram, 2014). Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde- 1964-afirma-diap. Acesso em: 26.06.2024. 14 “Eu sou homofóbico, sim! E com muito orgulho!”. Disponível em: https://www.youtube.com/. Acesso em: 26.06.2024. https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde-1964-afirma-diap,1572528 https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde-1964-afirma-diap,1572528 https://www.youtube.com/watch?v=ACSxp9nNrnE&ab_channel=Cir%C3%A3odaMassa 28 dia 08 de janeiro de 2023, numa versão piorada da invasão do Capitólio, que ocorreu nos EUA, em 06 de janeiro de 2021. Diante desses fatos, é nítido que o Brasil viveu e ainda vive um momento bastante ambíguo de acirramento dos conflitos sociais. A extrema-direita passou a dividir radicalmente a sociedade e a política institucional com o campo da esquerda-democrática ou social- liberalismo. E surgiu, portanto, como reação às conquistas progressistas impulsionadas nos anos 2000 e 2010, especialmente em favor de grupos historicamente marginalizados como LGBTI+, negros e mulheres. Mas também mobilizada pelo fortalecimento das novas denominações evangélicas, pelas contradições do crescimento econômico desigual e pela contaminação do debate público através da vinculação midiática de partidos políticos de esquerda à corrupção e à impunidade. Nesse contexto, de 2015 (início do governo Temer) até dezembro de 2022 (fim do governo Bolsonaro), não houve mais abertura no Poder Executivo para a proposição de políticas de igualdade ou afirmativas relacionadas à população LGBTI+. Tampouco o novo governo Lula (2023-) tem se mostrado disposto em seu novo mandato a enfrentamentos sobre questões consideradas “culturais”, para focar na “pauta econômica”, menos conflituosa na sociedade, o que é uma visão deturpada das diversas interseccionalidades que compõem a desigualdade econômica no país, que devem ser observadas ou a superação dessa desigualdade não será possível para esses diversos grupos. Além de ser uma visão que reduz a gravidade de outros problemas sociais como a discriminação e a violência. Parcela dos ministros do STF encontram-se acuados pela instituição ter sido alvo preferido da horda bolsonarista. Recentemente, em junho de 2024, a maioria optou por não julgar o mérito de ação de indenização por danos morais por impedimento de uso de banheiro por pessoas trans, com repercussão geral, que estava em tramitação há quase uma década, sob alegações processuais (RE 845.779).15 Do Poder Legislativo, não há nenhuma expectativa de aprovação de projetos de lei que promovam direitos LGBTI+, pelo contrário, pois está cada vez mais dominado por uma maioria de parlamentares e partidos de extrema-direita, eleitos ainda pela identificação de grande parcela da sociedade com o bolsonarismo e seus discursos homotransfóbicos e suas fake news sobre a agenda de direitos LGBTI+. Se já não foi possível aprovações em períodos em que a disputa no Congresso era amena, velada ou inexistente por ambos os lados políticos (1988- 2014), esse novo momento tem demonstrado ser ainda menos (Lages, 2024; Lages, 2023). 15 Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/06/06/stf-rejeita-acao-sobre-uso-de-banheiros- por-pessoas-trans.ghtml. Acesso em: 22.06.2024. https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/06/06/stf-rejeita-acao-sobre-uso-de-banheiros-por-pessoas-trans.ghtml https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/06/06/stf-rejeita-acao-sobre-uso-de-banheiros-por-pessoas-trans.ghtml 29 Portanto, diante do complexo cenário de acirramento dos conflitos sociais que têm amedrontado os três Poderes, com permanência da extrema direita na onda do bolsonarismo e de sua nefasta retórica transfóbica, especialmente contra a educação, e do cenário de extrema desigualdade social e exclusão das pessoas trans das universidades, as IES públicas têm ainda mais responsabilidade social e dever ético de fazer valer sua autonomia constitucional (art. 207) para construir e aprofundar políticas institucionais que amenizem a situação de calamidade em que se encontram as pessoas trans no Brasil, tornando seus espaços cada vez mais inclusivos e transformadores. Essas políticas se justificam diante de todo o contexto de exclusão social em decorrência da cisnormatividade, que será trabalhado nesta dissertação. A Constituição da República de 1988 estabeleceu em seu artigo 5º a igualdade de todos perante a lei, porém, este princípio fundamental do Estado Democrático de Direito não se refere apenas a uma igualdade formal, em que todos somos iguais perante a lei sem distinções. Mas principalmente a uma igualdade material ou a isonomia, em que, para ser justo, deve-se levar em conta que a realidade é composta por desigualdades sociais diversas e, dessa forma, intervir com ações concretas que promovam ativamente a igualdade, muitas vezes, tratando pessoas ou grupos de formas distintas, de modo a afirmar, reconhecer ou incluir suas especificidades, invisibilizadas, negadas ou tidas como negativas pela realidade social (Duarte, 2007). Todas as políticas afirmativas de inclusão e permanência de pessoas trans no ensino superior que abordamos nesta dissertação partem desse princípio. Por isso, o desenvolvimento de políticas institucionais, como o respeito do nome social, do uso de banheiros e vestiários segundo sua identidade de gênero, o combate ao assédio, a discriminação e todas as formas de violência, a promoção de bolsas de estudo, e de reserva de vagas para pessoas trans na graduação, na pós-graduação e em concursos públicos para docentes e servidores técnico-administrativos, entre várias outras políticas possíveis, é uma responsabilidade das universidades, cabendo a elas essa missão, como muitas já perceberam. O art. 207 da Constituição da República define que as universidades gozam de autonomia perante o governo federal e demais órgãos da administração: “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” (Brasil, 1988). A responsabilidade social das universidades é conferida pela Constituição e foi reforçada pela Lei nº 10.861/2004, que instituiu o Sistema de Avaliação da Educação Superior (SINAES). A referida Lei instituiu como finalidade do SINAES, no § 1º do art. 1º: 30 [...] a promoção do aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições de educação superior, por meio da valorização de sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito à diferença e à diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade institucional. (Brasil, 2004). A diversificação da pressão dos movimentos sociais trans nas universidades em direção a essas outras políticas de inclusão e permanência é reflexo da própria conquista da regulamentação do nome social, que hoje existe em todas as 63 universidades federais e na maioria (25 de 40) das universidades estaduais do país, que continuam inclusive as alterando continuamente para uma maior garantia de direitos. E, também, da percepção dos limites dessa política e dos diversos outros problemas enfrentados pelas pessoas trans para o ingresso e permanência nas universidades. Como veremos, todas as universidades determinam o uso exclusivo do nome social no tratamento oral e em seus documentos internos. Porém, o reconhecimento total do nome social, com seu uso exclusivo nos documentos de uso externo, como diplomas e histórico escolar, ainda tem como limitador o nome que consta no registro civil não retificado da pessoa trans, que, de acordo com a maioria das universidades, não poderá deixar de ser usado a menos que a pessoa trans formalize a retificação nas instâncias apropriadas, fora da universidade.16 É provável também que a facilitação da alteração do nome civil e do sexo conquistada pelas pessoas trans no STF, em 2018, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275/DF, também tenha estimulado essa diversificação em direção a novas pautas na universidade. Após a decisão, a mudança pode ser feita diretamente em cartório, bastando sua autodeclaração enquanto trans, desde que maior de idade.17 Antes, a alteração era praticamente impossível, pois tinham que enfrentar longos processos judiciais que exigiam uma “verdade sexual” a partir de 16 Essa é uma determinação que consta na referida Portaria nº 1.612/2011 do MEC, no § 4º do inciso VI do art. 2º: “O prenome anotado no registro civil deve ser utilizado para os atos que ensejarão a emissão de documentos oficiais, acompanhado do prenome escolhido.” (Brasil, 2011). Assim como no referido Decreto Presidencial nº 8.727/2016, em seu art. 4º: “Art. 4º Constará nos documentos oficiais o nome social da pessoa travesti ou transexual, se requerido expressamente pelo interessado, acompanhado do nome civil.” (Brasil, 2016). Consideramos, no entanto, um forte conservadorismo das normas que impõe às pessoas trans a continuidade da transfobia e até mesmo novas formas de transfobia na universidade e no mercado de trabalho, que poderiam ser evitadas com o uso do número do seu CPF e RG como comprovação de autenticidade. O que já tem sido utilizado por normativas universitárias mais atualizadas, como veremos. 17 No entanto, no “Diagnóstico sobre o acesso à retificação de nome e gênero de travestis e demais pessoas trans no Brasil”, publicado pela Antra (2022), a entidade constatou que das 1.642 pessoas trans que responderam à pesquisa, de 5 a 23 de abril de 2022, apenas 38,4% retificaram o nome civil e 61,6% não retificaram. Entre as que não retificaram, as reclamações são de altos custos, excesso de burocracia, falta de informações, transfobia institucional dos cartórios e órgãos de Justiça, falta de acesso à documentação familiar. Além disso, as pessoas trans não binárias não foram incluídas na decisão do STF, e ainda precisam entrar na justiça para garantir seu direito de retificação. Portanto, percebe-se que ainda é grande a luta contra a transfobia para o acesso ao direito de retificação do nome e do sexo no registro civil, o que torna a política do nome social ainda fundamental às pessoas trans. Para algumas pessoas trans que ingressam na universidade, a política também ganha contornos de primeiro passo na transição de gênero, como experimentação social antes de enfrentar o processo burocrático de retificação do nome civil. 31 laudos médicos e psicológicos, hormonização e cirurgias de transgenitalização, que “comprovariam” que a pessoa seria realmente transexual (Louzada, 2013). Então, diante dessa realidade anterior, a política do nome social, mesmo carregada de limitações, era a única que restava para possibilitar um mínimo de dignidade na sala de aula e nos documentos internos da universidade, já hoje não, existe a opção, para muitos estudantes trans, da alteração do nome civil para uma maior abrangência de direitos de reconhecimento. A despeito do crescimento da onda de extrema direita no país, essas mobilizações nas universidades têm se intensificado e se fortalecido, com resultados. Mais recentemente, tem avançado a reserva de vagas para trans na graduação e na pós-graduação nas universidades públicas do país. Em levantamento realizado para esta dissertação, verificamos que 14 universidades públicas possuem cotas para pessoas trans e travestis em seus cursos de graduação, dez são federais (UFSB, UFABC, UFBA, UNILAB, FURG, UFSM, UFSC, UNIR, UFLA e UFG) e quatro são estaduais (UNEB, UEFS, UEAP, UESB). A primeira a instituir resolução foi a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em 2017. E levantamentos de fontes jornalísticas dão conta de que a maioria das universidades públicas possuem ao menos um de seus Programas de Pós-Graduação com cotas para pessoas trans e travestis (Dias, 2024; Queiroz; Audi, 2024). Porém, dados iniciais apontam que têm sido baixa sua efetividade em relação ao preenchimento das vagas disponibilizadas. Problemas que merecem uma ampla discussão, que repercuta, não apenas no aprimoramento dos modelos, mas em políticas efetivas de combate à transfobia nas escolas, que permitam menor evasão escolar e consequentemente mais pessoas trans aptas ao ingresso no ensino superior. Como reflexo das lutas e, especialmente, das conquistas dos últimos anos, tem crescido também o campo de pesquisas empíricas nas ciências humanas que estuda essa inclusão e permanência no ensino superior brasileiro. Trata-se de pessoas trans e cis-aliadas, que, uma vez na universidade, pressionam as universidades também através das ferramentas da pesquisa acadêmica. Diante das circunstâncias da exclusão social, consideramos significativo o número de teses e dissertações sobre inclusão e permanência trans na universidade produzidos por pessoas trans e com a participação de pessoas trans universitárias como colaboradoras/entrevistadas. São 27 textos, publicados a partir de 2016, localizados na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Entre as análises, as pesquisadoras e colaboradoras narram seus processos de luta individual e coletiva por inclusão e permanência na universidade e reivindicam melhorias e avanços nas políticas. Entre os problemas recorrentes denunciados, estão situações de desrespeito ao uso do nome social, 32 constrangimentos ao usar o banheiro, assédios, discriminações e outras violências. Essas reclamações são também mecanismos de luta e forjam avanços nas políticas institucionais. Enfim, esta dissertação tem o objetivo de analisar as políticas institucionais de ingresso e permanência de pessoas trans desenvolvidas pelas universidades públicas brasileiras e entender a participação de discentes trans nesse processo de luta individual e coletiva para adentrar e permanecer nesses espaços, e, a partir de suas perspectivas, compreender como essas políticas poderiam avançar para promoverem maior justiça social diante dos prejuízos culturais e econômicos da cisnormatividade. Para isso, realizo uma ampla pesquisa documental, que levanta dados qualitativos e quantitativos, sobre os resultados normativos das lutas pelo nome social em todas as 108 universidades públicas brasileiras (federais, estaduais e municipais), e sobre as lutas por outras políticas e suas conquistas em algumas dessas universidades, como pelo uso de banheiros segundo a identidade de gênero, contra o assédio, discriminação e outras formas de violência, por bolsa permanência e pelas cotas em cursos de graduação, pós-graduação e concursos públicos para docentes e técnicos-administrativos. Além disso, dialogo com as produções de (e com) pessoas trans sobre o tema, a partir de uma revisão de literatura de teses e dissertações sobre acesso e permanência nas universidades brasileiras que foram produzidas por pessoas trans ou por pessoas cis que conduziram entrevistas com pessoas trans. A partir do conteúdo teórico e empírico levantado e do diálogo com outros textos não acadêmicos, incluindo de jornais, movimentos sociais e redes sociais de ativistas trans, foi possível apresentar e discutir as ambiguidades e desafios dessas recentes políticas. A dissertação organiza-se da seguinte forma. No capítulo 2, apresentaremos inicialmente os conceitos centrais das teorias queer e do transfeminismo, como gênero, performatividade e cisnormatividade. Em seguida, buscaremos entender os argumentos de uma discussão que tem crescido, principalmente nas redes sociais: as preocupações em torno da autodeclaração da identidade de gênero trans quando em troca há uma política afirmativa de reserva de vagas, e a busca por formas de explicar, na prática, o que definiria a experiência identitária de ser trans no Brasil, o que muitas ativistas nas redes chamam de “materialidade trans”. Uma discussão difícil, mas fundamental para o avanço e aprimoramento dessa política institucional, que será retomada adiante a partir da análise das políticas de cotas para trans existentes, seus critérios e resultados iniciais. No capítulo 3, a partir de um uso crítico dos conceitos de Nancy Fraser (1997) e Axel Honneth (1992), dois teóricos que refletem sobre injustiças sociais e os mecanismos necessários para a emancipação social de grupos vulnerabilizados, apresentaremos a realidade social das 33 pessoas trans, suas lutas por justiça e conquistas de direitos de uma forma mais ampla, e ao mesmo tempo atualizaremos as teorias dos autores para incorporar os conceitos transfeministas. Primeiro, abordaremos os estereótipos sobre pessoas trans na mídia brasileira e sua situação em termos de mercado de trabalho, renda, escolaridade, moradia, relações familiares, saúde e violência, relacionando essa população ao conceito de coletividade bivalente de Fraser, que exige políticas de reparação para injustiças simbólicas e econômicas. Em seguida, abordaremos as formas de negação de reconhecimento que sofrem as pessoas trans que as empurram à evasão escolar, mas também à luta por direitos, à luz da teoria do reconhecimento de Honneth, e destacaremos algumas das principais conquistas jurídico-políticas no Brasil que se relacionam com o tema das políticas analisadas nesta dissertação, especialmente advindas do STF e do Poder Executivo. No capítulo 4, apresentaremos nosso levantamento de dados quantitativos e qualitativos do conteúdo das normativas que regulamentam o nome social de pessoas trans nas universidades públicas brasileiras, entre federais, estaduais e municipais, que inicialmente foi realizado em 2019, considerando todas as 63 universidades federais, já inclusive publicado (Lages; Duarte; Araruna, 2021b), e posteriormente, em 2023, foi atualizado e ampliado para incluir todas as 40 universidades estaduais e as 5 universidades municipais. Analisaremos, entre outros elementos, as fundamentações, definições e conceitos utilizados, a abrangência do reconhecimento em relação à natureza do documento (externo ou interno), a possibilidade de retificação de documentos após a mudança no registro civil, a presença de políticas mais amplas de inclusão e permanência já nessas normativas, e as omissões e disposições para promover a (in)eficácia das normativas. No capítulo 5, apresentaremos alguns exemplos de outras políticas para pessoas trans que estão sendo desenvolvidas de forma autônoma por algumas universidades públicas. Nos limitaremos a apontar algumas dessas políticas, especificamente, normativas sobre o uso de banheiros, editais de bolsas para pessoas trans e normativas de combate a discriminação, assédio e outras violências. Por fim, adianto, neste capítulo, uma sugestão inexistente nas universidades brasileiras, uma “política de saída” – a ponte entre egressos e o mercado de trabalho, fundamental especialmente para pessoas de grupos vulneráveis como pessoas trans. No capítulo 6, apresentaremos nosso levantamento e análise das normativas que estabelecem as cotas trans em cursos de graduação das universidades públicas brasileiras. Analisaremos, entre outros elementos, suas fundamentações e principais regras, como quantidade de vagas, critérios interseccionais para acesso e formas de verificação da identidade de gênero (autodeclaração/heteroidentificação), e discutiremos alguns resultados iniciais. 34 Também apresentaremos levantamentos de agências de notícias e relatos de movimentos estudantis para contextualizar o atual momento de avanço das lutas por cotas trans na graduação e pós-graduação de outras universidades públicas brasileiras. Por fim, há décadas se tem questionado e criticado o lugar naturalizado, acrítico e pretensamente neutro e objetivo que pesquisadores homens brancos, cisgêneros e heterossexuais ocupam na observação, análise e descrição de grupos vulnerabilizados da sociedade. Teóricas feministas negras como Donna Haraway (1995) em seu “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial” já apontavam que todo conhecimento é influenciado pelo contexto e pela posição social de quem o produz. Djamila Ribeiro (2017) com o conceito de “lugar de fala” reforçou essa desnaturalização do lugar hegemônico e neutro do homem branco cisgênero na ciência. No entanto, isso não significa dizer, conforme ressaltado por Sofia Favero (2020a, 2020b), que apenas negros podem pesquisar ou combater o racismo, lésbicas a lesbofobia, pessoas trans a transfobia, gays a homofobia, pessoas com deficiência o capacitismo, etc. Esses grupos vivem grandes problemas e isto deveria provocar uma solidariedade sincera e útil às lutas por transformações sociais. Além disso, como a teoria queer veio problematizar, definir o “nós” e o “eles” de uma maneira óbvia não é uma tarefa fácil no campo de gênero e sexualidade, sempre haverá alguém entre o nós e o eles que essas dicotomias excluirão, pois elas não dão conta inteiramente da diversidade do mundo social. Nesse sentido, enquanto homem cis gay, me construí e fui construído por força das normas rígidas de gênero e sexualidade, lado a lado com os genitais associados ao gênero masculino. Porém, como muitas crianças reprimidas pela invisibilização de exemplos culturais/simbólicos LGBTI+ e diante da não vivência da minha homossexualidade livre desde a infância e adolescência forjando uma masculinidade hegemônica cisheterossexual sabidamente farsante, não me sinto plenamente confortável habitando meu corpo, meu gênero e vivenciando minha sexualidade. Um estranhamento que acredito ser compartilhado em algum grau por toda a cisgeneridade, com maior profundidade entre pessoas identificadas como LGB, apesar de ser um sentimento pouco compartilhado, dado o véu de naturalidade da cisnorma que a cisgeneridade se esforça para sustentar, e que, diga-se de passagem, as próprias caixas identitárias reforçam por imobilização, apesar de sua inegável importância política. Apesar da relevância desse espelho de ver-me gay afetado pela cisnormatividade como parte da motivação para a escrita desta dissertação, isto de forma alguma me faz conhecer a nível de experiência a fuga à cisnormatividade e suas complexas consequências, vivenciadas pelas pessoas trans, que cruzam radicalmente as fronteiras de gênero para sentirem-se mais 35 plenas e realizadas em seus corpos e identidades, e como consequência são confrontadas com violências transfóbicas cotidianas, o que nós, pessoas cis, não vivenciamos. Nossas angústias não são suficientes a ponto de renunciarmos aos privilégios cis e encararmos as transfobias cotidianas. Pelo contrário, a cisnorma continua a se reproduzir pois o estranhamento sentido pela cisgeneridade em relação ao seu próprio gênero é facilmente silenciado ou reprimido em troca de reforços sociais positivos ou de privilégios quando performamos o padrão de sexo/gênero que nos é esperado ou exigido. Diante desse impasse, Butler sugere então que devemos pensar através das brechas, no espaço do “entre” o eu e o outro, em uma política do deslocamento, pois o contato com o outro permitiria uma ação conjunta. Segundo a autora “[...] eu sou, como um corpo, e não apenas para mim mesma, e nem mesmo primariamente para mim mesma, mas me encontro, se me encontrar de todo, constituída e desalojada pela perspectiva dos outros” (Butler, 2018, p. 86). Diante dessas reflexões autocríticas, no capítulo 7, o último, apresentamos uma revisão da literatura das teses e dissertações elaboradas por pessoas trans brasileiras ou que tiveram a participação de pessoas trans como colaboradoras, seja como entrevistadas ou a partir de metodologias diversas, que abordam o tema da inclusão e permanência de pessoas trans no ensino superior. Buscamos na plataforma Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (DBTD), em janeiro de 2024, pelos termos “ensino superior” ou “universidade” em conjunto com “trans”, “travesti” ou “transexual”. A partir de leitura exploratória dos resultados, foram selecionados 27 textos, publicados entre 2016 e 2023, com a participação de 169 pessoas trans, entre autoras (9) e colaboradoras (160). Esta revisão buscará privilegiar discussões sobre as narrativas das autoras e/ou colaboradoras trans sobre suas vivências antes e durante a universidade, seus processos de luta individual e coletiva pelo acesso e permanência nesse espaço, suas demandas de reconhecimento, cidadania e inclusão não supridas pelas universidades, e suas propostas de aprimoramento das políticas afirmativas para o ensino superior. Além disso, buscaremos entender o que há em comum em suas trajetórias que lhes permitiu o ingresso na universidade, apesar de todas as dificuldades, diferentemente do amplo contingente de pessoas trans excluídas dessa etapa de escolarização. 36 37 2. TEORIAS QUEER E TRANSFEMINISTAS E O PROBLEMA DO GÊNERO PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS: CONCEITOS E DEBATES INTRODUTÓRIOS Através de um ensaio, este capítulo 2 apresenta os principais marcos teóricos desta dissertação, com conceitos das teorias queer e do transfeminismo que perpassam todo o trabalho, como gênero, performatividade e cisnormatividade. Em um primeiro tópico, apresentamos o desenvolvimento dos conceitos e, no segundo, analisamos os argumentos de um debate que tem crescido, especialmente nas redes sociais: trata-se da exigência de uma “materialidade trans” para ter acesso a reconhecimento social e políticas públicas direcionadas a pessoas trans, como as cotas no ensino superior. Isto nos traz de volta ao questionamento: o que é gênero? E o que é ser trans? São muitos os conflitos teóricos, políticos e identitários em torno do conceito de gênero. Em seu último livro “Quem tem medo do Gênero?”, publicado no Brasil pela Boitempo, Judith Butler (2024), discorre sobre como o gênero se tornou o vilão das narrativas conservadoras e reacionárias, que o deslegitimam como “ideologia de gênero” e reafirmam o sexo como única categoria existente, a fim de criar um pânico moral para conquistar apoio a projetos políticos autoritários, excludentes e fascistas. A autora iniciou o livro após sua visita ao Brasil, em 2017, onde encontrou um cenário extremamente hostil, sendo perseguida e agredida por conservadores homotransfóbicos. Até mesmo entre algumas pessoas progressistas, feministas e LGBTI+, o conceito de gênero também encontra resistências, porque segundo seu argumento, a desvinculação total do gênero ao “sexo biológico”, invisibilizaria a “essência” ou a “materialidade” dos corpos. Nessa esteira, algumas pessoas trans têm defendido concepções mais restritas do que é ser trans, especialmente para fins de acesso a políticas públicas como as cotas. É necessário ampliar a discussão, envolvendo toda a comunidade trans dentro e fora dos muros da academia, pois as cotas para trans já são uma realidade em muitas universidades, assim como as diversas formas de verificação da identidade de gênero autodeclarada (heteroidentificação), como vamos apresentar no capítulo 6, referente às políticas de cotas trans existentes. Os estudos sobre inclusão e permanência de pessoas trans no ensino superior brasileiro também devem contribuir para esse debate sobre os critérios para essa possível verificação, dada sua afinidade com o tema, o que ainda não foi constatado. A abordagem deste capítulo é apenas introdutória, visto que o tema será retomado a partir dos exemplos das políticas universitárias. 38 2.1 Virada epistemológica no conceito de gênero: do sexo biológico à performatividade As teorias queer compõem estudos e análises sociais que compartilham do pressuposto de que sexo-gênero-desejo são historicamente orientados por um conjunto de discursos e práticas sociais, isto é, que a sexualidade humana é um “dispositivo histórico do poder” (Miskolci, 2009). Emergiram nos Estados Unidos, em fins da década de 1980, como crítica ao pressuposto vigente nos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e de gênero que, até então, apesar de suas boas intenções, acabava por naturalizar a norma heterossexual. O termo queer, cunhado por Teresa de Lauretis, em uma conferência na Califórnia em 1990, para se autodenominar, era um xingamento comum nos Estados Unidos que significava justamente “anormalidade, perversão e desvio”. Essa escolha servia como modo de ressignificação do termo e como compromisso em analisar criticamente o processo de normalização social da sexualidade (Miskolci, 2009). Os estudos queer bebem de uma fonte teórica e metodológica do pós-estruturalismo francês de Jacques Derrida, especialmente em sua obra Gramatologia [1967]/(2004), que rompe a noção de cartesiana ou iluminista de sujeito e passa a encará-lo como provisório, circunstancial e cindido; e da filosofia e estudos culturais do também francês Michel Foucault, com sua obra História da Sexualidade I: A Vontade de Saber [1976]/(1999) (Miskolci, 2009). Segundo Michel Foucault [1976]/(1999), foi a partir do século XIX que o Estado passou a incluir a sexualidade em seus processos de gestão, classificação, especificação e controle. Esse processo serviria para administrar a fecundidade e o crescimento da população, mas também como forma de construir uma sociedade mais “saudável e pura”, livre dos “sujeitos degenerados”, que poderiam representar um risco biológico aos demais. Contra o que imagina o senso comum ocidental, a sexualidade não sofreu uma repressão ao longo dos séculos. Ao contrário, teria ocorrido a proliferação da temática da sexualidade nas mais variadas estruturas da sociedade: na família, nas escolas, nos consultórios médicos, no sistema de justiça. Desde então, deve-se falar do sexo, regulá-lo para o bem de todos, fazer com que funcione num padrão aceitável, saudável, num “padrão ótimo” (Foucault, 1999, p. 32-38). Quem se distanciava desse padrão passou a ser cada vez mais visto como ser abjeto, sujeito à incompreensão, exclusão e violência. De Jacques Derrida [1967]/(2004), a Teoria Queer utiliza, em resumo, o conceito de suplementaridade e a perspectiva metodológica da desconstrução. Com a suplementaridade, entendeu-se que uma identidade contém a outra, só pode ser definida e compreendida pela existência da dinâmica da diferença com o outro binário, numa relação de poder hierárquica. 39 Ou seja, “o que parece estar fora de um sistema já está dentro dele e o que parece natural é histórico” (Miskolci, 2009). Já a desconstrução é o procedimento analítico que busca evidenciar o que está implícito dentro das oposições binárias, explicitando “o jogo entre presença e ausência” (Miskolci, 2009). Judith Butler, em sua obra “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade” [1990]/(2003), retoma a abordagem foucaultiana com grandes contribuições aos estudos queer e, também, às teorias feministas. Butler (2003) nomeia e descreve o regime da sexualidade como “matriz de inteligibilidade heterossexual” ou simplesmente “matriz de gênero”, dominada pela heterossexualidade compulsória. Objetivamente, essa matriz entende que homem é tão somente aquele que nasce com um pênis e tem atração afetivo-sexual por uma mulher, e que mulher é tão somente aquela que nasce com uma vagina e tem atração afetivo- sexual por um homem. Além disso, que performances corporais e linguísticas e características como racionalidade e emotividade obedecem a padrões fixos e específicos predeterminados pelo sexo/gênero. No contexto das teorias de gênero, Butler (2003) utiliza um amplo repertório teórico para borrar a distinção entre sexo e gênero que muitas feministas faziam, e ainda fazem reiteradamente, em que sexo corresponderia aos órgãos genitais, à natureza, e gênero, à cultura. A criação da categoria gênero, anterior à Butler, foi muito relevante para as teorias e os movimentos feministas pois provocou a desnaturalização dos sexos. Algo que Simone de Beauvoir (1970) já sugeria com a célebre frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Esse primeiro momento do conceito foi relevante para compreender a opressão feminina como um processo histórico e social de subjugação das mulheres. Pois se afirmou que a mulher não era inferior ao homem por natureza ou destinação divina, mas foi inferiorizada por um processo histórico, político e social; também que há um processo de aprendizagem ou de construção do feminino, e que a luta feminista existe para, também, mostrar possibilidades de construção mais revolucionárias. É considerado um dos primórdios do conceito de gênero (Saffioti, 1999). Ao mesmo tempo, esse deslocamento do sexo ao gênero também reforçou a luta pelo abandono da ideia de mulher universal e abstrata que já estava sendo travada por feministas negras ou lésbicas como Adrienne Rich (1929-2012), Audre Lorde (1934-1992), Monique Wittig (1935-2003), Sandra Harding (1935-), Angela Davis (1944-), Patricia Hill Collins (1948-), entre outras (Nascimento, 2021). Mais tarde, a jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw (1989) desenvolveu o conceito de interseccionalidade, para descrever a experiência de mulheres negras que sofriam ao mesmo tempo a discriminação racial e de gênero e para pensar formas de lutas indissociáveis. Atualmente, o conceito está bastante difundido na 40 produção acadêmica pois, entre diversos outros motivos, deu visibilidade e incorporou sujeitos excluídos pelas análises tradicionais focadas em um só grupo, capturando a complexidad