Yasmin Couto de Jesus A tese do marco temporal enquanto manifestação da acumulação do capital Marília - SP 2024 Câmpus de Marília Yasmin Couto de Jesus A tese do marco temporal enquanto manifestação da acumulação do capital Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília. Linha de Pesquisa: Relações Internacionais e desenvolvimento. Orientador: Prof. Dr. Agnaldo dos Santos. Marília – SP 2024 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). J58t Jesus, Yasmin Couto de A tese do marco temporal enquanto manifestação da acumulação do capital / Yasmin Couto de Jesus. -- Marília, 2024 109 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Agnaldo dos Santos 1. Capitalismo. 2. Povos e Comunidades Tradicionais. 3. Marco Temporal. 4. Marxismo. I. Título. Yasmin Couto de Jesus A tese do marco temporal enquanto manifestação da acumulação do capital Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. BANCA EXAMINADORA Orientador: _____________________________________________________ Dr. Agnaldo dos Santos (Unesp-Marília) 1º Examinador: __________________________________________________ Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos (Unesp-Marília) 2º Examinador: ___________________________________________________ Dr. Thiago Fernandes Franco (Universidade Federal de Sergipe - UFS) Marília-SP, 30 de Outubro de 2024. AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente à toda minha família, primeiramente a meus pais, Rosalia e Ednaldo, que não hesitaram em me apoiar desde o primeiro momento quando comentei que estava pensando em fazer o mestrado em Marília, São Paulo, tão longe de casa; que sem exitar vieram comigo para me instalar aqui e para que fosse possível trazer minhas 3 gatas, Estela (Estelinha), Luna, e Sol numa viagem caótica de avião, pois sabiam que elas são meu maior apoio emocional desde que as adotei em março de 2022, mesmo mês que o mestrado iniciou. Obrigada por todo o apoio e incentivo. Amo vocês. Agradeço também à minha avó, tios, tias, primos e primas, especialmente à minha Tia Edjane, por todos os conselhos e conversas; e à minha avó querida, Maria Eunice, por sempre ter cuidado de mim. Sem o apoio de ambas durante toda a graduação eu não estaria aqui agora finalizando o mestrado. Muito obrigada por tudo. Lucas Santana e Isabelle Oliveira, amigos queridos de tantos anos que mesmo com a distância, primeiro em Aracaju, depois em Marília, sempre estiveram presentes. Júlia Brito e Ana Beatriz Mendes, duas pessoas especiais que conheci em Aracaju e espero levar nossa preciosa amizade por muitos e muitos anos. Obviamente tenho que agradecer a duas pessoas cuja amizade começou na UFS, se estendeu durante o mestrado e espero que dure para todo o sempre: Danielle Passos e Enndiel Mendes. Fizemos o processo seletivo do mestrado juntas, decidimos vir para outro estado tão longe de casa porque sabíamos que teríamos o apoio umas das outras. Foram muitas risadas, choros, fofocas e estudos compartilhados durante os últimos anos, e eu sou muito grata de poder ter vivido todos esses momentos com vocês. Vocês são a minha família em Marília. Como diria Taylor Swift em Long Live, “I had the time of my life fighting dragons with you”. Dentre as pessoas que conheci em Marília, meus agradecimentos especiais à Amanda Pereira e Samyra Masetto, que poderiam ter sido apenas minhas colegas de apartamento durante quase dois anos, mas se tornaram minhas amigas. Muito obrigada por tudo, por serem maravilhosas e carinhosas, e por terem aceitado e amado minhas gatinhas. Amei conhecer vocês. Agradeço também a Isabela Evangelista, sempre tão curiosa sobre a Bahia e sobre o que eu estava estudando, muito obrigada pela amizade. À Wesley Rogério pela companhia e por todas as conversas sobre vida, academia e saúde mental quando trabalhávamos juntos. E, finalmente, meu namorado Lucas Rebeque Machado e sua família, pela companhia, carinho e apoio, e por sempre me acolherem tão bem. Agradeço ainda à Universidade Federal de Sergipe (UFS) por todas as experiências que lá vivi, e por ter tido um papel fundamental na formação do meu caráter, na forma com que eu enxergo o mundo. Agradeço também ao programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) por terem me dado a oportunidade de dar mais um passo na minha vida acadêmica. Dentre os muitos professores que fizeram parte dessa jornada, agradeço especialmente aos professores Agnaldo dos Santos, Francisco Corsi, Rodrigo Passos e Thiago Franco por todo o apoio e orientação em mais essa etapa. A todos vocês, família, amigos e professores, embora “obrigada” me pareça muito pouco para demonstrar minha gratidão, é o que temos para hoje. Meus mais sinceros, muito obrigada! RESUMO O presente trabalho busca analisar, a partir de uma revisão bibliográfica sistemática, em um primeiro momento, o problema histórico e teórico da acumulação do capital, sobretudo sob a ótica de Karl Marx e Rosa Luxemburgo, apresentando também interpretações mais contemporâneas como as de David Harvey e Virgínia Fontes, para que possamos compreender de que forma ele se manifesta concretamente e, ainda, perceber quais as tendências desse fenômeno. Em seguida, realizamos um apanhado histórico sobre a invasão e posse de terras indígenas no Brasil, assim como de que forma as relações de posse sobre as terras e os direitos indígenas sobre elas foram evoluindo ao longo dos séculos. Depois, comentamos ainda sobre a atuação de cada governo, Lula I, II, Dilma I e II, Temer e Bolsonaro no que toca ao comportamento de seus respectivos governos em relação à questão indígena. Ademais, analisamos a tese do marco temporal apresentando as linhas gerais da evolução de tal tese na Câmara dos Deputados e Senado Federal, bem como os principais pontos do texto ao longo dos anos, até a sua redação final. Por fim, analisamos se há relação entre a intensificação de ameaças aos direitos dos povos indígenas e a acumulação do capital, bem como quais as consequências que a aprovação dessa tese representaria para os direitos dos indígenas e para a existência desses povos. Palavras-chave: Capitalismo; Povos e Comunidades Tradicionais; Marco Temporal; Marxismo. ABSTRACT Based on a systematic bibliographical review, this work initially seeks to analyze the historical and theoretical problem of capital accumulation, especially from the point of view of Karl Marx and Rosa Luxemburg, while also presenting more contemporary interpretations such as those of David Harvey and Virgínia Fontes, in order to understand how it manifests itself in concrete terms and also to understand what the tendencies of this phenomenon are. Afterwards, we give a historical overview of the invasion and possession of indigenous lands in Brazil, as well as how land tenure relations and indigenous rights have evolved over the centuries. Later, we comment on the actions of each government - Lula I, II, Dilma I and II, Temer and Bolsonaro - in terms of their respective governments' behavior in relation to the indigenous issue. In addition, we analyzed the temporal framework thesis, presenting the general lines of the evolution of this thesis in the Chamber of Deputies and the Federal Senate, as well as the main points of the text over the years, until its final wording. Finally, we analyze whether there is a relationship between the intensification of threats to the rights of indigenous peoples and the accumulation of capital, as well as what consequences the approval of this thesis would represent for indigenous rights and the existence of these peoples. Keywords: Capitalism; Traditional People and Communities; Marco Temporal; Marxism. RESUMEN Este trabajo pretende analizar, a través de una revisión bibliográfica sistemática, el problema histórico y teórico de la acumulación de capital, especialmente desde la perspectiva de Karl Marx y Rosa Luxemburgo, presentando también interpretaciones más contemporáneas como las de David Harvey y Virgínia Fontes, para que podamos entender cómo se manifiesta concretamente y comprender también cuáles son las tendencias de este fenómeno. A continuación, hacemos un repaso histórico de la invasión y posesión de tierras indígenas en Brasil, así como de la evolución de las relaciones de tenencia de la tierra y de los derechos indígenas a lo largo de los siglos. A continuación, comentamos el comportamiento de cada gobierno -Lula I, II, Dilma I y II, Temer y Bolsonaro- en relación con la cuestión indígena. Además, analizamos la tesis del marco temporal, presentando las líneas generales de la evolución de esta tesis en la Cámara de Diputados y en el Senado Federal, así como los principales puntos del texto a lo largo de los años, hasta su redacción final. Por último, analizamos si existe una relación entre la intensificación de las amenazas a los derechos de los pueblos indígenas y la acumulación de capital, así como qué consecuencias representaría la aprobación de esta tesis para los derechos indígenas y la existencia de estos pueblos. Palabras clave: Capitalismo; Pueblos y Comunidades tradicionales; Marco Temporal Marxismo. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABAG Associação Brasileira do Agronegócio APIB Articulação dos Povos Indígenas do Brasil BBB Boi, Bala e Bíblia BNDES Banco Nacional do Desenvolvimento CAC Colecionador, atirador esportivo e caçador CCJ Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania CIMI Conselho Indigenista Missionário CITA Conselho Indígena Tapajós Arapiuns FGV Fundação Getúlio Vargas FPA Frente Parlamentar da Agropecuária FUNAI Fundação Nacional dos Povos Indígenas IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPAM Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia ONG Organização Não Governamental PL Projeto de Lei PT Partido dos Trabalhadores SNCR Sistema Nacional de Cadastro Rural SPI Serviço de Proteção aos Índios SRB Sociedade Rural Brasileira STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 1 A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL.................................................................................... 20 1.1 Marx ............................................................................................................................. 20 1.1.1 Da mercadoria à transformação do dinheiro em capital ...................................... 21 1.1.2 “A assim chamada acumulação primitiva do capital” para Marx ....................... 25 1.2 Rosa luxemburgo ........................................................................................................ 32 1.2.1 Rosa Luxemburgo para além de Marx ................................................................ 34 1.2.2 Limites e condições da acumulação de capital e sua manifestação na realidade na interpretação de Rosa Luxemburgo .............................................................................. 37 1.3 Outras interpretações acerca da acumulação do capital ........................................ 45 2 A TERRA ............................................................................................................................. 49 2.1 A conquista/invasão .................................................................................................... 50 2.2 O histórico da posse de terras indígenas no Brasil .................................................. 59 2.3. A bancada ruralista e os governos brasileiros entre 2003-2024 ............................ 66 2.3.1 Luiz Inácio Lula da Silva (I e II) e Dilma Rousseff (2003-2016) ....................... 66 2.3.2 Michel Temer e Jair Bolsonaro (2016-2022) ...................................................... 70 3 O MARCO TEMPORAL ................................................................................................... 80 3.1 O que é o marco temporal .......................................................................................... 80 3.2 Evolução do marco temporal na câmara e senado: argumentos a favor e contra tal tese ................................................................................................................................ 85 3.3 O marco temporal enquanto acumulação primitiva/espoliação do capital ........... 93 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 98 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 99 12 INTRODUÇÃO O presente estudo busca discutir o marco temporal, tese criada no Congresso Nacional segundo a qual as populações indígenas só teriam direito à posse da terra se as estivesse habitando em outubro de 1988, como uma manifestação da acumulação do capital, tomando como pressupostos as reflexões de Karl Marx e Rosa Luxemburgo. Primeiro será discutido o problema histórico e teórico da acumulação do capital, sobretudo sob a ótica de Karl Marx e Rosa Luxemburgo e, pontualmente, outros autores como Virgínia Fontes e David Harvey, para que possamos compreender de que forma ele se manifesta concretamente e, ainda, compreender algumas tendências desse fenômeno. Em seguida, pretendemos analisar o histórico da posse de terras indígenas no Brasil e, por fim, analisar a tese do marco temporal, buscando entender sua influência sobre o fenômeno da acumulação de capital, bem como as consequências que a aprovação dessa tese pode representar aos povos indígenas1. Esta pesquisa busca, portanto, contribuir para a teoria marxista ao abordar a questão da tese do marco temporal a partir de um foco político-social-econômico, como um fenômeno da acumulação de capital, recorrendo à antropologia e ao direito quando necessário, pois, embora exista bastante material nessas áreas sobre o tema, essas abordagens escapam do nosso recorte. Desse modo, é fundamental abordarmos brevemente as linhas gerais da acumulação de capital com a qual concordamos. Partindo do pressuposto de que o objetivo final do capitalismo é o lucro, parte desse lucro é consumida e a outra parte é acumulada. Assim, para que o capital consiga se reproduzir constantemente, a acumulação do mesmo deve ser constante e ininterrupta. No entanto, esse processo se origina em algum momento, acontece pela primeira vez materialmente na realidade, uma vez que o capitalismo não surge do nada. A acumulação primitiva de capital, ao contrário do que o nome possa sugerir e da interpretação feita por economistas clássicos, portanto, não é um ponto específico numa perspectiva linear de acontecimentos históricos, mas sim um processo constante, percorrendo toda a história desse 1 Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, povos indígenas são “aqueles que, tendo continuidade histórica a partir de grupos pré-colombianos, consideram-se distintos da sociedade nacional. Estão presentes em todo o território brasileiro, tanto em áreas urbanas quanto rurais. A região norte possui a maior população indígena do país (44,48%). Os indígenas se reconhecem como pertencentes a comunidades determinadas e por elas são reconhecidos como membros. A identificação de uma pessoa como indígena é auto declaratória, seguindo os mesmos princípios da Convenção nº 169 da OIT (para povos indígenas e tribais), que estabelecem: “A auto identificação como indígena ou tribal deverá ser considerada um critério fundamental para a definição dos grupos”. O número de indígenas no Brasil, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2022) -, é de aproximadamente 1,7 milhão. Desse total, 622,1 mil (36,73%) vivem em terras indígenas oficialmente reconhecidas pelo governo federal, e 1,1 milhão (63,27%) fora delas. Distribuem- se em 305 grupos étnicos e falam 274 línguas indígenas identificadas”. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/povos-e-comunidades-tradicionais. Acesso em: 30 set. 2024. 13 fenômeno capitalista, pois ele faz parte da sua própria estrutura. É ao mesmo tempo uma condição e consequência. Isto posto, é preciso pontuar que os conflitos envolvendo povos originários no Brasil atravessaram séculos de história e perduram até hoje. Dentre esses conflitos, destacam-se sobretudo os conflitos pela terra. Frequentemente esses casos vêm à tona quando noticiados pela mídia. De garimpo e desmatamento ilegal em terras indígenas, até violência contra as pessoas desse grupo (chegando até a assassinatos), se estende uma lista de crimes que ferem nacional2 e internacionalmente3 os direitos garantidos aos mesmos. As tentativas de garimpo em terras indígenas, para citar apenas um dos diversos exemplos, são constantes. Algumas vezes o problema é resolvido através de denúncias e luta conjunta de organizações indígenas e Organizações Não Governamentais (ONGs), como por exemplo a luta contra a tentativa de garimpo ilegal em Itaituba (PA), promovido pela empresa britânica de mineração Anglo American4, denunciado por Alessandra Mundukuru5, indígena da Aldeia Praia do Índio. Outras vezes, no entanto, o garimpo ilegal se instala e provoca um caos no território indígena e na biodiversidade local. Um exemplo marcante recente6 que ganhou visibilidade internacional7 foi o desdobramento caótico e destruidor revelado com a atividade de garimpo na Terra Indígena 2Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10643688/artigo-231-da- constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 18 fev. 2024. 3 Art. 8. 1. Os povos e as pessoas indígenas têm o direito a não sofrer da assimilação forçosa ou a destruição de sua cultura. 2. Os Estados estabelecerão mecanismos efetivos para a prevenção e o ressarcimento de: a) todo ato que tenha por objeto ou consequência privá-los de sua integridade como povos distintos ou de seus valores culturais, ou sua identidade étnica. b) Todo o ato que tenha por objeto ou consequência alienar-lhes suas terras ou recursos. c) Toda forma de transferência forçada da população, que tenha por objetivo ou consequência a violação e o menosprezo de qualquer de seus direitos. d) toda a forma de assimilação e integração forçada. e) Toda a forma de propaganda que tenha com finalidade promover ou incitar a discriminação racial ou étnica dirigida contra eles. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direit os_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 28 fev. 2024. 4 Disponível em: https://brasil.angloamerican.com/. Acesso em: 11 fev. 2024. 5 Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/04/indigena-que-barrou-extracao-e-cobre-no-para- ganha-premio-nos-eua.ghtml. Acesso em: 8 fev. 2024. 6 Segundo o G1, o território Yanomami sofre ataques desde a década de 1980, mas tais ataques se intensificaram significativamente desde 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/05/27/relembre- conflitos-recentes-entre-garimpeiros-e-indigenas-na-terra-yanomami.ghtml. Acesso em: 11 fev. 2024. 7 Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/03/25/world/americas/brazil-amazon-indigenous-tribe.html. Acesso em: 25 ago. 2024. 14 Yanomami8, cujo impacto afeta não apenas a terra (contaminando-a e destruindo a biodiversidade até então preservada por esses povos), mas afeta também a vida dessa população, ao oferecer um perigo constante contra a saúde9, como pela própria violência causada por conflitos com garimpeiros. Ainda nesse sentido, dentre as muitas ameaças atuais sobre as condições de vida dos povos indígenas, a Apib10 listou as principais11: Marco Temporal PL 490/2007 (projeto que prevê mudança na demarcação de terras indígenas), Mineração em Terras Indígenas PL 191/2020 (projeto que visa remover o poder de veto de comunidades indígenas acerca de decisões que impactam suas terras, garantido constitucionalmente, permitindo a mineração e exploração de terras indígenas), PL 3729/2004 (projeto que busca o enfraquecimento do licenciamento ambiental), e PL 3723/2019 e PL 6438/2019 (projeto que, dentre outros objetivos, visa regular o de porte de armas para ao exercício das atividades de colecionador, atirador esportivo e caçador - CAC). A questão do Marco Temporal, por sua vez, se destaca nas discussões em defesa dos direitos indígenas. É fundamental apresentar brevemente nesta introdução sobre o que se trata esse projeto de lei. Na redação final do projeto12 defendido no STF destacamos os seguintes artigos: § 3º Para os fins desta Lei, considera-se renitente esbulho o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada. 8 “Os cerca de 21 mil Yanomami que vivem no Brasil ocupam os afluentes do curso superior do rio Branco, no oeste do estado de Roraima, e o curso superior dos afluentes da margem esquerda do rio Negro, no norte do estado do Amazonas. Seu vasto território de 96.650 quilômetros quadrados, homologado por decreto presidencial desde maio de 1992 como Terra Indígena Yanomami, abriga uma grande diversidade de ecossistemas: densas florestas tropicais nas terras baixas, floresta de montanha e campos de altitude. É considerado pela comunidade científica região prioritária em termos de proteção da biodiversidade na Amazônia brasileira, 14 e sua superfície representa quase 1% da floresta tropical ainda existente no planeta.” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 560) 9 Segundo o relatório sobre a evolução do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) de 2022, “Além do desmatamento e da destruição dos corpos hídricos, a extração ilegal de ouro (e cassiterita) no território yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas.” (Hutukara Associação Yanomami; Associação Wanasseduume Ye’kwana, 2022, p. 9). 10 "A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB foi criada pelo movimento indígena no Acampamento Terra Livre de 2005. O ATL é a nossa mobilização nacional, realizada todo ano, a partir de 2004, para tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado Brasileiro o atendimento das suas demandas e reivindicações. A Apib é uma instância de referência nacional do movimento indígena no Brasil, criada de baixo para cima. Ela aglutina nossas organizações regionais indígenas e nasceu com o propósito de fortalecer a união de nossos povos, a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país, além de mobilizar os povos e organizações indígenas contra as ameaças e agressões aos direitos indígenas." Disponível em https://apiboficial.org/sobre/, acesso em 13 de março de 2024. 11 Disponível em: https://apiboficial.org/2022/02/21/alerta-congresso-principais-ameacas-aos-povos-indigenas- e-ao-futuro-do-planeta/. Acesso em: 8 fev. 2024. 12 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2285554. Acesso em: 20 fev. 2024. 15 § 4º A cessação da posse indígena ocorrida anteriormente a 5 de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada, salvo o disposto no § 3º deste artigo. (Brasil, 2023, p. 3) Assim, caso a posse indígena tenha sido cessada em período anterior a 5 de outubro de 1988 e não tenha sido reivindicada até a data em questão, a área em disputa não pode ser reconhecida como tradicionalmente ocupada, e, portanto, demarcada pelos órgãos responsáveis. Segundo o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) e Terra de Direitos, a tese do marco temporal “vincula o direito à terra aos indígenas que estavam - ou reivindicavam - a terra no dia 5 de outubro de 1998, data em que foi promulgada a Constituição Federal brasileira” (CITA e Terra de Direitos, 2021, p.3). Portanto, diante das discussões sobre o marco temporal – tese que propõe uma mudança nas demarcações de terras indígenas ao defender a reivindicação para apenas aquelas que já estavam ocupadas ou sendo reivindicadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da constituição) –, é fundamental avaliar quanto a aprovação dessa tese dificultaria a demarcação de novas terras indígenas, visto o reconhecimento da repercussão geral do julgamento e, portanto a possibilidade dessa tese ser utilizada como referência em outros processos envolvendo terras indígenas, desconsiderando, portanto, todo um histórico de séculos de resistência indígena. Sendo assim, o problema que propomos estudar neste trabalho é: o marco temporal representa uma manifestação do fenômeno da acumulação do capital, enquanto um instrumento jurídico que restringe e ameaça os direitos dos povos indígenas, transformando suas terras em espaço de acumulação? A hipótese básica que norteia nossos estudos é de que a tese do marco temporal, por caracterizar a insegurança jurídica dos indígenas e de suas terras, reflete no risco da integridade física e cultural desses povos originários, representa uma manifestação do fenômeno da constante necessidade de acumulação do capital, utilizando o Estado para obter tais fins. Abarcando detalhes de nossa hipótese básica, defendemos que: 1. Houve no governo Bolsonaro (2019-2022) uma intensificação das ameaças aos direitos dos povos indígenas que, estruturalmente, relaciona-se com a acumulação de capital; 2. O capital ameaça não apenas a integridade física dos indígenas, mas também seu modo de viver não capitalista13, suas terras e, consequentemente, a natureza; 3. Embora os povos indígenas resistam a séculos ao genocídio, existe uma aceleração particular do capitalismo no último período que agrava o fenômeno; 4. 13 Sociedades capitalistas e não capitalistas estão em constante interação no Brasil e no mundo, salvo algumas aldeias cujo contato nunca foi estabelecido. Entendemos formas de viver não capitalistas como aquelas que não tem a mercadoria como cerne, e cujo principal objetivo não seja, portanto, o lucro. 16 Direitos conquistados não garantem de fato uma segurança para esses povos; 5. A acumulação precisa ser constante, dessa forma as ameaças às formas de viver não capitalistas também o são. Isto posto, é importante salientar que propomos como objetivo geral deste estudo investigar uma possível relação entre o fenômeno da acumulação de capital e a tese do marco temporal e, como objetivos específicos, i) identificar as linhas gerais da acumulação do capital e como elas se manifestam na realidade concreta em alguns casos selecionados, e ii) identificar o debate político/sociológico e os perigos que essa tese representa não apenas aos territórios indígenas (e consequentemente à natureza), mas também a existência desses povos. Reforçamos a importância do estudo desse tema pela relevância e pela contemporaneidade do fenômeno da acumulação do capital, e do que acreditamos ser uma manifestação concreta dele: a tese do marco temporal (PL nº490/2007). No momento em que esta pesquisa está sendo desenvolvida não há uma resolução para a questão, tampouco previsão do encerramento definitivo das discussões. Ademais, o estudo desse tema é importante para pensarmos não apenas as causas do problema da intensificação de ameaças aos direitos indígenas, mas também as consequências socioeconômicas e ambientais que essas ameaças representam. Isto posto, reforçamos que um enfoque crítico sobre os movimentos necessários para a acumulação do capital pode auxiliar no debate acadêmico sobre a insegurança jurídica a que são submetidos os povos indígenas, bem como sobre a aproximação de limites estruturais e ambientais. É fundamental destacar ainda que, embora recorramos pontualmente a referências vindas da sociologia, da antropologia e do direito no intuito de elucidar algumas dúvidas que possam surgir, bem como embasar algumas reivindicações acerca do marco temporal, o trabalho conta com fontes teóricas multidisciplinares, sobretudo da teoria política, da sociologia e da economia política. Para pensar a metodologia para esse projeto de pesquisa recorremos inicialmente a Marconi e Lakatos (2017). Assim, compreendendo a possibilidade de utilizarmos mais de um método na mesma pesquisa propomos a utilização dos seguintes métodos: i) materialismo histórico dialético, uma vez que através desse método de abordagem podemos pensar em ações recíprocas, compreendendo o mundo como um conjunto de processos. Propomos também utilização de métodos de procedimento que Marconi e Lakatos chama de específico das ciências sociais: ii) o método histórico (visto a necessidade de identificar através do tempo as linhas gerais da acumulação do capital, bem como a contínua ameaça aos povos indígenas), e ainda iii) o método comparativo (uma vez que, para identificar uma possível intensificação das 17 ameaças aos direitos indígenas, devemos comparar o período do governo Bolsonaro com outros períodos). Quanto às técnicas de pesquisa, ainda seguindo as definições de Marconi e Lakatos, propomos a coleta de dados identificada como documentação direta, a partir de análise de material produzido por organizações da sociedade civil, e também documentação indireta, por meio de pesquisa bibliográfica. Entendemos que, para alcançarmos maior profundidade na análise desse problema específico, é fundamental uma exploração ampla sobre a bibliografia já produzida sobre ou relacionada ao tema. Portanto, propomos para essa pesquisa a realização de uma revisão bibliográfica sistemática. Optamos por esse tipo de análise pela potencialidade de realizarmos um estudo mais abrangente em relação a coleta de dados a ser pesquisada, sendo possível, portanto, como afirma Sampaio e Mancini (2007), incorporar ao estudo um maior número de resultados relevantes para não limitarmos nossas conclusões, sendo possível então encontrar aproximações, distanciamentos, e até mesmo influências nos argumentos dos autores, podendo ainda evidenciar temas para estudos futuros. Dentre os materiais que nós utilizaremos estão sobretudo livros, artigos científicos e relatórios. Nessa perspectiva, como afirmam Prodanov e Freitas (2013), a investigação científica demanda a utilização de procedimentos intelectuais e técnicos. Os procedimentos adotados para a presente revisão sistemática seguem as orientações de Sampaio e Mancini (2007), seguindo, portanto, a seguinte ordem: i) identificação e definição do problema de pesquisa, ii) identificação da base de dados a ser utilizada, iii) definição de palavras-chave e da(s) estratégia(s) de busca, iv) apresentação dos critérios de seleção e exclusão de determinadas leituras, v) análise crítica, vi) resumo dos estudos realizados, vii) conclusões. Assim, após termos abordado superficialmente o contexto da preocupação crescente em relação ao marco temporal e aos perigos que essa tese representa para a garantia do direito à terra e, portanto, reiteramos, a própria existência desses povos, é fundamental buscar entender qual a natureza desse fenômeno. Seguindo nossa hipótese básica de que a ameaça aos direitos desses povos é uma manifestação do fenômeno da acumulação do capital, entendemos que a abordagem teórica de acumulação do capital de Rosa Luxemburgo pode nos ajudar a entender esse fenômeno, apontaremos agora as principais características desse fenômeno. O ponto de partida de Luxemburgo para a discussão desse tema foi O Capital, de Marx, em especial a discussão sobre a “assim chamada acumulação primitiva”14. Resgataremos 14 As aspas indicam ironia da parte de Marx ao comentar sobre o que os economistas clássicos, como Adam Smith, por exemplo, entendiam como acumulação primitiva de capital: um momento anterior ao início das relações capitalistas caracterizada pelo simples acúmulo de riqueza. Segundo Marx (2017): 18 rapidamente as colocações principais desse autor acerca desse fenômeno no subcapítulo Marx e a assim chamada acumulação primitiva de capital. Nesse sentido, para entender como se dá o processo de acumulação do capital, o presente trabalho tem como principal orientação o pensamento de Rosa Luxemburgo (2021), grande referência marxista, que apresenta a problemática da acumulação do capital de forma mais histórica15, demonstrando assim como o processo se desencadeou para além da Europa, como por exemplo as então colônias europeias. Segundo essa autora, para garantir sua contínua expansão, o capitalismo, que tem tendência totalizante, busca constantemente a ampliação geográfica do mercado, na medida em que se expande pelo globo incorporando novos territórios à lógica capitalista, bem como socialmente, na medida em que ao se expandir pelo globo, as relações capitalistas, interagem com outros modos de viver e obrigam as populações inseridas em relações não-capitalistas a essa nova lógica de vida e forma de produção. Dessa forma, para que a assim chamada “acumulação primitiva” possa se realizar de forma permanente (e não, como o nome poderia sugerir, apenas nos momentos iniciais do capitalismo) e garantir a sua contínua expansão, é necessário, segundo a autora, a constante destruição das economias naturais e das outras formas de viver. Discutiremos mais adiante acerca das limitações e condições para a acumulação do capital. “Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzido mais-valor e do mais- valor se obtém mais capital. Porém, a acumulação do capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida. Essa acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é explicada com uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. São trivialidades como essas que, por exemplo, o sr. Thiers, com a solenidade de um estadista, continua a ruminar aos franceses, outrora tão sagazes, como apologia da proprieté (SIC). Mas tão logo entra em jogo a questão da propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto de vista da cartilha infantil como o único válido para todas as faixas etárias e graus de desenvolvimento. Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos. (Marx, 2017, p. 785-786, grifos nossos) 15 Luxemburgo utiliza a primeira seção de seu livro A acumulação do capital (2021) para demonstrar, através inclusive de fórmulas matemáticas, de que forma esse processo de reprodução ocorre. Nos interessa mais profundamente, no entanto, a abordagem histórico-materialista que a autora realiza na terceira seção do livro, intitulada “As condições históricas da acumulação”. 19 Portanto, a partir dessa breve contextualização da realidade da luta indígena pela garantia de seus direitos, podemos perceber que segundo organizações (tanto indígenas quanto não-indígenas) a aprovação do marco temporal significaria insegurança jurídica das terras indígenas ainda não demarcadas ou em processo de demarcação. Podemos perceber que esses posicionamentos apontam, ainda, a inconstitucionalidade da tese em questão, o que nos parece uma ameaça à garantia dos direitos dos povos originários, e à sua existência. Assim, diante da breve exposição de nossas referências teóricas nos parece que está em curso um genocídio contra indígenas movido pela necessidade constante de acumulação do capital. Também percebemos indícios de que a insegurança jurídica que o marco temporal representa nos parece ser uma manifestação concreta na realidade de como a acumulação do capital funciona. Isto posto, no presente estudo, primeiro discorreremos sobre o conceito de acumulação do capital e, portanto, o que foi apresentado sumariamente acima será discutido em detalhes neste momento. Abordaremos brevemente as principais características da tese do marco temporal, pontuando ainda sobre as ameaças aos direitos indígenas, dentre elas a mercantilização da natureza e genocídio de populações indígenas, bem como sobre o histórico de resistência indígena no Brasil e da posse de terras indígenas para que possamos assim contextualizar o recorte da pesquisa. Por fim, tentaremos identificar indícios de uma possível relação entre a intensificação de ameaças aos direitos indígenas no Brasil e a acumulação do capital. A estrutura da presente dissertação está dividida da seguinte maneira: o primeiro capítulo será dividido em três partes, com os aportes de Marx, Rosa Luxemburgo e outras interpretações acerca da acumulação do capital para que possamos compreender de que forma ele se manifesta concretamente e, ainda, perceber quais as tendências desse fenômeno. Nesse primeiro capítulo é feita uma análise teórica a respeito da acumulação do capital, suas consequências, condições e manifestações na realidade. O segundo capítulo é composto por um apanhado histórico sobre a conquista e posse de terras indígenas no Brasil. O terceiro e último capítulo, por sua vez, é dedicado à análise dos argumentos pró e contra ao marco temporal, bem como a evolução dele na câmara e senado. Na conclusão será apresentado um resumo dos capítulos anteriores, bem como uma agenda de pesquisa, apontando o que não foi tratado, mas que pode ser aprofundado em estudo posterior. 1 A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL 20 Como vimos na introdução, nossa hipótese é de que o marco temporal representa uma manifestação da acumulação de capital. No presente capítulo, dividido em três partes, Marx, Rosa Luxemburgo e outras interpretações acerca da acumulação do capital, analisamos a interpretação desses autores sobre a acumulação de capital, bem como suas aproximações e distanciamentos na interpretação do fenômeno, para que possamos compreender de que forma ele se manifesta concretamente e, ainda, perceber quais as tendências desse fenômeno. No “subcapítulo Marx” será feita uma breve exposição da teoria do valor, para que a análise de outros conceitos que surjam adiante não sejam prejudicados, visto que a obra principal a ser analisada neste subcapítulo, O capital (2017) serve de base teórica para os outros autores – Rosa Luxemburgo, David Harvey e Virgínia Fontes. Também há no “subcapítulo Marx” uma análise sobre as possíveis interpretações que podem ser feitas sobre a obra marxiana acerca da acumulação primitiva de capital e em que momento ela se realiza. Já o “subcapítulo Luxemburgo” apresenta a interpretação luxemburguista acerca do fenômeno da acumulação de capital, buscando principalmente identificar na história, como ela se manifestou e tende a se manifestar. O terceiro subcapítulo, por sua vez, apresenta interpretações mais contemporâneas sobre o fenômeno de acumulação do capital, com o objetivo de demonstrar de que forma o impulso de expansão do capital sobre todos os aspectos da vida se manifesta na nossa realidade. 1.1 Marx Em O Capital (2017), Marx analisa a estrutura da sociedade capitalista e nos apresenta sua teoria do valor, partindo de sua forma mais elementar, a mercadoria, indo até os princípios do funcionamento da lei geral da acumulação capitalista, através do materialismo histórico dialético, partindo, portanto, de determinações concretas da realidade, por meio de uma abstração teórica conceitual, fundamental para que seja apreendido no plano teórico conceitual. Esse estudo realizado por Marx é a base para a discussão sobre o capital, e é portanto, essencial para localizarmos o presente estudo na agenda de pesquisa da teoria marxista, partindo da base, do pensamento original de Marx, para então prosseguirmos com a análise sob o ponto de vista de Rosa Luxemburgo, e ainda, eventualmente, abordar análises mais recentes para a acumulação do capital. Nas seções seguintes, portanto, serão analisadas as características fundamentais da sociedade capitalista, dentre elas mercadoria, dinheiro, valor, produção, reprodução e acumulação do capital. 21 1.1.1 Da mercadoria à transformação do dinheiro em capital Para Marx, a mercadoria é a forma elementar do modo de produção capitalista. A mercadoria16 satisfaz as necessidades humanas17, sejam elas quais forem, como alimentação e vestimenta, por exemplo, de forma que podemos entender que no modo de produção capitalista, a reprodução da vida se dá através da mercantilização. A mercadoria, segundo Marx: deve ser considerada sob um duplo ponto de vista: qualidade (valor de uso) e quantidade (valor de troca)18. Como abordamos anteriormente, a única coisa comum que todas as mercadorias têm entre si é o trabalho humano contido nelas enquanto dispêndio de energia humana. Para medir o valor, é necessária a existência de uma mercadoria capaz de atuar como equivalente geral a todas as mercadorias. Segundo Marx, “Uma mercadoria só ganha expressão universal de valor porque, ao mesmo tempo, todas as outras expressam seu valor no mesmo equivalente, e cada novo tipo de mercadoria que surge, tem de fazer o mesmo” (Ibid, p. 142). Essa forma de valor equivalente deve, portanto, ser universal e ser capaz de se expressar socialmente o valor de troca de todas as outras. Dessa forma, por ser equivalente universal, essa mercadoria especial pode se expressar em qualquer mercadoria, e deve ser socialmente aceita como tal19. Dito isso, a mercadoria, por ser a forma elementar do modo de produção capitalista não é, de forma alguma, facilmente entendida em uma análise superficial. Ela esconde as relações sociais por trás de uma análise superficial do objeto. A existência desse caráter místico da 16 Aquilo que é produzido apenas exclusivamente para consumo não é considerado mercadoria. A mercantilização não existiu desde sempre, ela é um ato histórico. 17 “Descobrir esses diversos aspectos e, portanto, as múltiplas formas de uso das coisas é um ato histórico.” (Marx, 2017, p.113) 18 Valor de uso diz respeito à utilidade de uma coisa, e se realiza apenas no uso ou no consumo da mercadoria. O valor de troca, por outro lado, se refere à relação proporcional na qual valores de uso são trocados. Como, então, podemos medir a grandeza desse valor? Segundo Marx, essa mensuração é determinada por meio da chamada “substância formadora de valor”, ou seja, da quantidade de força de trabalho nela contida. Essa força de trabalho a qual Marx se refere contém as forças de trabalho individuais, e portanto, representa a força de trabalho conjunta da sociedade. Nesse sentido, o tempo socialmente necessário para produção de uma mercadoria determina a grandeza do valor da mesma e seguindo esse raciocínio é possível perceber que única coisa comum que todas as mercadorias têm entre si é o trabalho humano contido nelas enquanto dispêndio de energia humana. O trabalho, por sua vez, apresenta um duplo caráter: i) dispêndio de força de trabalho humano em sentido fisiológico e ii) dispêndio de força humana de trabalho numa forma específica, determinada à realização de um fim. Esse duplo caráter implica também na dupla forma das mercadorias: i) forma natural, visto que a matéria prima foi transformada através de dispêndio de trabalho humano, e ii) forma de valor, visto que o trabalho realizado para transformar a matéria prima em uma mercadoria foi realizado pois havia um fim pré-determinado. Por exemplo, uma garrafa d’água é, ao mesmo tempo, um produto, pois foi transformada enquanto matéria pelo trabalho humano, e é também uma mercadoria, visto que essa matéria foi transformada pois havia um fim determinado pela classe capitalista: a criação de mais-valor. Voltaremos nesse ponto mais adiante. Para um maior aprofundamento na teoria do valor de Marx, consultar Marx (2017). 19 Segundo Marx, historicamente quem cumpre esse papel é o ouro, lastro da “mercadoria-dinheiro”. 22 mercadoria é, para Marx, um ponto fundamental para entendermos o funcionamento da mesma. A esse caráter místico, Marx dá o nome de fetichismo. O fetichismo20 é, para Marx, inseparável da produção de mercadorias. Segundo esse autor, O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores (Ibid, p. 147). Ou seja, a forma-mercadoria reflete o aspecto social da produção capitalista, que em uma análise superficial – como a realizada por exemplo pela economia política a qual Marx crítica – pode apresentar apenas uma relação de troca, mas ao ser analisada materialmente, apresenta as dinâmicas de divisão social do trabalho e exploração. Isto posto, para Marx, o capitalismo é um modo de (re)produção da vida por meio da mercantilização. A mercadoria satisfaz as necessidades humanas, e a grandeza de seu valor é determinado por meio do trabalho social total, ou seja, uma média do tempo de trabalho, período de dispêndio de energia do trabalhador para produzir uma mercadoria. A força de trabalho, por si só, também é uma mercadoria, cujo proprietário inicial, o trabalhador livre, vende ao capitalista durante um período determinado, em troca de uma outra mercadoria, o dinheiro, ou salário. Para Marx, ao contrário do que os economistas burgueses argumentam, a criação de capital não se dá no movimento da circulação, de comprar para vender mais caro, mas sim na esfera da produção, onde o excedente da realização de trabalho não pago transforma-se em mais-valor. Segundo Marx: Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, estando livre e solto e carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho (Ibid, p. 244). Para Marx, portanto, a transformação de dinheiro em capital ocorre na esfera da produção, e não da circulação. Na produção, o trabalhador gera mais-valia, que deve se realizar na circulação. Na esfera da circulação, o trabalhador vende sua força de trabalho para o capitalista em troca de dinheiro para garantir a sua reprodução, portanto consumindo as 20 Nesse ponto, Marx busca no mundo religioso uma analogia para explicar seu ponto. Esse conceito utilizado por Marx tem origem em Feuerbach. Segundo Grespan (2021), a alienação para Feuerbach é o homem esquecer que Deus é uma projeção coletiva, resultado de sua imaginação; já para Marx, a alienação é o trabalhador esquecer que ele é quem produz a mercadoria e, alienado, vende sua força de trabalho para ter dinheiro e poder comprar a mercadoria que ele mesmo produziu. 23 mercadorias revestidas de valor e mais-valia. O trabalho é o próprio consumo, utilização dessa força previamente vendida. Para vender sua força de trabalho, o trabalhador deve estar livre e solto, disposto a vender sua força de trabalho para o capitalista em troca de um salário, visto que por não possuir meios de produção, tem apenas a sua força de trabalho para vender a fim de reproduzir a sua vida. Essa dupla condição que Marx aponta, é fundamental para entendermos por que a mercantilização de todos os aspectos da vida é fundamental para o capitalismo. A transformação de dinheiro em capital necessita que a vida desses trabalhadores seja mercantilizada. E que todas as relações orgânicas entre humanidade e terra sejam dissolvidas, para a subsistência depender exclusivamente das relações mercantis. Isto posto, comentaremos brevemente sobre a reprodução ampliada do capital e a extração de mais-valor. Para Marx, durante o processo de produção as mercadorias iniciais (matéria prima e força de trabalho) são consumidas e, em um processo de duplo caráter, transfere-se valor (através do trabalho morto contido no maquinário e em matérias prima) e cria-se valor (através do trabalho realizado pelo dispêndio de energia do trabalhador) para a nova mercadoria, a mercadoria final M. Essa mercadoria, por sua vez, por ser formada por trabalho excedente, é composta pelo mais-valor, e isso implica que quando ocorrer a venda da mercadoria, haverá a realização da mercadoria e o retorno para o capitalista como D’, ou seja, o valor que ele inicialmente introduziu na produção, acrescido do trabalho excedente não pago realizado pelo trabalhador. Esse valor excedente, por sua vez, pode ser utilizado para consumo próprio do capitalista, ou pode ser introduzido novamente na produção, aumentando, portanto, sua escala. A esse processo, Marx dá o nome de reprodução ampliada do capital, ou seja, a acumulação. Dessa forma, é fundamental destacar nesse ponto o papel do trabalho excedente não pago realizado pelo trabalhador: a taxa de mais-valor, ou mais valia. Marx afirma que “A taxa de mais-valor é, assim, a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista” (Ibid, p. 294). Sobre a relação do mais valor e do trabalho, o autor acrescenta ainda que: Como a produção de mais-valor é o objetivo determinante da produção capitalista, o que mede o grau de riqueza não é a grandeza absoluta do produto, mas a grandeza relativa do mais-produto. A soma do trabalho necessário e do mais-trabalho, isto é, dos períodos em que o trabalhador produz o valor de reposição de sua força de trabalho e o mais-valor, constitui a grandeza absoluta de seu tempo de trabalho - a jornada de trabalho (Ibid, p. 304). 24 Assim, a jornada de trabalho21 é composta pela soma do período necessário para o trabalho, e do período em que é realizado o mais-trabalho. Portanto, o trabalhador vende sua força de trabalho para o capitalista, que no período da jornada de trabalho será consumida na produção. No entanto, como apontamos anteriormente, a jornada de trabalho é composta não apenas pelo tempo necessário ao trabalho para garantir a reprodução da vida do trabalhador, mas também por um período a mais, onde um valor excedente é realizado pois a produção continua, mas o trabalho não é pago ao trabalhador. Assim sendo, segundo a teoria do valor de Marx podemos destacar que: i) a mercadoria é um produto do trabalho humano que é feito para a venda e, reiteramos, essencial para a reprodução da vida na sociedade capitalista; ii) o valor da mercadoria vem do trabalho nela contido, e não da utilidade, como defende a teoria econômica burguesa; iii) o impulso vital do capitalismo é se autovalorizar. De um lado, o capitalista como comprador da mercadoria força de trabalho, deseja se apropriar da maior quantidade possível de mais-valor, por outro lado, o trabalhador luta para não ser obrigado a trabalhar para além do que necessitaria para satisfazer suas necessidades; iv) o valor de uso da força de trabalho pertence ao capitalista durante a jornada de trabalho, momento no qual ela será consumida; v) o trabalhador necessita de um período do dia para repor essa força de trabalho, satisfazer suas necessidades, sejam físicas ou sociais. Isto posto, após analisarmos a teoria do valor e os conceitos que julgamos fundamentais para entendermos a acumulação de capital e, consequentemente nosso objeto de estudo, é necessário agora verificarmos de que forma a obra marxiana pode nos ajudar a entender a questão do marco temporal. O fenômeno geral de produção de mais-valia, descrito anteriormente de forma breve, precisa da esfera de circulação para realizar a mais-valia gerada na produção. Portanto, podemos entender que a mercantilização de todas as dimensões da vida é fundamental para garantir o funcionamento dessa dinâmica geral de acumulação, visto que é na esfera da circulação que a mais-valia é realizada e o capital, acumulado. Assim, devemos procurar pistas sobre em que 21 Destacamos nesse ponto a colocação de Marx (2017) que “A burguesia emergente requer e usa a força do Estado para “regular” o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites favoráveis à produção de mais-valor, a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada acumulação primitiva.” (Marx, 2017, p. 809). Nesse ponto, para Marx, é possível perceber que esse processo de regulação vinda por parte do Estado está presente durante a história, não apenas durante a “Gênese” histórica da produção capitalista, como afirmam os economistas burgueses clássicos, mas perduraram durante os séculos. Assim como Rosa Luxemburgo (2015) entende o Estado como Estado capitalista, Marx também aponta o papel regulador contínuo do Estado no capitalismo. 25 (ou quais) momento(s) a dinâmica de acumulação primitiva pode ser verificada na dinâmica geral da acumulação. Dentre as perguntas a serem feitas sobre tal dinâmica de acumulação, reconhecemos como principais, no momento, as seguintes: i) como se originam os capitalistas? e, ii) a assim chamada acumulação primitiva a qual Marx se refere é, então, um momento específico na dinâmica geral da acumulação, ou algo contínuo? Se for algo específico que ocorreu antes da acumulação de capital como os economistas políticos burgueses22 defendem, então, nossa hipótese de que a acumulação primitiva de capital, enquanto mercantilização de trabalhadores e da natureza, é presente na atualidade e se manifesta, por exemplo, em arranjos como o marco temporal, não se sustenta. No entanto, se a acumulação primitiva for contínua e, considerando o passar dos anos e as diversas novas formas de mercantilizar todas as dimensões da vida, está sempre presente na dinâmica geral da acumulação capitalista não como momento, mas como condição que permite o funcionamento da dinâmica, então nossa hipótese parece estar no caminho certo. 1.1.2 “A assim chamada acumulação primitiva do capital” para Marx Para Marx, Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas essa transformação só pode operar-se em determinadas circunstâncias, que contribuem para a mesma finalidade: é preciso que duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias se defrontem e estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de trabalho (Marx, 2017, p. 786). Dessa forma, podemos perceber que de acordo com Marx (2017), dinheiro e mercadoria não são capital. Eles precisam ser transformados em capital. Porém, essa transformação, como afirma o autor, precisa de condições específicas: possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, e trabalhadores livres. Assim, segundo Marx, a transformação de dinheiro e mercadoria em capital se realiza diante do contato entre capitalistas e trabalhadores “livres”. Nesse sentido, é importante entendermos ainda quais as condições para que a acumulação do capital se realize e, principalmente de onde vem, e/ou como esses trabalhadores se tornam “livres”. Marx argumenta que: 22 Adam Smith, por exemplo, que, como comentamos anteriormente, argumentava que a acumulação primitiva se dava através do acúmulo de riqueza prévia ao modo de produção capitalista. 26 A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré- história do capital e do modo de produção que lhe corresponde (Marx, 2017, p. 786, grifos nossos). O processo descrito acima é, para Marx, o princípio geral da acumulação. Se a relação capitalista pressupõe a separação entre trabalhador e propriedade, o processo que cria esse fenômeno deve ser justamente este de separação entre trabalhador e propriedade. A separação entre o trabalhador e a propriedade, entre produtor e modo de produção é, portanto, parte fundamental desse processo histórico. Assim, podemos entender a partir de Marx que o fenômeno da acumulação, que ocorre no processo de produção, tem como pressuposto a transformação dos trabalhadores em agentes “livres” cuja força de trabalho é uma mercadoria, uma propriedade privada. A partir disso, nos parece fundamentada a ideia de que a realização da acumulação do capital em escala cada vez maior, bem como a transformação de trabalhadores ligados à terra em trabalhadores “livres” assalariados, enquanto também mercantilização de todos os aspectos da vida23, é parte fundamental para entendermos o fenômeno das ameaças aos povos originários e, mais especificamente como propomos nesse estudo, as motivações que levaram a elaboração do marco temporal e os argumentos a sua defesa. Isto posto, convém destacar argumento de Marx (2017) que ao comentar sobre a gênese dos arrendatários capitalistas, aponta que: Depois de termos analisado a violenta criação do proletariado inteiramente livre, a disciplina sanguinária que os transforma em assalariados, a sórdida ação do Estado, que, por meios policiais, eleva o grau de exploração do trabalho e, com ele, a acumulação do capital, perguntamo-nos: de onde se originam os capitalistas? Pois a expropriação da população rural, diretamente, cria apenas grandes proprietários fundiários. No que diz respeito à gênese do arrendatário, poderíamos, por assim dizer, tocá-la com a mão, pois se trata de um processo lento, que se arrasta por muitos séculos (Marx, 2017, p. 813) Assim, o processo de gênese dos grandes proprietários fundiários é lento, arrastando-se por muitos séculos. Dessa forma, a partir da introdução de como a violenta criação do 23 Voltaremos nesse ponto acerca da acumulação de capital enquanto mercantilização de todos os aspectos da vida mais adiante, ainda no capítulo 1, discutindo a questão sobretudo a partir do aporte teórico de Rosa Luxemburgo. 27 proletariado ocorre, Marx questiona: “de onde se originam os capitalistas?”. Desenvolvendo essa questão, sobre a criação do mercado interno para o capital industrial, Marx aponta que: A intermitente e sempre renovada expropriação e expulsão da população rural forneceu à indústria urbana, como vimos, massas cada vez maiores de proletários, totalmente estranhos às relações corporativas. [...] Temos de nos deter, ainda por um momento, no exame desse elemento da acumulação primitiva (Marx, 2017, p. 816) Portanto, é importante destacar que, como aponta Marx, esse movimento violento de expulsão da população rural foi fundamental para fornecer à indústria urbana trabalhadores. Trabalhadores esses que até então eram totalmente estranhos às relações corporativistas. Marx acrescenta ainda que: A expropriação e expulsão de uma parte da população rural não só libera trabalhadores para o capital industrial, e com eles seus meios de subsistência e seu material de trabalho, mas cria também o mercado interno. De fato, os acontecimentos que transformam os pequenos camponeses em assalariados, e seus meios de subsistência e de trabalho em elementos materiais do capital, criam para este último, ao mesmo tempo, seu mercado interno. Anteriormente, a família camponesa produzia e processava os meios de subsistência e matérias-primas que ela mesma, em sua maior parte, consumia. Essas matérias primas e meios de subsistência converteram-se agora em mercadorias; o grande arrendatário as vende e encontra seu mercado nas manufaturas. Fios, panos, tecidos grosseiros de lã, coisas cujas matérias-primas se encontravam no âmbito de toda família camponesa e que eram fiadas e tecidas por ela para seu consumo próprio, transformam-se, agora, em artigos de manufatura, cujos mercados são formados precisamente pelos distritos rurais. A numerosa clientela dispersa, até então condicionada por uma grande quantidade de pequenos produtores, trabalhando por conta própria, concentra-se agora num grande mercado, abastecido pelo capital industrial. Desse modo, a expropriação dos camponeses que antes cultivavam suas próprias terras e agora são apartados de seus meios de produção acompanha a destruição da indústria rural subsidiária, o processo de cisão entre manufatura e agricultura. E apenas a destruição da indústria doméstica rural pode dar ao mercado interno de um país a amplitude e a sólida consistência de que o modo de produção capitalista necessita (Marx, 2017, p. 818-819) Esse movimento de expropriação e expulsão, portanto, cria ao mesmo tempo trabalhadores assalariados e um mercado interno. Como Marx descreve, a produção e processamento de meios de subsistência e matéria prima, que em grande parte era consumida, convertem-se agora em mercadorias. O processo de cisão entre manufatura e agricultura que Marx descreve, portanto, proporciona as condições necessárias para consolidar o modo de produção capitalista. Assim, agora que temos um panorama geral de como são criados os mercados, é fundamental percebermos outro movimento que ocorre de forma simultânea: a utilização da violência como viabilizador da acumulação primitiva de capital não apenas na expropriação e expulsão na Inglaterra, mas também pelo mundo: A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. 28 A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc. Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se, agora, numa sequência mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe (sic) de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica (Marx, 2017, p. 821, grifos nossos) O sistema colonial24, portanto, é uma peça fundamental nessa dinâmica. Não apenas a “descoberta” de terras com potencial de fornecer matéria prima, mas também a “descoberta” da existência de populações nativas que se transformam em potenciais populações a serem escravizadas, soterradas em minas, contrabandeadas para todos os cantos do globo é um ponto essencial, o princípio dessa dinâmica, eles são aurora da era da produção capitalista. Dessa forma, para Marx, o globo terrestre é o palco de tal expansão capitalista e, para torná-la possível, o sistema colonial, o sistema da dívida pública, o moderno sistema tributário e o sistema protecionista são, portanto, métodos utilizados outrora pela Inglaterra, e sequencialmente por outros países para impulsionar artificialmente a transição de modos de produção. Nesse processo, é fundamental perceber o papel de destaque do Estado-nação moderno em viabilizar a prática de todos esses métodos descritos, todos esses métodos necessitam da violência concentrada e organizada da sociedade. Segundo Marx, portanto, a violência, parteira de toda a velha sociedade que dá luz a uma nova, abrevia a transição que poderia ser lenta, mas que o capitalismo e sua natureza predatória e expansiva necessita que seja rápido, violento. De novo, reiteramos que esse processo não parece um ponto isolado na história, muito pelo contrário, ele se parece bastante inclusive com o contexto de criação e propostas do marco temporal. Assim, agora que apresentamos o processo de formação de trabalhadores assalariados, mercado interno, capitalistas e, sobretudo, os diferentes momentos em que a acumulação primitiva se expressa, bem como esse processo se estende pelo globo e, portanto, de que forma ocorre a transição de outros modos de viver para o modo de produção capitalista, vamos seguir com a análise acerca da interpretação sobre o momento em que a acumulação primitiva de capital pode ser reconhecida. 24 E o Imperialismo como sua face moderna, como Luxemburgo (2021) argumenta. 29 Em estudo da obra marxiana, Franco em Comentários sobre o problema da assim chamada acumulação primitiva a partir de Marx25 (2024) argumenta que “[…] encontraremos na obra marxiana tanto passagens que justificam a afirmação de que a acumulação primitiva constitui o funcionamento ‘normal’ do capitalismo quanto passagens que justificam a afirmação oposta.” (Franco, 2024, p. 156). Segundo esse autor: De partida, cumpre anotar que na leitura de O capital, podemos localizar diversas passagens em que Marx dá a entender que a assim chamada acumulação primitiva consiste em um período pré-histórico do modo de produção capitalista. Essa visão — digamos — mais cronológica e relativamente etapista — no sentido de que uma etapa sucede a outra — pode ser evidenciada por um conjunto de expressões e imagens utilizadas pelo autor. De acordo com essa visão, seria como se o capitalismo tivesse sua origem em determinados lugares delimitados e depois tivesse se espalhado ao longo do planeta. […] nesta perspectiva, esse surgimento teria sido possível graças a mecanismos de acumulação pré-capitalistas que, nas etapas posteriores, teriam destruído ‘mundos’ e ‘modos de produção pré-capitalistas’ (Franco, 2024, p. 179, grifo nosso) Como havíamos comentado brevemente, a “assim chamada acumulação primitiva”, momento em que ocorre o cercamento do campo e a separação entre o trabalhador e a propriedade, forçando o trabalhador, portanto, a vender sua força de trabalho, ou seja, momento em que a mercantilização da vida ocorre, pode ser entendido, a depender da leitura realizada de O capital, como um momento pré-histórico do capitalismo que, ao propiciar a origem do capitalismo como modo de produção, posteriormente se espalha pelo planeta destruído ‘mundos’ e ‘modos de produção pré-capitalistas’, como parte de uma escala aparentemente cronológica de tempo, etapista. É claro que, devido ao seu caráter histórico, o capitalismo teve uma origem, esse processo certamente faz parte da origem do capitalismo. Porém, Franco (2024) argumenta que também há a possibilidade de uma outra interpretação, interpretação de que esse momento de acumulação primitiva de capital, da mercantilização de todos os aspectos da vida, momento que a todo momento enfatizamos ter relação com nosso objeto de pesquisa, não seja apenas pré- histórico ao capital, mas sim contínuo, reverberando cronologicamente ao longo da história. Vamos verificar mais detalhadamente sobre essas diferentes possibilidades de interpretação. Ainda segundo o autor: […] Para Marx, o que ocorre é uma contradição entre modos de produção, mesmo quando o ‘processo de acumulação primitiva já está consumado em maior ou menor medida’ [Marx, 2013, p. 835] no núcleo do sistema — a Europa ocidental. A existência de uma contradição não implica que a coisa não exista — mesmo porque, a contradição não é apenas um discurso — mas, pelo contrário, a contradição, de um ponto de vista marxista, é uma condição das coisas. Deste modo, no ‘mundo já pronto do capital’[Ibid], ‘continuam a existir ao seu lado’ os métodos violentos — aqueles, associados à acumulação primitiva — e as ‘camadas sociais [decadentes] (sic) 25 In: BUGIATO, Caio (org.). Marx & Engels: Analistas das Relações Internacionais. 30 pertencentes ao modo de produção antiquado’. Podemos inferir também que, deste modo, é plausível argumentar — mesmo em Marx, e certamente na história — que as formas de organização da vida que ainda não foram completamente tomadas pelo capital tensionam contraditoriamente as leis gerais de funcionamento desse modo de produção. Além disso, como já indicamos, na história das classes trabalhadoras podemos encontrar infindáveis tentativas de organização da vida pautadas em princípios opostos aos do capitalismo, tanto como resistência a ele quanto pelo fato de que já eram assim muito antes de o capitalismo ‘aparecer’ na face da Terra e evoluir com seus processos de metástase. (Franco, 2024, p. 184-5, grifo nosso) Portanto, a partir disso, é possível perceber que não apenas existam formas de organização de vida que ainda não foram completamente tomadas pelo capital, mas também que, como argumenta Franco (2024), a própria classe trabalhadora ainda resiste, da forma que consegue, à mercantilização completa da vida, resistindo, assim, aos processos de metástase do capitalismo na Terra. Como argumenta Franco, portanto, a contradição é uma condição nesse processo e, dessa forma, a contradição entre os modos de produção, ou sejam a existência de outros modos de produção além do capitalista concomitantemente ao momento em que o capital já se espalhou pelo globo e se comporta como modo de produção dominante é uma condição da existência do mesmo, na medida em que tensionam contraditoriamente as leis gerais de funcionamento desse modo de produção. Nesse sentido, o que estamos argumentando é que o capital precisa incorporar esses outros modos de produção, outros modos de viver, da mesma forma que precisa que eles existam, para que ele mesmo possa sobreviver. Tal processo é contraditório, tal como a natureza do capitalismo. Assim, dando continuidade à análise sobre de que forma a acumulação primitiva se manifesta historicamente, destacamos que, de acordo com Marx (2017), […] a transformação dos meios de produção individuais e dispersos em meios de produção socialmente concentrados e, por conseguinte, a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos, portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. Esta compreende uma série de métodos violentos, dos quais passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis. A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre (Marx, 2017, p. 831) A partir dessa citação, podemos interpretar que, para Marx, tudo isso, a transformação de meios de produção, a concentração de propriedades na mão de poucos, e a expropriação de grandes massas da população de suas terras, constitui apenas a pré-história do capital, viabilizada através de uma série de métodos violentos. No entanto, ressaltamos novamente que 31 nos parece que essa série de métodos violentos não se localizam temporalmente apenas na pré- história da capital. Ainda segundo Franco (2024): […] nos chama atenção que, independente da interpretação sobre o texto marxiano, autoras e autores que se debruçam sobre o problema identificam, durante toda a história do modo de produção capitalista, inclusive em nossos dias, um conjunto de procedimentos que podem ser identificados com aqueles outrora denominados ‘primitivos’. A análise histórica parece autorizar que concluamos que não existiu e nem existirá modo de produção capitalista que possa abrir mão dos métodos ‘primitivos’26 e das armas do ‘velho arsenal’, de modo que a violência ‘econômica’27 nunca foi, não é nem será a única forma de sustentar o modo de produção capitalista, sendo ela ‘especificamente capitalista’ ou não. Mas é importante que deixemos registrado que essa hipótese teórica merece mais investigações, que escapam do texto marxiano. Nessa pesquisa, também pudemos concluir que a acumulação de capital não se refere apenas a uma relação de acúmulo de dinheiro ou riquezas, mas a produção de uma relação social que depende da constante mercantilização das coisas, inclusive da força de trabalho e da natureza, para ficarmos nos exemplos mais significativos. E como essas pessoas das classes trabalhadoras não são meramente passivas nesse processo, temos que elas procuram, ao longo da história, construir relações que melhorem suas condições de vida. Isso, somado ao fato de que ainda existem diversas formas de organização de sociedade que não foram ainda completamente transformadas em mercadoria — algumas sociedades indígenas e quilombolas, por exemplo — fazem com que o recurso aos métodos da violência ‘extraeconômica’ permaneçam como uma necessidade a serviço do capital. São formas coletivas de sociabilidade — como aldeias e quilombos, por exemplo — suas formas de produzir comida, suas visões de mundo e sua recusa em transformar a força de trabalho e a natureza em mercadorias que constituem uma resistência que o capital procura destruir. Isso era, evidentemente, percebido pelas classes dirigentes, desde o princípio, e continua sendo. Em nosso juízo, essas conclusões corroboram a interpretação de Rosa Luxemburgo sobre a acumulação de capital. (Franco, 2024, p. 191, grifos nossos) Assim, após a análise de tais argumentos, podemos perceber que a análise histórica do fenômeno da acumulação de capital, e mais especificamente da acumulação primitiva de capital, nos possibilita realizar a leitura e interpretação da obra marxiana de que esse processo não é apenas acumulação de dinheiro ou riquezas, mas a produção de uma relação social baseada na constante mercantilização das coisas. Além disso, também é possível perceber que diversas formas de sociabilidade, como aldeias e quilombos representam formas de resistência à tal impulso de mercantilizar tudo e todos que o modo de produção capitalista impõe no mundo. Tal recusa, resistência, em transformar a força de trabalho e a natureza em mercadorias, portanto, representam, em nossa leitura, um argumento de que, apesar de o modo de produção capitalista ser dominante, e essas sociedades estarem inseridas nele, nem todas as relações sociais desses grupos, ou de outros, 26 “Primitivos” na medida em que supostamente constituem apenas a pré-história do capital. 27 “Econômica” pois nesse ponto Franco se refere à seguinte colocação de Marx: “a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado.” (Marx, 2017, p. 808). Segundo Franco (2024, p. 183), “‘as leis grotescas terroristas’, a ‘força de açoites, ferros em brasa e torturas’ – que não são propriamente econômicas – nunca foram deixadas de lado.” 32 como a classe trabalhadora geralmente falando, foram completamente tomadas pelas relações mercantilizadas do capital. Por ainda não terem sido completamente tomadas pelo capital, isso implica na necessidade de que o capital se imponha sobre elas, tente acumular sobre essas relações, como vem fazendo desde o cercamento dos campos na Inglaterra do século XVIII. A acumulação é, e deve ser para o funcionamento e sobrevivência do capitalismo, constante. Isto posto, é fundamental destacar que a partir de uma leitura válida de O Capital e interpretação do argumento marxiano sobre a acumulação primitiva de capital é possível a entendermos como constante – ao contrário do que o nome poderia indicar, ou seja, como sendo um processo exclusivamente pré-histórico ao capital–, e que seus processos de mercantilização da vida, bem como, transformação de tudo e todos em mercadoria refletem ainda hoje na sociedade, de forma violenta ou não. Assim, para um aprofundamento na análise sobre a acumulação primitiva do capital, analisaremos mais cuidadosamente na próxima seção o argumento de Rosa Luxemburgo acerca do tema. 1.2 Rosa luxemburgo Rosa Luxemburgo28 publicou A Acumulação do Capital em 1913, estudo que surgiu a partir de reflexões acerca da acumulação de capital de Marx29. Segundo Peter Hudis e Kevin B. Anderson na introdução de The Rosa Luxemburgo Reader (2004), [...] o legado de Rosa Luxemburgo (1871-1919) vai muito além de sua contribuição como antimilitarista. Sua vida e obra também falam da busca por uma alternativa libertadora à globalização do capital. Mais do que qualquer outro marxista de sua geração, Luxemburgo teorizou o impulso incessante do capitalismo para a autoexpansão, concentrando-se especialmente em seu impacto destrutivo sobre o mundo tecnologicamente subdesenvolvido. Sua crítica ao impulso do capital para destruir ambientes não capitalistas e sua fervorosa oposição à expansão imperialista ganharam nova importância à luz do surgimento de uma nova 28 Rosa Luxemburgo (1871-1919) foi uma revolucionária polonesa cuja trajetória intelectual se localiza entre 1891 e 1919 (Loureiro, 2018). Essa autora defende sobretudo a necessidade do esclarecimento político do proletariado, de sua consciência de classe e a autonomia na luta em direção à revolução socialista. Luxemburgo prezava pela análise crítica, inclusive da obra marxiana. Considerações sobre a importância da obra luxemburguista para o feminismo e para autoras dessa época em um meio consideravelmente ocupado por homens a parte, Luxemburgo escreve em uma época em que o mundo está cada vez acirrada a corrida imperialista, com tensões acerca da expansão (do capital) para outras partes do mundo, e consequentemente para regiões e sociedades não capitalistas se acirrando. Ao fazer a análise da obra marxiana, Rosa complementa a teoria do capital com reflexões fundamentais para que seja possível a análise e apreensão da realidade perante a expansão capitalista para os demais países. É fundamental para a compreensão da história da acumulação do capital para além da forma clássica Inglesa a qual Marx se dedica a estudar. 29 Apesar das críticas, sobretudo aos esquemas matemáticos, críticas essas que Luxemburgo possuía conhecimento sobre e que, inclusive, dedicou uma seção em seu livro para rebater essas críticas, o apêndice Crítica dos críticos ou o que os epígonos fizeram da teoria marxista, Luxemburgo argumenta que para entendermos o problema da acumulação de capital as fórmulas matemáticas, não são, de fato essenciais, visto que o problema da acumulação é, em suas palavras, puramente econômico-social (Luxemburgo, 2021, p. 474). Não entraremos na discussão de Luxemburgo sobre os esquemas, e consequentemente, às críticas à eles, pois escapa do nosso recorte, e, em nosso entendimento, de nada interfere no argumento da autora acerca do problema da acumulação. 33 geração de ativistas e pensadores que se opõem ao capital globalizado. Ao mesmo tempo, sua intensa oposição ao compromisso reformista, às intrigas burocráticas e aos métodos organizacionais elitistas fala da busca por uma alternativa anticapitalista que evite as formações repressivas e hierárquicas que definiram os movimentos radicais e os esforços para criar sociedades socialistas nos últimos cem anos. Sua insistência na necessidade de uma democracia revolucionária após a tomada do poder aborda algumas das principais perguntas sem resposta de nosso tempo, tais como: Existe uma alternativa ao capitalismo? É possível deter o impulso do capital global para a autoexpansão sem reproduzir os horrores da burocracia e do totalitarismo? A humanidade pode ser livre em uma era definida pelo capitalismo globalizado e pelo terrorismo? Por fim, sua posição como líder e teórica mulher em uma sociedade majoritariamente masculina é um ponto importante. (Hudis; B. Anderson, 2004, p. 7, grifos nossos, tradução nossa30) Como podemos perceber a partir das observações de Hudis e B. Anderson, a autora contribui de inúmeras maneiras para o pensamento marxista como crítica ao reformismo, imperialismo, burocracias e alternativas ao capitalismo, que, em conjunto, reverberam ainda na atualidade, ajudando a gerar o debate e ainda a interpretar a realidade da sociedade capitalista moderna. As contribuições da autora sobre todos esses aspectos são inestimáveis, no entanto, por escaparem do nosso recorte, falaremos mais especificamente em sua análise sobre a acumulação primitiva do capital. Ademais, Paul Frölich (2019), ao comentar sobre as críticas à interpretação de Luxemburgo do texto marxiano, argumenta que embora a autora tenha cometido equívocos na análise, Rosa Luxemburgo consegue vincular seu argumento ao problema da acumulação de forma válida. Segundo esse autor: A possibilidade de expansão não é um conceito geográfico: não é a quantidade de milhas quadradas que decide; tampouco se trata de um conceito demográfico: não é a relação numérica entre a população capitalista e não capitalista que indica a madurez do processo. Trata-se de um problema socioeconômico, no qual se deve levar em conta um conjunto de interesses, forças e fenômenos contraditórios: o ímpeto das forças produtivas e a força política das potências capitalistas, atritos entre os diversos modos de produção, instigação e inibição da expansão pela concorrência das potências imperialistas, luta entre a indústria pesada e a indústria têxtil na industrialização das colônias (Índia), preservação do interesse de dominação das metrópoles sobre as colônias, revoluções coloniais, guerras imperialistas e revoluções nos países capitalistas com as consequências e abalos que provocam no mercado de capitais, 30 No original: The legacy of Rosa Luxemburg (1871-1919) extends far beyond her contribution as an antimilitarist, however. Her life and work also speak to the search for a liberating alternative to the globalization of capital. More than any other Marxist of her generation, Luxemburg theorized capitalism's incessant drive for self-expansion, focusing especially on its destructive impact upon the technologically underdeveloped world. Her critique of capital's drive to destroy non-capitalist environments and her fervent opposition to imperialist expansion has taken on new importance in light of the emergence of a new generation of activists and thinkers opposed to globalized capital. At the same time, her intense opposition to reformist compromise, bureaucratic intrigue, and elitist organizational methods speaks to the search for an anticapitalist alternative that avoids the repressive and hierarchical formations that have defined radical movements and efforts to create socialist societies over the past hundred years. Her insistence on the need for revolutionary democracy after the seizure of power addresses some of the major unanswered questions of our time, such as: Is there an alternative to capitalism? Is it possible to stop global capital's drive for self-expansion without reproducing the horrors of bureaucracy and totalitarianism? Can humanity be free in an era defined by globalized capitalism and terrorism? Finally, her position as a woman leader and theoretician in a largely male-dominated socialist movement has prompted some new reflections on gender and revolution. (Hudis; B. Anderson, 2004, p. 7) 34 insegurança política em grandes regiões (China) e muito mais. No presente, diante de forças produtivas colossalmente intensificadas, as inibições à expansão se tornaram tão efetivas que provocaram profundas perturbações econômicas, sociais e políticas e mostram claramente a decadência do capitalismo. Decerto teoricamente se pode conceber uma nova investida capitalista que possa proporcionar espaço às forças produtivas e inaugurar um novo período de crescimento geral. No entanto, é impossível vislumbrar como isso se daria. Rosa não sucumbiu a um fatalismo cego quando revelou as legalidades históricas, [...] (Frölich, 2019. p. 174, grifos nossos). Assim, podemos perceber que a contribuição de Luxemburgo para o marxismo foi e é importantíssima na medida em que a análise que a autora realiza acerca do capitalismo continua atual. Isto posto, retomaremos a partir de agora a interpretação de Rosa Luxemburgo sobre a acumulação do capital, evidenciado ainda porque identificamos o argumento da autora como essencial para entendermos a questão do marco temporal. 1.2.1 Rosa Luxemburgo para além de Marx O contexto histórico em que a autora escreve a acumulação do capital é imediatamente anterior à primeira Guerra Mundial (1914-1918), e marcado sobretudo pela expansão imperialista de países capitalistas para outras partes do mundo. É possível inferir que esse contexto influencia diretamente a percepção da realidade que Luxemburgo tem, e sua interpretação da realidade concreta em relação ao capitalismo. Luxemburgo tenta, através da realidade concreta, e a partir do materialismo histórico, entender como o capital se comporta, quais os limites e contradições do mesmo, e como se realiza a acumulação do capital a partir e, ressaltamos, para além de Marx. Tópicos que não foram desenvolvidos pelo autor seja por questões didáticas, ou temporais, visto que o autor faleceu antes de finalizar sua obra31, Rosa Luxemburgo retoma toda essa discussão e, partindo de exemplos históricos, bem como na efervescência de um evento singular na história moderna, cujas causas/motivações inclusive residem em impulsos capitalistas, nos apresenta sua interpretação sobre o Imperialismo, bem como de qual forma a acumulação de capital se realiza historicamente. Conforme discutimos em trabalho anterior (Jesus, 2023), em sua interpretação sobre a disputa imperialista no Marrocos, Rosa Luxemburgo aponta com antecedência a inevitabilidade da guerra mundial devido ao acirramento entre os países capitalistas sobre outras áreas. Segundo Luxemburgo (2011), numa “tempestade imperialista”, França, Alemanha, Inglaterra 31 “O Livro I – centrado no processo de produção do capital e finalizado em 1866 – foi publicado em Hamburgo em 1867, mas os seguintes não puderam ser concluídos por Marx em vida. Seus estudos para a magistral obra foram editados pelo parceiro e amigo Engels e publicados em 1885 (Livro II) e 1894 (Livro III)” (Nota da edição, por Rubens Enderle. In: Marx, 2017, p.11). 35 e Espanha negociam sobre o destino do Marrocos e sobre o domínio de parte da África. O armamento europeu incessante, bem como o discurso bélico que passou a ganhar força, reflete, para essa autora, a natureza não pacífica da sociedade capitalista. Assim, para Rosa Luxemburgo, o caso marroquino é a expressão da expansão imperialista e, portanto, do capital, e significa não apenas a sequência lógica do desenvolvimento do cenário político, mas mais um ponto de aceleração rumo ao desmoronamento do capitalismo. Dessa forma, especificamente sobre o imperialismo e sua relação com o processo de acumulação de capital, podemos destacar que, segundo essa autora, O imperialismo é a expressão política do processo de acumulação do capital, em sua luta para conquistar as regiões não capitalistas que não se encontram ainda dominadas. Dados o grande desenvolvimento e a concorrência cada vez mais violenta dos países capitalistas para conquistar territórios não capitalistas, o imperialismo aumenta sua agressividade contra o mundo não capitalista, aguçando as contradições entre os países capitalistas em luta. Porém, quanto mais enérgica e violentamente procure o capitalismo a fusão total das civilizações capitalistas, tanto mais rapidamente irá minando o terreno da acumulação do capital (Luxemburgo, 2021, p. 447). Assim, o imperialismo nada mais é que a expressão da necessidade fundamental do capitalismo de se expandir pelo mundo. A luta pela conquista de novas regiões então não- capitalistas implica o acirramento da concorrência e aumenta também as contradições entre os países capitalistas que promovem essa expansão, os países que participam da luta imperialista, ao passo que intensifica a violência e agressividade contra essas regiões não capitalistas do globo. Esse fenômeno pode ser identificado, por exemplo, no caso marroquino que mencionamos anteriormente. Porém, ao mesmo tempo que a conquista de territórios não capitalistas é necessária para a manutenção do capitalismo, leva, para a autora, ao seu inevitável desmoronamento. A contradição entre necessidade infinita de expansão, e impossibilidade da mesma, levam, segundo a autora, aos limites do capitalismo. Ainda segundo essa autora: Por conseguinte, a acumulação capitalista tem, como processo histórico concreto, dois aspectos distintos. De um lado, tem lugar nos lugares de produção da mais- valia – na fábrica, na mina, na propriedade agrícola e na circulação de mercadorias. Considerada assim, a acumulação é um processo puramente econômico, cuja fase mais importante se realiza entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados, mas que em ambas as partes, na fábrica como no mercado, move-se exclusivamente dentro dos limites da troca de mercadorias, do câmbio de equivalências. Paz, propriedade e igualdade reinam aqui como formas, e era mister a dialética afiada de uma análise científica para descobrir como, na acumulação, o direito de propriedade converte-se na apropriação da propriedade alheia, a troca de mercadorias em exploração, a igualdade em dominação de classe (Luxemburgo, 2021, p. 453, grifo nosso). E acrescenta que: O outro aspecto da acumulação do capital realiza-se entre o capital e as formas de produção não capitalistas. Esse processo desenvolve-se no cenário mundial. Aqui, os métodos são a política colonial, o sistema de empréstimos internacionais, a política de interesses privados, a guerra. Aparecem aqui, sem dissimulação, a 36 violência, a trapaça, a opressão, a rapina. Por isso é difícil descobrir as leis severas do processo econômico nessa confusão de atos políticos de violência, nesse confronto de forças (Luxemburgo, 2021, p. 453, grifo nosso). Assim, segundo Luxemburgo, a acumulação capitalista tem historicamente dois aspectos distintos: i) um processo de produção de mais-valia, que ocorre envolvendo fábricas, minas, propriedades agrícolas, circulação de mercadorias, bem como trabalhadores assalariados e capitalistas, e ii) a acumulação do capital que se realiza entre o capital e as formas de produção não capitalistas, as outras formas de viver, cujos métodos destacam-se como política colonial, empréstimos internacionais, guerra, violência. É fundamentalmente esse aspecto, o aspecto da acumulação do capital que se desenvolve no cenário mundial que nos interessa no presente estudo. Analisaremos na próxima subseção como Luxemburgo interpreta Marx e a assim chamada acumulação de capital, e como esse processo se manifesta na realidade. 1.2.2 Limites e condições da acumulação de capital e sua manifestação na realidade na interpretação de Rosa Luxemburgo É importante nesse momento apresentar que Luxemburgo aponta que a solução para a realização da mais-valia para fins de acumulação do capital é: “a realização da mais-valia requer, como primeira condição, um círculo de compradores que estejam fora da sociedade capitalista” (Luxemburgo, 2021, p. 349). Ainda ao comentar sobre a mais-valia, a mesma autora argumenta que, “na verdade, a mais-valia só pode ser realizada por camadas sociais ou sociedades cujo modo de produção é pré-capitalista”32 (Ibid). E completa o raciocínio afirmando que: A produção capitalista fornece meios de produção que excedem as próprias necessidades e encontra compradores nos países não capitalistas. Por exemplo, a indústria inglesa forneceu na primeira metade do século XIX material de construção de estradas de ferro para os países americanos e australianos. A construção de uma estrada de ferro não significa, por si só, o domínio da forma de produção capitalista num país. De fato, mesmo nesses casos, as estradas de ferro foram apenas uma das condições prévias para a implantação do capitalismo. A indústria química alemã, que fornece os meios de produção, como substâncias colorantes, encontra um enorme mercado em países com produção não capitalista da Ásia, África etc. Nesse caso, o setor I33 realiza seus produtos num meio não capitalista. A ampliação progressiva que tem suas raízes no setor I acarreta uma ampliação correspondente do setor II no país de produção capitalista que fornece meios de consumo para o exército crescente dos trabalhadores do primeiro setor (Luxemburgo, 2021, p. 350). 32 É importante destacar que a autora em questão escreve em um período de corrida imperial e colonialista europeia, onde grande parte da população dessas sociedades pré-capitalistas nas colônias ainda não viviam em uma economia capitalista, daí a possibilidade e necessidade de transição. Esse cenário é consideravelmente diferente na atualidade, visto que gradualmente esses países adotaram o modo de produção capitalista. 33 O setor I refere-se à produção dos meios de produção, e o setor II, que será mencionado mais adiante na mesma citação, refere-se à produção de meios de consumo. (Marx, 2014, p. 528-529). 37 Portanto, podemos entender que na realidade histórica, sociedades e relações