UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES RAPHAEL DE LIMA PUCCINI WILLY CORRÊA DE OLIVEIRA COMO PROFESSOR: estudo sobre seu projeto pedagógico de ensino da composição musical – da virada do século XXI até os dias atuais São Paulo 2019 RAPHAEL DE LIMA PUCCINI WILLY CORRÊA DE OLIVEIRA COMO PROFESSOR: estudo sobre seu projeto pedagógico de ensino da composição musical – da virada do século XXI até os dias atuais Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Música, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista — UNESP, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. Área de Concentração: Música: processos, práticas e teorizações em diálogos, Linha de Pesquisa: Música, Epistemologia e Cultura. Orientadora: Profª Drª Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. São Paulo 2019 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP P977w Puccini, Raphael de Lima, 1989-. Willy Corrêa de Oliveira como professor: estudo sobre seu projeto pedagógico de ensino da composição musical: da virada do século XXI até os dias atuais / Raphael de Lima Puccini - São Paulo, 2019. 324 f. : il. + anexos. Orientador: Profª. Drª. Marisa Trench de Oliveira Fonterrada Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Educação musical. 2. Linguagem musical. 3. Composição musical. I. Oliveira, Willy Corrêa de. II. Fonterrada, Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 780.7 (Fabiana Colares - CRB 8/7879) Agradecimentos À Marisa Fonterrada, pela confiança, coragem e incentivos. À Karoline, por me ajudar com a bagagem. À minha mãe, Alessandra, pelo empurrãozinho (sem o qual não). À minha irmã, Carolina, pelo companheirismo. Ao meu pai, Fernando, e à minha família, por oferecerem referências. Aos colegas, amigos e professores, pelos debates, que me ajudaram a ir a fundo. Ao Maurício De Bonis, pela generosidade. À Consiglia Latorre e Dilmar Miranda, pelos sábios conselhos. Aos participantes da pesquisa, pela disponibilidade e colaboração. Ao André de Cillo Rodrigues, pela fundamental oferta de trabalho. Ao Willy, pela bússola e pela lanterna: farei bom uso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO O presente trabalho estudou o projeto pedagógico de ensino da composição musical de Willy Corrêa de Oliveira, em duas configurações distintas: em sua conformação observada na virada do século XXI – últimos anos de sua atuação enquanto professor da Escola de Comunicação e Artes da USP –, e também a partir da nova abordagem, recentemente elaborada pelo professor, baseada no uso do dodecafonismo como código musical para a prática criativa. O estudo se deu à luz do pensamento marxista, visando compreender a maneira como o professor trata do problema da ausência de uma linguagem musical universalizante na Música Erudita Ocidental, surgido em paralelo com o desenvolvimento da sociedade capitalista. Palavras-chave: Educação musical, composição musical, linguagem musical, história da música, arte e marxismo. ABSTRACT In this research we have studied Willy Corrêa de Oliveira’s pedagogical project for the teaching of musical composition, considering two distinct configurations: in the turn of the 21th century – his latest years working as a professor at ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP) –, and also considering the recently elaborated approach, which is based on the usage of the twelve-tone composition as a musical code to creative practice. The study has been carried on by Marxist thought, aiming to comprehend the way in which the professor deals with the problem of the absence of a common-practice musical language in Western Contemporary Classical Music, which aroused concomitantly with the development of capitalist society. Keywords: Musical education, musical composition, musical language, music history, Marxism and art. Interroga a propriedade: de onde vens? Pergunta a cada ideia: serves a quem? bertolt brecht, em Elogio do Revolucionário. Os problemas fundamentais da pedagogia não são problemas pedagógicos. Giulio Girardi, em Educar: para qual sociedade? Sumário Introdução ................................................................................................................................................8 1 Ideologia e educação na atuação de Willy Corrêa de Oliveira como professor ..................................20 1.1 Educar: para qual sociedade? – Fundamentos sobre a ideologia, a educação integradora e a educação libertadora ...............................................................................................................................25 1.2 A crítica de Willy à educação musical e a influência de Girardi em seu pensamento .....................32 2 Fundamentos teóricos ..........................................................................................................................41 2.1 O problema da ausência de uma linguagem musical comum na música erudita do Capitalismo ....42 2.2 A função social da música e a diferenciação entre música erudita, popular e folclórica .................56 2.2.1 Os diferentes gêneros musicais como materiais para o aprendizado da linguagem musical erudita nas aulas da ECA ...................................................................................................................................74 2.3 A consciência histórica e a dialética do material musical ................................................................77 3 O projeto pedagógico de Willy Corrêa de Oliveira ...........................................................................115 3.1 Aspectos gerais da pedagogia de Willy Corrêa de Oliveira, segundo seu próprio entendimento. .119 3.2 Aulas de composição ocorridas no período em que Willy lecionava na ECA (da década de 90, até a virada do século) ..................................................................................................................................128 4 O dodecafonismo em seu potencial linguístico e pedagógico ...........................................................159 4.1 O roteiro do Curso de Composição Dodecafônica .........................................................................171 4.2 Análise das entrevistas e questionários ..........................................................................................182 Considerações finais .............................................................................................................................198 Referências ...........................................................................................................................................205 Anexo 1: Entrevistas ............................................................................................................................210 Anexo 2: Questionários direcionados aos ex-alunos de Willy no período em que era professor na ECA. ..............................................................................................................................................................247 Anexo 3: Questionários direcionados aos alunos do Curso de composição dodecafônica. .................281 Anexo 4: CURSO DE COMPOSIÇÃO DODECAFÔNICA ...............................................................295 Anexo 5: Textos de Willy Corrêa de Oliveira. .....................................................................................305 Anexo 6: Modelo do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) ........................................324 8 Introdução Eu nunca tinha lido Marx. Conheci Willy Corrêa de Oliveira em 2016, quando ainda realizava o último ano do curso de composição na EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo). Em um dia de aula, André de Cillo Rodrigues, um dos professores da escola com quem tinha tido algum contato desde a minha recente volta à escola – da qual havia me desligado no fim de 2011, por conta da enxurrada de afazeres acadêmicos requeridos pela graduação em composição na UNESP, que eu realizava concomitantemente –, me abordou no saguão, antes do início das classes daquele dia, dizendo que o Willy, seu professor de longa data, precisava de alguém para editar suas partituras. E eu, que na época precisava de trabalho, embora com alguma insegurança diante da oportunidade inesperada – já que sabia que Willy era uma figura importante e me parecia uma grande responsabilidade aceitar tal trabalho –, aceitei a proposta, sabendo que passaria um bom tempo daquela semana ansiando pelo que viria a partir de tal escolha. A situação piorou um pouco com o alerta do André diante da decisão: “Mas saiba que, depois de conhecer o Willy, sua vida nunca mais será a mesma!” E ele tinha razão. Após algumas trocas de e-mail e um telefonema recebido do Willy, ficou combinada minha primeira visita à sua casa, para receber o primeiro trabalho de edição. Muito bem recebido, no dia e horário combinados, cheguei à sua casa e fomos à sua sala de trabalho, nos fundos, subindo a escada de metal. Uma salinha abarrotada de livros, pinturas e pequenas esculturas, um velho piano de armário com diversas partituras, mais livros e algumas fotografias de pessoas conhecidas sobre o tampo. Na parede atrás do piano, o que chamava mais ainda a atenção, havia mais fotografias fixadas, à esquerda e à direita, de figuras importantes, que eu descobriria futuramente se tratarem, respectivamente, de seus tutores e de sua essência – compositores, artistas, cineastas, figuras importantes do socialismo... e, claro, os próprios Marx e Engels, um ao lado do outro, estes dois, indubitavelmente, do lado dos tutores. O cheiro de livros antigos, o caos organizado, a história por trás daquilo tudo... Já dentro da sala, antes mesmo de discutirmos a respeito do trabalho que havia me levado até lá, Willy me indicou uma cadeira ao lado da janela, se sentou de frente para mim no banco do piano, cruzou as pernas e, deixando claro que desejava fazer algo para me ajudar, em troca da gentileza por ter ido até lá, perguntou algo como: “e então, o que é que você procura para a sua vida?” O que alguém responde diante de uma pergunta dessas? Mesmo com vinte e seis anos de idade, imagino ser algo que normalmente não se tenha realmente definido, ainda mais em 9 tempos em que, cada vez mais, se faz verdade a frase do manifesto de Marx e Engels: “Tudo o que é sólido se desvanece no ar”. Mas, no caso, eu sabia. Ou ao menos achava que sabia: “Quero ser professor de composição em uma universidade pública”, disse. E, então, começamos a conversar a respeito do que eu pensava sobre isso. Eu falava do ponto de vista de quem ainda se sentia frustrado com as más experiências vividas na graduação, a falta de direção que sentia ter prejudicado a minha capacidade de produzir, como compositor, na medida em que gostaria, conciliada com uma ideia que tinha da música que haveria sido forjada dentro deste mesmo ambiente de mais pura errância. O que acontece é que eu pensava que o problema que me teria levado a esta incapacidade viria da postura de indivíduos – os professores, principalmente – que não queriam dar aula de verdade. De fato, pode ser que, muitas vezes, alguns deles não quisessem, realmente. Mas foi a partir de então, nessa primeira conversa – da qual, sinceramente, saí com os dois pés atrás (já que eu não sou de mudar de opinião sem que me provem indubitavelmente que eu estou enganado... o que pode levar muitos meses para acontecer) –, foi quando a dúvida foi plantada. E a dúvida era múltipla. O que o Willy quer dizer com “não há mais linguagem comum na música erudita?” Me ensinaram a reconhecer os procedimentos e técnicas dos compositores contemporâneos a partir das análises das quais eu me orgulhava tanto de saber fazer! Se eu sabia descrever o que eles fazem, como não haveria linguagem comum? De forma dualista em relação ao fato de não ter tido uma direção muito clara que conduzisse a caminhada durante a graduação, eu também me sentia muito capacitado por ter corrido atrás daquilo que achava que era necessário, por fora. Ainda assim, algo era recorrente nas visitas à casa de Willy, que se tornariam relativamente frequentes: sempre que ele tocava alguma música para mim e pedia para que eu fizesse uma crítica ao que tinha ouvido, eu não tinha a menor ideia do que dizer. Eu me perguntava: “Por que ele fica pedindo pra eu criticar as obras? Quem sou eu pra dizer o que é bom ou ruim?” Durante a graduação viviam falando em termos de “bom e ruim”, como que esperando de mim o “bom”, mas não ensinavam como fazer isso, nem o que era isso... muitas vezes eu ouvia esse juízo de valor atrelado a determinada preferência musical ou àquilo que o próprio professor fazia. E, então, durante essas visitas, eu me perguntava: qual é a diferença entre isso que ele está me pedindo pra fazer e o que faziam na faculdade? Em um dos encontros, lembro-me do Willy me perguntando se conhecia determinados filmes, livros, músicas... e se eu já havia lido alguma coisa do Marx... e eu não sabia nem do que ele estava falando. Ele balançava a cabeça, em reprovação, dizendo “que péssimo...”. Ele tinha razão, era péssimo mesmo. Como eu poderia querer me tornar um professor 10 universitário sem saber a fundo a respeito dessas coisas? Não que ele me culpasse: naquela primeira visita, lembro-me dele me perguntando com todas as letras, quando eu disse que havia estudado composição na UNESP: “E foi uma merda, não foi?”. E eu fiquei em dúvida e perguntei “por que você diz que é uma merda?” Ele não se referia apenas à UNESP, mas à academia, como um todo, no Capitalismo. Antes de tudo: como alguém pode ensinar música hoje, sem se colocar primeiro a questão da ausência de uma linguagem comum na música? Eu nunca tinha pensado nisso. Já tinha ouvido falar que os compositores a partir do século XX, cada um compunha sua música de uma maneira diferente, e que era necessário olhar pra cada um, ainda que olhando para coisas que sobreviviam entre eles – até cheguei a repetir isso em aulas que dei –, mas nunca me disseram que isso era um problema da linguagem, e muito menos um problema do Capitalismo. Como ensinar isso, não incorrendo em falsidade, sem deixar claro que todo o problema ocorre, fundamentalmente, por conta do sistema econômico em que vivemos? Como ensinar música – conhecendo-a a fundo – sem antes contestar o sistema que, em grande medida, a condiciona ao seu atual estado? Já que, como será abordado ao longo deste trabalho, o próprio sistema é (a)fundado em uma série de ideias ilusórias que se colocam em relação de dualidade com o que efetivamente ocorre no mundo? Não me lembro disso ter sido mencionado uma única vez durante todos os cinco anos em que estive na universidade. Eu não me recordo, também, salvo em diminutas exceções, de nenhum professor falando, nas aulas, sobre cinema, sobre pintura, sobre literatura (resguardados os momentos em que estudávamos alguma música vocal) ou qualquer outro tipo de arte que não a música. *** A ideologia [capitalista] é analítica. As descrições que ela elabora e as soluções que ela propõe defrontam-se com os problemas singularmente, fora do contexto global do sistema. E isto, em nome do realismo, da adesão ao concreto, das exigências técnicas e divisões do trabalho, e da especificidade das várias ciências. Por isto mesmo, a ideologia censura os problemas de fundo, os quais só emergem em uma perspectiva de conjunto. (GIRARDI, 2011, p. 20). *** Para que aprender a respeito de outras artes se estamos ali para conhecer a música? Um pensamento que leva a esta postura diante do aprendizado deve muito a uma necessidade de uma sociedade para a qual a capacidade de estabelecer relações pode representar um risco à ordem estabelecida. O conhecimento da dialética é um risco. É necessário à manutenção do 11 estado de coisas (que não desmorone!) que se enxergue as árvores, mas não o bosque – diria Engels (2014, p. 66). Ciência destacada da realidade, desvinculada de intenções e necessidades materiais, dissociada de um mundo que se erigia com base na divisão em classes – a dominante, que buscava o lucro; a dominada, que era explorada, com tal objetivo, pela primeira. Para que isso tudo subsista – até quando não houver mais nem árvores e nem bosque – é necessário que não se entenda a ciência ou as artes como parte da sociedade; uma sociedade dividida em classes. Um pensamento dialético, entre outras coisas, procura estabelecer relações entre os conhecimentos, e procura, além disso, desvendar as causas fundamentais – no caso, as relações de produção e de dominação na sociedade – dos problemas; desvenda, também, as ideias correntes, que são influenciadas pelas necessidades materiais, sobretudo da classe dominante, pois “As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes” (MARX & ENGELS, 2009, p. 67). Me lembro bem que os músicos que eram considerados, na comunidade acadêmica, os mais talentosos e mais bem preparados, eram aqueles que conseguiam realizar as tarefas-fim de seu curso de graduação com maior sucesso, perante os olhos do professor e a comunidade acadêmica. Assim, o regente que dominasse os gestos da regência – sabendo, desejavelmente, solfejar as notas das melodias e tocar um pouco de piano – era considerado melhor capacitado. O compositor talentoso era aquele que tinha suas peças tocadas e, indubitavelmente, aquele que, eventualmente, conseguia ganhar algum concurso de composição – eu mesmo já me iludi por alguns anos por ter conseguido tal façanha durante a graduação. Pouco importa, perante a comunidade, se estes estudantes já viram a filmografia (que não é muito extensa) do Tarkovsky, ou se são capazes de se posicionar diante de uma sugestão de que a música de Pixinguinha e de Beethoven são a mesma coisa; ao mesmo tempo em que, sabendo que são coisas totalmente diferentes, saibam dizer o porquê de ambos terem sido dois grandes músicos do passado. A sociedade necessita de trabalhadores que dominem a técnica necessária para cumprir sua função na linha de produção. O fato de estarmos trabalhando com a mente não nos furta de sermos competentíssimos apertadores de parafusos de uma esteira rolante. Seria muito pior, é claro, se fossem parafusos reais, sobre uma esteira real; trabalho que, pelo fato de termos tido condições sociais mínimas para chegar a este ponto (vestibular, universidade, diploma), se torna mais difícil, em alguma medida, que precisemos realizar. *** A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação 12 humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. (MARX & ENGELS, 2011, p. 48) *** Ainda sobre o compositor e seus vitoriosos concursos de composição: como se vangloriar por prêmios recebidos, se sua obra premiada foi confrontada com a de outros compositores que são igualmente desprovidos de uma linguagem comum a partir da qual pudessem ser comparados e avaliados? Como comparar as capacidades de um falante de língua portuguesa com as de um telegrafista chinês? Em uma situação de urgência – guerra ou segredo de estado –, talvez fosse possível avaliar a eficácia de um mensageiro, em Macau, que recebesse um telegrama de Hong-Kong, a ser transmitido a alguma autoridade local, por exemplo. Mas essa possibilidade, objetiva, adviria de uma necessidade concreta, que levasse o menor tempo possível, dado o possível aperto da ocasião, e não puramente subjetiva. Não é o caso em que se encontra a música erudita. Os jovens, ou mesmo os mais velhos compositores que se envaidecem perante uma avaliação arbitrária, que só poderia se dar a partir do gosto pessoal do próprio avaliador, pautam-se em uma ilusão, que, possivelmente, pode até levá-los a algum nível de reconhecimento na comunidade. Podem ser, inclusive, noticiados por mídias específicas como “alguém que chegou lá”: é o particular sendo generalizado, com aparência de universal. *** O homem da ordem identifica-se fortemente com o seu próprio grupo familiar, político, religioso etc, que tende a colocar no centro do próprio universo, mesmo do universo mais universal, fazendo dele o lugar privilegiado, senão exclusivo, dos valores e da verdade. (GIRARDI, 2011, p.18) *** Algo que a ideologia dominante necessita, é de que as pessoas não saibam que elas possuem um conhecimento falho e que necessitam estudar – buscando, é claro, uma direção que lhes conduza para uma verdade que seja amparada pelas relações efetivas da sociedade. Como diria Brecht, em Cinco dificuldades de escrever sobre a verdade (BRECHT, 2012), uma das dificuldades para que se possa escrever (aplica-se para o dizer, também!) a verdade é a descoberta da verdade. 13 *** No plano da cultura, os interesses de classe não explicam tudo mas impregnam tudo. Tornam-se portanto um obstáculo à revelação da realidade, na medida em que os interesses em jogo exigem que a realidade permaneça velada. (GIRARDI, 2011, p. 13) *** Havia, portanto, na época em que conheci Willy, algumas certezas que, já no primeiro contato, vi questionadas, logo de cara. Ele concordava comigo, é claro, que o ensino na universidade era ruim, mas, antes de tudo, associava o problema a um desconhecimento geral (de professores, alunos, etc.) acerca do problema da linguagem e, mesmo, de uma abordagem dialética perante o aprendizado da música. Isso demorou um tempo para ser compreendido e, de cara, eu, na realidade, ainda me mantinha atrelado às minhas convicções anteriores, pois me parecia descabido deixá-las de lado, num momento em que achava que estaria chegando mais perto a hora de concretizar o meu objetivo de vida – posto que, no mesmo ano, estaria me inscrevendo no processo seletivo do mestrado. Também percebi que isso não seria de todo mentira: na universidade, que em grande medida não se dá por estas questões como fundamentais, os requisitos para que se possa assumir uma posição docente não dependem deste tipo de conhecimento, fundamentalmente. Um Curriculum Lattes bem atualizado, tendo contemplados os itens convenientemente mais propícios para os requisitos da vaga em quantidade suficiente, terá um peso imensamente maior do que a capacidade de elaborar uma breve resenha sobre uma possível correlação entre a obra de Beethoven, na música, e a obra de Goya, na pintura. Com o passar do tempo, fui entendendo que este tipo de “conquista” profissional não seria fundamental para mim. Mas, como disse, este processo levou tempo, e nesse primeiro momento, inclusive, me inscrevi para o mestrado com um projeto de pesquisa de abordagem totalmente diversa em relação a este, que desenvolvo atualmente. Eu me interessava exatamente por aquilo que Willy denunciava como sendo uma ilusão condizente com o Capitalismo. Tinha a impressão de que o erro da Universidade tinha sido não me auxiliar através de um caminho que me conduziria ao encontro de algo que fosse “a minha música”, “a minha estética”, algo que, para mim, tinha sido entendido como o máximo grau de maturação de um compositor; algo que buscava sem ter sequer a noção de que, concretamente, entre o que eu havia adquirido na universidade e a tal “maturação”, havia um abismo enorme; mesmo que, em poucos anos, eu 14 seguisse no mesmo caminho que vinha seguindo e pudesse obter a desejada vaga, a maturação não viria a partir disso, sem que fosse realizado um trabalho mais consistente. Sem que fosse buscada uma aproximação em direção à revelação desta verdade oculta pela ideologia dominante, pelo desconhecimento, pela falta de crítica. Após a aprovação no mestrado, já em 2017, então, eu passei por um longo processo de transformação, e, junto comigo, também o meu projeto de pesquisa. Aos poucos fui conhecendo o marxismo, a dialética, o problema da linguagem musical. Descobri, em seguida, poucos autores que já discorreram sobre este problema de maneira consistente; como mostra Maurício De Bonis, em seu Tabulae Scriptae (DE BONIS, 2015), dois exemplos desta abordagem – embora entre eles sejam observadas algumas diferenças – são Henri Pousseur e o próprio Willy. Não foi uma transformação fácil, isso é certo. Diversas noites mal dormidas, diversas discussões acaloradas com os colegas, amigos, professores, familiares..., com as pessoas com quem convivia e em quem eu passava a enxergar os traços de minha própria visão passada, que não mais poderia ser vista por mim como verdadeira... lembro-me bem de sair à rua, certa tarde, e sentir um asco muito grande de ver as mensagens estampadas em outdoors e relógios urbanos espalhados pela cidade de São Paulo, aqueles slogans absolutamente enganosos que não diziam nada senão o próprio Capitalismo, ali, pulsando – embora já de maneira absolutamente caquética, ultrapassada e moribunda – sob o nariz de muitos, que passavam por ali e nada notavam. A necessidade do consumo, a dualidade entre a ideologia dominante e a situação do mundo, o engano, o desconhecimento, a aceitação da barbárie... eu fui enxergando, aos poucos – sobretudo com a leitura das obras de Marx, dos marxistas e, muito concretamente, de Girardi (2011) – essas coisas transparecendo por toda a parte. Na fala das pessoas, no programa de TV, nos candidatos e políticos que a maioria apoiava ou em quem votava nas eleições – como ocorreu com o, à época, eleito João Doria, para a prefeitura de São Paulo, ou com o golpe sobre a presidente Dilma Rousseff, substituída pelo conservador e, à época, suspeito por corrupção Michel Temer1 abaixo de metálico aplauso... Transparecia nas justificativas que forneciam para essas ações... e ninguém parecia enxergar aquilo que os levava a realizar aquelas escolhas. A ideologia, é claro! A ideologia burguesa, como diz Girardi (2011, p. 19), é tentacular. E é, muito concretamente, uma prisão invisível (p. 25). Sabendo, então, que a visão sobre a música que eu havia adotado anteriormente e agora abandonado, era também 1 https://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160509_temer_acusacoes_lab 15 um produto dessa ideologia, eu fui buscar no próprio Willy uma alternativa de estudos para o mestrado, no qual eu já havia ingressado, e, não tendo desistido do meu objetivo de me tornar um professor de composição – embora agora tenha tido a consciência de que o caminho deveria ser muito mais trabalhoso do que imaginava – decidi continuar. ***** Dessa custosa e reveladora transformação, surge o projeto desta pesquisa. Ao mesmo tempo que é uma opção acadêmica, inclui também uma tomada de partido, um posicionamento político – afinal de contas, como ensina a dialética, tudo se relaciona! Este projeto surge também como uma tentativa de aproximação e de dedicação a estes conhecimentos que o seu autor, antes, ignorava e que passavam a fazer muito sentido a partir do momento em que vivia. A pesquisa tem como objeto de estudo o projeto pedagógico do ensino da composição de Willy Corrêa de Oliveira, observando sua atuação desde a virada do século XXI, quando ainda era professor da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo, até a sua atuação nos dias presentes. Adotando uma postura de oposição ao Capitalismo, Willy tem em sua atuação como professor um questionamento do estado de coisas em que se encontra a música erudita na atualidade: estado de crise, que germina após a Revolução Francesa, e se desenvolve concomitantemente com o advento do Capitalismo – também como incorporação da ideologia da nova classe dominante (a burguesia) nas Artes. Entre outros aspectos, a ênfase sobre o individualismo e a dissociação da música e outras artes em relação ao cumprimento de uma função social, acabou por acompanhar o fim da linguagem musical na música erudita, que outrora se apresentava como uma língua viva, compartilhada entre compositores, intérpretes, e também com o público. Nesta pesquisa, são buscadas, em seu projeto pedagógico, as saídas adotadas para que se tornasse possível o ensino da música e da composição musical a partir deste dado fundamental, este estado de crise. O objetivo é a investigação do projeto pedagógico de Willy, acerca do ensino da composição, a partir de uma perspectiva dialética, de forma a torná-lo mais acessível, para os professores interessados que não tenham contato direto com o compositor. O intuito é que ele possa ser utilizado como meio de ação para uma pedagogia da música que leva em conta os problemas da linguagem musical na prática do ensino da composição, no Capitalismo. Diante do material coletado, também – e não com menor importância –, tem-se como objetivo a realização de uma reflexão de cunho pedagógico e ideológico acerca da abordagem de ensino de Willy, à luz de um ponto de vista marxista. 16 A partir de uma metodologia qualitativa, o estudo é baseado na revisão bibliográfica de obras do próprio Willy, nas quais a sua visão sobre a educação, sobre a linguagem musical, e suas opções ideológicas se mostram presentes e servem de base para o desenvolvimento do presente trabalho. Além da pesquisa bibliográfica, a pesquisa também contou com uma etapa de coleta de dados desde a realização de entrevistas (escritas ou transcritas, desde uma gravação) com o próprio Willy Corrêa de Oliveira, e com seus atuais e ex-alunos, de modo a buscar elucidações a respeito de suas aulas no passado e no presente. Os estudantes abordados fazem parte de dois grupos: um deles é composto por ex-alunos da época em que Willy lecionava na ECA (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), ingressantes a partir da década de 1990. A partir de tais participantes, buscou-se uma compreensão a respeito das aulas de composição dadas na época, tanto em relação aos conteúdos abordados, como a respeito da dinâmica que ocorria nas aulas, na época. Buscou-se também elucidações a respeito dos fundamentos de tal abordagem pedagógica, de modo a poder realizar uma síntese quanto aos aspectos que permanecem hoje em dia ou que foram transformados. O segundo grupo de estudantes é composto pelos alunos atuais do Curso de Composição Dodecafônica, recentemente elaborado por Willy e aplicado tanto por ele, como por Maurício Funcia De Bonis, também participante da pesquisa. Da mesma forma que com o outro grupo de estudantes, com os alunos do referido curso buscou-se uma compreensão a respeito da maneira como as aulas se concretizam, na prática, à luz de comparação, tanto com os conceitos desenvolvidos ao longo das pesquisas bibliográficas, como com o plano de curso, disponibilizado por Willy para o presente trabalho (OLIVEIRA apud DE BONIS, 2018), e que consta no Anexo 4 da presente Dissertação. A coleta de dados foi baseada no livro de Richardson (1999), que serviu de base para a compreensão a respeito dos aspectos de uma entrevista e de outras formas de coleta de dados. Entretanto, as circunstâncias em que tais coletas ocorreram exigiram que algumas adaptações fossem realizadas, sobretudo devido a demandas de alguns participantes (como explicado no capítulo 3, em detalhe), e também como otimização tanto para a obtenção de um resultado o mais homogêneo e compreensível possível, quanto ao material coletado (sobretudo na linguagem com que os relatos se apresentavam), e, também, devido a uma adequação quanto ao tempo disponível para a realização do trabalho. A realização das entrevistas foi autorizada mediante submissão do projeto à Plataforma Brasil, sendo que os participantes foram devidamente informados a respeito da pesquisa, bem como das implicações e riscos de participação. Todos eles assinaram a um 17 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado neste processo de submissão à Plataforma Brasil, e cujo modelo consta no Anexo 6 da presente Dissertação. Tratando-se de uma pesquisa que envolve seres humanos, foi, portanto, necessária a informação aos participantes a respeito da questão de riscos oferecidos, que se classificam como mínimos, considerando-se as dimensões física, intelectual, cultural, moral, social ou psíquica de cada participante ou do conjunto de participantes. O contato com os participantes e o desenrolar do processo de pesquisa foi realizado de maneira ética, tendo em vista os princípios éticos das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, em acordo com o Art. 3º do Capítulo II da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional da Saúde. Ainda em conformidade com a mesma Resolução, mais precisamente o Art. 9º do Capítulo III, acerca do processo de consentimento e do assentimento livre e esclarecido, os participantes tiveram seus direitos plenamente garantidos, sendo devidamente informados a respeito da pesquisa e de que podiam desistir de sua participação, sem qualquer dano ou prejuízo, a qualquer momento, até a conclusão do trabalho. Os participantes tiveram sua privacidade respeitada, a confidencialidade de suas informações pessoais garantida, e puderam decidir se sua identidade foi ou não divulgada. No caso de solicitação de sigilo, foi usada uma identificação genérica associada às respostas dos participantes. No caso da participação de Willy Corrêa de Oliveira e Maurício Funcia De Bonis, em que as suas identidades ficariam reveladas por referências de outros participantes (já que cumprem a função de professores dos referidos cursos), a opção pela preservação de suas identidades, em associação às suas respostas fornecidas, foi oferecida a partir da eventual opção de desistência de participação, caso assim decidissem. Além disso, os participantes tiveram pleno acesso às transcrições ou revisões (realizadas pelo pesquisador apenas com a aprovação de cada participante, como detalhado no capítulo 3) das respostas fornecidas, e puderam decidir quais das informações ali presentes poderiam ser tratadas de maneira pública. A versão final de suas respostas, que consta nos Anexos 1 a 3 da presente Dissertação, corresponde exatamente à última versão autorizada por cada participante, com ou sem a realização de adaptações ou revisões, de acordo com a sua vontade expressa. Os participantes não tiveram custos para a participação além daqueles comuns ao cotidiano, como eventuais custos de transporte, que procuraram ser minimizados pela priorização de meios para a realização da coleta de dados de maior conveniência a eles, de acordo, também, com as propostas da pesquisa. Também é importante ressaltar que todos os participantes são maiores de 18 anos. Por fim, em caso de eventuais dúvidas, foi informado aos participantes, desde 18 informação contida no TCLE e de explicação fornecida pelo pesquisador, a possibilidade de consulta tanto direta ao próprio pesquisador e à sua orientadora (com os devidos contatos fornecidos), como ao Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp de São José dos Campos (CEPH/ICT-CSJC-UNESP), responsável pela avaliação e aprovação do projeto de pesquisa, e cujo telefone de contato foi disponibilizado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (vide Anexo 6). *** O presente trabalho é estruturado em quatro capítulos, sendo o primeiro dedicado às questões ideológicas envolvidas na educação. Toma como base fundamental as ideias de Willy acerca do papel da ideologia no Capitalismo, as implicações deste posicionamento sobre sua atuação como professor, bem como os conceitos fundamentais sobre a ideologia capitalista, obtidos em autores marxistas e, sobretudo, na obra de Girardi (2011). O segundo capítulo divide-se em três tópicos, que, respectivamente, abordam as questões referentes à linguagem musical erudita – em crise, desde o advento do capitalismo –, aos aspectos sociais e os significados dos gêneros musicais (música erudita, folclórica e popular), e às relações entre os materiais musicais, a expressividade da música (no sentido do alcance ao inefável), em relação a este material, e também ao desenvolvimento da música ao longo da história desde uma perspectiva dialética. O terceiro capítulo foi dedicado ao projeto pedagógico de ensino da composição de Willy, levando em consideração tanto os seus aspectos gerais, como os aspectos específicos observados na experiência pedagógica ocorrida desde a década de 90 até o período de sua aposentadoria, na ECA. Para o desenvolvimento deste capítulo, recorreu- se aos materiais coletados, sobretudo as entrevistas dadas por Willy Corrêa de Oliveira (2019f) e Maurício Funcia De Bonis (2019) (vide Anexo 1), bem como aos questionários respondidos pelos ex-alunos de Willy da época em questão (apresentados no Anexo 2). A análise dos dados foi realizada a partir da comparação entre as informações fornecidas por cada participante, bem como levando em consideração as informações desenvolvidas nos capítulos anteriores. Por fim, o capítulo 4 dedica-se ao estudo do Curso de Composição Dodecafônica, recentemente elaborado por Willy e aplicado pelo mesmo, bem como por Maurício Funcia De Bonis. Tal capítulo foi desenvolvido, também, a partir dos materiais coletados nas entrevistas dos dois professores, e dos questionários respondidos pelos alunos atuais de tal curso (disponíveis no Anexo 3). Além disso, foram utilizados textos de Willy que dialogam com a proposta de ensino em questão, e também o plano de curso organizado por 19 Willy (vide Anexo 4). A análise de dados, da mesma maneira que ocorre no capítulo 3, se deu a partir do cruzamento de informações entre estas fontes e outras desenvolvidas anteriormente. 20 1 Ideologia e educação na atuação de Willy Corrêa de Oliveira como professor No livro de Willy intitulado Cinco advertências sobre a Voragem (OLIVEIRA, 2010), elaborado a partir de um ciclo de palestras2 financiadas pelo Departamento de História na USP, em 2009, observa-se um posicionamento crítico acerca do fazer musical no capitalismo, abordado em cinco temáticas que resumem os cinco capítulos (as cinco advertências sobre a Voragem): Como me tornei um compositor, O artista incompreendido, O artista comunista, O artista comunista após a queda do Muro de Berlim e, finalmente, A Prática da Música Erudita Contemporânea no Capitalismo (Discurso do Método), este último “escrito originalmente para ser apresentado no I Congresso Sobre o Ensino das Artes nas Universidades (ECA – USP, 1992)”3 (OLIVEIRA, 2010, p. 190). O livro conta com passagens biográficas do compositor que conduzem o conhecimento do processo que o levou a desenvolver a sua visão sobre a música, os seus interesses e as mudanças ocorridas ao longo do caminho; tais relatos e a maneira como eles são apresentados atestam a importância da transformação para Willy, algo que se relaciona diretamente com a sua visão dialética sobre o mundo. Willy conta como teve, enquanto realizava uma pesquisa sobre o compositor Manuel Dias de Oliveira em Prados, Minas Gerais, na década de 80, uma experiência iluminadora: uma certeza repentina acerca da existência de Deus4; algo que lhe causou um imenso espanto, sendo ele um marxista e, até então, um ateu convicto (OLIVEIRA, 2010, p. 102). Embora essa seja uma questão estritamente pessoal de Willy, coincide com um momento de intenso questionamento moral a respeito de sua atuação como professor e compositor, momento este em que ele se apercebe da incompatibilidade entre o seu posicionamento político, como um marxista convicto, e a sua atuação diante do mundo como músico. Assim, algumas transformações são observadas neste momento. Uma delas é que Willy, vendo-se como um marxista – e que, portanto, se relacionava com o mundo a partir de uma perspectiva dialética, uma ciência comprometida com a libertação da classe trabalhadora – deixou de se interessar por qualquer tipo de arte burguesa, interrompendo, inclusive, a prática de composição de 2 Por este motivo, pode-se verificar que a linguagem visível em tal obra se aproxima em grande medida da linguagem oral. Em alguns momentos, ao nos referirmos a este texto, decidimos apresentá-la em formato literal (ou seja, em forma de citação direta), sobretudo quando o sentido e a ênfase observada nas referidas passagens nos pareceram contribuir para a presente discussão. 3 Tal ensaio foi publicado inicialmente com o título Música e sociedade (OLIVEIRA, 1991) e, um ano depois, apresentado no supramencionado congresso (DE BONIS, 2015, p. 61). Além de estar presente em Cinco advertências sobre a Voragem (OLIVEIRA, 2010), também consta no Caderno de Pânico, escrito como parte da tese de doutoramento de Willy (OLIVEIRA, 1998), tendo sido republicado recentemente em Oliveira (2019c, p. 11-27). 4 O relato dessa experiência pode também ser visto no segundo bloco da entrevista de Willy ao programa Provocações (OLIVEIRA, 2011). 21 música erudita (ou seja, a música erudita) (OLIVEIRA, 2010, p. 116-117). Também de modo a auxiliar seu novo posicionamento – sobretudo diante da consideração dos aspectos do mundo que vão além do mundo material – Willy relata ter recorrido a Wittgenstein (1968). Quando então havia adquirido essa certeza a respeito de um mundo que ia além do material, dedicou-se a entender como os dois mundos se relacionavam e como os aspectos desse outro mundo a respeito do qual havia se certificado se apresentam (OLIVEIRA, 2010, p. 102-112). Em suas palavras: Então pude verificar: tinha um mundo físico, sim. Este mundo que a gente fala, que a gente concretamente pode dizer: esse mundo existe de fato, mas ele não é uma prova de nenhuma ordem da inexistência de um outro mundo que você não pode medir; que você não teria uma fita métrica para medir. (...) Não posso negar um apenas porque o outro exige uma fita métrica pra se ter certeza. E para o outro não há fita métrica que o meça. (OLIVEIRA, 2010, p. 108) Ou seja, se o mundo material pode ser conhecido a partir da ciência e de parâmetros mensuráveis, este outro mundo não poderia ser entendido em parâmetros exatos, o que não significa que ele não existiria. Willy também aponta outros aspectos, além do “mundo do espírito”, também do “mundo das sensações”, dos sonhos, ou mesmo dos sentimentos que não podem ser mensurados (OLIVEIRA, 2010, p. 110). O pensamento de Wittgenstein, cuja contribuição para a filosofia da linguagem Willy ressalta com entusiasmo, atua de maneira a desvelar esses aspectos imensuráveis a que Willy expressa grande dedicação neste momento. De sua obra Tractatus logico-philosophicus, escrita a partir de uma sequência de postulados lógicos a respeito do mundo e da linguagem, Willy destaca três proposições que se relacionam profundamente com esta questão (OLIVEIRA, 2010, p. 110-111). No prefácio de seu livro, Wittgenstein resume a questão: “Poder-se-ia apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: em geral o que pode ser dito, o pode ser claramente, mas o que não se pode falar deve-se calar” (Wittgenstein, 1968, p. 53). Também um outro aspecto presente ao final do texto, é o que se segue: “Existe com certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é místico” (p. 129). Willy se refere a estes significados com alguma liberdade, que traduz em três informações fundamentais (ainda que possivelmente variáveis em sua formulação a cada aparição em escritos distintos): “Tudo o que pode ser dito deve ser dito” (OLIVEIRA, 2010, p. 110), “Há coisas que você não pode dizer, mas você pode mostrar” (p. 111) e “Mas há coisas que você não pode dizer nem mostrar, cale-se” (p. 111). Tais afirmações terão, como veremos nos capítulos posteriores, influência notável sobre a maneira como Willy pensa a própria linguagem musical, dialogando também com outros autores aos quais se refere. Ao mesmo tempo, em consideração aos aspectos que, sim, fazem parte do mundo 22 material, Willy, que agora passava a se distanciar da prática de música erudita, se aproximaria – em acordo com o seu posicionamento, como marxista, no mundo – dos movimentos de trabalhadores no ABC Paulista, fundando junto a eles uma escola de música, onde atuava em um novo contexto ao qual a música servia: a preparação, junto aos trabalhadores, de música para atividades políticas – como greves, ações em portas de fábrica –, entre outras práticas relacionadas à luta que travavam. Em outras palavras, Willy passa a canalizar seus esforços de modo a contribuir para a produção de música ligada à luta dos trabalhadores, distanciando-se, portanto, da prática Burguesa (OLIVEIRA, 2010, p. 133-134). Também é da década de 80 a sua atuação como compositor do Hino do MST, a respeito do que o trabalho de Santana (2017) aborda. Da mesma maneira, à época atuando como professor de composição da ECA (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), revisou os seus cursos, dedicados à música erudita e de vanguarda, de maneira crítica (OLIVEIRA, 2010, p. 116-117), em grande medida desmascarando a visão classista que estava atrelada àquela produção artística. Nesse contexto, Willy relata a respeito de sua aproximação em relação a outros teóricos, que passavam a embasar este novo momento de maneira mais concreta. Um deles é Hanns Eisler (OLIVEIRA, 2010, p. 121), compositor alemão que era comprometido exatamente com a criação de uma arte revolucionária – ou seja, que servisse à luta do proletariado – e que desvendava o caráter classista da música erudita (EISLER, 1999, p. 59-60), cuja produção (tanto intelectual como musical) se mostrava profundamente relevante para o momento que vivia e para a atuação à qual passou a se dedicar nesse novo contexto5. Também faz parte desse período uma dedicação intensa de Willy acerca da música e das artes dos países socialistas, fazendo parte da reflexão que adere a este momento a crítica que a burguesia do capitalismo fazia à arte Soviética (OLIVEIRA, 2010, p. 137-139), mesmo que, em grande medida, esta carregasse algumas características semelhantes a algumas vertentes da própria música burguesa, e que, mesmo assim, tinham grande difusão no mundo capitalista – observação que consta em seu texto (mais recente do que o período em questão, mas em diálogo com outros escritos seus da época), Discurso do método, comentado mais em detalhe posteriormente neste capítulo (OLIVEIRA, 2019c, p. 23). Além de Eisler, Willy também se aprofundou na obra de Bertolt Brecht, ressaltando, em seu livro, a respeito de suas qualidades como filósofo e exemplificando sua escrita contundente e assertiva com duas Histórias do Sr. Keuner – A questão de existir um Deus 5 A respeito das similaridades e influências da obra de Eisler e o pensamento de Willy, ver o item 2.2. desta dissertação. 23 (OLIVEIRA, 2010, p. 105) e Se os tubarões fossem homens (OLIVEIRA, 2010, p. 118-120)6. Tanto Eisler como Brecht são referências bastante presentes nos textos de Willy da década de 80, como se observa em Oliveira (1987, p. 66-71), Bader (1987, p. 138-146), Leibowitz (1981, p. 11-25) e Oliveira (1984, p. 59). Característica comum a esses textos citados é a incisiva crítica ao capitalismo e à arte burguesa, o que ilustra o mencionado posicionamento de Willy à época, e que, segundo o próprio Willy, transformou, inclusive, o seu curso na ECA mesmo posteriormente – ou seja, nunca mais voltou a dar aulas da mesma maneira como dava antes desse período (OLIVEIRA, 2010, p. 116-117). Ainda neste contexto de reorganização, Willy também se interessa por outro pensador – o que, para o assunto que concerne a este capítulo, e mesmo para a compreensão do aspecto ideológico que permeia a atuação pedagógica de Willy, é de fundamental importância – que se dedica profundamente ao estudo da ideologia burguesa e ao seu alcance diante da educação e de outros aspectos do mundo capitalista. Trata-se de Giulio Girardi, acerca do qual, Willy relata em seu livro, neste momento de profunda transformação: (...) descobri um outro [filósofo] gigantesco, um mestre que se chama Giulio Girardi. Ele escreveu um livro cujo título já é por si só lapidar, arrebatador: Educar: para qual sociedade? Isso é incrível... todo mundo fala tanto de educação, tantos mestres, tantas pedagogias. Girardi mesmo arremata: os problemas pedagógicos não são problemas pedagógicos... Algum dia uma faculdade de educação burguesa se fez tal pergunta: Educar para qual sociedade? No máximo dizem: para ser um cidadão. Cidadania e etc... (...) é um livro gigantesco, realmente fascinante, extraordinário. (OLIVEIRA, 2010, p. 125) A obra Educare, per quale società?, de Girardi (1975), teve edição traduzida para o português (GIRARDI, 2011), na qual houve colaboração do próprio Willy. É perceptível, a partir da citação, a dimensão que a obra teria para Willy, neste momento de aguda transformação. No texto, Willy ressalta o significado que ela carrega acerca de uma educação atuante a partir de um projeto de homem e um projeto de sociedade. O questionamento trazido pelo próprio título Educar: para qual sociedade? implica uma necessidade de reflexão profunda sobre a sociedade na qual a educação acontece – e, da qual, é parte integrante – e, não obstante, sobre a sociedade que se vislumbra construir, o que só pode se dar, em concreto, quando aliada a uma perspectiva revolucionária. O livro discute com grande lucidez e de um ponto de vista crítico as relações de dominação que se dão na sociedade capitalista, na qual o autoritarismo possui presença marcante e necessária para a manutenção da ordem. O conhecimento a respeito da pessoa de Giulio Girardi, bem como da dimensão e 6 As mencionadas Histórias do Sr. Keuner estão disponíveis, respectivamente, em Brecht (2013, p. 24) e Brecht (2013, p. 53-54). 24 direcionamento de sua produção intelectual é fundamental para compreender os motivos que levaram Willy a buscar embasamento em sua obra, sobretudo, especificamente neste momento de transformação: nascido no Cairo, em 1926, cresceu em contato com múltiplas influências culturais, tanto de origem árabe, como francesa e italiana. Girardi teve formação sacerdotal, sendo ordenado em 1955. Atuou na área acadêmica, como professor, em diversas universidades, e teve sua orientação voltada para a filosofia; entretanto, teve como preocupação fundamental a abertura a uma busca por um novo tipo de igreja e de cultura, e de relacionar a filosofia à vida, em vez de entendê-la como um conhecimento puramente teórico. Progressivamente, foi se aproximando dos estudos a respeito da questão do ateísmo, como marco do pensamento moderno, em vista do qual buscou compreender a visão crítica do mundo moderno a respeito do cristianismo. Interessava-lhe, sobretudo, uma visão de ateísmo vinculado ao comprometimento ético, neste caso, o ateísmo humanista. Foi, então, a partir deste interesse, se abrindo ao marxismo, a partir do princípio de que este se tratava de uma forma de ateísmo. Futuramente, pôde compreender que o aspecto ateísta é secundário ao marxismo, e que seu sentido fundamental, na realidade, advém da dimensão ético-política (FERNÁNDEZ; HOLLIDAY, 2013, p. 15-19). Girardi, além de se dedicar à questão do ateísmo, passa a buscar a articulação entre marxismo e cristianismo em suas obras, assunto recorrente em sua produção. É de grande importância também, para seus escritos, a postura de engajamento político, que o levaram à identificação com a teologia da libertação, tema presente, também, em Educar: para qual sociedade?, onde é discutida e situada em relação às questões relativas à libertação do ser humano diante dos problemas materiais e ideológicos inerentes ao sistema Capitalista; em outras palavras, desde o ponto de vista da práxis revolucionária e tendo em vista o tema da educação libertadora, com a qual se dedica, em grande medida, em seu livro (GIRARDI, 2011, p. 116-122). Mas fica a pergunta: de que maneira a obra de Girardi, à qual Willy faz referência em seu livro, atua em relação à questão da educação libertadora, e como ela se concretiza no projeto pedagógico de Willy? A estratégia adotada no presente trabalho para a resolução desta questão foi optar, inicialmente, por compreender qual é a postura da referida educação libertadora, segundo Girardi, o que se desdobrará, ao longo do trabalho, na observação da influência de seu pensamento sobre o projeto pedagógico de Willy. No próximo item, demonstrar-se-á qual é essa concepção de educação libertadora – com base fundamental em Girardi – para que se possa, tanto a partir das informações obtidas nas entrevistas, como no desenvolvimento dos capítulos seguintes, encontrar os paralelos cabíveis na atuação de Willy. 25 1.1 Educar: para qual sociedade? – Fundamentos sobre a ideologia, a educação integradora e a educação libertadora Girardi declara, ao longo do seu livro, o papel do materialismo dialético como ferramenta inspiradora de sua análise, embora ressalte que não se limita a ela. Em diversos momentos, sobretudo no confronto com os valores da ideologia dominante, recorre ao ferramental oriundo da psicanálise, trazendo à tona o papel da repressão sexual, e o da contraposição entre consciência e inconsciente, na inculcação da ideologia dominante. A originalidade da obra de Girardi, especificamente ressaltada por Willy em Cinco advertências sobre a Voragem na obra mencionada, se apresenta já nos questionamentos iniciais do livro. Observa-se, no excerto destacado a seguir, o questionamento colocado pelo autor ao próprio sistema no qual a educação está inserida como algo anterior à própria atuação pedagógica. Este questionamento apresenta-se como o problema fundamental, que pode ser exposto ou camuflado, adquirindo importância, também, a maneira como é colocado: No campo da educação, como em todos os outros setores da reflexão, ou da ação, o essencial está no modo de colocar o problema, nas perguntas que aparecem e naquelas que se escondem. Os problemas, de fato, não são nunca ‘inocentes’: eles exprimem, em sua própria formulação, todo um sistema de pensamento e de valores: apontam, assim, à procura dos limites que ela própria nunca poderá superar. Mais concretamente, a reflexão e a ação pedagógica se orientarão em sentidos radicalmente diversos, dependendo de que o problema seja colocado ou não em relação com o sistema social, no nosso caso o capitalismo7, e em particular com a luta de classes. É este comportamento frente ao sistema o lugar das divergências pedagógicas fundamentais. Os problemas fundamentais da pedagogia não são problemas pedagógicos. (GIRARDI, 2011, p. 5) Girardi ressalta que a pedagogia nunca é neutra, e que nela sempre se apresenta uma tomada de partido. A pedagogia reflete determinado projeto de homem e determinado projeto de sociedade, mesmo – e muito mais – quando a educação em questão se declara “apolítica”, caso em que a opção realizada é a da subserviência aos mais fortes (GIRARDI, 2011, p. 6). Tal consideração de um direcionamento da educação para a preparação de pessoas acríticas 7 Girardi ressalta em seu livro o papel do autoritarismo como obstáculo a uma opção alternativa que conduza plenamente à libertação, o que inclui os países socialistas, referenciados por Girardi como “coletivistas”. Em nota de rodapé escrita pelo tradutor, desenvolve-se a questão: “É essencial que este ponto esteja claro para evitar mal-entendidos que desviariam a atenção dos verdadeiros problemas. Um dos mecanismos clássicos com que o sistema capitalista se defende de todas as análises críticas é aquele de fazer passar tais análises por uma apologia do coletivismo. Isto resulta em postergar a discussão e em evitar que os problemas de fundo sejam colocados. Isto não dispensará naturalmente o militante, que luta por uma sociedade socialista, de situar a sua ação com relação às forças efetivas existentes, e de estabelecer alianças com aquelas que mais se avizinham, ou que menos se afastam de seu projeto ideal. Opção utópica e opção histórica, se bem que estreitamente conexas, não podem confundir-se.” (GIRARDI, 2011, p. 7) 26 também é considerada por Paulo Freire, como se observa em Medo e Ousadia. Discutindo com Ira Shor a respeito da prática da leitura em sala de aula, Freire afirma: (...) há professores que dizem aos alunos para não penetrar na intimidade dos livros, na alma do texto, a fim de discuti-lo do ponto de vista do estudante. Ao contrário, dizem aos alunos para apenas descrever o texto. Frequentemente pedem que os alunos descrevam um segundo objeto, a própria sociedade. Os estudantes só devem descrever o que veem num texto ou na sociedade, e nada além disso, porque os professores dizem que não cabe aos cientistas interpretar, mas apenas descrever. É claro que irão mais longe e dirão que aos cientistas não compete sequer pensar em mudar a realidade, mas apenas descrevê-la. Nesse tipo de compreensão ideológica do ato do conhecimento, isso é o que chamamos de “neutralidade” ou “objetividade” da ciência. (FREIRE; SHOR, 1986, p. 16) De maneira ainda mais incisiva, Girardi trata também da questão do culto a uma pretensa neutralidade nas ciências: (...) o cientificismo, culto exclusivo das ciências, é, definitivamente, contra- revolucionário. Ele determina de fato uma ideologia, a da renúncia a qualquer ideologia, que é por demais ligada a uma concepção determinista do homem e da história. Uma aproximação científica que desvele os mecanismos do sistema mas se abstenha de julgá-los é, em última análise, solidária com uma ação que assume lucidamente a situação mas é incapaz de transformá-la. Se a relação com as ciências humanas é uma dimensão essencial da cultura e da educação revolucionárias, é porque se trata de ciências marcadas por uma tomada de posição: que se colocam do ponto de vista das classes populares e que, além disso, não pretendem excluir uma abordagem filosófica mas, ao contrário, são dialeticamente articuladas com ela. (GIRARDI, 2011, p. 62-63) Tal discussão acerca da neutralidade na educação (e mesmo na ciência) encontra paralelos na realidade presente. Com o avanço da extrema direita sobre o campo político brasileiro – e mundial –, a necessidade de reiteração e discussão do conteúdo da afirmação de que a educação nunca é apolítica, cada vez mais, assume uma urgência incomensurável (enquanto ainda não for proibida, em definitivo): sobretudo, diante das ameaças realizadas pelos agentes dos poderes Legislativo e Executivo, em âmbito nacional, à liberdade de cátedra, em distorções cada vez mais alienantes que tomam forma, como os projetos de lei vinculados ao programa “escola sem partido”. Tais restrições prejudicam o próprio conhecimento do mundo por parte dos estudantes8, pois ainda que haja determinadas particularidades inerentes a cada campo do conhecimento, estes não se encontram isolados de contextos políticos; tal postura se torna absurda, sobretudo em vista de uma adequada opção pela compreensão científica (e dialética) do mundo, a partir da qual se torna possível compreender e desvelar as relações e as transformações que se estabelecem na realidade. Com isso, deve-se dizer, do mesmo modo, que o próprio conhecimento das questões políticas que permeiam a sociedade não é, em si, menos necessário do que o conhecimento de outros 8 Ver, adiante, como, segundo Girardi, a ideologia da classe dominante se apresenta como obstáculo para a revelação da realidade. 27 aspectos comumente vistos como “não políticos”, embora como já dito, não podem em definitivo ser observados como existindo em separado com relação ao mundo. Nota-se, entretanto, que as tentativas cada vez mais presentes de censura a uma atuação politizada em sala de aula – e, com isso, nos referindo à consideração dos problemas fundamentais, já expostos, ou seja, aqueles que consideram a luta de classes, a dominação de classe, as relações de produção, e todos os problemas relacionados com a temática –, entretanto, não é incoerente com o que se expõe aqui acerca do domínio da cultura e da ideologia da classe dominante sobre o mundo: a existência deste tipo de projeto reacionário reflete uma necessidade inerente aos interesses da classe dominante, no caso, os “mais fortes”, como diz Girardi. A essa problemática, à consideração da opção fundamental tanto no campo da educação, como da reflexão ou da ação perante o mundo, opta-se por duas possibilidades: a aceitação ou a refutação do sistema capitalista, que condiz com uma tomada de posição de classe, entre aquela que é beneficiada pelo sistema (a classe dominante, burguesa) ou aquela que por ele é prejudicada (a classe dominada, ou seja, dos trabalhadores). A educação, assim, mostra Girardi, considera em seus fundamentos e suas intenções uma opção por um projeto de homem e um projeto de sociedade. Desta maneira, em vista destes projetos, duas opções fundamentais se apresentam: a da educação integradora e a da educação libertadora. Sobre a educação integradora, Girardi define: A educação integradora é aquela cuja finalidade real – consciente ou inconsciente – é a de integrar o indivíduo na sociedade, fazendo dele um ‘bom cidadão’, isto é, um ‘homem da ordem’ mediante a apregoação da ideologia dominante. Ela é assim um fator fundamental da reprodução da sociedade. (GIRARDI, 2011, p. 11) A análise da educação é, segundo Girardi, um campo específico, de particular importância, de uma teoria da ideologia, se esta é tomada em todas as suas implicações como “estrutura da consciência mas solidária com uma certa estrutura do inconsciente, como pensamento coletivo mas indissociável de um certo tipo de personalidade” (p.11). Desta forma, sua análise da educação integradora, realizada a partir de uma “análise da sociedade capitalista enquanto sociedade de dominação” (p. 11), se dá pelo estudo das “relações entre dominação e ideologia” e, posteriormente, “entre dominação e educação”, divisão esta que, apesar de ocorrer em dois momentos distintos, é considerada pelo autor como puramente metodológica, pois “o momento fundamental da educação integradora é definitivamente a inculcação da ideologia por obra do próprio sistema” (p. 11). De acordo com Girardi, a dificuldade de se realizar uma pesquisa sobre a ideologia, bem como sobre a educação 28 integradora, se deve à necessidade existente de que a ideologia seja inconsciente, o que apenas permite o seu conhecimento e desvelamento a partir de uma visão “hetero- interpretativa”. Desta forma, obtém-se acesso a ela porque, depois de sermos prisioneiros da ideologia, consegue- se em certo momento – sob a pressão de novas experiências e, sobretudo, de uma nova opção política e de uma nova práxis – a descoberta de sua inter-relação com as estruturas de dominação. (GIRARDI, 2011, p.11) O pensamento de Girardi deve muito ao materialismo histórico fundado por Marx & Engels, mesmo que haja diferenças entre os dois autores de outrora e o teórico da libertação, falecido em 2012. O mundo retratado nas obras dos criadores do Manifesto do Partido Comunista de 1848 (MARX & ENGELS, 2012) já não pode ser considerado o mesmo, sobretudo se se parte de uma análise dialética9 – e, portanto, considerando o movimento como dado fundamental – acerca da questão abordada. Desta forma, o estudo de Girardi sobre a ideologia, realizado em 1975, naturalmente deve levar em consideração as transformações do mundo capitalista e mesmo as experiências socialistas ocorridas no passado. De todo modo, a herança do pensamento marxista em relação à consideração da ideologia em Girardi, pode ser ilustrada pela passagem a seguir, extraída da obra A ideologia Alemã: As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão e, portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época. (MARX & ENGELS, 2009, p. 67). Tal passagem afirma o alcance e a predominância das ideias da classe dominante, ou 9 Algo que a burguesia e seus teóricos sempre apontam, embora de uma maneira oportunista: é necessário para a classe dominante que seja dito que as teorias de Marx e Engels – responsáveis por uma crítica fundamental da sociedade capitalista – foram elaboradas em outro momento da sociedade, independentemente de um apontamento sobre quais são as dimensões que já não fazem parte do mundo atual, e de quais ainda permanecem; em outras palavras, obtendo como resultado a invalidação de determinada opção fundamental, ou seja, de uma tomada de partido realizada a partir da consciência da divisão do sistema em classes. Curioso observar que, apesar disso, continuam a adotar, em outros momentos, uma concepção de mundo atemporal, ou seja, na qual as ideias sobre o mundo possam sobreviver sem estarem atreladas ao próprio mundo, o que reflete o caráter dualista observado em sua própria ideologia. 29 seja, a classe detentora do poder material, mencionando a função dos intelectuais burgueses na elaboração de tais ideias, que justificam, podendo se apresentar como “leis eternas”, o estado de coisas em que se encontra a sociedade e, sobretudo, a sujeição das classes dominadas à classe dominante. A atualidade de tal concepção de mundo é observada em sua ressonância na obra de Girardi, escrita mais de um século depois. Entretanto, diversos aspectos observados em Girardi acerca da ideologia burguesa não poderiam estar presentes em Marx & Engels, devido ao momento histórico em que viveram, e a consideração do papel do inconsciente – tanto no âmbito pessoal como levando em consideração os aspectos compartilhados coletivamente, resultado das relações de dominação compartilhadas pelos indivíduos da sociedade (GIRARDI, 2011, p. 62) – é um desses aspectos fundamentais, ressaltado por Girardi, como parte importante da atuação da ideologia burguesa sobre o indivíduo e a coletividade. Apesar da consideração de aspectos hoje desenvolvidos pela psicanálise no processo de dominação da classe dominada (e que, portanto, considera a inculcação inconsciente da ideologia como parte do mecanismo de dominação), Girardi (2011) sustenta o princípio de que são os aspectos objetivos – materiais, concretos – da sociedade que estão na base da dominação de uma classe pela outra – e, portanto, na base da luta de classes (p.12). Este princípio, coerente com um posicionamento marxista no mundo, reflete uma visão de mundo contrária àquela defendida pela classe dominante, a qual tende a representar o mundo de maneira que as ideias sejam anteriores às relações concretas existentes no mundo material10. A classe dominante, como bem visto, necessita que seus interesses concretos, que são antagônicos em relação aos interesses da classe dominada, sejam, não só defendidos e justificados – para a sociedade e para si mesma –, como também expostos de maneira que se apresentem como os interesses de todos, desconsiderando, portanto, as diferenças de classe presentes na sociedade. A economia capitalista é colocada, em âmbito nacional e internacional, a serviço de uma minoria, detentora dos meios de produção, e o papel do Estado, de gerir o funcionamento da economia, é fundamental para a garantia dos interesses da classe dominante (GIRARDI, 2011, p.12 e 13). “A história humana não está ancorada sobre as ideias e sobre os ideais, mas sim sobre as relações de dominação e de produção”, diz Girardi (2011, p. 12). O autor mostra que a classe dominante explica a cultura apenas a partir de seu interior (como se fosse uma esfera 10 As implicações da crítica a esta visão fundamentalmente espiritualista que está presente na ideologia da classe dominante serão observadas futuramente na concepção de Willy acerca do próprio objeto musical, refletindo em sua atuação como compositor e como professor. 30 autônoma), ou seja, sem considerar as relações sociais que a influenciam. Desta forma, aponta que, para que se entenda a cultura, é necessário que, em alguma medida, se saia dela. Esta abordagem que considera a cultura como uma esfera autônoma da sociedade, a qual se explica por si só, é a dita abordagem espiritualista e é insuficiente para abordar a cultura; lhe escapa, portanto, o sentido profundo dos conhecimentos, as relações sociais instauradas a partir da dominação de classe. Apesar da cultura não se explicar inteiramente pelas relações de produção, ela é marcada pela necessidade da classe dominante de se justificar (GIRARDI, 2011, p. 12 e 13). A racionalização burguesa, que é um procedimento onde: o indivíduo procura uma explicação logicamente coerente e moralmente aceitável de uma situação cujas motivações verdadeiras escapam-lhe. Transferido ao plano coletivo, faz com que a classe dominante represente os seus próprios interesses como a expressão do interesse geral, do bem comum. A classe dominante identifica- se com a natureza, com a pátria, com o povo. O que é bom para a classe dominante é bom para a nação; aquilo que é verdade e verdadeiro para a classe dominante é verdade e verdadeiro para a nação. (GIRARDI, 2011, p. 13) Girardi ressalta que este é um procedimento inconsciente, entretanto, o que torna necessário a distinção da ideologia em dois níveis: o da consciência, do qual vem à tona o seu sentido aparente, superficial, subjetivo, ilusório; e aquele inconsciente, onde se revela o seu significado profundo, objetivo, real. A consciência, onde tudo se realiza em termos de verdadeiro e de falso, de bom e de ruim, de belo e de feio; e o inconsciente onde se desvelam as relações de força, de dominação, de produção. Daí a necessidade de uma segunda leitura, de uma hermenêutica de todas as expressões da cultura, que a coloque ao mesmo tempo na sua densidade própria e como transposição de uma relação de forças. (...) No plano da cultura, os interesses de classe não explicam tudo mas impregnam tudo. Tornam- se portanto um obstáculo à revelação da realidade, na medida em que os interesses em jogo exigem que a realidade permaneça velada. (GIRARDI, 2011, p. 13) As marcas deixadas pela ideologia, portanto, permitem tanto que se possa enunciar os valores por ela propagados, em sua aparência superficial, quanto se atinja um estado de inconsciência acerca das relações de dominação que são justificadas por estes valores. A existência de uma cultura que é entendida como independente das relações objetivas que ocorrem na sociedade ilustra a asserção de que “As relações de dominação se nutrem de ilusão e de falsidade. Há certamente incompatibilidade estrutural entre os interesses da classe dominante e a verdade.” (GIRARDI, 2011, p. 14). Desta forma, o indivíduo como tal, segundo o autor, não é o sujeito da cultura, mas sim a classe que se exprime por meio dos próprios membros e delimita para os intelectuais os limites que, apenas em casos especiais, chegam a ser ultrapassados; e é aqui que o pensamento de Girardi resgata a concepção de Marx a respeito dos intelectuais, postos a serviço da classe dominante. A ideologia atua, portanto, como um obstáculo para o conhecimento da realidade, ao 31 conjunto da sociedade, ou seja, mesmo àqueles que, pertencentes à classe dominada, são diretamente prejudicados pelo estado de coisas que são justificados por esta ideologia. Neste processo de submissão da classe dominada, que é levada a assumir a ideologia como se fosse sua própria verdade, essa cultura ilusória criada pela classe dominante gera uma dependência imperceptível pelas pessoas subjugadas; há como parte ativa do processo a ilusão da liberdade; esta capacidade de cegar as massas a respeito de sua própria condição chega a levar os dominados a defender sua própria escravidão. “A ideologia é uma prisão invisível.” (GIRARDI, 2011, p. 15). Assim, o autor completa: O sistema vive desta falsidade estrutural, desta hipocrisia inconsciente. Tem necessidade de homens que se adaptem porque não a vislumbram como tal; para que eles próprios, criados pelo sistema à sua própria imagem, reproduzam em suas vidas o mesmo dualismo e a mesma falsidade estrutural. (GIRARDI, 2011, p. 17) Neste contexto surge o “homem da ordem” (p. 17), que situa a sua existência a partir da adesão às normas externas fixadas em relação a essa ideologia, que compreendem um sistema de valores dado a priori, bem como determinada ordem e moral política e à lei, diante da qual adota uma atitude de docilidade. Essa atitude requer um sacrifício de aspirações que possam entrar em conflito com as leis, inclusive a aspiração à liberdade. O homem da ordem se identifica com o autoritarismo, preferindo regimes fortes, muitas vezes ditatoriais, e desconfia de situações como assembleias, que identifica com a desordem e a arbitrariedade das massas populares, consideradas por ele incapazes de realizar decisões e julgamentos. A identificação com a autoridade se apresenta a partir da concepção das relações interpessoais – no interior da família, da política, das relações de trabalho – em termos de hierarquia. Necessita de verdades definitivas e considera o questionamento da ordem – e, mais ainda, o questionamento revolucionário – como uma expressão da decadência moral e fruto de confusão intelectual (p. 16/17). Neste contexto, o autoritarismo, por se identificar com as ideias dominantes da época, é indissociável do conservadorismo. Ao mesmo tempo, também se identifica com o egocentrismo, centrado tanto em seu grupo restrito – familiar, político, religioso, etc –, cuja identidade salvaguarda em confronto com os demais grupos, como em sua própria pessoa, a qual, inconscientemente, se inclina a colocar no centro do mundo. Tende ao “familismo”, bem como ao nacionalismo, ao racismo e ao sectarismo. O seu grupo pessoal é encarado como o lugar privilegiado da verdade e dos valores, que toma como universais. A relação que o homem da ordem estabelece com os outros é de submissão a ele próprio; a mesma que adota em relação àqueles que estão acima dele. Desta forma, o autoritarismo e o servilismo são 32 faces da mesma moeda. Entre a personalidade autoritária e a estrutura da sociedade autoritária há uma grande afinidade e ambas se condicionam mutuamente (p. 17/18). O modo de funcionamento da ideologia burguesa como mecanismo de controle social e manutenção da ordem e do funcionamento do sistema se pauta em determinados fatores, que são inculcados inconscientemente nas pessoas; além do que, também deixam sua marca na cultura, na educação, nas relações sociais. É de grande importância para que as necessidades concretas da classe dominante sejam perpetuadas, por exemplo, que se crie um modelo de homem que, mesmo pertencendo à classe explorada, se identifique com regras externas impostas pelos exploradores; que não seja capaz de questionar a dualidade existente entre a ideologia e as relações efetivas do mundo, ou ainda, que não busque uma relação de concordância entre a sua visão de mundo e as dificuldades que enfrenta em sua vida, causadas pela exploração que sofre. A educação libertadora, segundo Girardi, é aquela que se insere em um projeto revolucionário, que visa a transformação da sociedade e a construção de uma nova cultura; em sentido inverso, também a luta de classes se insere neste projeto educativo, como um de seus lugares essenciais (p. 48). Alguns fatores apontados por Girardi são observados na postura de Willy e nas opções realizadas em seu projeto pedagógico; mesmo em sua visão sobre a música e a linguagem musical, desenvolvidos no capítulo 2. 1.2 A crítica de Willy à educação musical e a influência de Girardi em seu pensamento Diversos dos conceitos desenvolvidos por Girardi são observados em textos do próprio Willy. Um exemplo no qual isso fica bem claro é o texto intitulado Discurso do Método, presente em seu Caderno de Pânico (OLIVEIRA, 2019c). Neste Caderno, Willy escreve uma série de sete ensaios de caráter literário em que busca retratar de maneira crítica o estado de coisas em que se encontra o fazer musical – no âmbito, sobretudo, da composição e da linguagem musical – e a educação musical no mundo capitalista atual (OLIVEIRA, 2019c, p. 11-27). O ensaio supracitado é concebido como um roteiro para a cena, ao molde de uma palestra em que o palestrante se dirige a uma plateia desavisada “com um empolamento acadêmico delirante” (DE BONIS, 2015, p. 61). Trata-se de uma “fusão da herança de Brecht com as ideias de Giulio Girardi” (DE BONIS, 2015, p. 62); no caso, o que herda de Brecht é a surpresa trazida à plateia, que apenas gradualmente percebe o “caráter ficcional, paródico e irônico” (p. 62), durante a leitura, “no questionamento do absurdo advogado pelo palestrante” (p. 62). A respeito deste ensaio, o próprio Willy afirma tratar do “papelão da educação musical no capitalismo, o papel do educador, o papelório das possibilidades artísticas, a oferta 33 de papéis-carbono e os inevitáveis confrontos com o papel-moeda”, em comentário presente em outro dos cadernos, denominado Caderno do princípio e do fim (OLIVEIRA, 2019e, p. 15). “Papelão da educação musical”, “papel do educador”, “papelório das possibilidades artísticas”, “oferta de papéis-carbono” e “confrontos com o papel-moeda”; um mesmo radical que se repete e traz, consigo, de maneira claramente irônica, um aspecto crítico distinto àquilo que procura desvelar em seu texto: sobretudo os problemas da educação (musical, mais especificamente), e como ela corrobora (por meio de uma naturalização do problema) com a ausência de linguagem comum na prática musical erudita atual (assunto a ser desenvolvido em profundidade em outra parte deste texto). Também com outros aspectos mais profundos do próprio sistema capitalista e de sua influência na personalidade do artista, do professor e do artista em formação, ou a influência do mercado. Permeando o fictício projeto educacional proposto no ensaio, está a construção de dois autores fictícios (Wladymir Schlowski e Gustav Hendrik Härte), criadores do “MÉTODO”, referenciado de maneira assim genérica, como se se tratasse de uma proposta pedagógica largamente conhecida. E de certa forma, de fato, se trata, já que, na realidade, o texto busca ironizar o pensador a serviço da classe dominante, neste caso, dedicado à área da educação musical, e que elabora seu projeto segundo determinada base ideológica, que está de acordo com a ideologia da classe dominante no capitalismo (OLIVEIRA, 2019c, p. 11-27). Neste contexto, passagens do livro de Girardi surgem – tanto literalmente quanto mascaradas por trás do discurso alucinado. Na parte do texto onde o palestrante expõe os fundamentos do método, há referências claras de uma exaltação ao egocentrismo e a posturas autoritárias, bem como de uma visão de mundo onde se explica a realidade – a partir desta perspectiva individualista e espiritualista – de forma velada quanto às relações de dominação que efetivamente ocorrem na sociedade: E para nós a PERSONALIDADE não pulsa em torno apenas da integralização de fatores psicológicos e morfofisiológicos. É um valor supremo a ser tratado como organismo em crescimento. Como uma planta tenra, cuja raiz é diversa do caule, das folhas, dos frutos, e em plena diversidade anima-a um princípio unificador único. (Não se procura em uma árvore os frutos da outra. Não!) O caminho inelidível da descoberta do EU: somos co-partícipes desta caminhada: propiciamos sendas mais amenas, paisagens mais favoráveis. Nos propomos o papel de ladear os discípulos para, juntos, sentirmos as qualidades do sentimental: nos impressionarmos com ele até o limiar da mais prenhe compassividade. Sinta-se, descubra-se, encontre-se. Seja (plenamente)! (OLIVEIRA, 2019c, p. 17) E continua, mais à frente: A liberdade, leitor, é o imo da afirmação da personalidade. É como a água para os 34 peixes, como o ar que respiramos. (...) A liberdade, caro leitor, é como um trilho sobre o qual desliza a personalidade que se afirma na mais irreprimível aventura de viagem. Mas quem somos nós, educadores, para decidirmos sobre trilhos, trajetos, tráfegos e locomotivas? Antes tenhamos a sensibilidade (...) de corretamente inferirmos qual paradigma-vaga é o mais contíguo ao indivíduo que temos diante de nós? (OLIVEIRA, 2019c, p. 17-18) E o texto segue fazendo referência a diversos “paradigmas-vagas”, que na realidade são arquétipos de personalidade criados a partir de “linhas estéticas”, que ocorrem na música erudita no capitalismo (como o minimalismo, a vanguarda serial / pontilhista Darmstadtiana), em referência à ocorrência de manifestações musicais das mais diversas por decorrência de uma prática musical que não encontra mais respaldo no sentido de uma função social e que não possui mais linguagem comum compartilhada, adotando, portanto, como norte, aspectos essencialmente individuais do compositor em si. Além de destacar as próprias causas da crise da linguagem, os trechos citados também trazem à tona uma importância dada, já no processo de aprendizado da música, na valorização do aspecto individual da criação – e que, portanto, age em conluio com a própria ideologia, que, como vimos, tem com o individualismo grande afinidade –, ao mesmo tempo que não reconhece a necessidade de que seja considerado criticamente o próprio referido problema da linguagem musical, que é ao que Willy se dedica, em grande medida, em seus Cadernos. Particularmente na última citação acima, o autor também traz à tona a questão de uma pretensa liberdade, que se manifesta nas artes – estas artes que, como dito, por não mais possuírem uma função social, não possuem, também, compromisso com a sociedade, e, portanto, podem proporcionar toda a liberdade de criação quanto for a vontade do compositor –, já que não pode ocupar um lugar, concretamente, no âmbito da coletividade. Sim, o compositor de música contemporânea erudita tem toda a liberdade de criar algo que o satisfaça plenamente diante de sua criação. Entretanto, cria apenas para si mesmo, já que, no âmbito da sociedade, a falta de parâmetros compartilhados com relação àquela prática artística sequer possibilite que se faça um juízo de valor a respeito do que é produzido; ou seja, trata-se de uma arte divorciada da sociedade (uma arte que não cumpre mais uma função social, como no passado cumpriu11), como é discutido por Willy em seu texto Retrato do artista quando só (OLIVEIRA, 2019c, p. 64). O Homem, em sua existência, se depara com situações que são coletivamente compartilhadas, mas também com outras que são essencialmente individuais – algo que ninguém pode fazer pelo indivíduo, senão o próprio indivíduo. A crítica de Willy ressalta esse estranhamento a respeito de uma prática musical, que originalmente fazia sentido em uma 11 Este tema é discutido mais em detalhe nos itens seguintes. 35 coletividade, e que perde esse sentido, passando a ocupar o lugar intrínseco daquilo que o indivíduo faz e que só serve a ele próprio: ao resultado disso, no capitalismo, é dado o nome de “liberdade”. E mais: aceitando isso como dado pleno (talvez até eterno) do mundo, há uma educação musical que se dedica a ressaltar esse aspecto individualista da criação musical como verdade e vantagem. É a normalização daquilo que deveria ser estranhado, é a aceitação de que a arte (e, sobretudo, em nosso caso, a música!), deixe de servir ao outro e passe a servir fundamentalmente ao eu. É a exceção se tornando a regra, como diria Brecht: (...) No que não é de estranhar Descubram o que há de estranho! No que parece normal Vejam o que há de anormal! No que parece explicado Vejam quanto não se explica! E o que parece comum Vejam como é de espantar! Na regra vejam o abuso E, onde o abuso apontar Procurem remediar! (BRECHT, 1990, p. 160). Ainda no texto Discurso do método, há outra referência ao texto de Girardi quando o palestrante se refere a outro aspecto do “MÉTODO”, que, diante das necessidades de uma preparação do estudante para uma atuação em que seu “eu” assume importância prioritária, discorre a respeito do que chama de “OS 4 PILOTIS DO EGO”, que correspondem ao autoritarismo, à obediência, à ordem e à segurança (OLIVEIRA, 2019c, p. 19-21); referências a aspectos vinculados à ideologia e à formação do “homem da ordem”, segundo Girardi (2011, p. 17 e p. 21-22). De maneira incisiva, Willy relata, na referida passagem, ser o autoritarismo uma “venerável coluna de sustentação” do “MÉTODO”, dado o caráter autoritário da nossa sociedade, que, embora seja mascarado, persista. Com uma perceptível ironia, conecta a palavra “autor” à palavra “autoridade” e “autoritarismo”, sugerindo uma presença essencial do autoritarismo em nossa arte. Isso é coerente com a ideia do individualismo que orienta a criação musical erudita do presente (a criação de um indivíduo, a qual este seja o único que tenha plenas condições de compreender, em termos de linguagem, sendo disponibilizada à coletividade, como se, a ela, tal arte servisse da mesma maneira). Também, como vemos em Girardi, egocentrismo e autoritarismo são características que, no que diz respeito ao indivíduo não liberto, agem de maneira a impedir que este se coloque desde o ponto de vista da coletividade (GIRARDI, 2011, p. 13). A respeito do tema da obediência, Willy destaca a relação intrínseca – como apontada por Girardi (2011, p. 17) – entre a obediência e o autoritarismo, em uma relação que se paute 36 na hierarquia. Em outras palavras, também em um contexto de ironia, ressalta a relação de autoridade entre o professor e o aluno nesse modelo de educação que critica (OLIVEIRA, 2019c, p. 20). Em seguida, a ordem é o aspecto criticado, ressaltando a presença de regras externas e bem definidas a serem praticadas com os discípulos para que se mascare a realidade – e que, após aprendidas as regras externas do interior do MÉTODO (este arquétipo da educação no capitalismo), o aluno possa substituí-las por regras externas criadas por ele próprio (OLIVEIRA, 2019c, p. 20-21); a conexão com o autoritarismo aqui também se faz imediata, e também faz alusão à definição de Girardi a respeito do homem da ordem, este afeito a regras externas que orientem a sua conduta (GIRARDI, 2011, p. 18). Por fim, o último dos “Quatro Pilotis do Ego” é a segurança, que gera o “medo à liberdade”12, de que Girardi fala (GIRARDI, 2011, p. 21-22) – e, assim como Willy, ressalta a conexão, no processo de amadurecimento (bem ou mal suscedido) entre a segurança e uma relação de dependência aos pais (que, na família patriarcal é um modelo que estrutura a personalidade autoritária) (GIRARDI, 2011, p.17). Nesse sentido compreende-se a noção da crítica à ideia de liberdade pregada no terreno da arte, como já dito acima, de forma que, neste modelo de educação criticada por Willy, esta liberdade deve ocorrer, desde que não se instale desde o campo da realidade; em outras palavras, a liberdade nas artes é, como mostra Willy, duplamente uma ilusão: por um lado, em relação às próprias artes, na produção das quais só ocorre de tal maneira por conta da dissociação com relação à coletividade e a sua restrição ao campo da criação individualista; por outro, em relação ao próprio estado de coisas em que se encontra a sociedade, já que tal liberdade de criação artística no capitalismo traz a sensação de liberdade – a qual, inclusive, é defendida com unhas e dentes como contrapartida às experiências socialistas no campo de uma arte feita com sentido social para aquelas sociedades, em que a libertação ao capitalismo é colocada em primeiro lugar (como é o caso da URSS e o Realismo Socialista). Tal sensação de liberdade ocorre em paralelo a uma sociedade aprisionada às amarras do Capital (em outras palavras, trata-se de uma válvula de escape) (OLIVEIRA, 2019c, p. 21). Se, como diz Marx, as artes fazem parte das formas ideológicas, das quais os homens tomam consciência e que se transformam ao longo da história da humanidade seguindo-se às transformações ocorridas na base econômica (MARX, 2008, p. 47 e 48), isso mostra a relação de dualidade entre a ideologia e as relações materiais que se dão na sociedade capitalista; dessa forma, a defesa de tal aparente liberdade nas artes como sendo sinônimo da existência de liberdade na sociedade 12 Que, segundo Girardi, gera o medo da verdade (GIRARDI, 2011, p. 21-22). 37 capitalista é também, nos termos de Girardi, algo que expressa os interesses, presentes na cultura dominante, de que a realidade permaneça velada, sendo que, desta forma, os interesses da classe dominante predominem, com sua cultura se colocando como um obstáculo a essa revelação da realidade (GIRARDI, 2011, p. 13). Novamente: “A ideologia é uma prisão invisível” (GIRARDI, 2011, p. 15). Desta forma, ao mesmo tempo em que, neste texto intensamente crítico à prática da educação musical no capitalismo, Willy se fundamenta em grande medida nos conceitos trabalhados por Girardi, também outras alternativas que, talvez, possam se relacionar à sua abordagem pedagógica, possam ser trazidas à tona. Uma delas, também uma alternativa à ação autoritária do professor em sala de aula – e que também é classificada como educação libertadora (embora, possivelmente, com diferenças em relação à abordagem de Girardi) – é a proposta de Paulo Freire. O tema da educação dialógica, por exemplo, lida precisamente com a questão da inter-relação entre professor e alunos em sala de aula, que busque dar aos estudantes uma voz e uma participação crítica diante dos assuntos estudados e mesmo dos problemas existentes na sociedade. Longe de se colocar de maneira apolítica, a proposta de Freire busca estimular exatamente um posicionamento por parte dos estudantes, possibilitados à tomada de partido diante da realidade da sociedade capitalista. Conhecido em grande medida pelo seu trabalho com a alfabetização (de jovens ou mesmo trabalhadores adultos), Freire relata, a respeito de sua proposta de educação libertadora: Através da educação libertadora, não propomos meras técnicas para se chegar à alfabetização, à especialização, para se conseguir qualificação profissional, ou pensamento crítico. Os métodos da educação dialógica nos trazem à intimidade da sociedade, à razão de ser de cada objeto de estudo. Através do diálogo crítico sobre um texto ou um momento da sociedade, tentamos penetrá-la, desvendá-la, ver as razões pelas quais ele é como é. O contexto político e histórico em que se insere. Isto é para mim um ato de conhecimento e não uma mera transferência de conhecimento, ou mera técnica para aprender o alfabeto. O curso libertador “ilumina” a realidade no contexto do desenvolvimento do trabalho intelectual sério. (FREIRE; SHOR, 1986, p. 16-17). Assim, em vistas da crítica de Willy à questão da hierarquia em sala de aula, em relação à qual o autoritarismo e a obediência se mostram evidentes, observa-se também em tal proposta uma busca pela superação de tal sujeição, que se relaciona tão de perto com as relações que ocorrem no âmbito da sociedade autoritária (ao mesmo tempo em que coloca o estudante como produtor de conhecimento). Essa relação dialógica, da qual Paulo Freire fala, pressupõe também uma relação dialética entre o professor e os alunos, já que, idealmente buscando-se uma relação de igualdade entre professor e alunos, ao mesmo tempo tem-se consciência de que são também diferentes: 38 Não sei se os alunos e os professores também lhe perguntam13, nessa questão da autoridade na sala de aula dialógica, se o professor é ou não é igual aos estudantes. Essa questão é muito interessante. A experiência de estar por baixo leva os alunos a pensarem que, se você é um professor dialógico, nega definitivamente as diferenças entre eles e você. De uma vez por todas, somos todos iguais! Mas isto não é possível. Temos que ser claros com eles. Não. A relação dialógica não tem o poder de criar uma igualdade impossível como essa. O educador continua sendo diferente dos alunos, mas – e esta é, para mim, a questão central – a diferença entre eles, se o professor é democrático, se o seu sonho político é de libertação, é que ele não pode permitir que a diferença necessária entre o professor e os alunos se torne “antagônica”. A diferença continua a existir! Sou diferente dos alunos! Mas se sou democrático não posso permitir que esta diferença seja antagônica. Se eles se tornam antagonistas, é porque me tornei autoritário. (FREIRE; SHOR, 1986, p. 62) Acerca dessa diferença necessária entre professor e alunos, Freire desenvolve: A educação sempre tem uma natureza diretiva, que não podemos negar. O professor tem um plano, um programa, um objetivo para o estudo. Mas existe o educador diretivo libertador, por um lado, e o educador diretivo domesticador, por outro. O educador libertador é diferente do domesticador porque se move, cada vez mais, no sentido daquele momento em que se estabelece uma atmosfera de camaradagem na aula. Isto não significa que o professor seja igual aos alunos ou que se torne igual a eles. Não. O professor começa de forma diferente e termina diferente. Ele dá as notas e passa trabalhos para serem feitos. Os alunos não dão nota ao professor, nem passam lição de casa ao professor! O professor deve ter, também, competência crítica, que é diferente da dos alunos e que os alunos devem insistir que o professor tenha. Mas, eis a questão. Na sala de aula libertadora, essas diferenças não são antagônicas, como nas salas de aula autoritárias. A diferença libertadora é uma tensão que o professor tenta superar por uma atitude democrática com relação à sua diretividade. (FREIRE; SHOR, 1986, p. 104) Em outras palavras, uma educação que leve em consideração um método democrático (como o exemplo da educação dialógica descrita por Freire) não coincide com a noção de que as aulas não teriam um direcionamento, ou que as diferenças concretas entre professor e estudantes não existam. Ainda que aja em prol da emancipação intelectual do estudante (ou seja, de forma que possa atuar como produtor de conhecimento), a função do professor como detentor de uma capacidade crítica distinta não deixa de existir. Ao mesmo tempo, Paulo Freire mostra ter consciência dos limites de tal proposta de educação libertadora. Se Girardi, como visto anteriormente, ressalta que a educação libertadora se insere num processo revolucionário, ao mesmo tempo que a revolução também possui um papel educativo, Paulo Freire também destaca que a realização da proposta de educação libertadora vai além dos limites da sala de aula, abrangendo a crítica à sociedade: Uma das características de uma posição séria, na educação libertadora, é, para mim, o estímulo à crítica que ultrapassa os muros da escola. Isto é, em última análise, ao criticar as escolas tradicionais, o que devemos criticar é o sistema capitalista que modelou essas escolas. A educação não criou as bases econômicas da sociedade. 13 A conversa trata-se de um diálogo entre Paulo Freire e Ira Shor. No momento em questão, Freire se dirige a Shor, respondendo à sua pergunta anterior. 39 Não obstante, sendo modelada pela economia, a educação pode transformar-se numa força que influencia a vida econômica. (...) Sabemos que não é a educação que modela a sociedade mas, ao contrário, a sociedade é que modela a educação segundo os interesses dos que detêm o poder. Se é assim, não podemos esperar que a educação seja a alavanca da transformação destes últimos. Seria ingênuo demais pedir à classe dirigente no poder que pusesse em pr