O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS QUESTÕES LOGÍSTICAS: O CONDE D’EU NA GUERRA DO PARAGUAI (1869-1970) BRAZ BATISTA VAS O final de uma guerra e suas questões lOgísticas CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Tânia da Costa Garcia Márcia Pereira da Silva Susani Silveira Lemos França Braz Batista Vas O final de uma guerra e suas questões lOgísticas: O cOnde d’eu na guerra dO Paraguai (1869 – 1870) © 2011 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ V444f Vas, Braz Batista O final de uma guerra e suas questões logísticas : o conde d’Eu na Guerra do Paraguai (1869-1870) / Braz Batista Vas. - São Paulo : Cultura Acadêmica, 2011. 316p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-180-5 1. Paraguai, Guerra do, 1865-1870. 2. Brasil - História militar. I. Título. 11-6620. CDD: 989.205 CDU: 94(89.2)”1865/1870” Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró- -Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Editora afiliada: À minha esposa, Leide S. Monteiro Vas, farol da minha vida, com amor, a meus pais, Apparecida Baptista de Jesus Vas e José Batista Vas Filho, e minhas tias, Rita Vas Batista e Conceição Batista Vas, por sempre me apoiarem. AgrAdecimentos após laborioso período de realização deste trabalho, deixo regis- trado aqui os meus absolutos e sinceros agradecimentos a todos que contribuíram, direta ou indiretamente, para torná-lo possível; em especial, a algumas pessoas sem as quais não seria viável a execução deste estudo e a publicação deste livro. assim, agradeço sinceramente ao meu orientador, samuel alves soares, pela confiança, pelo apoio e pelas orientações precisas e esti- mulantes conversas que tivemos mesmo a longa distância; ao capitão Francisco Corrêa e a todo o arquivo Histórico do Exército (aHEX), pelas suas sugestões e pela franca e enriquecedora pesquisa das fon- tes ali depositadas; ao Museu imperial, em especial a divisão de arquivos, pelo auxílio quanto às fontes e pelo profissionalismo dos funcionários que me atenderam; ao instituto de Estudos Brasileiros (iEB-UsP), pela presteza em disponibilizar uma série de obras do século XiX, em formato digital; ao colegiado do curso de História da Universidade Federal do tocantins (UFt), Campus de araguaína, minha casa profissional desde 2003; a CaPEs, pela bolsa pró-dou- toral; e ao Museu imperial, pelos documentos da família imperial que encerra e pela ponte que faz com arquivos que demandam auto- rização dos descendentes da família imperial, como é o caso do ar- quivo Grão-Pará, que foi fundamental para este trabalho. também não poderia deixar de destacar o acervo do iEB e a presteza com que 8 BRAz BATISTA VAS disponibilizaram, após pedido de digitalização, várias publicações do final do século XiX e início do XX, que agora estão ao alcance de todos com acesso à internet. agradeço, também, de uma forma muito pessoal e especial à mi- nha esposa Leide s. Monteiro Vas, pela paciência e pelo amor nesses dias atribulados; à minha sogra Josefa Maria Monteiro, pelo apoio e carinho; à minha irmã Cilene Batista Vas, aos meus pais, José Ba- tista Vas Filho e apparecida Baptista de Jesus Vas, e às minhas tias rita Vas Batista e Conceição Batista Vas, pelo incentivo e apoio; aos colegas: Valéria da silva Medeiros, pelo auxílio com o inglês e pelas leituras, revisões e sugestões; isabel Cristina teixeira, pelas leituras, revisões e sugestões; Vasni de almeida, Dernival Venâncio ramos Junior e Dimas José Batista, pela leitura atenta e sugestões; a silvia Donizete resende, Celina Kanaciro e Fábio zerbini, pela amizade e pelo apoio logístico em Franca e são Paulo. Por fim, não poderia deixar de prestar minha homenagem e agra- decimentos aos professores Héctor Luis saint-Pierre e suzeley Kalil Mathias, por acompanharem minha trajetória na Unesp, campus de Franca, desde os tempos de graduação, pelas conversas, orientações e enriquecedora amizade da qual sou tributário. No mais, a todos os demais amigos e colegas, próximos e mais distantes, que de alguma forma contribuíram com esta minha jornada. Este livro traz em si, um pouco de mim e um pouco de todos que me cercam! sumário introdução 11 1 a Guerra do Paraguai em perspectiva 31 2 as Forças terrestres Brasileiras e a Logística 65 3 Manutenção da guerra pelo Brasil: considerações sobre a Logística no final da Guerra do Paraguai 115 4 O conde d’Eu, a guerra e suas questões logísticas 173 5 D’Eu, Paranhos e as providências ao final da guerra 255 Considerações finais 293 referências bibliográficas 303 introdução No texto “Documento/monumento”, Jacques Le Goff (2003, p.525-41) traduziu de forma excepcional os dilemas do historiador diante do ofício de trazer à luz aquilo que, imaginado antes como insípido ao paladar do fato histórico tradicional – tal qual se verifi- ca no ideário positivista –, agora merece tanta ou a mesma atenção dada à política ou à economia. Em seu texto, ele trata daquilo que pode ser explorado pelo historiador como documento, não neces- sariamente e tão somente os documentos escritos, assim, voltamo- -nos às transformações rumo à construção social, pontual ou cole- tiva, dos marcos comemorativos, das alternâncias historiográficas, dos avanços e das limitações técnicas, das vivências e dos problemas cotidianos como instrumentos de disputa e embate de projetos de memória. Para Le Goff, [...] a memória coletiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma es- colha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento tem- poral do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciên - cia do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monu- mentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador. (Le Goff, 2003, p.525-6) 12 BRAz BATISTA VAS Eis o desafio que se coloca, também, à História Militar. Com relação ao evento conhecido como Guerra do Paraguai, esses proje- tos de memória sacralizam ou obscurecem variações de um mesmo tema. Disso resulta uma série de dificuldades e desafios em perscru- tar os meandros de aspectos diversos desse conflito. Os historiadores se interessam pela memória como um fenômeno his- tórico; pelo que se poderia chamar de história social do lembrar. Consi- derando-se o fato de que a memória social, como a individual, é seleti- va, precisamos identificar os princípios de seleção e observar como eles variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam com o passar do tempo. as memórias são maleáveis, e é necessário com- preender como são concretizadas e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade. (Burke, 2006, p.73) Desse modo, procuraremos tratar da história da Guerra do Pa- raguai e de suas diversas memórias e histórias. Considerando-se que o Brasil vive um momento extremamente propício à retomada do olhar do historiador em relação à história militar nacional e que a Guerra do Paraguai é um evento rico em diversas temáticas possíveis de serem exploradas, este trabalho justifica-se, inicialmente, pela necessidade de se ampliar o olhar de historiadores sobre os eventos militares, suas ramificações e implicações no campo da política e da cultura, ou da cultura política, haja vista que, segundo Castro, ize- cksohn e Kraay, [...] durante a maior parte do século XiX, a história militar foi fre- quentemente associada a outros campos da história e mesmo da li- teratura. seria difícil dissociá-la desses gêneros para considerá-la um campo próprio. O que é atualmente visto como a história militar tradicional – os estudos minuciosamente documentados das institui- ções, guerras, campanhas, batalhas e táticas – apareceu pela primeira vez no Brasil nos anos de 1890, alcançando seu apogeu na primeira metade do século XX. Esse era, na maioria das vezes, o território de historiadores militares e, ocasionalmente, de admiradores civis. a história militar acadêmica tem tido uma trajetória difícil no Brasil. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 13 [...] a academia dedicou pouca atenção à história militar para além dos estudos do envolvimento militar na política. (Castro; izecksohn; Kraay, 2004, p.13) trata-se de um grande desafio. seja na duração ou nos elementos que se destacaram por qualquer ato, fato ou façanha, guerras e confli- tos têm o que comumente se chama de momento decisivo. Esse mo- mento pode ser apenas um ou vários num mesmo evento histórico. a Guerra do Paraguai – um dos maiores eventos bélicos da américa durante o século XiX, por sua duração e crueza dos fatos – teve alguns desses momentos, que, nas suas múltiplas possibilida- des, enveredou pela indefinição quanto a sua rápida conclusão. a guerra principiou entre novembro e dezembro de 1864 e se arrastou até março de 1870, tendo fim com a morte do presidente paraguaio Francisco solano López. todavia, o fim de 1868 ensejou o sucesso, extremamente caro e difícil, às forças aliadas do Brasil, da argentina e do Uruguai numa série de batalhas que foram celebrizadas na his- toriografia militar brasileira como a “Campanha da Dezembrada”. sob o comando de Caxias, viabilizou-se, logo no início de 1869, a conquista da capital paraguaia, assunção, e a guerra parecia en - tão caminhar logo para o fim. Mas Caxias, ao sabor de muita polê- mica, resolveu encerrar sua participação no conflito; alegou proble- mas de saúde e retornou ao rio de Janeiro, deixando para trás uma guerra inconclusa nos termos estabelecidos pelo tratado celebrado para unir Brasil, argentina e, a reboque, o Uruguai. a guerra, que parecia próxima do fim, arrastou-se por mais de um ano a partir desse momento. Este é o momento peculiar, o marco temporal ini- cial da análise que será feita aqui. Os focos da análise são o encerra- mento do conflito, suas dificuldades logísticas e os procedimentos militares e diplomáticos do fim da campanha, que deram início a um período de ocupação militar brasileiro-argentino até pratica- mente 1876. após a saída de Caxias, as ações militares aliadas tenderam à estagnação e a erupções de descontrole. só a indicação e a chegada do conde d’Eu para comandar as forças brasileiras alteraram a situação. 14 BRAz BATISTA VAS Eis aqui outro ponto importante nesta pesquisa e reflexão sobre esse período: a atuação do conde d’Eu na campanha do Paraguai. Poucos estudos recentes focam na atuação militar e político-diplomática des- se comandante das forças brasileiras no momento final da guerra –, fato em grande medida creditado ao alvorecer da república e a sua necessidade de lapidar ícones apropriados aos novos tempos políti- co-institucionais. tal esmaecimento republicano no tocante a esse período específico do evento merece, assim, atenção do historiador com foco na história militar. Mesmo com a atuação do conde d’Eu à frente das forças brasilei- ras e aliadas na fase final da guerra, pretendemos desembaraçar um pouco mais a compreensão do emaranhado de elementos que compu- nham, no período, o que conhecemos hoje como “logística militar” nos termos da relação entre as necessidades das forças militares bra- sileiras e o esforço logístico mobilizado – algo vital à manutenção dos esforços de guerra. Nesse sentido, é esclarecedor problematizar essa fase final do conflito de modo a ponderarmos sobre a evolução ou não do funcionamento das engrenagens militares do império, para verifi- carmos as marcas de um aprendizado duro e prático em uma guerra longa e desgastante. Não se trata aqui de apresentar uma genealo- gia do progresso técnico do que se compreende hoje como “logística militar”; mas sim de captar a historicidade das mudanças ocorridas num momento extremo, de conflito real e avassalador, com profun- do impacto e variante quanto a valores e significados culturais em geral. Nesse processo, será destacada, em especial, a fase final da campanha, sob a liderança do conde d’Eu. Eis, então, alguns pontos a serem problematizados na análise que se segue: houve aprimoramento dos procedimentos ao fim do conflito em relação a seu início? Como o conde d’Eu contribuiu para tal? abordaremos essas questões adiante. Da transição de um personagem a outro na condução dos esfor- ços de guerra, daí para algumas questões “logísticas” da fase final do conflito e, enfim, dessas questões a suas implicações no cotidiano da luta, reverberando na lide militar propriamente dita e na sua correla- ção com alguns trabalhos diplomáticos e vice-versa. É dessa maneira que buscaremos percorrer um vórtice de ações e/ou inações, de sua O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 15 dificuldade prática mais frugal a sua amplitude político-institucional no topo das decisões. Por exemplo, após a ocupação da capital para- guaia, os representantes diplomáticos puderam estender sua atuação direta ao interior da nação guarani, adiantando negociações para a re - composição do Estado paraguaio com a guerra ainda em curso. Essa conexão entre os esforços militares e diplomáticos adiciona outro nome importante a esse contexto, o de José Maria Paranhos, cuja atua ção garantiu a aproximação dos interesses e demandas do im- pério da realidade geopolítica platina e vice-versa. isso nos leva a al- gumas intersecções entre os trabalhos militares e os trabalhos diplo- máticos e a alguns problemas comuns a ambos, como as condições mínimas necessárias para o avanço das tropas no encalço de solano López e para a atuação conjunta de forças militares de nacionalidades distintas permeada por desconfianças mútuas e cheias de cautela. Os problemas vivenciados ao fim da campanha do Paraguai cos- tumam aparecer, em geral, como discretas notas aos feitos de des- tacadas personalidades históricas. assim, procura-se aqui aclarar tais problemas em sua dimensão e seu contexto histórico a fim de contribuir para o debate historiográfico e o fazer do ofício do histo- riador. Como veremos, a preservação da memória e da história do conflito com o Paraguai ocorreu de forma variada: pela publicação de livros, mapas, cartas e jornais; pelas canções que ainda trazem reminiscências desse episódio; pelas fotografias e pinturas que reme- tem a certas memórias visuais do conflito, a monumentos erguidos em homenagem a personagens que se envolveram diretamente nas batalhas, a fatos e feitos que marcaram certos momentos da guerra; enfim, pelas homenagens feitas – batizando-se ruas, praças, cidades, locais e instituições, a exemplo de escolas e instalações militares que perpetuam algum fragmento da memória e história desse evento na- cional. as homenagens e rememorações se espalharam aos poucos. isso ocorre assim: [...] o conflito fornecia batalhões de glórias militares, de mortes prema- turas e trágicas, de mártires para a pátria e para o imperador que con- vinha homenagear. Maurice agulhon observa que, em toda parte, os 16 BRAz BATISTA VAS soldados foram os primeiros a ser representados em estátuas na praça pública, porque ofereciam menos motivo para controvérsia do que os políticos e apareciam como os primeiros servidores da nação (agulhon, 1988, p.159-60). a Guerra do Paraguai motiva várias encomendas ofi- ciais a fim de fixar para a posteridade os grandes momentos do Exército e da Marinha imperiais, associando-lhes alguns semblantes. a Expo- sição Geral de 1872 vê assim se defrontarem dois pintores em torno de um único tema. A Batalha de Campo Grande, de Pedro américo, evoca “a bravura do general [conde d’Eu], a dedicação do soldado brasileiro [capitão almeida Castro], e o momento em que se torna decisiva a nossa vitória” (Catálogo, 1872, p.22). a tela de Vítor Meireles, Combate naval de Riachuelo, tem como ator principal o futuro almirante Barroso, que, “imponente sobre o passadiço do imortal Amazonas brada – Viva o im- perador e a Nação brasileira!”, grito repetido por toda a frota (Catálogo, 1872, p.29). Nos dois casos, as vitórias e os quadros celebram a união da família imperial e da pátria. Na mesma perspectiva, o iHGB toma a iniciativa de organizar subscrições para erguer monumentos equestres a Caxias e a Osório (Paschoal Guimarães, 1995, p.543), recém-falecidos. Dom Pedro ii, fato raríssimo, assistiu aos funerais do duque de Ca- xias, manifestação que o protocolo reservava aos membros da família imperial. rodolfo Bernardelli é encarregado da execução da estátua do general Osório em 1887. Cabe contudo à república inaugurar esse mo- numento em 1894, e o dedicado a Caxias cinco anos depois. Os vultos nacionais recolhem apenas as migalhas do culto dinástico no reinado de dom Pedro ii. O pai, fundador do império, é um herói; o filho, pacifi- cador e amigo dos sábios, enverga, sobretudo depois de 1870, as vestes comuns do grande homem (schwarcz, 1998, p.127). a seus pés, há um lugar para José Bonifácio e Caxias, que completam a lição política e me- recem demonstrações cívicas. (Enders, 2000, p.26-7) a exposição de grandes obras, grandes pinturas cuja temática destacava algumas batalhas da guerra, concomitantemente ao desen- volvimento e à difusão da fotografia, começavam a construir a memó- ria visual desse conflito que ia além de relatos pessoais e publicações da imprensa de então. Nesse processo, cristalizavam-se algumas cons- truções em torno das principais figuras do império que participaram da guerra. Foi o caso do conde d’Eu na pintura de Pedro américo. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 17 a Guerra do Paraguai possui um rico arcabouço imagético. Dada a sua importância, para Francisco alambert: a Guerra do Paraguai representou no campo da cultura (no sentido das ideologias, das representações e das identidades), o momento em que o mundo imperial escravista enfrentou sua mais forte crise externa e interna. sobre a república guarani foram atirados exércitos, mas também ideias e imagens que buscavam transferir ao outro as mazelas que nossa realidade nos impunha, o “mal-estar” de nossa “civilização”, para falar com Freud. O Paraguai, bárbaro, incivilizado, autoritário, atrasado aos olhos da cultu- ra da corte, serviria então para nos salvar de nossas próprias condições e de- finir a imagem civilizada que tanto buscávamos. No espelho do Paraguai – usado como metáfora da situação latino-americana – construiu-se um dos elementos de nossa “identidade nacional”. (alambert, 2000, p.304) Como parte dos elementos dessa “identidade nacional”, no di- zer de alambert, esculpiram-se também uma identidade militar e novos condicionantes para a prática militar. a construção ou edifi- cação de mitos e emblemas, cristalizados a partir do olhar artístico, da análise intelectual e da análise militar propriamente dita sobre a Guerra do Paraguai permeiam mais de um século depois o conflito. Este trabalho pretende colaborar para preencher algumas das muitas lacunas que ainda pairam sobre esse evento histórico. Este estudo procura esmiuçar alguns aspectos do que chamamos antes de novos condicionantes da prática militar daquele período. Vários estudos sobre a Guerra do Paraguai intentam ou geram o congelamento de certas memórias ou histórias, sejam estas construí- das ficcionalmente ou não. Esse congelamento, esse “fundamenta- lismo da memória” (tedesco, 2004, p.80), autoriza a exibição de um passado exemplar, de uma visão cristalizada e escrava dos determi- nantes históricos que a geraram sem esclarecê-las totalmente. além disso, o tema Guerra do Paraguai em si não tem sido muito divul- gado em sua nova fase historiográfica; por exemplo, livros didáticos que incorporaram muitas teses da historiografia revisionista das dé- cadas de 1970 e 1980 tardam em absorver a vanguarda historiográfi- ca atual sobre o conflito. 18 BRAz BATISTA VAS Diversos aspectos – culturais , políticos e econômicos – extre- mamente relevantes desse conflito ficaram em estado de latência até quase o fim da década de 1980, quando outros estudos começaram a surgir. Dessa feita, é significativo para o debate historiográfico em torno desse tema o estudo de aspectos logísticos, diplomáticos, po- lítico-militares e suas inter-relações, na esteira do avanço historio- gráfico em curso. Noutro exemplo dessa dinâmica, verifica-se que os primeiros heróis de guerra, pela conjuntura e pelo desenrolar dos fatos, serviram menos aos propósitos monárquicos do que aos repu- blicanos. a monarquia, que se enveredou por uma espiral de crises, culminando em seu fim, não soube se assenhorear das imagens dos ditos heróis de guerra, ou dos feitos da guerra, com a mesma des- treza e oportunidade com que o fizeram aqueles que os pintaram1 ainda no período monárquico. Essa guerra esteve, desde seu início, calcada numa lógica de apropriação de espaços perdidos ou ainda em disputa – sejam esses espaços no campo político, econômico ou meramente territorial. a Guerra do Paraguai, também chamada de Guerra Guaçu ou Guerra Grande ou – como Caxias a chamou – Guerra Maldita (Doratioto, 2002), não foi uma simples guerra: foi a principal gran- de guerra envolvendo países da região platina, a saber, argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai; um conflito que marcou profundamente os rumos das nações que o levaram a cabo, com soma elevada de perdas humanas, alterações na configuração geográfica da porção meridional da américa do sul, abalos estruturais político-econômi- cos nas nações contenciosas (no caso do Paraguai, foi uma mudança drástica) e influências nas esferas sociais, no âmbito cultural e nos ideários nacionais. Em 1864, quando o conflito começou, o império necessitava reforçar suas bases políticas. Para tal, eram necessárias vitórias rápidas e efetivas, o que não se verificou com a guerra contra o Paraguai, pois a resistência paraguaia e a ineficiência dos aliados 1 Pedro américo, com seu quadro Batalha de Campo Grande, ao mesmo tempo em que celebrava um herói de guerra e membro da família real – o conde d’Eu –, promovia seu nome e seu trabalho como pintor. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 19 fizeram os combates se arrastarem por mais de cinco anos. O Brasil encontrava-se totalmente desaparelhado para um esforço de guerra dessa magnitude e, por causa disso, necessitou mobilizar recursos humanos e materiais nunca antes despendidos e de uma forma mui- to diferente dos conflitos aos quais se envolvera até aquele momento. a Guerra do Paraguai é um evento de suma importância, pois foi o ponto de partida para o fortalecimento e a relativa “moderniza- ção” do Exército brasileiro como instituição, com reflexos marcan- tes na sociedade, dando outros rumos à história militar brasileira. À medida que a dinâmica da guerra demandava um crescente es- forço do império para recrutar, instruir minimamente, transportar e abastecer a soldadesca, a campanha recrudescia nas batalhas e em problemas decorrentes do cotidiano da guerra. Por trazer os germes que corroeriam a estrutura política monárquica, a guerra impactou sobremaneira a cultura militar dos períodos imediatamente poste- riores, mesmo com a insistente política conservadora de redução e desmobilização de efetivos do Exército de Linha. O patriotismo e o incipiente nacionalismo no afluxo inicial de voluntários para defen- der o país, além da fuga e de demais subterfúgios contra o recruta- mento no fim da campanha, dimensionam bem o impacto da guerra na população brasileira daquele período. a formação dos contingentes da força militar terrestre sempre contou, ao longo de todo o período colonial, com uma porção relati- vamente grande de improviso em sua criação e manutenção. só após a independência, o Brasil começou a formar, de fato, suas forças ar- madas terrestres e navais, ainda bastante dispersas e heterogêneas, tendo como principal herança do período anterior a precariedade de sua manutenção. Nesse sentido, o século XiX é o grande marco na vida militar brasileira, tanto pela independência quanto pelos even- tos bélicos em que o Brasil se viu envolvido. É nesse século que se deu realmente a consolidação das forças militares terrestres e navais. No dizer de ricardo salles: a Guerra do Paraguai se constituiu numa das primeiras experiências de guerra total, coletiva, moderna e nacional do mundo contemporâneo. 20 BRAz BATISTA VAS Um tipo de guerra em que as cinco dimensões do Estado apontadas por smith (1992) estariam claramente presentes e em que o conjunto das sociedades envolvidas fosse afetado de modo significativo. assim como a Guerra Civil americana, a Guerra do Paraguai implicou este esforço conjunto das principais sociedades protagonistas do conflito. Máquinas administrativas bélicas, direta ou indiretamente sob o controle do Es- tado, foram montadas para apoiar a ação militar de exércitos baseados no recrutamento universal para alimentar o esforço de guerra que visa- va à destruição completa do adversário, pronunciando a guerra total de 1914. (salles, 1997, p.134-5) assim, as experiências militares provenientes da guerra civil dos Estados Unidos, além de jogarem por terra a concepção napoleônica de “batalha decisiva”,2 alcançaram a Guerra do Paraguai em seus anos finais. O esforço de guerra criou problemas que, na maioria das vezes, não foram equacionados de maneira estratégica e taticamente satisfató- ria. a princípio, acreditava-se numa guerra rápida, como diz Figueira: acreditava-se naquele momento que a guerra seria rápida. Os dois la- dos tinham essa convicção. López estava otimista: tinha uma confiança ilimitada no soldado paraguaio e não acreditava no potencial militar do Brasil. Por sua vez, o otimismo dos aliados pode ser avaliado pela pro- clamação de Mitre ao falar a uma multidão em Buenos aires, no dia 16 de abril de 1865: “Em 24 horas aos quartéis, em três semanas em Cor- rientes, em três meses em assunção!” (Figueira, 2001, p.23) Porém, a guerra se mostrou demorada, em renhidos combates com vantagem paraguaia até quase o fim de 1865 e o posterior avanço 2 Napoleão implementou profundas alterações na concepção e na organização dos exércitos, dando ao exército francês grande agilidade e capacidade de reação diante do inimigo, envolvendo-o, minando suas forças e concentrando a ação em pontos decisivos, de forma que toda ação na batalha visava a vitória por meio do confronto e da destruição do inimigo a qualquer custo. Com esta estratégia, Napoleão venceu seus oponentes em 14 batalhas consecutivas. Quando as demais forças militares passaram a utilizar as mesmas estratégias, e a evolução técnica se tornou um elemento importante nos combates, à concepção da “batalha decisiva”, como formulação estratégica, começou a ganhar novas dimensões. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 21 aliado – tortuoso e intercalado por períodos de inação e reorganização das forças até a ocupação da capital paraguaia entre o fim de 1868 e o início de 1869. Na sequência, quando a guerra parecia ganha, o inimigo paraguaio persiste e o conflito se estende por mais um ano. a cosmologia historiográfica sobre a Guerra do Paraguai é vasta e bastante diversa, e, como tal, suscitou ampla gama de reflexões e análises, que, ao sabor e com o tempero de seu tempo, marcaram de forma indelével as construções e reconstruções culturais a respeito. além da documentação oficial produzida pelo e para o conflito, este gerou uma série de relatos, reminiscências, rememorações, histórias oficiais e oficiosas, representações, leituras e releituras que com- põem uma rica e profusa historiografia específica sobre esse evento histórico. a historiografia sobre a Guerra do Paraguai neste princípio de século XXi pode ser analisada e perscrutada por uma série de no- vos referenciais teóricos e metodológicos à disposição do historia- dor, acrescidos dos saberes de campos auxiliares e interdisciplinares que instrumentalizam as perspectivas analíticas com excepcionais resultados quanto à reconstrução do enorme quebra-cabeça histó- rico que foi esse evento militar. a apresentação e a problematização das principais correntes historiográficas que se formaram ao longo de toda a literatura sobre o conflito tornam mais claros os marcos conceituais que lastreiam as informações oferecidas nos tópicos pos- teriores sobre o Brasil imperial, seus aliados, o Paraguai e a fase final da campanha. a Guerra do Paraguai apresenta uma historiografia que pode ser dividida, basicamente, em três fases: 1ª) as primeiras obras produ- zidas – sobretudo as contemporâneas ao evento, tais como depoi- mentos, crônicas, biografias, memórias e outras – e obras produzi- das durante a primeira fase da república no Brasil; 2ª) obras que revisitaram o tema, também chamadas de revisionismo; 3ª) obras atuais, que podem ser denominadas como neorrevisionistas ou pós- -revisionista, ou ainda – nas palavras Francisco Doratioto (2009, p.7) – “nova historiografia sobre a Guerra da tríplice aliança ou interpretação sistêmica regional”. 22 BRAz BATISTA VAS as primeiras literaturas produzidas deixam claro, segundo sua interpretação, a intencionalidade da guerra: o evento foi caracterizado como a Guerra do Paraguai. trata-se de uma leitura marcadamente tendenciosa a um nacionalismo incipiente promovido pelos esforços bélicos e abertamente afeita às instituições militares, com algumas variações entre as obras produzidas no fim do período monárquico, à influência positivista e à consolidação republicana. O peso da guer- ra recai, em sua quase totalidade, sobre as desmedidas intenções ex- pansionistas do Paraguai, visto como anomalia em relação aos outros países da américa do sul, com taxações como bárbaro e incivilizado. Essa fase historiográfica tem como elemento em comum um marcado caráter ufanista e apologético. Como afirma Maestri, [...] as leituras apologéticas imperiais foram ampliadas após 1889. as forças armadas republicanas elevaram, à situação de figuras paradigmá- ticas oficiais, monárquicos – Caxias, Osório, tamandaré – que inter- vieram com destaque no conflito, o mais importante jamais combatido pelo Estado brasileiro. (Maestri, 2003) são referências características a essa fase historiográfica os escri- tos de Dionísio Cerqueira, antônio de sena Madureira, Luiz schi- neider, visconde alfredo d’Escragnolle taunay, George thompson e Max von Versen, até a publicação da extensa e detalhada obra do general augusto tasso Fragoso, por volta de 1954. Nas publicações dessa vertente, observamos o predomínio de uma análise que con- templa os traços clássicos de estudos de história militar, com uma preocupação em detalhar os aspectos geográficos e materiais do con- flito, as batalhas, os heróis e seus feitos na guerra, realçando a abnega- ção e o patriotismo como elementos motivadores do esforço brasileiro de guerra, com ressalva aos textos de George thompson e Max Von Versen, que dão maior destaque aos feitos paraguaios. Nessa visão, Francisco solano López, presidente paraguaio, é caracterizado como louco megalomaníaco que trouxe a guerra para a américa do sul – o envolvimento do Brasil no conflito se daria exclusivamente devido à agressão de sua territorialidade por parte do Paraguai. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 23 Na segunda fase, a revisionista, verifica-se uma mudança acen- tuada no enfoque do conflito. O evento já não era mais a guerra do Paraguai, mas a guerra contra o Paraguai. a questão passou a ser tratada de forma diferente, com a intenção clara de trazer ao ideá- rio brasileiro pontos para uma reflexão sobre a parcela de culpa do Brasil nesse conflito que tanto martirizou seus envolvidos. No caso específico do Brasil, os representantes dessa historiografia contribuí- ram para uma dramatização excessiva do desenlace da guerra, in- tegrando a análise desse evento à tese da atuação do imperialismo inglês sobre o conflito como promotor e beneficiário da contenda. Os países-personagens envolvidos no conflito sofreram uma inver- são de papéis em relação ao discurso da fase historiográfica anterior. Os vilões passaram a ser os países componentes da tríplice aliança (argentina, Brasil e Uruguai) e o Paraguai passou a ser a vítima das más intenções deles. são representantes desta fase autores como Leon Pomer e Júlio José Chiavenato, por exemplo. trata-se de uma produção historio- gráfica que desenvolveu uma análise interessante de alguns aspec- tos econômicos do conflito. Mesmo cometendo graves exageros a respeito, ressaltou a necessidade de revisão das estatísticas oficiais sobre a guerra, possibilitando aos trabalhos da terceira fase – o pós- -revisionismo – fazer uma aproximação maior da realidade das per- das humanas de fato, dadas as grandes dificuldades para trabalhar com números desse período e conflito em específico. Essa vertente se consolidou na década de 1960, contestando largamente os traba- lhos anteriores sobre a guerra e se pautando por uma análise mais economicista do conflito, amplamente influenciada por uma leitura marxista. Uma das mais importantes teses do revisionismo é a da influên- cia, ou melhor, da atuação do imperialismo inglês como um dos principais agentes causadores da guerra contra o Paraguai, que cami- nhava a todo vapor rumo a um “pseudossocialismo” sustentado por seu genuíno desenvolvimento autônomo (Pomer, 1981; Chiavenato, 1982). a inglaterra teria sido a grande fomentadora do conflito, por temer o surgimento de um país autônomo e mercantil concorrente 24 BRAz BATISTA VAS na américa do sul, e seria também a grande beneficiada, pois não se envolveu diretamente e ainda teria lucrado muito com o conflito. Quanto ao revisionismo, Doratioto considera que: Os pressupostos e conclusões desses e de outros trabalhos revisio- nistas sofreram forte influência do contexto histórico em que foram escritos. as décadas de 1960 e 1970 caracterizaram-se, na américa do sul, por governos militares. Uma forma de combater essas di- taduras era minar suas bases ideológicas. Daí, em grande parte, a acolhida acrítica e o sucesso em meios intelectuais do revisionismo sobre a Guerra do Paraguai: por atacar o pensamento liberal; por denunciar a ação imperialista e por criticar o desempenho de chefes militares aliados, quando um deles, Bartolomé Mitre, foi expoen- te do liberalismo argentino, e, outro, Caxias, tornou-se patrono do Exército brasileiro. É impossível, também, não notar, nas entre- linhas do revisionismo, a construção de certo paralelismo entre a Cuba socialista, isolada no continente americano e hostilizada pe- los Estados Unidos, e a apresentação de um Paraguai de ditaduras “progressistas” e vítima da então nação mais poderosa do planeta, a Grã-Bretanha. (Doratioto, 2002, p.87) Na terceira fase, que pode ser chamada de neorrevisionista, pós- -revisionista, nova historiografia ou interpretação sistêmica regio- nal, encontra-se a produção historiográfica, no caso dos autores bra- sileiros, da década de 1980 em diante. Nessa fase, de forma global ou em recortes específicos, podemos divisar uma nova mudança no enfoque dado à problematização da guerra com o Paraguai promovi- da por um período de maior acesso a arquivos e documentação a res- peito. Dessa fase pós-revisionista, podemos destacar, dentre outros, autores como Wilma Peres da Costa, ricardo salles, Leslie Bethel, andré amaral de toral, Mauro César silveira, Francisco Doratioto e Vitor izecksohn. Essa nova fase tem se pautado no confronto e na aferição das informações disponibilizadas pelas vertentes anteriores, além da ampliação dos horizontes teóricos e metodológicos ao dissecar a guerra e sua multiplicidade de interpretações. Com isso, por O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 25 exemplo, temos, por um lado, a contestação da tese revisionista que imputa à inglaterra a culpa pela guerra, por sua atuação no Prata, para atender suas demandas econômicas ainda que indire- tamente (Bethel, 1995), e, por outro, a valorização das demandas regionais como elemento determinante da origem do conflito, sob a expansão do liberalismo econômico-comercial que se difundia na região. Nas narrativas após os anos de 1980, segundo Maestri: a rejeição das “narrativas totalizantes” valorizou a proposta das novas histórias política e cultural que terminou restaurando as velhas interpreta- ções idealistas e subjetivistas do passado. a história voltou a ser lida prio- ritariamente como produto da ação errática de protagonistas excelentes e os fenômenos sociais, como produto de determinações ideológico-cul- turais. No relativo à guerra contra o Paraguai, novas narrativas críticas do revisionismo dos anos 1960-70, definido como autoritário, populista, etc., empreenderam a restauração das grandes propostas interpretativas nacional-patrióticas imperiais e republicanas. (Maestri, 2003) apresentadas essas três vertentes quanto à historiografia da Guerra do Paraguai, agora buscamos enfocar, nesse emaranhado de informações, as condições e dificuldades do período final do confli- to. Nesse sentido, lidar com a história militar brasileira do século XiX como funil para uma abordagem do último ano da guerra não é tarefa fácil e pequena. Vários personagens atuaram diretamente na condução do conflito no Paraguai, comandando milhares de homens e seus destinos nas diversas batalhas que fizeram a guerra, com atua- ção positiva em alguns casos e negativa em muitos outros. alguns personagens se destacaram no debate historiográfico, a exemplo de Caxias e do conde d’Eu, de forma que focaremos neste último, se- guindo o fluxo das análises pós-revisionistas citadas antes, em suas potencialidades teórico-metodológicas, renovadoras para os estudos relativos ao campo da história militar brasileira. a participação do conde d’Eu no conflito com o Paraguai não é ponto pacífico no de- bate historiográfico. trata-se de personagem que ainda não foi devi- damente explorado pelos trabalhos pós-revisionistas. 26 BRAz BATISTA VAS Há várias controvérsias sobre as práticas adotadas pelo conde d’Eu quando no comando do Exército brasileiro no Paraguai. a onda revisionista o aponta como sanguinário, autor de verdadeiros crimes de guerra e interessado em prolongar a guerra no encalço de López. a mais forte acusação nesse sentido vem do brasileiro Jú- lio José Chiavenato em sua obra Genocídio americano – a Guerra do Paraguai, de 1979. Chiavenato, a princípio, utilizou como fonte as memórias do visconde de taunay. Porém, a fase historiográfica pós- -revisionista, a exemplo do texto de ricardo Bonalume Neto, jorna- lista especializado em questões militares, publicado pelo jornal Fo- lha de S. Paulo, revela que o historiador militar reginaldo Bacchi, ao ler os escritos de taunay, descobriu justamente o contrário: “havia balas que ainda explodiam no campo por causa do incêndio da ma- cega ateado, no princípio da ação, pelos paraguaios, para ocultarem o seu movimento tático” (Bonalume Neto, 1997). também é conhe- cida a versão de que o conde d’Eu teria ordenado que incendiassem um hospital com feridos, o que teria resultado na morte de mais de uma centena de pessoas. O mais provável, porém, é que o hospital tenha sido queimado em consequência dos bombardeios aliados no início da batalha, direcionados às fortificações paraguaias, segundo os mesmos relatos de taunay, que são corroborados pelos relatos de Centurión Crisóstomo. a análise desses fatos mostra que a discus- são há muito já ultrapassou o âmbito do debate acadêmico e ganhou a mídia cotidiana e suas reflexões ligeiras. De toda forma, o revisio- nismo ainda mostra força não apenas nas publicações periódicas, mas também nos livros didáticos, que ainda absorvem consideráveis conteúdos dessa corrente historiográfica. Das considerações historiográficas à análise da fase final da guerra, a figura do conde d’Eu e as dificuldades logísticas enfren- tadas pelas forças brasileiras no último ano da guerra serão, assim, abordadas neste livro, que se estrutura, em sua essência, em cinco capítulos. O Capítulo 1, “a Guerra do Paraguai em perspectiva”, dedica-se a exposição e reflexão do contexto histórico das nações envolvidas na guerra à época do conflito. O Capítulo 2, “as For- ças terrestres Brasileiras e a Logística”, introduz o leitor nos mar- O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 27 cos temporal e histórico específicos a serem desenvolvidos e serve como ligação desse contexto aos objetivos específicos deste estudo, versando sobre logística, forças militares brasileiras e conexão desses dois elementos na Guerra do Paraguai. O Capítulo 3, “Manuten- ção da guerra pelo Brasil: considerações sobre Logística no final da Guerra do Paraguai”, apresenta a análise de alguns aspectos econô- micos relacionados ao esforço de guerra promovido pelo império, dos problemas administrativos, por meio dos regulamentos, do flu- xo de correspondência, da utilização do telégrafo e dos problemas de escrituração como elementos de entrave logístico ante a celeridade do conflito. No Capítulo 4, “O conde d’Eu, a guerra e suas questões logísticas”, adentra-se o foco mais específico da atuação de d’Eu, apresentando a saída de Caxias e a indicação do conde para o coman- do das forças, a questão da logística e os problemas ao fim da campa- nha. Por fim, no Capítulo 5, “D’Eu, Paranhos e as providências ao final da guerra”, complementando o capítulo anterior, trabalham-se as lides militares e diplomáticas e algumas intersecções com os pro- blemas administrativos e logísticos. Considerando que essa fase final da guerra ensejou o avanço das forças aliadas em território paraguaio, interiorizando-se nesse país e perfazendo um conjunto de ações eminentemente terrestres, a atua- ção da Marinha e do transporte naval, reconhecidamente um impor- tante e primordial elemento logístico, cujas dimensões e aspectos sobressaem-se à logística terrestre em alguns pontos, não será aqui aprofundada por fugir ao escopo deste trabalho. todavia, é preciso dizer, foi indubitável sua contribuição ao conjunto logístico global do esforço de guerra. trabalhamos com a hipótese de que os problemas logísticos re- presentaram um componente tão significativo para a longevidade do conflito quanto para as decisões e ações do comando militar e da atua - ção diplomática, personificados nas figuras do conde d’Eu e de José Maria Paranhos, respectivamente. assim, esses dois personagens somaram esforços para superar os percalços logísticos e implemen- tar as ações militares e diplomáticas demandadas pelo império. Jus- tamente nesse processo, destaca-se a atuação do conde, maior que o 28 BRAz BATISTA VAS período de comando no final da campanha, e a de Paranhos, como guardião dos interesses do império e zeloso com o conde d’Eu. O problema se centrou, então, na apuração da relação desses personagens (suas respostas, posições e percepções) no transcorrer da guerra e da logística que lhe era necessária. Nesse sentido, o tra- balho de pesquisa nos arquivos e a busca de fontes que tratassem da nossa hipótese, fez com que o material e as fontes encontradas direcionassem a reflexão ora em curso, de forma que o foco da aná- lise se centrasse na dinâmica que levou o conde d’Eu ao comando das forças militares brasileiras no final da campanha, sua atuação e sua relação com os problemas logísticos, bem como na emergência de Paranhos como elemento de garantia do império, que cresceu, de certa forma, em sua relação com d’Eu e com os problemas da cam- panha no último ano. assim, as fontes primárias utilizadas (especialmente a corres- pondência de Paranhos para d’Eu ou as que o conde encaminhava) nos trazem uma série de indícios que nos levam a compreender a ex- tensão dos problemas logísticos, a conexão entre eles e d’Eu – mes- mo antes de este ir à guerra e, posteriormente, deste com Paranhos – e as demandas político-diplomáticas para o encerramento da guerra. Não se trata aqui de mensurar matemática ou econometricamente o componente logística, mas de dimensioná-lo de maneira razoável e situá-lo na intersecção das esferas militar, política e diplomática da fase final do conflito. Com a intenção de subsidiar as informações utilizadas, busca- mos suporte em documentos de acervos guardados em várias ins- tituições, tais como: o arquivo Histórico do Exército (aHEX), a Biblioteca Nacional, o arquivo Nacional, o instituto de Geografia e História Militar do Brasil, o instituto de Estudos Brasileiros (iEB- -UsP) e o Museu imperial. Dessas instituições, cabe destacar a cola- boração e interação com o arquivo Histórico do Exército-aHEX, e com o Museu imperial, sempre dinâmicos e cooperativos. Como fontes primárias, utilizamos algumas correspondências trocadas entre José Maria Paranhos e o conde d’Eu; entre este, Pedro ii e alguns amigos. Essas correspondências, algumas pessoais, outras O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 29 oficiais, contêm uma riquíssima gama de informações e percepções, do próprio conde ou sobre ele e seus feitos na guerra, ainda muito pouco explorados pela vertente pós-revisionista e muito sensíveis aos entraves e dificuldades da manutenção do esforço de guerra. Utilizamos também as ordens do dia editadas por d’Eu, por Ca- xias e pelo visconde Pelotas, informações contidas nas atas do Con- selho de Estado e em diversos relatórios dos ministros da Guerra. tais relatórios e as ordens do dia, quando cotejadas, em suas infor- mações, com as correspondências, permitem distinguir com mais consistência a atuação do conde d’Eu na Guerra do Paraguai e as dificuldades logísticas da mesma. soma-se a essa documentação um relatório de d’Eu apresentado ao Conselho de Estado e ao Ministé- rio da Guerra, disposto em seis quesitos relacionados à Guerra do Paraguai e à organização militar brasileira, tecnicamente detalhado, sobre a experiência brasileira no conflito e suas possíveis contribui- ções ao aprimoramento militar nacional. Como fonte, utilizou-se também algumas publicações contemporâneas ao evento, de forma a agregar, ao foco da investigação, d’Eu e as dificuldades logísticas no final da campanha, o lastro necessário a esta reflexão histórica. 1 A guerrA do PArAguAi em PersPectivA Na guerra, como na política, o tempo perdido não volta mais. – Napoleão Bonaparte Consideradas as dificuldades para a compreensão da totalidade dos eventos que compõem a Guerra do Paraguai, antes de focarmos os aspectos específicos deste trabalho, convém apresentar, resumidamen- te, algumas informações de ordem mais geral sobre os países envolvi- dos para balizar melhor as informações sobre a fase final da guerra. O Brasil imperial e a Guerra do Paraguai O Brasil da segunda metade do século XiX, com população esti- mada em quase 10 milhões de habitantes, estava em profunda trans- formação, sobretudo sua economia, que crescia na esteira da pro- dução cafeeira. O país crescia e se desenvolvia na vida política, com a estabilidade construída no segundo reinado, no florescimento e crescimento cultural e na política externa, com uma fase marcada- mente mais presente quanto aos acontecimentos do cone sul. O ano de 1850 foi um marco na consolidação do Estado imperial em razão de leis como a do fim do tráfico de escravos e a de terras. além disso, em 19 de setembro de 1850, no contexto das reformas saquaremas,1 1 Denominação aplicada inicialmente a um grupo de políticos conservadores da pro- 32 BRAz BATISTA VAS a Guarda Nacional foi modificada, viabilizando um controle maior do governo central. Com essa alteração, as atribuições do governo em relação à guarda se ampliaram, incluindo desde a organização especial das unidades nas províncias de fronteira até a aprovação do número e do fardamento dos componentes das bandas de música. Outro avanço foi a aprovação do código comercial do império do Brasil, fato que viabilizou tanto a melhor destinação dos capitais li- gados ao tráfico escravista para outros setores da economia quanto a ampliação de companhias, em especial as ligadas ao capital estran- geiro, notadamente o inglês e o francês. Politicamente, o predomínio saquarema – ou conservador – es- tendeu-se praticamente de 1848 a 1862, quando os liberais voltaram ao controle político. Entre 1862 e 1868, dissidentes conservadores e liberais assumiram o comando político, com a posterior predomi- nância liberal. Foi o período de criação do Partido Liberal Progres- sista ou liga progressista.2 Dessa forma, com os conflitos internos controlados e a realização das reformas pendentes, o governo im- perial pôde voltar sua atenção aos assuntos externos, notadamente os da região platina. O Brasil imperial, após debelar uma série de revoltas internas e tendo superado o período de regência, passou a um momento de mudança de rumos quanto a sua atuação direta no contexto regional e sub-regional da Bacia do rio da Prata (Ferreira, 2006). além disso, foram condicionantes da política brasileira de limites de fronteira no século XiX, segundo amado Cervo e Clo- doaldo Bueno, as seguintes variáveis: a) consolidação prévia do Estado Nacional; b) tardio despertar da cons- ciência pública ante o problema; ausência de um mito de fronteira, com capacidade de determinação sobre a política; percepção do significado da víncia fluminense, ligados à cafeicultura, e depois ampliada para se referir aos conser- vadores de todo o império. Para maior aprofundamento, ver Mattos, 1990. 2 a partir de 1862, alguns membros do partido conservador, descontentes com seu partido, formaram uma facção política dissidente, a liga progressista, que sobreviveu de 1862 a 1868, quando esse grupo se uniu ao Partido Liberal. Destacaram-se na liga progressista Nabuco de araújo, João Lins Vieira Cansanção de sinimbu, José Maria saraiva, João Lustoza da Cunha Paranaguá e zacarias de Góis e Vasconcellos. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 33 fronteira no quadro da ideia de nacionalidade, nutrida pelo mito da gran- deza legada; e) redução da questão à sua dimensão jurídico-política; f) ela- boração de uma doutrina que vinculasse coerentemente os limites àquela ideia de nacionalidade; g) pouca interferência do sistema produtivo, que se expandia voltado para dentro (açúcar, café) ou preservando a ocupação interior (gado, mineração, borracha). (Cervo; Bueno, 2002, p.90) a estabilidade política interna alçou o país a uma nova etapa de seu processo de consolidação nacional, agora dedicando atenção à consolidação jurídica, diplomática e territorial das delicadas contro- vérsias fronteiriças e político-econômicas quanto à livre navegação e ao acesso à província de Mato Grosso. Por esse período, destacam-se a guerra contra Oribe e rosas (1851-2), a campanha contra aguirre (1864-5) e a Guerra do Paraguai (1864-70). O império estava dian- te de uma construção institucional militar complexa. No tocante às forças de terra, procurou fortalecer a Guarda Nacional, uma força de caráter marcadamente político, e reduzir em número de efetivos e em investimentos o Exército de Linha. Com isso, a configuração de uma organização militar nacional permanente passou por um mo- mento extremamente importante no episódio bélico com o Paraguai, pois a ideia de uma organização militar dotada de influência nacional não fazia parte dos planos da elite do país, como indica izecksohn (2001, p.2). No início das [...] operações o entusiasmo dos voluntários impressionou as autorida- des, muitas delas acostumadas a lidar com populações extremamente resistentes a qualquer forma de recrutamento. Parte da motivação vinha das características da campanha. afinal, a invasão do território brasileiro, sem uma declaração de guerra, gerou revolta que alimen- tou demonstrações patrióticas em muitas regiões do império. Chama a atenção apenas o fato de que muitas dessas regiões tivessem pouco ou nenhum contato com os problemas platinos. (izecksohn, 2001, p.4) as forças militares brasileiras sofreram um longo processo de estruturação. Na evolução do processo de independência e estrutu- ração interna, um decreto de 1º de dezembro de 1824 organizou as 34 BRAz BATISTA VAS forças de linha regulares de forma que a infantaria se organizasse em batalhões, a cavalaria, em regimentos, e a artilharia, em corpos. Em 1831, em função do período regencial, houve redução substancial dos contingentes militares, sobretudo o terrestre. Essa redução se deu por causa das especificidades do processo de independência bra- sileiro, somado à posterior ascensão dos conservadores ao poder e a seu projeto para o país, levando em consideração toda uma série de rebeliões e revoltas do período regencial. Por exemplo, os corpos de artilharia de Posição, reorganizados pelo decreto de 1º de dezembro de 1824, foram reduzidos de doze para cinco (Fortes, 2001, p.52-3; 58). transformados depois, em virtude da revolução Farroupilha, em batalhões de artilharia a Pé, a partir de 1864 foram todos mo- bilizados para a Guerra do Paraguai, com a Guarda Nacional e os Voluntários da Pátria. a constituição e a composição das forças militares do Estado imperial sofreram importante reordenação a partir do segundo rei- nado, de tal forma que, com a maioridade, a Coroa procedeu a uma ordenação institucional por meio de diversas políticas, entre as quais a política de terras, de mão de obra, tributária, monetária e creditícia, empreendendo ainda uma política específica de reestruturação das forças militares. O Exército, nesse processo, era resgatado como um dos braços do poder central no combate às rebeliões provinciais e, o que é mais importante, sua pró- pria estrutura interna articulava uma rede burocrática cuja hierarquia reproduzia pela sociedade valores e princípios políticos que rearticu- lariam os antigos privilégios e demarcações de origem social. (souza, 1999, p.38). Do princípio da vida independente até meados do século XiX, a organização militar do império ainda não contava, em sua estru- tura organizacional, com um espírito de profissionalização de seus quadros, racionalização de procedimentos, condutas e estímulos próprios ao fazer militar. Por conta desse panorama, adriana souza esclarece e apresenta as definições, no tocante ao Exército de Linha, O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 35 de um “exército aristocrático” ou de “antigo regime”, [...] um oficial de patente do Exército brasileiro no início do século XiX não integrava um corpo de profissionais da guerra; seus valores eram os mesmos do conjunto da sociedade – eram aristocratas. Da política dependia o seu êxito e, para nos aproximarmos dessa realidade, o sis- tema de promoções continuava sendo ainda a melhor estratégia. além dos mecanismos previstos na lei, o processo de ascensão hierárquica era efetuado, na prática, com a sanção dos presidentes de província para as patentes até oficiais superiores e pelo próprio monarca quando se trata- va de promoção de oficiais-generais. O perfil do Exército, portanto, não era propriamente militar, o que fazia da participação do alto-oficialato nas disputas políticas um elemento não só bastante comum como útil e necessário à manutenção da estrutura monárquica. À medida que a distribuição das patentes de oficial-general constituía uma prerroga- tiva real, os altos postos do Exército transformavam-se, claramente, em cargos de confiança, estreitando os vínculos entre os generais que os ocupavam e o imperador. Como participantes dos altos escalões da burocracia, o generalato, principalmente nos países de revolução bur- guesa abortada, como é o caso de Portugal, conformava o grupo de elite política. (souza, 1999, p.55) Essa dinâmica afastou a instituição do Exército de Linha como possível via de ascensão social e afastou o próprio Exército do cami- nho rumo a uma estrutura militar eficiente para o seu fim específico. a atenção ao contingente e à infraestrutura necessária ao seu funcio- namento se tornou pontual, na medida em que eram privilegiadas essencialmente algumas zonas de conflito, a exemplo da Corte e da região sul. a Corte, por ser o centro político do império; a região sul, pela potencialidade dos conflitos internos, haja vista a memó- ria da revolução Farroupilha e as indefinições fronteiriças, questões quanto à navegação pelo sistema fluvial platino e potencial econômi- co regional. Na acepção de José Murilo de Carvalho (1996, p.229- 39), após o período regencial, em meados do século XiX, estavam lançadas as bases de “construção da ordem” do Estado monárquico brasileiro. Desse modo, o projeto conservador de uma força militar para o Estado monárquico privilegiou a criação e a manutenção de 36 BRAz BATISTA VAS uma força mais suscetível às barganhas políticas, do nível local ao nacional, como a Guarda Nacional, em detrimento de uma distri- buição mais homogênea, capilar e estruturada do Exército de Linha pelo restante do país. a conformação do Estado imperial, no tocante a seu aparato mi- litar, começou a tomar outra dimensão quanto à profissionalização de seus quadros na década de 1850. À medida que se aproximava o fim do século XiX, a carreira militar propriamente dita se tornava mais atraente e, de acordo com os dados de John schulz (1994), a participação do alto oficialato na ocupação direta de cargos políticos decaía sensivelmente, como indica o Gráfico 1.1. Gráfico 1.1 Oficiais na Câmara senatorial (schulz, 1994). Por conseguinte, esse panorama demonstra o impacto da guerra no cotidiano político da fase final do império.3 O Brasil ampliou su- bitamente, em razão das necessidades da guerra, parte de sua infraes - 3 No tocante ao Gráfico 1.1, cabe a ressalva de tratar-se aqui apenas da visualização de um panorama geral, sem a intenção de se adentrar as especificidades e ao debate sobre a participação de militares, em sua diversidade, na dinâmica política do império. Para um debate mais específico ver: souza, 1999; Costa, 1995. 1822-1831 1831-1864 1864-1889 Períodos 14 12 10 8 6 4 2 0 12 8 3 Q ua nt ita tiv o O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 37 trutura militar básica. as forças terrestres, pela sua especificidade, tiveram ampliação maior. De um contingente estimado, no início do conflito, no máximo de 18 mil homens para o Exército de Linha, chegou-se a algo estimado entre 135 mil e 150 mil homens, dentre diversos corpos militares mobilizados para a Guerra do Paraguai. Essas alterações se verificaram também na Marinha de Guerra. se- gundo Divalte Garcia Figueira, [...] durante a guerra, o Brasil dobrou sua frota naval, passando de 45 para 94 navios de guerra. além das forças navais, organizou três cor- pos de Exército. O Primeiro Corpo do Exército foi aquele que realizou a intervenção no Uruguai, e dali passou para o território argentino. Foi durante muito tempo comandado pelo general Manuel Luís Osório (mais tarde, barão do Herval). O segundo Corpo foi organizado em meados de 1865, e esteve sob o comando do general Manuel Marques de souza (mais tarde barão de são Gabriel). No ano seguinte, o mesmo Osório foi incumbido de organizar o terceiro Corpo. (Figueira, 2001, p.23) O amadurecimento da instituição militar, desse modo, foi forja- do no calor da guerra. Nesse caso, não se tratou apenas da ampliação dos contingentes; ligado a isso estava, no início do conflito, o primei- ro grande fato mobilizador da população de cunho patriótico. Ou seja, a guerra implicou o enorme afluxo de pessoas dos mais diversos pontos do país rumo ao teatro de guerra e uma convivência comum para um propósito comum, que era, a princípio, rechaçar a invasão paraguaia. É inegável nesse momento um dos primeiros exemplos de sentimento de nacionalidade. Durante esse processo de mudanças via implantação de novas políticas (terras, mão de obra, créditos e tributos), as impressões so- bre o cotidiano político do império, no contexto da guerra, não eram das mais animadoras para alguns. De acordo com a análise de Delso renault dos textos que circulavam na imprensa da Corte, “[...] as circunstâncias em que actualmente se encontra o paiz são as mais criticas que elle se tem achado desde a época da sua independên- 38 BRAz BATISTA VAS cia”, confessa o Diário do Rio de Janeiro. Nunca as dificuldades políti- cas e o transtorno social foram maiores. a superfície é aparentemente calma, mas refervem nas próprias entranhas da sociedade brasileira os sentimentos de um mal-estar indefinível. Os espíritos andam abatidos e as transações paralisadas. Na política, temos a atonia dos ânimos. No comércio, a frouxidão dos negócios. andaria o redator exagerando ao externar o seu pessimismo? ainda assim, nesta hora de tamanhas di- ficuldades, a política corrói tudo. as duas casas do Legislativo se hos- tilizam. No senado – na chamada Câmara dos Deputados – na câmara temporária – tudo que é a favor do governo é aprovado. O espírito polí- tico domina uma e outra. (renault, 1978, p.291) a mudança do gabinete ocorrida em 1868 – quando o impera- dor apeou do poder os liberais e recolocou os conservadores tradi- cionais, buscando confluência política mais homogênea, em especial aos esforços bélicos – desfigurou um recente esforço de conciliação entre liberais e conservadores e sua tentativa de atuação política con- junta via partido progressista. Caxias foi um dos protagonistas nessa mudança política ao impor condições para assumir o comando das forças brasileiras em operação no Prata (Doratioto, 2002; schulz, 1994; Carvalho, 1991; Costa, 1974. abordaremos alguns aspectos do final do período de comando de Caxias no Capítulo 4, item “a saída de Caxias”). Desse modo, a efervescência política pelos fatos da guerra e suas consequências, somadas às demais questões inter- nas do império, apresentam-se de forma que O horizonte político tinge-se de cores mais fortes: o Partido Liberal não reivindica reforma constitucional; o Liberal-racional, em manifesto de 1868, pede reformas eletivas. Nabuco, entretanto, no manifesto deste ano é mais incisivo: propõe a eleição direta nas cidades e indireta no in- terior. E finaliza seu manifesto: ou a reforma ou a revolução. (renault, 1978, p.290-5) a indignação liberal, como se verá mais tarde, caminhará como um dos elementos catalisadores dos fatos que desembocarão na pro- clamação da república. a indignação liberal toma conta de uma O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 39 parcela significativa da imprensa da Corte, e a guerra, travada num terreno distante, pulula de artigo em artigo, em suas mais variadas expressões, da visão trágica das dificuldades à galhofa das charges e dos periódicos que flutuam entre a política e o humorismo. Novos periódicos aparecem, Novos jornais começam a circular. surge a Reforma, cujo título denun- cia os anseios políticos. O novo periódico – segundo crítica de outras folhas – procura espalhar o susto e o terror; o pasquim “O Novo Brazil, periodico extraordinario, politico e commercial”. a folha aborda assun- tos palpitantes: Á abolição da escravidão, a Guerra, o estado financeiro, novo empréstimo em Londres”. (renault, 1978, p.294) a par de toda a ebulição política, o imperador envelhecia com os problemas da guerra. Foi grande o desgaste físico e psicológico de Pedro ii com os problemas e as necessidades da guerra, fato que se tornou visível na sua fisionomia ao final do conflito (Carvalho, 2007, p.121-3). a mudança política no gabinete foi feita por causa da premência em conseguir resultados os mais positivos e rápidos possíveis. zeloso, o próprio imperador procura estar sempre a par dos negócios da guerra, como destaca José Murilo Carvalho: [...] sua correspondência com Cotejipe, novo ministro da Marinha, é uma coleção de bilhetes em que dá ordens, sugere e cobra medidas, pede informações, intromete-se em todos os assuntos da guerra, mesmo os mais miúdos [...] apostara tudo numa vitória que fosse honrosa para o país e para ele próprio. trabalhara obsessivamente, interviera no jogo partidário a um alto custo para a legitimidade do Poder Moderador, lutara contra o desânimo de aliados e de brasileiros, tivera de mediar conflitos entre generais e ministros. E realizara tudo isso para fazer algo que detestava, a guerra. (Carvalho, 2007, p.119; 121) Mesmo diante de todo o empenho do monarca, Caxias, que as- sumiu o comando das forças brasileiras em outubro de 1866, só veio a conseguir resultados mais efetivos quanto às vitórias e avanço das forças a partir de 1868, ocupando a capital paraguaia no início do 40 BRAz BATISTA VAS ano seguinte. Porém, a guerra não deixou de cobrar seu preço, com ampla repercussão na cena política brasileira. além de afetar as finanças públicas pelo aumento da dívida externa, le- vou à crise política de 1868, deslanchou a questão da abolição, provocou o corporativismo militar e deu forças ao republicanismo. abolição, mi- litarismo e republicanismo foram três dos principais fatores da queda da monarquia. (Carvalho, 2007, p.124) Com base nesse contexto, verifica-se a importância de olhar mais de perto e compreender de forma mais larga ao menos um dos vários fatores que se escondem sob o termo “problemas da guerra” e seu enfrentamento pelo império. Nesse particular, destaca-se a fase final do conflito, sob a direção do conde d’Eu. O Uruguai no contexto da guerra a Província Cisplatina – como queria o Brasil – ou a república Oriental do Uruguai sempre esteve diretamente ligada a disputas pelos interesses de atores maiores do cone sul, sejam Brasil ou ar- gentina, ou, antes, pelos interesses de portugueses e espanhóis na região. Essa estreita ligação foi determinante no desenrolar de diver- sos fatos e eventos históricos, dos quais muitos confluíram depois para a guerra e a participação uruguaia. O Uruguai, desde a colonização, foi fruto de uma longa disputa. Primeiro entre Portugal e Espanha, depois entre Brasil e argentina. Em 1821, o território foi anexado ao reino Unido de Brasil, Portu- gal e algarves sob a designação de Província Cisplatina, mas logo em 1825 ocorreu um levante da Banda Oriental (Uruguai) contra as leis brasileiras e, de 1825 a 1828, se desenrolou uma guerra en- tre as Províncias Unidas (argentina) e o Brasil pela posse da Banda Oriental. Essa questão foi resolvida em 1828, com a intermediação inglesa, no evento conhecido como Guerra Cisplatina. Estabeleceu- -se, então, a independência da Banda Oriental como república do O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 41 Uruguai, um estado frágil que, embora independente, sofria cons- tantes intervenções brasileiras e argentinas, direta ou indiretamente, sobre sua organização política. Foi justamente uma dessas ingerên- cias que desembocou na guerra com o Paraguai. as intervenções se davam em geral para apoiar uma das facções que disputavam o poder no Uruguai, blancos e colorados. Em 1864, estavam no controle político do Uruguai os blancos, consubstancia- dos na figura do então presidente Bernardo Berro, eleito em 1860. Berro adotou uma postura mais dura e rigorosa em relação à presen- ça e penetração brasileira em terras uruguaias, o que descontentou seriamente aos rio-grandenses que tocavam seus negócios com am- pla liberdade na fronteira entre ambos os países. as preocupações rio-grandenses, dessa feita, rapidamente chegaram à Corte, e o im- pério designou, em maio de 1864, José antonio saraiva4 para mediar a questão com o Uruguai. Pouco antes de saraiva ser indicado, Ber- nardo Berro renunciou à presidência e transferiu o controle do poder executivo a atanasio aguirre, então presidente do senado, também membro do partido Blanco. a alteração de nomes na presidência uruguaia não mudou as preo - cupações do Brasil quanto ao desenrolar da política naquele país. Essa situação movimenta as forças políticas uruguaias, e “o partido Blanco, no poder no Uruguai, vai procurar aproximação com o Pa- raguai para, em conjunto, tentarem enfrentar possíveis pressões dos vizinhos maiores” (Menezes, 1998, p.67). a atuação de saraiva em Montevidéu, com uma esquadra brasileira a lhe garantir capacidade de pressão, atingiu seu ápice num ultimato apresentado ao governo uruguaio para que este garantisse os interesses brasileiros. aguirre, por sua vez, afiançou-se de sua aproximação com o Paraguai como um novo elemento a se tornar atuante na geopolítica platina. 4 antônio José saraiva (1823-95) foi promotor e juiz municipal, deputado pela assem- bleia da Bahia, presidente da província do Piauí (1850-3) e, depois, da província de são Paulo (até 1855). representante do partido Liberal, atuou na gestão do gabinete chefiado pelo marquês de Olinda e posteriormente no gabinete conservador de Ca- xias. atuou na política até depois da proclamação da república. 42 BRAz BATISTA VAS O Paraguai havia feito acordos de mútua cooperação com a fac- ção blanca; a argentina e o Brasil apoiaram os colorados. Para garan- tir seus interesses, a argentina convenceu o Brasil, que também tinha planos em relação ao Uruguai, a intervir militarmente no Uruguai para depor o governo blanco em 1864, pois este não atendia aos an- seios dos planos brasileiros e argentinos para aquela localidade. Com uma resposta ao ultimato considerada inadequada pelo império, me- diante a diplomacia da canhoneira e contando com relativa anuência argentina e com o total apoio do partido colorado, o Uruguai foi to- mado de assalto entre setembro de 1864 e fevereiro de 1865, elevando ao controle político daquele país o colorado Venâncio Flores. Essa intervenção levou o Paraguai a declarar a guerra, primeiro ao Brasil, depois à argentina. O Uruguai, à época com uma população estimada entre 250 mil e 300 mil habitantes, com os colorados então no poder, se aliou ao Brasil e à argentina por considerar ofensivas as atitudes paraguaias em relação à região do Prata. Em realidade, como visto, foi uma rara conjunção de interesses do Brasil e da argentina e a atuação destes no Uruguai que permitiu aos colorados chegar ao poder. Logo, na inércia política de ambos e tomando o Paraguai como aliado dos blancos uruguaios, não sobrou alternativa ao Uruguai – diga-se, colorados – a não ser compor a aliança como os seus aliados (Menezes, 1998, p.117-46). Os blancos uruguaios se mostraram muito eficientes nas artima- nhas diplomáticas para seduzir e envolver o Paraguai quanto a uma possível aliança. Na verdade, em termos militares, os blancos tinham pouca coisa a ofe- recer ao Paraguai. Era um simples partido no poder, com agudos pro- blemas internos e desavenças externas. Em termos práticos não pos - suíam quase nada para dar em contrapartida ao Paraguai em uma aliança. (Menezes, 1998, p.79) todavia, a retórica blanca seduziu solano López. ao mesmo tempo, a diplomacia brasileira no Uruguai praticamente desconsi- derou o Paraguai e sua possível conexão com os problemas internos O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 43 uruguaios. Militarmente, para garantir os interesses brasileiros no Uruguai, o império auxiliou financeiramente a criação e a manuten- ção de um batalhão de soldados estrangeiros, sediado no Uruguai, chamado batalhão Garibaldino (Laconte, 1994, p.28), que chegou a participar dos combates contra os paraguaios. No contexto dos problemas com o Uruguai – tido como o esto- pim do conflito com o Paraguai –, Chiavenato (1982) diz que a in- tervenção brasileira, da maneira como se deu, representou um para- doxo da atuação do Brasil nessa região, sem contar que o Uruguai, já havia um bom tempo, compunha o joguete de interesses conflitantes do Brasil com a argentina. a intervenção brasileira pode ser consi- derada como paradoxal porque os interesses brasileiros, principal- mente os econômicos, já se faziam representar na figura do barão de Mauá, que fazia grandes investimentos no Uruguai – os quais a in- tervenção armada veio a destruir, segundo Chiavenato. além disso, as pendências regionais com estancieiros locais poderiam ser mais bem resolvidas diplomaticamente mediante indicação de um diplo- mata competente para tal; o que não foi o caso da atuação da missão saraiva e do senhor Paranhos5 na região platina, pois – no entender da vertente historiográfica revisionista brasileira – não dispunham de habilidades suficientes para tal. O Uruguai, levado a contragosto pelas alterações políticas que lhe foram impostas, figurou, dessa forma, na aliança militar que se conformou contra o Paraguai. também foi o primeiro país dessa aliança a divulgar o teor do tratado firmado entre os três países a re- presentantes ingleses, que cuidaram de dar-lhes publicidade. a atuação militar uruguaia propriamente dita foi pequena. Para o conflito, o Uruguai mobilizou, segundo estimativas recentes, cerca de 5 mil soldados no máximo. Possivelmente a participação uruguaia 5 José Maria Paranhos (1819-80), o visconde de rio Branco, ingressou na política em 1845 como deputado, logo depois conseguiu a vice-presidência da província do rio de Janeiro pelo partido Liberal. após 1850, passou para o partido conservador. Em 1851, começaram suas atividades diplomáticas; como enviado a Montevidéu, em 1853, ocupou a pasta da Marinha, depois a dos Negócios Estrangeiros (1855). Con- cluiu vários tratados de comércio e navegação com Paraguai, Uruguai e argentina. 44 BRAz BATISTA VAS foi mais significativa em termos de registros fotográficos, para além dos carte-de-visite com poses de soldados, pois boa parte dos registros fotográficos (salles, 2003; toral, 2001; silveira, 1996) realizados ao longo do conflito foi feita por uma companhia de fotógrafos baseada no Uruguai. assim, de acordo com andré amaral de toral (1999, p.286), “o único trabalho que recebeu apoio oficial, embora nenhu- ma subvenção, foi no Uruguai, onde uma firma norte-americana teve apoio para documentação da Guerra do Paraguai”. Desse modo, a documentação fotográfica da Guerra do Paraguai, apesar do volume de retratos produzidos, ficou marcada pela iniciativa do estúdio Bate & Cia., de Montevidéu, que mandou Esteban Garcia, um uruguaio, para produzir uma série de fotografias sobre o conflito, entre abril e setembro de 1866. [todavia], [...] boa parte dos carte-de-visite permanece com autoria anônima. autores dos mais conhecidos, como Esteban Garcia e sua equipe enviados por Bate & Cia., têm diversas atribuições duvido- sas. (toral, 2001, p.89; 289) além da fotografia, Montevidéu, por sua vez, foi um importan- te entreposto de comunicação e apoio logístico e comercial às for- ças brasileiras, em especial à Marinha. O império manteve ali um depósito e um hospital militar ao longo de quase toda a campanha. Mesmo durante o período da guerra, o Uruguai conheceu uma fase de desenvolvimento econômico excepcional, entre 1860 e 1868, quando Venâncio Flores e Bernardo Berro foram assassinados; a es- tabilização política e econômica só retornou ao país a partir de 1875. A Argentina no contexto da guerra Desde a declaração de sua independência, a argentina procurou selar, sem muito sucesso a princípio e o mais rapidamente possível, a consolidação de seus limites territoriais e sua estruturação político- -institucional. a ambição argentina de manter os traços territoriais do antigo Vice-reinado do rio da Prata e as dificuldades de compo- O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 45 sição política com algumas de suas províncias – várias recalcitrantes ao controle centralizado em Buenos aires –, colocou o Estado argen- tino em xeque no terceiro quartel do século XiX. Nesse contexto, a Guerra do Paraguai teve profundo papel no processo de unificação e no crescimento do comércio argentino do início da segunda metade do século XiX. a argentina, com uma população estimada em 1,7 milhão (Lynch, 2004, p.638) de habitantes, com destaque para a recém- -unificada cidade de Buenos aires, que contava com cerca de 177 mil habitantes e que ainda estava em processo de organização po- lítica. O processo de independência e unificação argentino foi bas- tante tortuoso. as Províncias Unidas del río de la Plata (argenti- na) lutaram por sua independência da Espanha entre 1810 e 1816, conseguindo uma união fragmentada por volta de 1820. Em 1835, Juan Manuel de rosas assumiu o poder e, durante “los veinte anõs de su gobierno autoritario se acentuó la supremacia de la provincia de Buenos aires”6 (Waldmann; zelinsky, 1984, p.18). a queda de rosas em 1852 permitiu que seus sucessores promulgassem, um ano depois, “una Constitución que creó las condiciones institucionales, políticas y económicas para el desarrollo de argentina”7 (Wald- mann; zelinsky, 1984, p.18). Posteriormente, houve a criação da república Federal argenti- na, em 1853-1854, da qual a província de Buenos aires procurou se manter independente, mas que, na batalha de Cepeda (1859), perdeu sua independência, sendo submetida à Federação argentina. Em 1861, Buenos aires se rebela outra vez, vencendo a batalha de Pavón. assim, “seria só a partir de então que a tarefa de construir uma iden- tidade nacional – entendida agora como ‘argentina’ – pôde começar a ser encarada por que na ocasião controlava os mecanismos do novo estado central” (Myers, 2007, p.83). Buenos aires começava a exer- cer a sua preponderância política. 6 [“...durante os vinte anos de seu governo autoritário se acentuou a supremacia da província de Bueno aires”] [tradução nossa] 7 [“... uma Constituição que criou as condições institucionais, políticas e econômicas para o desenvolvimento da argentina”] [tradução nossa] 46 BRAz BATISTA VAS Os argentinos, ao longo da década de 1850, além dos combates, lançaram as bases legais do processo de consolidação de seu Estado e os princípios de um discurso fundador (Celada, 2003, p.89-112). Em 1862, o general Bartolomé Mitre,8 governador de Buenos aires, tornou-se o primeiro presidente constitucional da argentina unifi- cada. seu projeto político era reorganizar sob o seu comando as colô- nias do antigo Vice-reinado do rio da Prata, reunindo os territórios da argentina, do Paraguai e do Uruguai sob uma mesma bandeira. tal pretensão implicava, necessariamente, ameaça para o Paraguai – que teve a independência aceita pela argentina em 1811, após inter- mediação brasileira; para o Uruguai – à época república Oriental, um Estado tampão ante as intenções expansionistas brasileiras e ar- gentinas; e, enfim, para o Brasil – que teria seus interesses na região barrados caso as pretensões argentinas se realizassem. a configuração político-diplomática da região platina entrou em uma nova fase. Com a estabilidade política da monarquia, o Estado brasileiro ampliou suas atenções para essa região. a argentina, a ca- minho da unificação a partir do crescimento econômico e de poder po- lítico buenairense, ainda se recusava a ver o Paraguai como Estado ple- namente independente e mantinha atenção no palco uruguaio. Levar Venâncio Flores ao poder no Uruguai agradava aos interesses regio- nais argentinos e, de forma surpreendente, naquele momento também satisfazia os interesses brasileiros. assim, uma intervenção militar no Uruguai para favorecer o líder colorado não seria prejudicial aos inte- resses argentinos, contanto que fosse rápida e não implicasse perma- nência ou ampliação da preponderância brasileira naquele Estado. Muitos argentinos tinham esperança de estender seu contro- le àquilo que fora anteriormente o Vice-reinado do rio da Prata. 8 Bartolomé Mitre (1821-1906) nasceu em Buenos aires e lá teve uma formação mi- litar, sendo que ainda jovem participou de várias operações militares na américa do sul. Lutou ao lado dos brasileiros em 1852, contra o ditador rosas, comandando a artilharia na batalha de Monte Caseros. Em 1860 elegeu-se governador de Buenos aires e, em 1862, assumiu a presidência da argentina, onde permaneceu por um pe- ríodo de sete anos. terminado o seu mandato, foi eleito senador. Fundou o jornal La Nación, em 1870. também foi tradutor dos clássicos, poeta e historiador. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 47 Enquanto isso, o Paraguai se esforçava para conseguir um papel de maior destaque no jogo político e econômico regional: [...] os fatos sugerem que o Paraguai do momento não queria, como an- tes, ficar de fora dos grandes acontecimentos regionais. Queria um lugar de destaque entre os países da área, desejava ser ouvido nos assuntos lo- cais e, aos poucos, ao ir contra a argentina e o Brasil estava sendo puxa- do pelos blancos e os atropelos internos do Uruguai. E isso não foi uma quixotada política. Foi o início de uma guerra. (Menezes, 1998, p.91) No plano interno argentino, a expansão e delimitação de seu território após a independência da Espanha se ampararam na con- solidação de Buenos aires como grande e importante entreposto co- mercial e no desbravamento e na abertura de terras agricultáveis no interior, a partir do sistema de enfiteuse,9 com um acelerado processo de arrendamento de terras públicas e expulsão sistemática dos ín- dios daquelas regiões. antes da atribulada década de 1860, Juan Manuel de rosas, ao assumir o comando político argentino, procedeu a mudanças que di- namizaram a ocupação de terras, por meio de arrendamento, compra e concessão. Com isso, a terra se tornou algo como uma moeda cor- rente (Lynch, 2004, p.628) e a base da pecuária extensiva de expor- tação. Essas medidas, por sua vez, ampliaram a concentração lati- fundiária e consolidaram o estabelecimento de uma oligarquia rural argentina. No jogo político, “as negociações em favor de um pacto federativo entre as províncias foram marcadas por acirrados debates sobre política econômica” (Lynch, 2004, p.631). rosas representou a ascensão dos interesses econômicos estancieros ao poder. a dinâmica da estância se tornou a da configuração do Estado argentino. ainda sob o governo de rosas, uma parte significativa da estrutura econômica interna argentina passou a suprir, com produ- tos e mercadorias, as necessidades militares, de forma que 9 trata-se do sistema de concessão do domínio útil, com reserva do domínio direto, de uma propriedade imóvel, rústica ou urbana, por seu dono ao enfiteuta (pessoa que recebe a concessão) mediante o pagamento de pensão ou foro anual. 48 BRAz BATISTA VAS Os gastos com a defesa ofereceram um mercado garantido a algumas indústrias e forneceram trabalho para seus empregados: a demanda re- lativamente constante de uniformes, armas e equipamentos ajudou a manter um grande número de pequenas oficinas e manufaturas artesa- nais num setor industrial que, de outro modo, estaria em depressão. so- bretudo, o mercado militar beneficiou uma série de grandes proprietá- rios rurais. alguns deles, como os anchorena, haviam vivido por muito tempo dos valiosos contratos para fornecimento de gado aos fortes de fronteira; agora os exércitos em outras frentes tornavam-se vorazes con- sumidores e compradores regulares. (Lynch, 2004, p.654) Porém, o governo de rosas, ao fim da década de 1840, começava a dar sinais de cansaço político interno. Nas atividades econômicas, os novos imigrantes que lidavam com a crescente atividade de cria- ção de ovelhas e produção de lã, recém-chegados às terras argenti- nas, não se enquadraram automaticamente no sistema de lealdades rosista,10 e alguns caudilhos de outras províncias começavam a criar fissuras no sistema de controle político personalista de rosas. Dessa forma, [...] sempre magistral em seus gestos grandiosos, rosas tentou manter uma aparência vigorosa renovando suas pretensões de absorver Uru- guai e Paraguai. Mas essas medidas tiveram pouco efeito, pois até mes- mo seus partidários estavam cansados das despesas e dos recrutamentos forçados para guerra. (shumway, 2008, p.224) a criação de gado foi a atividade econômica preferida e predo- minante no período em que rosas ocupou o poder na argentina, cujos reflexos se faziam sentir intensamente na vida política do país (Lynch, 2004, p.661). Com a derrota de rosas, em 1852, as pre- tensões argentinas em relação ao Uruguai e ao Paraguai ficaram um pouco mais distantes, porém não foram esquecidas. 10 Pela dinâmica do caudilhismo na argentina, rosas se tornou um dos maiores caudi- lhos do país graças a uma eficiente teia de relações políticas, econômicas e familiares, governando com o apoio de um “amplo sistema de lealdades”, de modo que denomi- namos seus partidários de rosistas. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 49 a economia argentina cresceu concomitantemente ao prestígio, ao poder político e à estruturação de um sistema agrário baseado nas estâncias, grandes propriedades rurais concentradas nas mãos de poucas famílias. inicialmente dedicadas à criação de gado, depois se voltaram à criação de ovelhas, com produção orientada ao mer- cado exterior. a criação de ovelhas mostrou-se como promessa de diversificação das atividades econômicas – até então centradas na pecuária e em seus produtos – e, entre as décadas de 1840 e 1850, graças à demanda da expansão industrial europeia, tinha mercado certo, como indicam os gráficos 1.2 e 1.3. Esses investimentos per- mitiram ampliar as ligações argentinas com o comércio mundial e gerar certo acúmulo de capital. tratou-se de um processo de diver- sificação econômica que se reverteu em significativa implicação na dinâmica política argentina. Junto com a produção de lã e seu aper- feiçoamento, desenvolveu-se uma infraestrutura para tal. a própria cidade de Buenos aires começou a receber maiores investimentos em infraestrutura urbana, as ferrovias se ampliavam e o tráfego nos portos crescia. Gráfico 1.2 Evolução econômica da pecuária em Buenos aires (Lynch, 2004, p.661). 1822 1836 1851 1861 1865 Período 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Pe rc en tu al d as e xp o rt aç õ es Lã Couro 0,94 7,6 10,3 35,9 46,2 64,86 68,4 64,9 33,5 27,2 50 BRAz BATISTA VAS Gráfico 1.3 Crescimento da produção de ovelhas em Buenos aires (Lynch, 2004, p.662-3). a exemplo dos dados expostos nos gráficos 1.2, 1.3 e 1.4, o cres- cimento da criação ovina se elevou substancialmente entre a década de 1820 e a de 1870. as exportações de couro, charque e demais sub- produtos da pecuária também cresceram substancialmente da déca- da de 1830 para a de 1850. Em relação às importações, praticamente metade consistia em produtos manufaturados destinados a atender aos segmentos mais abastados da sociedade. a industrialização era pequena e incipiente. Por consequência, as relações comerciais com a inglaterra se ampliaram; sem, contudo, ameaçar a liberdade de gerência econômica ou mesmo a independência política da argen- tina. Para completar esse quadro, o estabelecimento das estâncias e as posteriores leis contra vadiagem foram, aos poucos, compondo o leque de recrutados para o Exército e transformando o gaúcho em mão de obra para as estâncias ou mesmo em montoneros, espécie de força guerrilheira das planícies. 1810 1852 1865 Período 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 M ilh õ es d e ca b eç as Ovinocultura argentina 3 15 40 O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 51 O desenvolvimento, porém, não foi o mesmo para as várias re- giões argentinas. Enquanto Buenos aires prosperava, o interior ain- da permanecia com a mesma estrutura político-econômica do perío- do da independência. Gráfico 1.4 Crescimento da exportação de lã da província de Buenos aires (Lynch, 2004, p.663). a derrota de rosas levou a significativos avanços na Constitui- ção promulgada em 1853, visando fortalecer a unidade sem atropelar a autonomia provincial. Mesmo com essa nova Constituição, o sen- timento de identidade nacional não se fortaleceu a ponto de alterar a realidade política argentina, que se ampara em personalismo e clien- telismos caudilhos. as divergências políticas opuseram, de um lado, a província de Buenos aires, a partir de 1860 governada por Barto- lomé Mitre e um partido liberal, e, de outro, a Confederação argen- tina, com 13 províncias sob o governo de Justo José Urquiza e de um partido federalista. Da disputa política passou-se às armas e Mitre, tendo vencido a batalha de Pavón, após a retirada de Urquiza, nego- ciou seu programa de reorganização nacional. Buenos aires aceitou a 1829 1840 1850 1860 1870 Período 70.000 60.000 50.000 40.000 30.000 20.000 10.000 0 333,7 1.609,6 7.681 17.316,9 65.704,2 To ne la d as Buenos Aires: exportações de lã 52 BRAz BATISTA VAS constituição de 1853 e, em 1861, houve a formação de uma federação com essa cidade como centro e as demais províncias como interior. O projeto de uma argentina unida somente se tornou real a par- tir de 1862, especialmente nos governos de Bartolomé Mitre (1862- 8) e Domingos Faustino sarmiento (1868-74), tendo como pilares e promotores da identidade e unidade nacional a Justiça federal e o Exército nacional. ambos buscaram promover a unidade nacional, a criação de instituições liberais e o incentivo à modernização. Espe- cificamente quanto ao Exército, [...] pelo decreto de 26 de janeiro de 1864, o governo criou um exército permanente de seis mil homens, distribuídos entre artilharia, infantaria e a cavalaria. Foi fundada uma academia Militar em 1869, onde teve início a formação de um corpo de oficiais profissionais. a lei de recru- tamento de 21 de setembro de 1872 antecipou a conscrição nacional. Foi esse o arcabouço institucional do novo exército. Mas as operações militares nas rebeliões dos caudilhos e na Guerra do Paraguai deram um impulso mais decisivo a essa instituição, aumentando seu contingente e ampliando sua experiência. (Lynch, 2004, p.669) torna-se ilustrativo a fato de o primeiro livro dentre os muitos escritos por Mitre ser um manual de artilharia. Concomitantemente às suas atividades políticas e militares, Mitre encontrou tempo para reunir e ampliar sua coleção de documentos históricos e, posterior- mente, dedicar-se ao gênero biográfico, a exemplo da História de Belgrano (1887), tido como clássico da historiografia argentina, ou mesmo História de San Martín y de la emancipación Sudamericana (1887-1890). assim, Mitre é muito mais que o produto da ambição pessoal e de relações-pú- blicas. Depois que Urquiza deixou de ser obstáculo e Mitre se tornou presidente, procurou organizar o país, fundando escolas, redigindo có- digos de leis, aperfeiçoando o sistema bancário e monetário, determi- nando políticas de imigração e construindo portos, linhas telegráficas e ferrovias. Em todas essas atividades provou ser um servidor público criativo e incansável, a tal ponto que sem Mitre a argentina moderna O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 53 poderia não existir. No entanto, havia um outro Mitre: aquele cujas ambições prejudicaram o desenvolvimento do país e a compreensão do passado da argentina. Quando suas ambições pessoais coincidiam com o bem da nação, foi um servidor público dedicado e criativo; quando isso não ocorria, foi uma perigosa fonte de perturbação e distorção his- tórica. (shumway, 2008, p.275) Mitre e a argentina, em sua unificação, souberam aplicar um projeto político em que a instituição militar pôde ser usada como propulsor de um espírito nacional que resistisse à disputa de po- der entre Buenos aires e as demais províncias pela forma político- -institucional do Estado argentino. Nesse sentido, os argentinos diferiram muito do Brasil, que relegou o Exército de Linha a uma força secundária e socialmente marginalizada. Para a argentina, a Guerra do Paraguai contribuiu com o propósito unificador a partir de Buenos aires. Para Francisco Doratioto: a guerra realimentou a oposição federalista interna e contribuiu para o surgimento de diferentes rebeliões contra o governo nacional, o qual ao conseguir reprimi-las, se fortaleceu e se legitimou. De modo paradoxal, porém, o presidente Mitre, que se manteve intransigente em continuar a guerra e sufocar as rebeliões, embora vitorioso nas armas, saiu derro- tado politicamente, ao assistir à vitória de um opositor, na eleição presi- dencial de 1868. (Doratioto, 2002, p.463) O caudilhismo, entretanto, sobreviveu e se adaptou aos novos tempos, consubstanciando-se, por exemplo, nos chefes dos partidos políticos (Lynch, 2004, p.670). O fluxo modernizante, entendido como crescimento da exportação dos produtos agrícolas já bastante conhecidos, investimentos em infraestrutura e incentivo à imigra- ção, repercutia na vida política. a ferrovia, em especial, teve papel importante nessa conjuntura; financiada pelo capital inglês, foi vista como ferramenta estratégica de interiorização do desenvolvimento. as companhias de navegação se ampliaram, acelerando a ligação en- tre Buenos aires e Europa. Num curto prazo de tempo, apareceram as ligações por cabo e telégrafo com o velho continente. Em rela - 54 BRAz BATISTA VAS ção ao contexto regional, a argentina, unificada em 1862 sob o co- mando do portenho Bartolomé Mitre, teve o apoio do general uru- guaio Venâncio Flores, membro do partido uruguaio colorado, na luta contra as províncias de Entre rios e Corrientes. temendo al- guma reação dessas províncias que desestabilizasse a recém-unifica- ção, a argentina, ao envolver-se na questão da intervenção brasileira no Uruguai, eximiu-se de atuar diretamente nesse evento. O Paraguai, por sua vez, viu nos caudilhos das províncias ar- gentinas de Corrientes e Entre rios potenciais aliados na disputa interna uruguaia e contra alguma reação de Buenos aires, num grave erro de avaliação do contexto interno argentino. Mesmo que os chefes dessas duas províncias divergissem do projeto político de Mitre em Buenos aires, optaram pela redução dos conflitos inter- nos. No limiar da mobilização paraguaia para chegar ao território uruguaio por terra, solano López solicitou, então, permissão aos ar- gentinos para cruzar as províncias de Misiones, Corrientes e Entre rios; a solicitação lhe foi negada. Esse é um dos momentos em que os caudilhos dessas províncias argentinas decidem por interesses considerados maiores para o processo de unificação argentina, em oposição às intenções paraguaias. Diante da negativa de permissão para cruzar o território argentino das duas províncias argentinas em seu caminho, o Paraguai declarou guerra à argentina em 18 de março de 1865, invadindo a província de Corrientes para poder chegar ao rio Grande do sul. Enquanto a argentina era invadida, o governo blanco era derrotado no Uruguai, e este país retornou à esfera de influência brasileira e, em menor grau naquele momento, da argentina. a história argentina e seu processo de unificação ficaram, des- ta feita, divididas entre uma vertente liberal e portenha e outra na- cionalista e provincial. a prevalência da vertente liberal e portenha foi mais um dos campos de batalha enfrentados e, de certa forma, vencidos por Mitre (shumway, 2008, p.248). Nesse processo, diante do contexto e da dinâmica regional da década de 1860 vividas por Brasil, Uruguai e agora o Paraguai, a argentina entrava na Guerra do Paraguai. O FINAL DE UMA GUERRA E SUAS qUESTõES LOGíSTICAs 55 O Paraguai, Solano López e a guerra O Paraguai, logo após sua independência da Espanha, por causa de sua interiorização geográfica e da constante ameaça de seus vizi- nhos sobre seus limites, em especial argentina e Brasil, distanciou- -se de uma participação direta no desenrolar da geopolítica platina para garantir sua autonomia. Por consequência, o Estado paraguaio se organizou, basicamente, em uma classe que governava e contro- lava o Estado e em um campesinato (Priolli, 1998). Essa organização se deve ao passado colonial da região que posteriormente passou a ser chamada de Paraguai. a colonização jesuítica consolidou, ao longo do período colonial, uma segmentação social na qual o controle es- panhol, tendo chegado ao fim, foi substituído pela gestão de uma pequena elite local, que em seu desenvolvimento interno manteve o território paraguaio isolado até praticamente a década de 1840. Desde a independência, o Paraguai esteve politicamente sob o comando de ditadores, cujos períodos de governo relativamente lon- gos e cuja tendência “dinástica” fizeram do governo paraguaio quase uma monarquia disfarçada (Lynch, 2004, p.681). até a guerra con - tra a tríplice aliança, sucederam-se três governantes: José rodri- gues Gaspar de Francia, de 1814 a 1840; Carlos antonio López, de 1841 a 1862; depois o filho e sucessor deste, Francisco solano López, de 1862 a 1870. O Paraguai contava, então, com uma população es- timada entre 300 mil e 400 mil habitantes. a república do Paraguai surgiu e se estabeleceu efetivamente a partir de […] la dictadura del Dr. José Gaspar rodríguez de Francia (1814-1840) [que] puso fin, en un primer nivel, a las ambiciones de Buenos aires de reintegrar la “Provincia” del Paraguay al nuevo esquema nacional ar- gentina [sic]. rodríguez de Francia fomenta a su vez relaciones austeras pero beneficiosas con el imperio del Brasil, como manera de encontrar salida a las exportaciones paraguayas, y para contrarrestar los designios argentinos. El “aislamiento” del Paraguay de la época es más bien rela- tivo, y la llegada al poder de la familia de los López, con el liderazgo de 56 BRAz BATISTA VAS Carlos antonio López en 1841, permite un proceso de cierta moder- nización de la estructura económica y de mayor integración regional y mundial. 11 (Krauer, 2007, p.2) O isolamento iniciado no governo de Francia foi também um mecanismo de defesa do Paraguai em relação a Buenos aires, que o via apenas como uma província rebelde distante. a frágil econo- mia paraguaia se organizou inicialmente em torno da erva-mate e da ex tração e exportação de madeira via estâncias controladas direta- mente pelo governo. Em razão das incertezas e indefinições territo- riais e de sua localização geográfica, […] ubicado en el centro de sudamérica, sin recursos minerales de significación, el Paraguay buscó desde su independencia una manera eficiente y no tan cara de hacer que sus productos llegasen al merca- do mundial. El sistema fluvial del río de la Plata – sobre todos los ríos Paraguay y Paraná – constituyó por siglos la única vía respiratoria de la economía paraguaya, con costos sumamente elevados, que en la prime- ra mitad del siglo XX superaban incluso a los fletes para el transporte de mercancías entre Buenos aires o rio de Janeiro, y ciudades europeas o estadounidenses.12 (Krauer, 2007, p.1) O período de governo de Carlos antonio López alterou a políti- ca praticada antes por Francia em dois pontos fundamentais: acabou 11 [“(…) a ditadura do Dr. José Gaspar rodríguez de Francia (1814-1840) (que) pôs fim, a princípio, às ambições de Buenos aires de reintegrar a ‘Província’ do Paraguai ao novo esquema nacional argentino. rodríguez de Francia, por sua vez, fomenta relações austeras, mas benéficas, com o império do Brasil, como forma de encontrar saída às