UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS CAMPUS DE ARARAQUARA – SP ALESSANDRO YURI ALEGRETTE As metamorfoses da escrita gótica em Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes) ARARAQUARA – S.P. 2016 ALESSANDRO YURI ALEGRETTE As metamorfoses da escrita gótica em Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes) Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Profa. Dra. Karin Volobuef Bolsa: FAPESP (Processo 2012/08393-9) ARARAQUARA – S.P. 2016 ALESSANDRO YURI ALEGRETTE As metamorfoses da escrita gótica em Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes) Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras –UNESP/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Profa. Dra. Karin Volobuef Bolsa: FAPESP (Processo 2012/08393-9) Data da defesa: 26/04/2016 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________________________________ Presidente e orientador: Profa. Dra. Karin Volobuef UNESP –Universidade Estadual Paulista – FCLAr _____________________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi UNESP –Universidade Estadual Paulista – FCLAr _____________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Renata Phillipov UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo _____________________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Alexander Meirelles da Silva UFG - Universidade Federal de Goiás _____________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Fernanda Aquino Sylvestre UFU - Universidade Federal de Uberlândia Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, gostaria de agradece aosa meus pais, Margarida e Irineu, minha irmã Juliana, por terem me apoiado nos momentos difíceis. Agradeço a minha orientadora e anjo da guarda, a Profa. Dra. Karin Volobuef, que, de maneira sempre serena, me guiou por uma jornada de conhecimento dentro do universo da literatura gótica, algumas vezes difícil e turbulenta. Sem sua orientação, compreensão e estímulo, este trabalho não seria possível. Ao Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi e a Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan que me ajudaram a compreender de forma mais ampla alguns aspectos da obra analisada. Ao Prof. Dr. Alexander Meirelles da Silva, a Profa. Dra. Renata Phillipov e a Profa. Dra. Fernanda Aquino Sylvestre que trouxeram significativas contribuições para o aprimoramento de minha tese de doutorado. À FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo 2012/08393-9), cujo suporte financeiro foi fundamental para o desenvolvimento bem- sucedido das etapas de minha pesquisa. Por fim, agradeço a duas mulheres fortes e determinadas, que possibilitaram o surgimento deste estudo. A primeira delas é Raquel de Queiroz, capaz de fazer uma tradução de O Morro dos Ventos Uivantes que captou o “espírito” do romance, reproduzindo as nunces e sutilezas de seu universo sobrenatural e mítico. A segunda é Emily Jane Brontë, cuja obra-prima imortal nos convida a refletir sobre a existência do Paraíso e o Inferno no âmago da natureza humana, e continua fascinando gerações de leitores de diferentes épocas. “Meus maiores sofrimentos neste mundo têm sido os sofrimentos de Heathcliff; fui testemunha deles e senti-os todos, desde do começo. Meu maior cuidado na vida é ele. Se tudo o mais ficasse, e ele fosse aniquilado, eu ficaria só num mundo estranho, incapaz de ter parte dele. Meu amor por Linton é como as folhagens da mata: o tempo há de mudá-lo como o inverno muda as árvores, isso eu sei muito bem. E o meu amor por Heathcliff é como as rochas eternas que ficam debaixo do chão; uma fonte de felicidade quase invisível, mas necessária. Nely, eu sou Heathcliff.” Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes (1847) RESUMO O corpus deste trabalho de pesquisa é O Morro dos Ventos Uivantes, único romance da autora inglesa Emily Brontë que desde de sua primeira publicação em 1847 tem gerado reações contraditórias que oscilam entre o fascínio e o estranhamento entre os leitores. Buscamos analisar alguns aspectos peculiares dessa obra, enfatizando-se dentre eles seu modo de narração, que combina aspectos assustadores do romance gótico com elementos da estética realista do século XIX. Também são objetos de estudo desta pesquisa o que chamamos de “espacialidade gótica”, que se evidencia nas descrições do cenário principal - Wuthering Heights, a antiga e sinistra casa que também dá o título ao romance -, e os temas e motivos do gênero gótico que foram revistos por Emily Brontë, tais como o duplo, o qual é amplamente explorado em textos com inspiração gótica, a exemplo de Manfred, poema dramático de Byron. Por fim, realizamos a análise das características do casal de protagonistas do romance, Catherine e Heathcliff, visando apontar um diálogo intertextual do livro de Brontë com obras do gênero gótico ou inseridas na tradição literária inglesa, tais como Paraíso perdido, de John Milton. PALAVRAS-CHAVE: O Morro dos Ventos Uivantes; romance gótico; espaço; Heathcliff; intertextualidade. ABSTRACT The corpus of this research is Wuthering Heights, the only novel written by the English writer Emily Brontë that since its first publication in 1847 has generated contradictory reactions that oscillate between fascination and repulsion among readers. We analyse some peculiar aspects of this work, emphasizing among them, its mode of narration that combines frightening aspects of Gothic novel with elements of realistic aesthetics of the nineteenth century. They are also objects of this study, which we call "Gothic spatiality" that stands out in the description of its main scenario - Wuthering Heights, the old and sinister house that provides the title of the novel -, and the themes and motifs of the Gothic genre that were reviewed by Emily Brontë, such as the double, which is widely exploited in texts with Gothic inspiration, such as Manfred, dramatic poem of Byron. Finally we analyse the couple of protagonists in the novel, Catherine and Heathcliff, seeking to appoint an intertextual dialogue between Brontë’s book with works of Gothic genre or inserted in the English literary tradition, such as Paradise Lost, by John Milton. KEYWORDS: Wuthering Heights; Gothic novel; space; Heathcliff; intertextuality. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...............................................................................................................9 Capítulo 1 – O surgimento de O Morro dos Ventos Uivantes .....................................12 1.1. As origens do romance ............................................................................................... 12 1.2.A recepção da obra ..................................................................................................... 18 Capítulo 2 - O romance gótico e seus desdobramentos nos séculos XVIII e XIX ...27 2.1. O aparecimento de um novo gênero literário: o romance gótico ................................ 27 2.2. As principais características do romance gótico ......................................................... 34 2.3. O marco inaugural do romance gótico: O Castelo de Otranto ..................................... 38 2.4. Os sucessores de Walpole ........................................................................................... 41 2.5. Ann Radcliffe e Jane Austen: auge e decadência do romance gótico .......................... 43 2.6. A metamorfose da escrita gótica ................................................................................ 49 Capítulo 3 – A configuração gótica de O Morro dos Ventos Uivantes .......................79 3.1. A incorporação de elementos da ficção realista na escrita gótica ................................ 79 3.2. O modo “gótico” de narração em O Morro dos Ventos Uivantes ................................. 90 3.3. A espacialidade gótica da obra ................................................................................. 119 3.4. O aprisionamento e a degeneração: dois temas góticos revistos ................................ 125 3.5. A configuração do duplo .......................................................................................... 130 3.6. O amor paixão-gótico ............................................................................................... 136 Capítulo 04 – Heathcliff e Catherine: os Anjos Caídos e os heróis byronianos de O Morro dos Ventos Uivantes ..........................................................................................141 4.1. Heahtcliff: a representação gótica sublime do Mal ................................................... 141 4.2. Heathcliff e Catherine: os Anjos Caídos e os heróis byronianos ............................... 149 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................165 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................172 9 INTRODUÇÃO Desde sua primeira publicação em 1847, Wuthering Heights [O Morro dos Ventos Uivantes] tem gerado reações contraditórias entre os leitores, que oscilam entre o fascínio e a repulsa, e uma longa trajetória de rejeição da crítica literária, que durante um longo período o considerou “violento” e mesmo “obsceno”. Os críticos literários se declararam chocados e, até mesmo indignados com o que definiram ser imoral no único romance escrito por Emily Brontë. Além disso, eles também ficaram desorientados, com o que chamaram de estranho método narrativo empregado pelo suposto autor e pelo cruel linguajar de seus personagens. Resenhas e comentários publicados em jornais e revistas à época do lançamento do livro na Inglaterra e nos Estados Unidos, enfatizaram a profusão de suas cenas de violência, e criticaram duramente o comportamento transgressivo do casal de protagonistas (Catherine e Heathcliff). É importante enfatizar que, ao longo do tempo o romance teve sua importância reconhecida por autores respeitados, tais como Virginia Woolf, E. M. Foster e Raquel de Queiroz. Sua apreciação entre os críticos literários e seu sucesso junto aos leitores podem ser comprovados por meio de sua vasta bibliografia, em que constam até o presente momento, quatorze edições em Português do Brasil, sessenta e oito em inglês e várias traduções para outras línguas. O Morro dos Ventos Uivantes também é difícil de ser plenamente inserido dentro de um gênero. De acordo com uma parcela de estudiosos, o romance é, sem dúvida alguma, "a mais perfeita expressão do romantismo inglês" (CORDEIRO; ALAMBERT, 2005, p. 12). Para completar, podemos dizer que seu aspecto romântico se apresenta ao leitor como soturno, predominando as violentas e sublimes forças da Natureza, os atos transgressivos dos personagens centrais (Catherine e Heathcliff) e os eventos de origem sobrenatural. Estes aspectos sinistros da obra podem ser encontrados em um tipo de literatura muito popular na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX: o romance gótico. No livro de Brontë ganham destaque elementos recorrentes, que caracterizam o gênero, tais como as descrições de um cenário assustador (a paisagem desolada e árida, de Wuthering Heights, a antiga casa que fornece seu título) e a presença marcante de Heathcliff, homem ambicioso e maldito, que se configura como agente do Mal. Dessa forma, a ambientação soturna, na qual ocorrem aparições fantasmagóricas e o vilão estão inseridos em um universo sobrenatural marcado pela distorção, conforme exemplifica o tratamento dado a outro tema que remete ao romance gótico: o duplo que exprime a 10 intensidade da mórbida paixão de Heathcliff e Catherine beirando a loucura, além de transgredir os limites entre vida e morte. Como se vê, O Morro dos Ventos Uivantes absorve enorme variedade de aspectos da literatura prévia, mostrando intersecções com romances inovadores, tais como Frankenstein (1818), em que os efeitos de horror têm suas origens na especulação científica, e também com algumas obras góticas anteriores e mais convencionais, a exemplo de The Mysteries of Udolpho (1794), de Ann Radcliffe, na qual predominam os castelos sinistros, mocinhas indefesas, terríveis vilões e outros elementos típicos do gênero na sua forma tradicional. O texto de Brontë também estabelece uma ponte para com o Romantismo byroniano e autores mais antigos, como Samuel Richardson, John Milton e William Shakespeare, além de fazer referências à Bíblia, em especial o Novo Testamento, angariando assim um aspecto sagrado-profano. Dessa forma, a configuração da estrutura narrativa de O Morro dos Ventos Uivantes revela-se sofisticada, de modo a diferenciá-lo de outros romances publicados no século XIX. Ela é formada pela complexa composição de seus protagonistas (Heathcliff e Catherine) e por um denso enredo criado a partir da perspectiva de múltiplos narradores, que descrevem eventos inusitados e assustadores, com contornos sobrenaturais, cujo mistério jamais é dissipado (o leitor não tem plenamente satisfeita sua curiosidade), o que constitui o elemento mais inovador da obra. Esse caráter pautado na sutileza da exploração do elemento sobrenatural e profundidade na descrição de personagens cheios de nuances garantem ao livro de Brontë uma dimensão mais complexa e verossímil frente a textos inseridos na tradição gótica inglesa como os de Horace Walpole, Ann Radcliffe, Matthew Lewis e outros autores. Vale ressaltar que as qualidades inovadoras frente ao gótico são, essencialmente, os aspectos que mais chamam a atenção para O Morro dos Ventos Uivantes. Trata-se de uma obra densa e multifacetada que convida à reflexão e uma análise de sua trama, temas, elementos composicionais – sendo o propósito deste estudo enfatizar, dentre eles, sua “espacialidade gótica”, que difere da tradição fundada por autores prévios (ao inserir pelo menos duas peculiaridades inovadoras: o ambiente doméstico tornado fantasmagórico; e a polaridade de duas residências, assumem conotações metafóricas e míticas). Também é objeto de análise deste trabalho, a descrição do casal de protagonistas do romance, que por meio de seus atos passionais e violentos afrontam tanto o código moral e social: Heathcliff, o “cigano” misterioso, inclemente, cínico e sua amada Catherine, moça orgulhosa e manipuladora, que aos poucos devido à frustração e a tristeza sucumbe à degeneração física e mental. Além disso, o terrível desejo de vingança de 11 Heathcliff torna-o um ser diabólico vindo de algum lugar infernal. Dessa forma, no protagonista misterioso e soturno, cheio de conflitos internos, a autora modela a figura do herói byroniano, nos moldes da tradição gótica e ao mesmo tempo, ela consegue atribui- lhes uma nova roupagem, em que predomina sua densidade psicológica. Assim, o primeiro capítulo “O surgimento de O Morro dos Ventos Uivantes” tem uma natureza introdutória, sendo uma rápida apresentação de alguns aspectos da biografia de Emily Brontë que são considerados importantes para sua formação como poetisa e, escritora. Também neste capítulo é enfatizada a recepção da obra à época em que foi publicada primeira vez, demonstrando seu impacto negativo entre leitores e principalmente críticos literários devido a descrição em seu enredo de situações violentas, sinistras e sobrenaturais, que contribuem de forma significativa para inseri-lo plenamente em um gênero literário: a ficção gótica. O segundo capítulo, “O surgimento do romance gótico e seus desdobramentos nos séculos XVIII e XIX”, consiste em um amplo estudo sobre sua formação durante a metade do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, suas principais características e obras, visando deixar mais evidente inserção de O Morro dos Ventos Uivantes dentro do gênero. O terceiro capítulo “A configuração gótica de O Morro dos Ventos Uivantes” procura explorar a compleição dentro do romance de uma gama de elementos, enfatizando-se a utilização diferenciada e peculiar de recursos narrativos (diversos personagens-narradores, que imprimem perspectivas diferentes aos eventos e criam uma indefinição entre o objetivo e subjetivo), do espaço (dando-se especial atenção à descrição de seu principal cenário, Wuthering Heights, a antiga e sinistra casa que fornece o título para a obra). Também nesse capítulo são analisados os temas e motivos do gênero gótico que foram revistos por Emily Brontë, tais como o duplo, o qual é amplamente explorado em textos de apelo gótico, tais como Manfred, poema em prosa de Byron. O quarto capítulo, “Heathcliff e Catherine: os Anjos Caídos e os heróis byronianos de O Morro dos Ventos Uivantes”, realiza uma análise do misterioso protagonista do romance, Heathcliff, visando apontar um diálogo intertextual do romance com obras do gênero gótico ou inseridas na tradição literária inglesa. Além disso, são ressaltadas algumas características que diferenciam esse personagem dos vilões de outros romances góticos. Para completar, Catherine e Heathcliff também são discutidos em termos de seus traços demoníacos, os quais podem apontar para uma ligação com figuras míticas e assustadoras - a exemplo, do Satã de Paraíso perdido, de John Milton -, que inspiraram os romancistas góticos dos séculos XVIII e XIX. 12 Capítulo 1 – O surgimento de O Morro dos Ventos Uivantes 1.1. As origens do romance Apesar do grande número de estudos sobre Wuthering Heights [O Morro dos Ventos Uivantes] não temos acesso ao seu processo de elaboração e escritura. Ao contrário de boa parte dos autores do século XIX, tais como Honoré de Balzac, George Eliot, Charles Dickens, Marcel Proust, Henry James, que deixaram um vasto material bibliográfico contendo várias anotações que esmiúçam o surgimento de seus textos literários, Emily Brontë não nos legou nenhum registro documentado sobre o surgimento de seu único romance. Assim como Mary Shelley, outra escritora filiada à tradição gótica inglesa, Emily Brontë cresceu dentro de um ambiente em que se valorizava muito a cultura, e, principalmente, a criação literária. Ela e suas irmãs, Charlotte e Anne desde pequenas foram criadas cercadas de livros e obras poéticas, que as estimularam a escrever suas obras. Seu pai, Patrick Brontë, quando jovem frequentou a faculdade de Oxford e publicou uma pequena coletânea de poemas. No entanto, devido a dificuldades financeiras, ele foi obrigado a abandonar seus estudos e preferiu ingressar na Igreja Protestante, onde se tornou reverendo. Posteriormente, Patrick casou-se com Maria Branwell e mudou-se para a pequena aldeia de Thorton, localizada no condado de Yorkshire. Nesse local, Emily Jane Brontë nasceu em 30 de julho de 1818. Desde a infância, a autora presenciou mortes trágicas em sua família. Sua mãe, Maria, morreu muito jovem e de forma inesperada em 1821, quando Emily ainda era um bebê. Dois anos depois, suas duas irmãs mais velhas, uma delas também chamada Maria, faleceram em decorrência de uma epidemia de febre tifóide. Vale ressaltar que a orfandade precoce e as sucessivas perdas no âmbito familiar são eventos que adquirem contornos dramáticos e aparecem de forma destacada em muitas passagens de O Morro dos Ventos Uivantes. Após a morte de sua mãe, a tia de Emily, Elizabeth Branwell mudou-se para sua casa, e tomou para si a responsabilidade de cuidar dos filhos de sua irmã falecida - Emily, Charlotte, Patrick (também chamado Branwell) e Anne. O relacionamento entre ela e Emily não era afetuoso e a menina encontrou uma figura materna em uma empregada, que também exercia a função de nany (babá) chamada Tabitha. Tabby, como ficou conhecida entre os irmãos Brontë, era uma mulher alegre e comunicativa, que gostava de contar histórias de terror e também de cantar baladas, que 13 descreviam acontecimentos macabros e sobrenaturais. Ela é apontada como modelo para a criação de uma das principais personagens de O Morro dos Ventos Uivantes, a criada Nely Dean. Como forma de fugirem do ambiente repressivo em que viviam, dominado pelo rigor da doutrina religiosa do pai, Emily e seus irmãos começaram, ainda na infância, a ler compulsivamente os livros que integravam a modesta biblioteca da casa. Dentre os títulos de seu pequeno acervo destacavam-se obras clássicas, tais como A Odisseia, de Homero, As fábulas, de Esopo, os contos das Mil e uma noites, tragédias de Shakespeare e Paraíso perdido (1667), de John Milton, uma das favoritas de seu pai. Após lerem grande parte desses títulos, os irmãos Brontë resolveram criar suas próprias narrativas. Em seu ensaio “Our plays: the Brontë juvennila”, Carol Bock (2002, p. 35), afirma que o surgimento dos primeiros textos literários dos irmãos Brontë ocorreu quando o pai deu a Branwell, uma caixa contendo vários soldadinhos de chumbo. A partir de então, ele e as irmãs criaram e encenaram com esses brinquedos peças teatrais que misturavam elementos das fábulas, tragédias, épicos, contos de fadas, todas elas ambientadas em dois reinos mágicos, “Angria” e “Gondal”. Branwell e Charlotte resolveram registrá-las em forma de livro; ele cortava as páginas, do tamanho dos soldadinhos de chumbo e ela desenhava as letras de forma que pareciam caracteres de imprensa. Com o passar do tempo, Emily e Anne sentiram-se rejeitadas em suas sugestões e passaram a criar suas próprias histórias, situando-as em Gondal. Bock enfatiza que essa criação literária conjunta dos irmãos Brontë traz muitos elementos sobre a cultura da época. Para Bock, eles criaram os personagens que habitavam Gondal e Angria tendo como modelos pessoas reais, de grande importância dentro do cenário cultural inglês, tais como o pintor John Martin; Arthur Wellesley, o primeiro-ministro da Inglaterra; o Duque de Wellington e o médico John Robert Hume. Bock também afirma que as tramas elaboradas pelos irmãos Brontë eram bem construídas, uma vez que elas continham detalhes sobre expedições científicas, campanhas e estratégias militares, além de debates atuais no parlamento inglês. Melissa Fegan (2008, p. 84), autora de Wuthering Heights: Characther Studies que analisa as características dos personagens do romance de Brontë, afirma que podemos encontrar pontos de aproximação entre a rainha Augusta, personagem que tem seu surgimento nas narrativas ambientadas em Gondal, e Catherine Earnshaw, a protagonista de O Morro dos Ventos Uivantes. Fegan salienta que ambas são descritas como mulheres dominadoras, dotadas de um comportamento orgulhoso e agressivo que as impulsionam a um destino trágico. 14 Gradativamente, a criação literária dos irmãos Brontë dissipou-se devido a pequenas disputas e desentendimentos entre eles. Quando chegaram à idade adulta, Charlotte e Emily foram mandadas para um colégio interno para melhorar seus conhecimentos em outras línguas e nas humanidades, como a Filosofia, formando-se professoras. Branwell demonstrou talento para pintura e foi mandado para uma escola especializada em Londres. Durante o período em que ficou em um internato de moças em Bruxelas, Emily escreveu um texto intitulado Burtterfly (1842), em que ela faz uso de uma linguagem metafórica e poética para delinear temas, tais como a solidão, o isolamento e, também a imagem do clima tempestuoso e ameaçador que aparece de forma marcante em O Morro dos Ventos Uivantes: In one of those moods that everyone falls into sometimes, when the world of the imagination suffers a winter blights its vegetation; when the light of life seems to go out and existence becomes a barren desert where we wander, exposed to all the tempests that blow under heaven, without hope of rest or shelter – in one of these black humors, I was walking one evening at the the edge of forest. It was summer, the sun was still shining high in the west and the air resounded with the songs of birds. All appeared happy, but to me, it was only an appearance1. (BRONTË, 2003b, p. 265) No entanto, Emily durante essa época em grande parte do tempo ficava infeliz, uma vez que sentia falta de seu Paraíso idílico: as charnecas e os morros da região de Yorkshire. Após algum tempo em Bruxelas, Charlotte e Emily foram obrigadas a voltar à Inglaterra devido à doença de sua tia. Essa notícia entristeceu Charlotte, uma vez que sua volta ao lar lhe custou a chance de continuar aprimorando seus estudos, e também causou o rompimento do convívio com seu professor, por quem ela nutria um amor platônico – que se torna o tema principal de The Professor (1857), o primeiro romance da autora, embora publicado postumamente. Emily, ao contrário, sente-se feliz em retornar ao lugar que tanto amava. Quando ambas chegam de volta à pequena aldeia de Haworth, deparam-se com uma triste realidade: além da morte da tia, seu irmão Branwell, em que o pai havia depositado grandes esperanças, gradativamente revelava um comportamento emocional agressivo e instável. 1 Em tradução livre: "Em uma dessas alterações de humor que todo mundo cai em algumas vezes, quando o mundo da imaginação sofre um inverno que arruína sua vegetação; quando a luz da vida parece ir para fora e a existência se torna um deserto estéril onde vagamos, expostos a todas as tempestades que sopram debaixo do céu celestial, sem esperança de descanso ou abrigo – sob o efeito de desses humores negros, eu andava uma noite no limite da floresta. Era verão, o sol ainda brilhava alto no oeste e o ar ressoava com o canto dos pássaros. Tudo parecia feliz, mas para mim, era apenas uma aparência." 15 Em sua introdução ao romance, Linda H. Peterson (2003, p.11) comenta o dramático contexto familiar em que O Morro dos Ventos Uivantes foi escrito, e afirma que Branwell sucumbiu aos efeitos do álcool e, principalmente, do ópio, tornando o ambiente doméstico infernal com suas constantes crises de fúria, durante as quais ele costumava agredir verbalmente o pai e as irmãs. Ainda de acordo com Peterson, a degradação física e mental de Branwell teriam inspirado Anne Brontë a escrever A Moradora de Wildfell Hall (1848) como um aviso sobre os males provocados pelos vícios. Dessa forma, as turbulentas relações familiares dos irmãos Brontë encontram ressonância em algumas passagens marcantes de O Morro dos Ventos Uivantes. Branwell não se destacou muito como pintor, sendo sua obra mais conhecida, um retrato, em que ele aparecia ao lado de Charlotte, Emily e Anne. Em uma de suas crises de fúria, ele apagou sua imagem nessa pintura, um gesto brutal, que estabelece sua identificação com os artistas “malditos” e incompreendidos do século XIX, a exemplo de George Byron, idolatrado por suas irmãs. Branwell também tentou obter algum tipo de reconhecimento como poeta, mas sua única obra, uma modesta coletânea de poemas, foi recebida com indiferença dentro dos círculos literários. Após tentar sucessivos empregos, com a ajuda do pai, Branwell conseguiu ser aceito como tutor e passou a dar aulas para um garoto que pertencia a uma família tradicional. Por algum tempo, ele conseguiu ter alguma satisfação com isso, mas, em um lance surpreendente do destino, que poderia facilmente se destacar nos romances de suas irmãs, Branwell se apaixonou pela mãe de seu pupilo, uma mulher mais velha que ele. Essa paixão avassaladora, que não foi correspondida, custou-lhe um novo fracasso profissional e também deixou profundas marcas nele, que o desestabilizaram emocionalmente. Branwell passou a ser visto, com frequência, andando bêbado e vagando sem rumo pelas cercanias de Haworth. Logo, seu comportamento escandaloso chamou a atenção dos habitantes da aldeia e comprometeu a boa reputação da família Brontë. Devido à má fama dos Brontë, a escola primária criada por Charlotte e Emily não recebeu nenhuma matrícula e foi fechada. Branwell começou a demonstrar sinais de degeneração mental e passou a ser rejeitado por suas irmãs Anne e Charlotte. Somente Emily não se voltou contra o irmão e procurou apoiá-lo nos momentos mais difíceis, provavelmente motivada por compartilhar com ele a personalidade melancólica e rebelde. Assim, na descrição da conturbada personalidade de Patrick Branwell Brontë podemos encontrar traços sinistros que, posteriormente, serão retomados pela autora de 16 forma marcante em dois personagens de O Morro dos Ventos Uivantes, que também se destacam por sua conduta antissocial e agressiva: Heathcliff e Hindley. De forma semelhante aos seres perturbados criados por sua irmã, Branwell mergulhou em um processo contínuo de isolamento e autodestruição. Ele viria a falecer com menos de trinta anos, vítima de uma forte tuberculose. Em 1845, após vários anos durante os quais havia abandonado a criação das sagas de Gondal e Angria, Charlotte descobriu, por acaso, um pequeno manuscrito contendo poemas de Emily e conseguiu convencê-la a publicá-los. Dentre eles, destaca-se No coward soul is mine (Eu não tenho a alma covarde), considerado um dos mais belos da literatura inglesa. Nele, Emily evoca o panteísmo romântico, que pode ser encontrado nos textos poéticos de William Wordsworth (1770-1850) e descreve uma poderosa manifestação de forças da Natureza que ameaça destruí-la - representada pelos vendavais. Também em suas estrofes aparecem temas, que assumem uma significação metafórica em seu romance, e, assim evocam os mistérios do plano metafísico. Entre eles, a infinitude da existência humana e a plena união do “Ser” com a Natureza e o Universo, a qual preserva a existência de um poder divino, superior e transformador, capaz de guiar o destino: No coward soul is mine No trembler in the world’s storm-troubled sphere I see Heaven’s glories shine And Faith shines equal arming me from Fear O God within my breast Almighty ever-present Deity Life, that in me hast rest, As I Undying Life, have power in Thee Vain are the thousand creeds That move men’s hearts, unutterably vain, Worthless as withered weeds Or idlest froth amid the boundless main To waken doubt in one Holding so fast by thy infinity, So surely anchored on The steadfast rock of Immortality. With wide-embracing love Thy spirit animates eternal years Pervades and broods above, Changes, sustains, dissolves, creates and rears Though earth and moon were gone And suns and universes ceased to be And Thou wert left alone Every Existence would exist in thee There is not room for Death 17 Nor atom that his might could render void Since thou art Being and Breath And what thou art may never be destroyed2. Posteriormente, aos poemas de Emily foram somados outros, escritos por Charlotte e Anne, e publicados em uma pequena coletânea no ano seguinte. Essa publicação a pedido de Emily foi atribuída a três autores de nomes andrógenos: Ellis Bell, Currer Bell e Actor Bell. Apesar das vendas do livro terem sido decepcionantes, as irmãs Brontë se sentiram estimuladas com as críticas favoráveis recebidas, e decidiram escrever três obras de ficção: O Morro dos Ventos Uivantes, The Professor, e Agnes Grey. Algum tempo depois, Charlotte entrou em contato com um editor e propôs que as três narrativas fossem publicadas em formato de three-decker – cada livro dividido em três volumes. No entanto, entre os títulos, The Professor foi recusado e, por isso, a proposta não foi aceita pelo editor. Após uma série de negociações com outros editores ficou acertado que as obras de Emily e Anne seriam publicadas. O livro de Charlotte foi recusado e ela resolveu, em vez dele, dedicar-se a Jane Eyre, que foi publicado em outubro de 1847, tornando-se de imediato um best-seller à época. No final do mesmo ano, O Morro dos Ventos Uivantes e Agnes Grey foram publicados simultaneamente, sendo ambos atribuídos a autores fictícios: Ellis Bell e Actor Bell. Apesar das boas vendas, o romance de Emily teve uma má acolhida, principalmente entre os críticos literários, que o acusaram de ser “violento” e “obsceno”. Essa reação negativa e hostil à obra, deixou Emily abalada emocionalmente. Algum tempo depois, ela contraiu tuberculose e morreu com apenas trinta anos de idade, reencenando o destino trágico dos personagens de seu texto mais conhecido. Segundo nota biográfica que integra a edição do romance em português, publicada pela editora Landy em 2005, ela desfaleceu e perdeu os sentidos, enquanto segurava um pente e tendo aos seus pés seu fiel companheiro, o cão Keeper, que a acompanhava em seus passeios pelos morros e pelas charnecas da região de Yorkshire. Novamente, as circunstâncias dramáticas de sua morte e a utilização de um pseudônimo andrógeno para 2 "Eu não tenho a alma covarde, // Pois frente aos vendavais, eu nunca tremo: // O Paraíso brilha, arde, // Como a fé, pela qual nada temo // Deus, meu peito Te abrigou, // Deidade Poderosa e onipresente! // Vida, que em mim repousou, // Como eu. Vida Imortal, em ti, potente! // Movem-nos o peito em vão // Mil credos que não são mais do que que enganos; // Sem valor, brotos malsãos, // Ou a ociosa espuma do Oceano, // A pôr dúvidas num ente // Pego assim pela Tua infinidade; // Preso tão seguramente // Na firme rocha da imortalidade. // Com amor de um grande enleio // Teu espírito o tempo eterno anima, // Para cima e de permeio, // Muda, apoia, dissolve, cria e ensina. // Se a Terra e a luz acabassem, // Se não houvesse sóis nem universos, // E se, Te abandonassem, // Haveria existência em Ti, por certo. // Não há lugar ao Morrer; // Ao átomo, pr’o vácuo ressurgir: // És o respirar e o Ser, // Nada pode jamais te Destruir." (BRONTË, 2005, p. 411-412) 18 divulgar seus textos poéticos e O Morro dos Ventos Uivantes, contribuíram de forma significativa para que tanto Emily Brontë quanto este romance ficassem por muito tempo envolvidos uma áurea de mistério. 1.2. A recepção da obra Na época atual, Wuthering Heights [O Morro dos Ventos Uivantes3] é considerado um dos grandes clássicos da literatura inglesa. Contudo, quando o romance foi lançado em dezembro de 1847, não teve uma boa recepção, principalmente entre os críticos literários, que o receberam com comentários muito negativos. O livro foge muito do que o cenário literário estava habituado a ver neste período, uma vez que a autora faz uso de procedimentos narrativos que remontam ao estilo “realista”, nos moldes do século XIX, até então pouco explorado no gênero gótico, como a narração em primeira pessoa (que provoca o efeito de maior veracidade dos elementos sobrenaturais), protagonistas (Catherine e Heathcliff) mais complexos e densos, linguagem coloquial nos trechos em discurso direto, descrição verossímil do ambiente doméstico e reprodução de costumes rurais da região de Yorkshire (rotina de trabalho, tipo de alimentação, hábito de ler a Bíblia, e outros). Assim, personagens como Joseph e Hareton expressam-se conforme o falar dos habitantes da região representada - e esse falar dialetal confere ao texto de Brontë uma multiplicidade linguística que já era de difícil compreensão para os leitores ingleses da época. Desse modo, a escolha da ambientação em uma região localizada no interior da Inglaterra contribuiu de forma significativa para tornar convincente os relatos testemunhais que se materializam a partir da perspectiva de dois personagens-narradores (a criada Nely Dean e Mr. Lockwood), que remetem a “mundos opostos”, um deles representando o cotidiano rural, em que predominam os costumes e hábitos rústicos e crenças supersticiosas, e outro, a aristocracia inglesa, com seus valores civilizados e rígidos códigos morais. 3 Segundo nota das tradutoras Renata Maria Parreira Cordeiro e Eliane Gurjão Silveira Alambert (BRONTË, Emily, 2005, p. 30), na edição do romance publicada pela editora Landy, Wuthering Heights tem sido vertido no Brasil como O Morro dos Ventos Uivantes; contudo, esse título não seria muito adequado por afastar-se do original. Muito melhor seriam alternativas como, por exemplo, Cimos Tempestuosos (como na versão italiana), O Morro dos Vendavais, ou Alto dos Vendavais (caso das traduções portuguesas), ou até O Morro (Os Cumes/Os Altos) dos Ventos Tempestuosos, uma vez que “Heights” pode ser traduzido por “cimos” ou “altos”. 19 Sob este aspecto, O Morro dos Ventos Uivantes pode ser considerado uma obra “realista”, inserida na linha já tradicional desde Defoe e Fielding de afastamento dos padrões clássicos e neo-clássicos, de aproximação do cotidiano e da vida prática mediante uma caracterização que privilegia o particular em detrimento do típico. Em complementação a isso, o romance ainda traz cenas de violência, brutalidade e sadismo, ou de turbulentas reações emocionais do casal de protagonistas (Catherine e Heathcliff), aspectos que remetem a momentos do romance gótico (a exemplo dos crimes e excessos em textos como The Monk (1796), de Matthew Lewis) mas também à sensibilidade, típica do século XIX, frente à miséria e brutalidade da sociedade urbana da época (como nos romances de Charles Dickens e William Thackeray, mais tarde seguidos por autores como Thomas Hardy). Por outro lado, também causou estranheza o fato de seu desfecho aparentemente não ter fundo moralizante destinado à edificação do leitor. A descrição do protagonista, Heathcliff, também é tema de grande parte das resenhas e comentários negativos sobre o livro. No prefácio da edição de 1850, Charlotte Brontë retoma o pseudônimo Currer Bell com que assinara Jane Eyre (1847) para manifestar-se publicamente em prol das qualidades da obra de sua irmã e enfatizar os atributos positivos de alguns personagens, tais como bondade, constância e ternura. Por outro, ela não consegue evitar de comentar aspectos do livro que a desagradam, notadamente as características negativas de Heathcliff. Dentre elas, Charlotte Brontë destaca a natureza demoníaca do protagonista de O Morro dos Ventos Uivantes, que o condena a um destino trágico: Heathcliff demonstra um único sentimento humano, e não é de forma alguma o seu amor por Catherine, que é um sentimento violento, não humano: uma paixão em que poderia excitar-se e enrubescer na essência maligna de algum gênio mau; um fogo que poderia transformar o núcleo atormentado, a alma sempre sofrida de um magnata do mundo infernal; e, pelos seus arroubos irreprimíveis e incessantes, proceder à execução do decreto que o condena a levar consigo o Inferno em qualquer lugar por onde vá. (BRONTË, C., 2005, p. 394) Assim, a sinistra figura do proprietário de Wuthering Heights serve de atestado para o que há de pior na natureza humana: ódio e ambição desmesurados, insanidade, crueldade, vilania. Finalmente, o romance está repleto de eventos extraordinários (as aparições dos fantasmas de Catherine e Heathcliff), ou chocantes até mesmo para a época atual (o momento em que Heathcliff viola o caixão em que está o corpo de sua amada), o que provocou a rejeição de leitores com uma visão mais afinada com a ótica moralizantes 20 e sentimentalista de Charles Dickens que, por exemplo em textos como Oliver Twist (1838), castiga os vilões e recompensa os virtuosos. Em uma crítica publicada pelo jornal britânico Athenaeum no dia 25 de dezembro de 1847, o resenhista H. F. Chorley vê com maus olhos a caracterização minuciosa de Heathcliff e a brutalidade que marca as relações humanas no romance. Para o crítico, os aspectos feios e abjetos - próprios de recantos longínquos e inóspitos da Inglaterra - são mostrados sem suavização ou parcimônia: In spite of much power and cleverness; in spite of its truth to life in the remote nooks and corners of England, 'Wuthering Heights' is a disagreeable story. The Bells seem to affect painful and exceptional subjects: – the misdeeds and oppressions of tyranny – the eccentricities of "woman's fantasy". They do not turn away from dwelling upon those physical acts of cruelty which we know to have their warrant in the real annals of crime and suffering, – but the contemplation of which true taste rejects. The brutal master of the lonely house on "Wuthering Heights" – a prison which might be pictured from life – has doubtless had his prototype in those ungenial and remote districts where human beings, like the trees, grow gnarled and dwarfed and distorted by inclement climate; but he might have been indicated with far fewer touches, in place of so entirely filling the canvas that there is hardly a scene untainted by his presence4. Em outras palavras, Chorley sentiu-se incomodado justamente por aquilo que hoje podemos entender ser o fator de originalidade de Emily Brontë: sua representação crua e sem floreios da realidade do interior da Inglaterra. Em outra resenha, publicada anonimamente no jornal The Atlas em 22 de janeiro de 1848, o crítico deprecia a falta de sentimentalismo com que é representado o mundo rústico e hostil do romance em que os personagens sofrem e fazem sofrer uns aos outros, multiplicando o ódio de geração a geração. Também desabona a falta de um narrador (talvez em terceira pessoa) que entenda esse mundo e o explique ao leitor, dando-lhe um 4 “Apesar de muito poder e inteligência; apesar da sua verdade na forma de retratar a vida nos cantos remotos da Inglaterra, O Morro dos Ventos Uivantes é uma obra desagradável. Os Bell parecem ser atraídos para assuntos dolorosos e excepcionais: - os malefícios e opressões da tirania - as excentricidades da "fantasia feminina". Eles não conseguem se afastar dos atos físicos de crueldade que sabemos estão comprovados nos anais reais do crime e do sofrimento, - mas que a noção de bom gosto deve rejeitar. O mestre brutal da casa solitária em O Morro dos Ventos Uivantes - uma prisão que poderia ser muito bem retratada na realidade – é modelado em carne e osso em algum ponto dessas afastadas regiões, onde os seres humanos, assim como as árvores, são tortuosos, atrofiados, deformados pela rudeza do clima inclemente; mas ele [Heathcliff – grifo meu] poderia ter sido descrito com tintas menos “carregadas”, no lugar de encher totalmente o quadro, no qual dificilmente há uma cena que não esteja ”manchada” com sua presença.” (Nossa tradução) 21 direcionamento. A profusão e o detalhamento das cenas de crueldade é outro aspecto recebido com desconforto. Wuthering Heights is a strange, inartistic story. There are evidences in every chapter of a sort of rugged power—an unconscious strength—which the possessor seems never to think of turning to the best advantage. The general effect is inexpressibly painful. We know nothing in the whole range of our fictitious literature which presents such shocking pictures of the worst forms of humanity. Jane Eyre is a book which affects the reader to tears; it touches the most hidden sources of emotion. Wuthering Heights casts a gloom over the mind not easily to be dispelled. It does not soften; it harasses, it extenterates…. There are passages in it which remind us of the Nowlans of the late John Banim but of all pre-existent works the one which it most recalls to our memory is the History of Mathew Wald. It has not, however, the unity and concentration of that fiction; but is a sprawling story, carrying us, with no mitigation of anguish, through two generations of sufferers—though one presiding evil genius sheds a grim shadow over the whole, and imparts a singleness of malignity to the somewhat disjointed tale5. Como se vê, o romance recebe leituras de desabono por trazer à baila aspectos perturbadores do ser humano. Enquanto o gênero gótico explorava a paisagem sinistra, O morro dos ventos uivantes explora também - e de modo implacável - o lado sinistro da natureza humana. O que lemos nas palavras desse crítico é que o romance não busca conciliar o leitor com esses aspectos negativos, ao contrário, parece querer mantê-lo à distância e no estranhamento diante do mundo narrado. The Examer, outro jornal inglês, publicou em oito de janeiro de 1848, mais uma resenha anônima que igualmente não poupou as considerações negativas. Este crítico deplora especialmente o que considera "selvagem" e inculto: uma obra grosseira e sem refinamento artístico, em que o todo é confuso, exagerado e inverossímil. This is a strange book. It is not without evidences of considerable power: but, as a whole, it is wild, confused, disjointed, and improbable; and the people who make up the drama, which is tragic enough in its consequences, are savages 5 “O Morro dos Ventos Uivantes é uma obra estranha, desprovida de preparo artístico. Há evidências em cada capítulo de uma espécie de vigor, de força inconsciente que o autor jamais pensa, ao que parece, em tirar melhor proveito. A impressão do conjunto é terrível ao extremo. Em toda a literatura, não encontramos nenhum livro como esse, que apresenta a humanidade sob aspectos tão revoltantes. Jane Eyre é um romance que afeta o leitor às lágrimas; ele nos toca profundamente às emoções. O Morro dos Ventos Uivantes lança uma sombra sobre a mente, que não é facilmente dissipada. Ele nos tortura, nos dando a impressão de sermos esfolados vivos.... Há passagens desse livro que nos faz lembrar Nowlans do falecido John Banim, mas dentre todas as obras anteriores, em primeiro lugar, ele nos faz pensar em A história de Mathew Wald, embora O Morro dos Ventos Uivantes não tenha nem igual unidade ou densidade: trata-se uma obra disforme, interminável, que não poupa o leitor, apresentando os atrozes tormentos que são infligidos sobre duas gerações de criaturas. Um gênio mau [Heathcliff, grifo meu] guia o desenrolar da narrativa e projeta uma sombra sinistra sobre o todo da obra, e transmite uma malignidade exclusiva que a torna um tanto desconexa.” (Nossa tradução) 22 ruder than those who lived before the days of Homer. With the exception of Heathcliff, the story is confined to the family of Earnshaw, who intermarry with the Lintons; and the scene of their exploits is a rude old-fashioned house, at the top of one of the high moors or fells in the north of England. Whoever has traversed the bleak heights of Hartside or Cross Fell, on his road from Westmoreland to the dales of Yorkshire, and has been welcomed there by the winds and rain on a 'gusty day', will know how to estimate the comforts of Wuthering Heights in wintry weather….If this book be, as we apprehend it is, the first work of the author, we hope that he will produce a second, - giving himself more time in its composition than in the present case, developing his incidents more carefully, eschewing exaggeration and obscurity, and looking steadily at human life, under all its moods, for those pictures of the passions that he may desire to sketch for our public benefit6. O crítico mostra-se avesso à paisagem desolada, árida e exposta às intempéries, que castiga viajantes e leitores, e que Emily Brontë delineou em toda sua aspereza. Opiniões como essa - carregadas de repúdio - ganharam eco também do outro lado do oceano. Publicada quase simultaneamente nos Estados Unidos, a obra de Brontë recebeu ali comentários ainda mais raivosos e desfavoráveis. Edwin P. Whipple, crítico do North American Review, ressaltou em resenha de oito de dezembro de 1848, o que chamou de “caracterização grosseira” do protagonista e a forma mórbida como o tema do amor-paixão é descrito no romance: His mode of delineating a bad character is to narrate every offensive act and repeat every vile expression which are characteristic. Hence, in Wuthering Heights, he details all the ingenuities of animal malignity, and exhausts the whole rhetoric of stupid blasphemy, in order that there may be no mistake as to the kind of person he intends to hold up to the popular gaze. Like all spendthrifts of malice and profanity, however, he overdoes the business... It must be confessed that this coarseness, though the prominent, is not the only characteristic of the writer. His attempt at originality does not stop with the conception of [Heathcliff], but he aims further to exhibit the action of the sentiment of love on the nature of the being whom his morbid imagination has created. This is by far the ablest and most subtile portion of his labours, and indicates that strong hold upon the elements of character, and that decision of touch in the delineation of the most evanescent qualities of emotion, which distinguish the mind of the whole family. For all practical purposes, however, 6 “Este é um livro estranho. Não é sem evidências de poder considerável, mas, como um todo, é selvagem, confuso, desconexo, e inverossímil; e os personagens que compõem o drama, que é trágico o suficiente em suas consequências, são selvagens e mais rudes do que aqueles que viveram antes dos dias de Homero. Com a exceção de Heathcliff, a história se limita à família dos Earnshaw, que casam com os Lintons; e o cenário de suas façanhas é uma antiga casa rústica, no topo de uma das turfeiras altas ou colinas no norte da Inglaterra. Quem quer que tenha atravessado as alturas sombrias de Hartside ou Cruz Fell, em seu caminho de Westmoreland aos vales de Yorkshire, e foi bem recebida lá pelos ventos e chuva em um "dia tempestuoso” vai saber como estimar o conforto de Wuthering Heights em um clima de inverno .... Se este livro ser, como esperamos, a primeira obra do autor, esperamos que ele vai produzir um segundo, - dedicando-lhe mais tempo em sua composição do que ao anterior, desenvolvendo seus incidentes com mais cuidado, evitando exageros e a obscuridade, e olhando fixamente para a vida humana, em todos os seus estados de espírito, para aquelas cenas das paixões que ele pode desejar esboçar para o nosso benefício público.” (Nossa tradução) 23 the power evinced in Wuthering Heights is power thrown away. Nightmares and dreams, through which devils dance and wolves howl, make bad novels7. Embora o repúdio a O Morro dos Ventos Uivantes pelos críticos tenha sido mais violento nos Estados Unidos, o sucesso junto aos leitores americanos foi imediato - aliás, até maior que na Inglaterra. Apesar da recepção negativa em território inglês, alguns críticos literários e resenhistas reconheceram nele o que chamaram de “a existência um grande poder, mesmo que sem propósito”. Dentre os aspectos incomuns do romance, o que chamou mais a atenção entre eles, foi o emprego, em seu discurso narrativo, de uma linguagem diferente das demais encontradas em textos literários publicados neste período, que foi definida como “masculina, violenta e que em alguns trechos se tornava lírico-poética”. A forma peculiar de escrita dessa obra, assim como a ousada e transgressiva temática de um amor ao mesmo tempo sublime e trágico, capaz de desafiar e colocar em risco a continuidade dos rígidos costumes e valores da sociedade vitoriana, fez com nos círculos literários surgissem comentários acerca de seu misterioso autor que se identificava por meio de um nome ambíguo, Ellis Bell. É importante esclarecer que poucos meses antes de O Morro dos Ventos Uivantes ser publicado, os leitores e críticos literários tinham sido surpreendidos com outro romance, Jane Eyre, que foi atribuído a um escritor desconhecido, Currer Bell. Apesar do conteúdo deste último ser considerado escandaloso para a sociedade vitoriana (devido aos temas da bigamia, relação amorosa entre empregada e patrão, o comportamento agressivo e mesmo bestial de Mr. Rochester), o livro teve boa receptividade por grande parte da crítica literária. 7“Seu modo de delinear um mau caráter é narrar cada ato ofensivo e repetir cada expressão vil que lhe são característicos. Por isso, em O Morro dos Ventos Uivantes, ele [Ellis Bell – grifo meu] detalha todos os engenhos de malignidade animal, e esgota toda a retórica de estúpida blasfêmia, a fim de que não possa haver nenhum erro sobre o tipo de pessoa que ele pretende exibir ao olhar popular. Como todos aqueles que se aproveitam de malícia e palavrões, no entanto, o autor exagera na caracterização desse personagem... É preciso confessar que essa grosseria, embora se destaque, não é a única característica do escritor. Sua tentativa de originalidade não se extingue com a concepção de [Heathcliff], mas ele ainda tem como objetivo expor a ação do sentimento de amor em sua mais mórbida natureza. Esta é de longe a porção mais sutil de seus trabalhos, e indica sua forte influência sobre os elementos de caráter, e que a decisão de toque no delineamento das qualidades mais evanescentes de emoção, que distinguem a mente de toda a família. Para todos os efeitos práticos, no entanto, o poder evidenciado em O Morro dos Ventos Uivantes é poder jogado fora. Pesadelos e sonhos, através do qual demônios dançam e lobos uivam, fazem romances ruins.” (Nossa tradução) 24 Posteriormente, no mesmo ano, com a publicação simultânea de O Morro dos Ventos Uivantes e Agnes Grey, atribuídas a Ellis Bell e Actor Bell, respectivamente, expandiram-se as especulações sobre quem seriam os chamados “irmãos Bell”, cujas obras se caracterizavam pela linguagem peculiar, que de forma imediata despertou um amplo interesse de autores renomados, tais como William Thackeray e George Eliot. Dessa forma, criou-se o mistério envolvendo os chamados “irmãos Bell” que, além de romances, também tinham publicado uma pequena coletânea de poemas no ano anterior. Logo, surgiram boatos que se tratava de um único autor, ou de uma autora com três pseudônimos ambíguos quanto ao gênero. Somente em uma nota biográfica escrita por Charlotte Brontë e publicada em 1850 em uma das edições de O Morro dos Ventos Uivantes, ela revelou a autoria de sua irmã, Emily, que havia falecido dois anos antes em decorrência de uma forte tuberculose. Nessa mesma nota biográfica, Charlotte ainda revelou que Currer Bell e Actor Bell eram pseudônimos adotados por ela e sua irmã mais nova, Agnes. E ela esclarece que a opção pelo anonimato havia sido feita por causa do preconceito com que eram tratadas as mulheres que se dedicavam à literatura neste período: Essa escolha ambígua de tais nomes era ditada por um escrúpulo de consciência, que nos proibia de adotar nomes francamente masculinos, repugnando-nos também de nos afirmarmos mulheres, porque, sem suspeitar ainda que a nossa maneira de escrever e de que pensar não era daquelas que pudessem classificar de “femininas” – nós tínhamos a vaga impressão de que as mulheres escritoras estavam sujeitas a serem julgadas preconceituosamente; havíamos notado que os críticos utilizavam, por vezes, para as castigar, a arma da personalidade, e, para as recompensar, uma lisonja que não é um verdadeiro louvor. (BRONTË, C., 2005, p. 384-385) Após a negativa recepção inicial em 1847, O Morro dos Ventos Uivantes foi gradativamente redescoberto pela crítica literária e o talento literário e poético de Emily Brontë aos poucos foi sendo reconhecido. Mas a verdadeira reviravolta deu-se a partir de 1880, quando o escritor inglês Algernon C. Swinburne se referiu muito elogiosamente ao romance e mencionou as “páginas trágicas e mágicas” de O Morro dos Ventos Uivantes, invertendo assim a ordem de importância entre a obra de Emily e de sua irmã, Charlotte. Depois dele, outros autores respeitados nos círculos literários, tais como E. M. Foster e Virginia Woolf, também reconheceram a importância do livro de Emily Brontë. Para Woolf, trata-se de uma obra de “grandiosa ambição”, capaz de lutar contra “a gigantesca desordem” do mundo (CORDEIRO; ALAMBERT, 2005, p. 370). Atualmente o valor literário de O Morro dos Ventos Uivantes é inquestionável, de modo que Harold Bloom (2008, p.7) chega a afirmar que “é uma obra clássica e canônica que recompensa o leitor em todos os níveis de sofisticação literária”. Ainda de acordo 25 com Bloom, não há nenhum romance da literatura inglesa que se equipare ao de Emily Brontë em termos de estilo e a utilização inovadora da linguagem. Entre os romancistas brasileiros, Raquel de Queiroz expressou grande admiração ao afirmar em sua introdução de O Morro dos Ventos Uivantes, que é impossível dissociar o livro e sua autora, perdendo-se muitas vezes até o nome do criador na grandeza de sua criação (2010, p. 6). Para Queiroz, o romance deve ser compreendido como um prolongamento da própria personalidade de Emily, a sua tradução, ou sua transposição para o universo literário: Tal como Cathy dizia que “era” Heathcliff”, Emily “é” Wuthering Heights: os personagens, a casa, a charneca, o vento gelado. Não pelo que de autobiográfico haja no livro, pois creio que sempre se empresta uma importância desproporcional à parte tida como autobiográfica que há em toda obra de ficção. Não será o detalhe, digamos “histórico”, que tem maior valor como depoimento e como documento: o que importa é a transubstanciação do autor na obra de arte, no tema, no cenário, na soma dos personagens. Que importância terá o fato de haver ou não Emily copiado sua Nely Dean a figura da ama Tabby? Ou, circunstância mais comentada ainda, o haver pintado, no fim de Hindley Earnshaw, o triste fim de seu próprio irmão, Branwell, aquele Branwell perdido, desgraçado, “who slep by day and raved by night”, na frase do comentador das Brontë? O principal que Emily deu de si não foi a anedota, nem as figuras, nem o ambiente do livro – foi o livro no seu todo, foi ela própria, sua alma estranha de vivente de um outro mundo transferida, por obra do milagre artístico, para aquela terrível história de amor. (QUEIROZ, 2010, p. 6) O comentário de Queiroz contribui de forma significativa para compreendermos melhor essa obra. O “mundo” de O Morro dos Ventos Uivantes configura-se por meio de conflito de forças opostas, que remetem ao bem e o mal existentes no âmago da natureza humana, além de estarem localizadas em uma tênue zona de fronteira entre o civilizado e o primitivo, o natural e o sobrenatural. Além disso, esse “mundo” descrito por Brontë se apresenta ao leitor de forma contraditória e ao mesmo tempo complementar. Ou seja, ele pode evocar uma espécie de Paraíso idílico, em que predomina a existência de uma rotina cotidiana e tranquila, mas em outro momento, também pode revelar um lugar infernal, violento, cruel, marcado por acontecimentos estranhos ou extraordinários, que instigam nossa imaginação. Vale lembrar que grande parte do romance de Emily Brontë é ambientado em Wuthering Heights, um antigo e rústico casarão, que serve de cenário para a aparição fantasmagórica de Catherine Earnshaw durante uma noite de tempestade. Assim, a marcante e detalhada descrição desse fantasma localiza o texto em uma modalidade literária com contornos macabros e sobrenaturais. Da mesma forma, os personagens 26 movidos por paixões mórbidas e egoístas e capazes de praticar atos terríveis para obterem o que desejam, levam-nos para o romance gótico. A fim de compreendermos melhor a inserção de O Morro dos Ventos Uivantes nesse gênero literário, dedicaremos o próximo capítulo a um panorama do romance gótico. Para isso iremos nos deter nos aspectos essenciais de seu surgimento, assim como suas principais características e obras. Dessa forma, propomos mapear as transformações da escrita gótica desde seu alvorecer perto da metade do século XVIII até as duas primeiras décadas do XIX. Nesse recorte pretendemos apontar como seus elementos recorrentes (estratégias de narração, atmosfera sobrenatural, aparições fantasmagóricas, encarceramento de mulheres, o duplo, execução de atos terríveis, morbidez, etc.) foram retomados e revistos por Emily Brontë e na composição dos principais personagens (Catherine e Heathcliff) e situações dramáticas de O Morro dos Ventos Uivantes. Também no próximo capítulo aproveitaremos para enfatizar as características dos cenários recorrentes - tão recorrentes que se tornaram típicos do gênero -, visando uma compreensão mais ampla de aspectos peculiares do romance de Brontë, principalmente no que tange ao que chamo de “espacialiadade gótica”. Esta é constituída por ambientes (Wuthering Heights, Thrushcross Grange, os morros, a charneca) que ganham uma significação metafórica, que contribui de forma significativa para a criação de uma atmosfera sobrenatural. 27 Capítulo 2 - O romance gótico e seus desdobramentos nos séculos XVIII e XIX 2.1. O aparecimento de um novo gênero literário: o romance gótico Desde de seu surgimento, um pouco depois da metade do século XVIII, o romance gótico é permeado por aspectos ambivalentes. A palavra “gótico” é cambiante e, ao longo do tempo, adquiriu várias acepções. Do ponto de vista histórico, esse termo recua até o tempo das tribos germânicas dos Godos (goths), que habitaram às margens do Mar Báltico por volta do século II a.C. e contribuíram de forma significativa para a queda do Império Romano nos séculos III, IV e V. A partir do declínio da civilização romana e advento da Idade Média, a denominação “gótico” passou a ser usada para se referir a qualquer manifestação artística que não se enquadrasse dentro dos padrões estéticos da cultura clássica, ou seja, pós- romana. Dentre elas, destaca-se a arquitetura gótica que tem seu surgimento na França, durante o século XII. Como exemplos de edificações góticas formadas por torres lanceoladas, gárgulas, cúpulas e arcos em ogivas, podemos encontrar as catedrais de Saint Dennis e de Notre Dame. Nesse cenário medieval ainda tem grande importância o castelo, uma vez que é uma construção isolada e constituída por corredores extensos e labirínticos. Dessa forma, ele se configura como um espaço assustador devido a suas grandes proporções, e, por isso é capaz de provocar intensas reações emocionais, tais como o terror, conforme demonstra uma passagem marcante de The Castle of Otranto [O Castelo de Otranto] (1764), obra inaugural do romance gótico: A parte subterrânea do castelo era escavada numa série de vários claustros interligados e não era fácil para alguém em tal estado de ansiedade encontrar a porta que abria para a caverna. Um silêncio assustador reinava nessas regiões subterrâneas, exceto quando, uma vez ou outra, algumas rajadas de vento sacudiam as portas pelas quais ela havia passado e os gongos de ferro ecoavam através daquele longo labirinto de trevas. Cada rumor deixava-a possuída por um novo terror; mas ainda assim temia, acima de tudo, a voz irada de Manfredo ordenando seus criados a perseguirem-na. (WALPOLE, 1996, p. 39-40) Esse trecho de O Castelo de Otranto atesta a importância do cenário nesse gênero literário - uma vez que o espaço se mostra decisivo nas narrativas góticas para a criação de uma eficiente atmosfera de terror. De acordo com George E. Haggerty (1989, p.11), o termo “gótico” em sua primeira aparição no âmbito da literatura não se refere apenas a 28 um espaço genérico, mas, principalmente, o modo específico como ele se configura na narrativa. Assim, ele se destaca por seus elementos obscuros, que adquirem contornos assustadores, e também pode evocar a continuidade de um tempo passado na época atual. Em outras palavras, trata-se de ambiente que pode ser definido como fantasmagórico ou soturno, capaz de provocar uma resposta emocional que se materializa a partir de reações de terror. O surgimento do gótico como forma literária passa da associação a um estilo arquitetônico para uma forma cultural múltipla, que responde ao contexto social e histórico da Inglaterra durante o século XVIII. Agora a denominação “gótico” adquire uma nova significação: após as mudanças no cenário político promovidas pela Revolução Gloriosa (1688-1689), esse termo passa a ser usado para se referir a um tempo remoto, que recua às origens germânicas do povo inglês e era tido como sinônimo de plena liberdade. Fred Botting (1996, p.42) autor de Gothic, um importante estudo sobre as manifestações do gótico e do cinema, afirma que revalorização de uma era passada procurou criar uma identidade cultural para a Inglaterra, de modo a afastá-la totalmente da cultura românica. Essa nova acepção de um “passado gótico”, que enfatiza as raízes do povo inglês, não pode ser determinada com precisão, embora ela tenha sido incorporada pelo Gothic Revival. Dentre as obras desse importante movimento artístico e intelectual, destaca-se Letters on Chivalry and Romance (1762), de Richard Hurd, que propôs o restabelecimento dos vínculos entre a literatura européia e a tradição histórica e social inglesa. Também nesse texto, Hurd argumenta que a novela de cavalaria e/ou romança (embutidos no termo inglês romance) são estruturadas nos valores da cavalaria e nos costumes da Idade Média. Outra consequência dessa mudança de mentalidade promovida pelo Gothic Revival foi a revisão do gosto estético, acarretando uma nova visão da arquitetura gótica- medieval (BOTTING, 1996, p. 32). Até então consideradas disformes e desproporcionais, as ruínas, por exemplo, passaram a ser admiradas por seu aspecto incomum e diferenciado. A partir da criação desse novo conceito de estética, buscou-se a valorização pela cultura inglesa do que podemos chamar de “a beleza do feio”. Assim, durante o século XVIII, a palavra “gótico” tem significações contraditórias, mas que se relacionam de modo complementar: ao mesmo tempo em que remetia a uma época passada, permeada pelos valores da democracia e da liberdade, também evocava um tempo primitivo e bárbaro, marcado pela violência, pela irracionalidade e a existência de eventos extraordinários. 29 A essa acepção do gótico soma-se a publicação de um tratado estético intitulado Uma investigação Filosófica sobre a Origem de nossas idéias do Sublime e do Belo (1757), do filósofo inglês Edmund Burke (1729-1798), em que o conceito de sublime é definido da seguinte forma: Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as idéias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um algum modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção, porque estou convencido de que as idéias de dor são muito mais poderosas do que aquelas que provêm do prazer. (BURKE, 1993, p.48) Burke define como “sublime” aquilo que é capaz de provocar intensas reações emocionais: a primeira delas é de assombro ou pavor diante de objetos que, devido ao seu tamanho e sua aparência, evocam sensações de vastidão, magnificência e infinitude, as quais podem ser experimentadas quando contemplamos uma planície cuja extensão de terra é tão vasta quanto o oceano, ou o penhasco de uma montanha. A outra é o medo, que se manifesta quando alguém é exposto a algum tipo de perigo, somado a dor. Para Burke (1993, p. 48), essas sensações - assombro, medo, dor -, as quais em si são desagradáveis, podem, ainda assim, produzir efeito prazeroso. Posteriormente, essa noção proposta por Burke de "terror" - que associa o medo ao sublime - foi ampliada e melhor detalhada por Ann Radcliffe, uma das principais escritoras de romances góticos. Dentre outros elementos da chamada “estética do sublime”, Burke também destaca a obscuridade, capaz de fazer com que uma imagem se torne terrível, e, por isso, seja capaz de suscitar o terror. Para ilustrar esse efeito estético, o autor faz referência à descrição da personificação da Morte no segundo livro de Paraíso perdido (1667), de John Milton: Ninguém parece ter compreendido melhor do que Milton o segredo de intensificar ou de mostrar coisas terríveis, se me permitem a expressão, sob seu ângulo mais brilhante, através de uma obscuridade sabiamente utilizada. Sua descrição da Morte no segundo livro é admiravelmente calculada; é assombroso como a pompa lúgubre e a sugestiva e eloqüente indefinição de pinceladas de cores ele executou o retrato da rainha dos terrores... Nessa descrição tudo é escuro, incerto, confuso, terrível e absolutamente sublime. (BURKE, 1993, p. 67) Ainda de acordo com Burke, também são consideradas fontes do sublime as intensas demonstrações de sensibilidade que incitam indivíduos a cometer atos terríveis e que aparecem nas principais tragédias gregas, ou peças teatrais de Shakespeare, assim como as violentas manifestações da Natureza que representam o poder divino, tais como os relâmpagos que rasgam o céu, terremotos ou as erupções dos vulcões. 30 Além do tratado de Burke sobre o elemento sublime, outra fonte literária em que se encontram as origens do romance gótico é a obra poética dos Graveyard Poets (Poetas de Cemitério). Esse grupo de poetas tem como principais temas a noite, a solidão e a possibilidade de existência após a morte, que remete aos mistérios do plano metafísico. Posteriormente, tais elementos são absorvidos com grande intensidade pela escrita gótica (BOTTING, 1996, p. 32). Além disso, o estilo peculiar dos Graveyad Poets caracteriza- se por ter uma natureza mais intuitiva e espiritualizada. Subtraindo-se à lógica do pensamento racional, eles foram fascinados pela transcendência em oposição à concretude da matéria. Em seu horizonte estão as coisas intangíveis e fluidas, adentrando a esfera do sobrenatural e insólito. Uma das publicações mais paradigmáticas dessa linha é Night Thoughts (1749), de Robert Young, cujos poemas são marcados pela construção de um jogo de imagens, capazes de criar uma relação ambivalente entre a vida e a morte, luz e trevas, e pela descrição do corpo físico, que aparece aprisionado à alma humana, enquanto a morte e a escuridão possibilitam sua transcendência. The Grave (1743), de Robert Blair, também obteve destaque por estimular os leitores a reflexão sobre a dimensão do além, não se destinando a provocar sensações de medo ou terror, mas a exaltar a importância dos mistérios associados ao divino. Night- piece on Death (1751), de Thomas Parnell, Night-piece (1751), de Nathaniel Cotton, e The Comtemplatist (1762), de John Cunningham, tratavam a morte como sua principal temática. Aqui, a morte não tem contornos sinistros, sendo apresentada como algo inofensivo, que não deveria ser temido. Dentre as obras dessa tendência, é An Elegy Written in a Country Churchyard (1751), de Thomas Gray, o texto poético que exerce maior influência sobre os romancistas que escrevem literatura gótica. Em suas estrofes destaca-se o uso de uma linguagem metafórica para criar imagens, das quais transparece uma abordagem melancólica da morte e seus mistérios, conforme exemplifica o excerto: The curfew tolls the knell of parting day, The lowing herd wind slowly o'er the lea, The ploughman homeward plods his weary way, And leaves the world to darkness and to me. Now fades the glimmering landscape on the sight, And all the air a solemn stillness holds, Save where the beetle wheels his droning flight, And drowsy tinklings lull the distant folds; Save that from yonder ivy-mantled tower The moping owl does to the moon complain Of such, as wandering near her secret bower, Molest her ancient solitary reign. 31 Beneath those rugged elms, that yew-tree's shade, Where heaves the turf in many a mouldering heap, Each in his narrow cell for ever laid, The rude forefathers of the hamlet sleep. The breezy call of incense-breathing morn, The swallow twittering from the straw-built shed, The cock's shrill clarion, or the echoing horn, No more shall rouse them from their lowly bed8. (GRAY, 2012, p. 807) A ênfase dada pelos Graveyard poets à esfera metafísica e sobrenatural evidencia sua incompatibilidade com a visão de mundo racionalista e propagada pela mentalidade cientificista, que defende a mera existência “mecanicista” do universo que tem suas origens no sistema newtoniano. Essa forma de compreender a realidade a partir dessa perspectiva tem suas origens no Iluminismo, um importante movimento histórico, filosófico e científico, que estabelece novos modelos de pensamento na cultura moderna, e contribuiu de forma significativa para o surgimento do romance gótico (BOTTING, 2000, p. 3). Sob este viés, o gótico pode ser compreendido como uma resposta emocional ao pensamento iluminista. Assim, esse gênero procurou manter viva a crença nos mistérios divinos que a Razão, predominante à época, buscava desmantelar ou colocar em descrédito. Dessa forma, o gótico pode ser compreendido como uma espécie de distorção ou inversão de alguns aspectos do Iluminismo. Essa mesma linha de pensamento é seguida por Noël Carroll, que realiza em Uma filosofia do Horror: Paradoxos do Coração, um amplo estudo sobre a gênese e a evolução do que ele chama de “horror artístico”. Sobre a correlação entre a gênese do horror e o Iluminismo, Carroll comenta: É sobre esse pano de fundo intelectual que surge o romance de horror como gênero. Assim, é tentador especular que pode haver alguma relação entre o gênero do horror e a difusão da visão iluminista do mundo. Várias hipóteses podem ser sugeridas acerca da correlação histórica entre esses dois fenômenos. Por exemplo, pode-se pensar que o Iluminismo valoriza a razão, ao passo que o romance de horror explora emoções, e mesmo emoções particularmente violentas do ponto de vista dos personagens de ficção. Esse contraste, ademais, pode ser amplificado, associando-o ao Iluminismo com a objetividade e o romance de horror com a subjetividade. (CARROL,1999, p.79) 8 Em tradução livre em prosa: "Avisa o sino que esmorece o dia, O tardio rebanho mugindo o aprisco busca, O cansado aldeão a sua humilde casa, retorna, deixando o mundo a mim e a escuridão. Agora a vasta paisagem se desvanecesse diante de meus olhos, com o silêncio solene os ares se calam, a não ser, onde um besouro rolando, zune em fuga, ou a sonolência tilitante que embala o distante rebanho; salvo na torre antiga, que se veste de hera, onde a coruja chorosa reclama para a lua, de tal maneira, que alguém, vagando, com temor investe em seu domínio solitário e velho. À sombra de olmos, teixos, nessa areia onde torneia o chão outeiros vários, para sempre os aldeões ancestrais da aldeia repousam. Em cela estreita dormem solitários. Aromas que respira a madrugada, gorjeios que do ninho as aves soltam, do galo o grito agudo, ou trompa ousada, em vão por eles chama, eles não voltam." 32 Ainda de acordo com Carroll, o romance de horror (gótico) funciona como uma espécie de válvula de escape, liberando tudo aquilo que a sociedade da época mantinha represado ou oculto. Vale lembrar que o gênero gótico tem o auge de sua popularidade no período que coincide com a Revolução Francesa. Assim, podemos ler muitas das cenas sangrentas e de horror dos romances góticos como uma evocação literária dos excessos perpetrados pela guilhotina iluminista do “Regime de Terror”. Apartados do continente, os leitores ingleses acompanhavam com medo a derrubada da monarquia francesa e os atos de brutalidade nas ruas de Paris; já no espaço ficcional, deliciaram-se com a representação da violência e irracionalidade. Essa mistura de medo e fascínio está na base da receita gótica de sucesso junto ao público. O aspecto negativo do Iluminismo encontra forte ressonância em The Monk (1796), romance de Matthew Lewis, que será comentado adiante com mais detalhes, ainda neste capítulo. Outra obra gótica, também afeita a criticar os excessos da mentalidade iluminista, agora materializada na especulação científica, é Frankenstein, or the Modern Prometheus (1818), de Mary Shelley, que se destaca por trazer à discussão a falta de ética na utilização de métodos científicos, os quais podem resultar em consequências desastrosas, além de poder ameaçar a própria continuidade da raça humana. O gótico - como expressão literária do irracional, grotesco e transgressivo -, significou uma ruptura frente aos conceitos estéticos neoclássicos, fundados na harmonia e equilíbrio, na erudição e naturalidade, que acompanharam o surgimento do romance no início do séc. XVIII pelas mãos de Defoe, Richardson, Fielding, Swift, etc. A condensação de significações diversas em um único termo e utilizada para designar um gênero literário, apareceu pela primeira vez no prefácio da segunda edição de O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, obra considerada o marco inaugural do romance gótico. Desde seu aparecimento, o romance gótico tem como peculiaridade o aspecto híbrido de sua escritura. Ou seja, o discurso narrativo das narrativas góticas se destaca por ser fragmentado e tem suas origens em várias formas literárias e manifestações artísticas dos séculos XVII e XVIII. Dessa forma, a tessitura do que podemos chamar de “escrita gótica” se configura a partir de motivos, temas e outros elementos que podem encontrados em diversas fontes de origem: na novela de cavalaria, nos dramas renascentistas, no romance cortês, nos contos de fadas, no Livro das mil e uma noites, no romance pitoresco, nos textos confessionais, nos romances sentimentais, nas ruínas, nas narrativas míticas ou romanescas, nas tumbas e nas especulações noturnas que aludem ao 33 plano metafísico e fascinavam os Graveyard Poets. Podemos também rastrear os precursores em épocas muito distantes, sendo possível recuar até o poema épico de Beowulf (séc. XI), que traz elementos macabros como o espaço (ambiente sinistro do pântano e floresta), criaturas canibais e monstruosas (Grendel e sua mãe), e temas (ambição desmedida, vingança, mortes trágicas). Traços “góticos” também marcam o maravilhoso medieval de The Faerie Queene (1590), de Edmund Spenser, e os penhascos envolvidos em brumas nos textos de Ossian (James Macpherson) no séc. XVIII. Devendra Varma (1987, p. 26), um dos principais estudiosos do romance gótico, que analisa amplamente em The Gothic flame os diferentes estilos de sua escritura nos séculos XVIII e XIX, menciona outra fonte relacionada à suas origens: a balada. Nessa expressão poética pode ser encontrado outro elemento que será incorporado na estrutura narrativa das narrativas góticas: a ocorrência de estranhos incidentes marcados pela violência e selvageria e que são contrapostos por valores de coragem, honra e nobreza. Além disso, nas baladas são narrados eventos extraordinários, tais como o aparecimento do espírito de um homem que volta do além para buscar a mulher amada. As tragédias shakespearianas também forneceram bons exemplos de uma contínua atmosfera sinistra e sobrenatural, que é retomada e ampliada nos romances góticos para alcançar o efeito de terror/horror (VARMA, 1987, p. 30). Dentre os exemplos pioneiros fornecidos por Shakespeare destacam-se as aparições de fantasmas e bruxas (Hamlet, Macbeth), as profecias que sinalizam o destino trágico de um dos protagonistas (Julio César), além dos cenários mórbidos, tal como a câmara mortuária, que permanece isolada e envolvida em trevas (Romeu e Julieta). Além disso, Horace Walpole, Ann Radcliffe e outros autores que escrevem literatura gótica, foram buscar em Shakespeare a inspiração para muitas das mais marcantes características negativas dos vilões, tais como a ambição desmedida e a inveja. Também é perceptível na composição do vilão – personagem que tem grande destaque na literatura gótica -, a retomada de aspectos assustadores que podem ser encontrados na figura “sublime” de Satã, o protagonista de Paraíso perdido (1667), de Milton. Assim, nos romances góticos aparecem seres perversos que são instigados por paixões egoístas e pelo desejo de vingança, os quais causam sua própria ruína e destruição. Em grande parte dos textos góticos, principalmente do século XVIII, podemos encontrar a ambientação em uma época passada, entre a Idade Média e a Renascença, na qual que predomina a crença na existência de manifestações sobrenaturais, demonstrações de práticas “bárbaras” e irracionais em contraste com valores morais e a racionalidade. https://pt.wikipedia.org/wiki/James_Macpherson 34 Como vimos, as fontes que deram origem ao gótico são as mais diversas. De acordo com Ariovaldo José Vidal (1996, p. 7), que assina a apresentação de uma edição de O Castelo de Otranto, as raízes desse gênero literário se encontram espalhadas pela história cultural inglesa. Com o passar do tempo, a escrita gótica se infiltra em uma gama de formas literárias e altera suas próprias convenções, incorporando elementos de outros gêneros e instigando o surgimento de alguns deles, tais como a narrativa policial ou de suspense e a Ficção Científica, que se tornam muito populares desde o final do século XIX até hoje. 2.2. As principais características do romance gótico Uma das principais características do discurso narrativo do romance gótico é o exagero. As imagens delineadas nas narrativas góticas tendem a assumir uma proporção exagerada: os cenários são imensos e, dentre eles, destaca-se o castelo decadente, em ruínas, desolado e cheio de passagens secretas que dão acesso a outros edifícios, tais como abadias e cemitérios, associados ao passado medieval de “barbarismo”, superstição e medo (BOTTING, 1996, p. 3). Nos enredos dos principais textos góticos de Ann Radcliffe, o castelo se apresenta como um espaço fechado e labiríntico e pode ser compreendido de forma metafórica: como um tipo de prisão utilizada pelos homens para encerrar as mulheres para oprimi-las e submetê-las à sua vontade. Visto pela perspectiva feminina, esse lugar se torna sinistro, uma vez que sugere a ideia de encarceramento, conforme demonstra a passagem de The Mysteries of Udolpho (1794) em que Emily St. Aubert adentra um deles, o qual é descrito da seguinte maneira: As the carriage-whells rolled heavily under the portcullis, Emily’s heart sunk, and she seemed, as if she was going into her prison; the gloomy court, into which she passed, served to confirm the idea, and her imagination, ever awake to circunstance, suggested even more terrors, than her reason could justify9. (RADCLIFFE, 2004, p. 210) Além disso, incertezas sobre a natureza do poder, lei, sociedade e família também apareceram nos enredos dos romances góticos. Neles, esses temas estão associados à expansão das ameaças de desintegração social, manifestadas principalmente no período das revoluções políticas. 9 “ Enquanto as rodas da carruagem passavam com firmeza embaixo do portão principal, Emily sentiu seu coração afundar e para ela parecia que estava entrando em uma prisão; o escuro corredor, em que ela passou, serviu para confirmar esta ideia e sua imaginação, desperta por esta circunstância, também sugeriu a existência de mais terrores, que sua razão não conseguia justificar.” (Nossa tradução) 35 As personagens femininas da ficção gótica, principalmente as protagonistas das narrativas de Ann Radcliffe, quando são expostas a uma situação de perigo, reagem de forma extremada, seja por meio do choro compulsivo, seja desfalecendo. Esse comportamento que enfatiza a intensa sensibilidade e até mesmo descontrole emocional, pode ser encontrado em um trecho de The Mysteries of Udolpho, em que a heroína Emily de St. Albert começa a chorar sem parar, quando se sente sozinha e ameaçada por Montoni: Emily, having turned way to hide her tears, quitted the room, to indulge them, and the day was passed in an intensity of anguish, such she had, perhaps, never known before. Whe she withdrew to her chambers for the nigth, she remaind in the chair where she had placed herself, absorbed in her grief, till long after every member of the family, except herself, was retired to rest 10 . (RADCLIFFE, 2014. p. 140-41) Essas intensas reações emocionais são provocadas por um tipo de personagem recorrente no romance gótico, o vilão, que pode ser de ambos os sexos e aparece de forma destacada em grande parte das obras. Enquanto personificação absoluta do Mal, ele/ela é capaz de cometer atos terríveis e amorais, tais como aprisionamentos, envenenamentos, torturas físicas e psicológicas, visando causar intenso sofrimento em suas vítimas a fim de obter algum tipo de ganho financeiro, ou satisfação pessoal, geralmente motivada por um intenso desejo de vingança. O vilão ou a vilã também possui uma característica marcante e específica: seus atos terríveis atravessam os limites fixos que separam o Bem e o Mal, a luz e as trevas. Contudo, quando os vilões ultrapassam essa zona de fronteira, eles percebem tardiamente que serão punidos com a prisão ou a morte. Inicialmente, nos textos escritos até o final do século XVIII, os personagens seguem uma caracterização “maniqueísta”, fundada em extremos. De um lado, as mocinhas e heróis sempre são guiados pela virtude e bondade; de outro, os vilões espelham o que há de pior na natureza humana: maldade, egoísmo e ambição desmedida. Dentre eles, destaca-se Ambrósio, o protagonista de The Monk (1796), que em um dos trechos mais chocantes e assutadores desse romance, confessa o desejo de violentar a inocente Antônia: "For your sake, Fatal Beaty!" murmured the Monk, while gazing on this devoted prey; 'For your sake, have I comitted this murder, and sold myself to eternal tortures. Now you are in my power: The produce of my guilt will at 10“ Emily, tendo virado as costas para esconder suas lágrimas, deixou a sala, para a satisfação deles, e ela passou o resto do dia em um estado de angústia intensa que nunca antes havia experimentado. Quando ela se retirou para seu quarto a noite, permaneceu um longo tempo sentada, absorvida em sua tristeza, até que todos os membros de sua família, exceto ela mesma, fossem dormir.” (Nossa tradução) 36 least be mine. Hope not your prayers breathed in tones of unequalled melody, your bright eyes filled with tears, and your hands lifted in suplication, as when seeking in penitence the Virgin's pardon; Hope not, that your moving inocence, your beautious grief, or all your suppliant arts shall ransom you from my embraces. Before the break of day, mine you must, and mine shall be!" 11 (LEWIS, 1998, p. 379) Esse excesso também se faz presente na estrutura narrativa de grande parte das obras inseridas no gênero gótico, constituindo-se assim em um de seus principais problemas como forma literária, principalmente no que se refere à verossimilhança e a extensão. Após a publicação de O Castelo de Otranto surgiram narrativas, que se configuram no formato de “boneca russa”, ou seja, uma história que contém várias outras histórias. Assim, temos o que podemos chamar de “desvio” de foco na “narrativa moldura” do romance para subtramas envolvendo personagens secundárias ou a transcrições de textos, tais como poemas, que aparecem em alguns trechos dos livros de Ann Radcliffe, a exemplo de The Mysteries of Udolpho. Trata-se de uma estratégia de narração usada para adiar o desdobramento da trama principal, visando criar suspense e assim prender a atenção do leitor. Essa técnica tem, como contrapartida, um grande volume de subtramas e personagens, o que contribui para um efeito labiríntico do próprio texto como um todo. Apesar de seu aspecto pouco “realista”, a maioria dos romances góticos escritos na metade do século XVIII têm como pano de fundo as significativas transformações na prática de comércio e noções de propriedade privada, governo e sociedade que estavam sob um maciço processo de transformação nesse período. Mais do que um simples modo de entreter o público leitor, constituído em sua maioria por membros da classe burguesa que à época estava em plena ascensão social, o romance gótico ao longo do tempo, tornou- se um veículo adequado para tratar de questões políticas e estéticas dessa época. Sobre os elementos recorrentes em seu discurso narrativo, o crítico literário Otto Maria Carpeaux comenta: É o romance dos espectros em castelos arruinados, de mocinhas presas em cárceres subterrâneos por criminosos, de monges desenfreadamente debochados, uma caricatura do mundo medieval, com fortes tendências 11 “Para o seu bem, Fatal beleza!” – murmurou o monge, enquanto mantinha os olhos fixos sobre sua adorada presa; ‘Para sua salvação, eu cometi este crime, e me vendi para as eternas torturas. Agora, você está sob meu poder: o produto de minha culpa, finalmente será todo meu. Não tenha esperança em suas orações murmuradas em tom de uma melodia sem igual, seus olhos cheios de lágrimas, e suas mãos erguidas em suplício, como se estivesse à procura do perdão da Virgem; Não tenha esperança que sua transitória inocência, sua beatífica tristeza e suas suplicantes artes irá te resgatar de meus abraços. Antes do romper do dia, você será minha e de mais ninguém’.” (Nossa tradução) 37 anticlericais, como convém ao Século das Luzes, e tudo é colocado num país pitorescamente exótico, às mais das vezes na Itália, não importa, pois o gosto oficial da época, que continua o Classicismo, tudo aquilo que não é Antiguidade greco-romana ou França, é exótico. A literatura popular ou “trivial” da época acreditava tudo isso. Mas os leitores cultos, estes sabiam melhor: o país exótico para o qual se refugia o anticlassicismo é o país de todas aquelas novidades – da poesia da natureza e da noite dos túmulos, do romance sentimental e do romance “gótico” é a Inglaterra (CARPEAUX,1978, p.160). É importante ressaltar que a definição do crítico literário, apesar de destacar os principais temas e motivos que caracterizam o romance gótico, é insuficiente para defini- lo. Ao longo do tempo seu discurso narrativo foi modificando-se e até mesmo se adaptando a práticas e recursos típicos do romance, assim como incorpora elementos de outras literaturas. Dentre as características específicas do romance gótico, uma delas se mantém inalterada e aparece de forma marcante nos principais textos filiados a ele: o estilo de linguagem empregado pelos romancistas para provocar no leitor uma imediata resposta emocional - de medo -, mais do que “edificá-lo”, com ensinamentos morais. Assim, a escrita gótica tem como característica essencial o desejo expresso dos autores de excitar os leitores em vez de doutriná-los, de “gelar” o sangue, de fortalecer suas fantasias, e de alimentar o interesse do leitor pelo maravilhoso, onírico, estranho e até mesmo por eventos macabros, em vez de ensinar-lhes lições que pudessem ser aplicadas na vida prática. Esse efeito de terror “prazeroso” suscitado do romance gótico é carregado de tensão; para a crítica da época, pareceu promover o vício e a violência, e com potencial de propiciar as ambições egoístas e desejos sexuais que estariam além dos deveres morais e sociais (BOTTING, 1996, p.6). Contudo, em contrapartida, no desfecho das obras góticas, tais atos transgressivos são sempre punidos com terríveis castigos, embora a grande parte da crítica literária à época formada por escritores, defendesse a ideia de que essas lições de moral eram insuficientes para atenuar a fascinação que os prazeres ilícitos exerciam sobre os leitores. Nos romances góticos o “mundo” é apresentado de forma diferente e mais excitante, uma vez que os horrores descritos eram capazes de projetar um esmagador poder que ameaçava não apenas a perda da sanidade, mas também da honra, da propriedade ou sua posição na sociedade. Em contrapartida, no desfecho de grande parte das obras inseridas na literatura gótica, a transgressão ao mesmo tempo que provocava o surgimento de temores associados à desintegração social, também propiciava a reconstrução dos limites ultrapassados: o Bem para existir depende do Mal, a luz nasce das trevas, a razão tem seu surgimento em meio à irracionalidade. Assim, por privilegiar os elementos “não realistas”, o gótico como forma literária não obedece plenamente às convenções mais usuais da escrita romanesca (HAGGERTY, 38 1989, p. 21). Além disso, o desenvolvimento das situações dramáticas das tramas tende a ser enfraquecido pelo emprego de um ambiente sombrio ou sinistro, no qual irrompe o sobrenatural, ou seja, aquilo que não pode ser explicado ou compreendido pelos próprios personagens. Com isso o elemento sobrenatural tem a tendência de “contaminar” o discurso narrativo, dando margem à artificialidade e inverossimilhança. Mas isso não significa que o gótico não tenha um caráter essencialmente inovador e transgressor. Em um primeiro momento, principalmente nas obras góticas escritas até o final do século XVIII, a reafirmação da harmonia e do equilíbrio, – importantes valores neoclássicos e recorrentes nos textos “realistas” (Tom Jones, por exemplo) -, somente se concretiza em seu desfecho, de modo a demonstrar a plena reparação das relações sociais. Vale lembrar que o aspecto moralizante das narrativas góticas é expresso no modo como os vilões são punidos - com a morte ou prisão -, e os heróis e mocinhas, que representam a virtude e a bondade, são recompensados com o casamento e a promessa de eterna felicidade. Assim, podemos afirmar que o gótico como forma literária, desde seu surgimento até a época atual, pode ser compreendido como uma espécie de espelho distorcido da realidade, no qual podemos ver refletidos os costumes e códigos morais que regulam a vida cotidiana nos séculos XVIII e XIX. Por outro lado, o gótico em seu cerne também enfatiza uma tensa relação de conflito/ambivalência entre o selvagem e o civilizado, o sobrenatural e o natural, a razão e a paixão, a individualidade e a sociedade. 2.3. O marco inaugural do romance gótico: O Castelo de Otranto O Castelo de Otranto é considerado o marco inicial da tradição gótico-literária inglesa, tendo sido publicado anonimamente em 1764. O prefácio de sua primeira edição afirmava que a obra era uma transcrição de um manuscrito descoberto em uma antiga biblioteca e escrito em “letras góticas”. Ainda de acordo com esse prefácio, o enredo se passa em época histórica imprecisa (eventualmente durante o tempo da primeira Cruzada), e aos personagens teriam sido atribuídos nomes fictícios para que as famílias não fossem identificadas. Após a boa recepção do livro entre os leitores, que em pouco tempo o tornaram um best-seller, o autor manifestou-se, revelando sua identidade. Tratava-se de Horace Walpole, um membro da aristocracia inglesa que era fascinado pelo Gothic Revival e morava em um edifício, cuja arquitetura imitava um castelo medieval. Em outro prefácio, acrescentado à segunda edição de O Castelo de Otranto, Walpole relata sua intenção de 39 desvencilhar-se das regras estéticas neoclássicas e também combinar duas modalidades de ficção: o romanesco (em inglês, romance), em que predominavam acontecimentos sobrenaturais que remetiam ao aspecto maravilhoso do imaginário medieval, e o romance moderno (novel), no qual se sobressaia a reprodução convincente dos hábitos sociais da vida cotidiana e da natureza humana. Ainda de acordo com Walpole, foi a partir da combinação dessas duas vertentes literárias, uma antiga e outra moderna, que ele procurou superar as limitações que existiam em ambas. Contudo, a narrativa de Walpole enfatiza mais a descrição de eventos extraordinários e confere pouca ênfase à representação mimética de personagens e de situações “realistas” conforme os usos da época (BOTTING, 1996, p. 48). Essa afirmação de Botting cabe especialmente para o que se lê no prefácio da segunda edição de O Castelo de Otranto. Nele, o autor havia comentado que, para criar alguns personagens que aparecem em sua trama, inspirou-se em situações já presentes em tragédias de William Shakespeare. Vale lembrar que existem pontos de proximidade entre o romance de Walpole e a peça Hamlet: ambas são ambientadas no interior de um castelo medieval mal-assombrado, e em ambas um fantasma visita os vivos para reparar uma injustiça cometida no passado. Ainda nesse segundo prefácio, o autor salienta que o impulso para sua criação foi um pe