1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA PAULO FERNANDO DA SILVA CONCEITO DE ÉTICA NA CONTEMPORANEIDADE SEGUNDO BAUMAN MARÍLIA 2012 2 PAULO FERNANDO DA SILVA CONCEITO DE ÉTICA NA CONTEMPORANEIDADE SEGUNDO BAUMAN Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho como requisito para obtenção do título de mestre. Área de Concentração: História da Filosofia, Ética e Filosofia Política. Orientador: Profº. Dr. Robespierre de Oliveira MARÍLIA 2012 3 Silva, Paulo Fernando da. S586c Conceito de ética e contemporaneidade segundo Bauman / Paulo Fernando da Silva. – Marília, 2012. 100 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2012. Bibliografia: f. 91-100 Orientador: Robespierre de Oliveira. 1. Ética. 2. Modernidade. 3. Pós-modernismo. 4. Socialismo. 5. Cultura. I. Autor. II. Título. CDD 170 4 PAULO FERNANDO DA SILVA CONCEITO DE ÉTICA NA CONTEMPORANEIDADE SEGUNDO BAUMAN Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília, da Faculdade de Filosofia e Ciências. Aprovada em: Banca Examinadora: __________________________________________ Profº. Dr. Robespierre de Oliveira (Orientador) __________________________________________ Profº. Dr. Sinésio Ferraz Bueno – UNESP de Marília __________________________________________ Profº. Dr. Pedro Leão da Costa Neto – UTP-PR 5 Para Pedro (in memoriam), toda minha Família, Amigos e à Juliana. 6 AGRADECIMENTOS Ao orientador, o professor Robespierre de Oliveira, pelo auxílio, solicitude e, sobretudo, pela amizade demonstrada em várias oportunidades de apoio. Ao membro da banca, o professor Pedro Leão, pelo aceite, pelo auxílio às bibliografias e pelas valiosas críticas. Ao membro da banca, o professor Sinésio Ferraz Bueno, pelo aceite, pelos preciosos apontamentos e críticas. Aos professores Ricardo Monteagudo (primeiro orientador desta pesquisa), à Professora Clélia e ao Professor João Quartim (suplentes desta banca). A todos os professores e funcionários da Unesp – Marília, principalmente ao Paulo, da Secretaria do PPG-Fil. Aos Familiares, aos amigos e colegas de curso, pelo incentivo, presença e apoio. 7 “Os pobres estiveram presentes em todas as sociedades conhecidas, mas os de hoje talvez tenham mais problemas que os de ontem, já que, pela primeira vez na história, não têm função social a desempenhar, e por isso são excluídos do esquema dos negócios compreendidos pela ação social e estão além dos limites das tarefas sociais e das ambições societárias” ZYGMUNT BAUMAN 8 SILVA, Paulo Fernando. Conceito de ética na contemporaneidade segundo Bauman. 2012. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. RESUMO O objeto desta dissertação é apresentar o conceito de ética contemporânea segundo Zygmunt Bauman (1925 - ). Para tanto, cabe-nos identificar a ideologia hegemônica que define os elementos culturais, principalmente o sistema de valores de determinada época e sociedade, enquanto determinantes do comportamento dos sujeitos. Além da análise dos elementos ideológicos da ética moderna, Bauman dedica-se a analisar e propor uma ética pós-moderna. Palavras-chave: Ética. Modernidade. Pós-modernidade. Socialismo. Cultura. 9 SILVA, Paulo Fernando. Concept of ethics in contemporary Bauman second. 2012. Dissertation (Master of Philosophy) - Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho". ABSTRACT The object of this paper is to present the concept of contemporary ethics seconds Zygmunt Bauman (1925 -). To do so, we must identify the hegemonic ideology that defines the cultural elements, especially the system of values of a particular time and society as determinants of subjects' behavior. Besides the analysis of the ideological elements of modern ethics, Bauman is dedicated to analyze and propose a postmodern ethics. Keywords: Ethics. Modernity. Postmodernity. Socialism. Culture. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................10 PARTE I: Das influências recebidas.................................................................................15 CAPÍTULO I: Bauman e o Período em Varsóvia – professores e camaradas..............15 1.1 Recepção do marxismo na Polônia.................................................................................16 1.2 A intelligentsia polonesa.................................................................................................21 1.3 O marxismo de Varsóvia: a “ideologia-crítica”..............................................................24 CAPÍTULO II – Cultura: Objeto e Práxis...........................................................................27 2.1 Cultura enquanto objeto..................................................................................................27 1.2 A cultura enquanto práxis...............................................................................................31 PARTE II: Bauman: análises e proposições éticas..........................................................37 CAPÍTULO III: Ética Moderna e Ética Pós-moderna....................................................37 3.1 Ética Moderna.................................................................................................................39 3.1.1 Ética do trabalho.................................................................................................50 3.1.2 Ética moderna e holocausto................................................................................55 11 3.2 Ética pós-moderna...........................................................................................................60 3.2.1 Ética do Consumo...............................................................................................82 CONCLUSÃO (no fim está o começo)..............................................................................87 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................92 12 INTRODUÇÃO. Qualquer pesquisa que tenha como tema questões relacionadas à pós-modernidade é já em si complexa, devido à tentativa em geral de se tentar compreender, o minimamente possível, as mudanças que tem passado o mundo de hoje sem ter relativa distância para a compreensão do todo. Todas as ciências têm, principalmente as ciências humanas, realizado importantes pesquisas visando diagnosticar a realidade e propor, de algum modo, respostas às novas necessidades. É por este caminho, de modo geral, que nos propomos caminhar. A proposta do nosso texto, de modo amplo, é apresentar o conceito de ética na contemporaneidade segundo Zygmunt Bauman. Para tanto, procuramos tratar dos temas e questões que entendemos as mais pertinentes ao desenvolvimento de tal conceito. Muito embora Bauman tenha dedicado a tal tema um livro em particular, a Ética pós-moderna (Bauman, 1997), entendemos que mesmo que nosso autor não tenho a pretensão de construir um “sistema”, o conjunto de sua obra reflete minimamente a tentativa de continuidade e/ou superação de teorias, o que exige uma leitura de sua obra a partir das suas influências e textos afins ao tema central desta pesquisa. Entendemos como ponto fundamental à compreensão da realidade atual o processo a partir do qual emergem referências de valores que regulam as relações sociais. Este é o ponto inicial da nossa pesquisa: conceituar o elemento fundamental que especificamente fornece as referências para o agir do sujeito moral [indivíduo ou/e sociedade]. Partimos da tese que o papel ativo da ideologia nas relações sociais constitui a consciência da sociedade e que o sujeito moral [seja no período moderno ou no período pós-moderno], destituído de autonomia, compelido por esta força ideológica, reproduz na vida cotidiana o mandamento da classe dominante. Essa ideologia é a ideologia positivista que visa prever e ordenar a sociedade segundo os interesses capitalistas. É esta, como veremos, a proposta inicial de Bauman, principalmente influenciado pelo período de estudos e docência em Varsóvia: diagnosticar a ideologia predominante e causadora das referências de valores praticados pelos sujeitos. Isto, porque os marxianos poloneses entenderam que além de elementos histórico-materiais existe um “conjunto de valores” que visa, conjuntamente com tais elementos, reiterar o “padrão” de comportamento da ideologia predominante. O recorte específico que fazemos, justamente para que o nosso tema seja distinto de temas da sociologia e de outras áreas afins, procura identificar o conceito de ética 13 contemporânea presente na obra de Bauman. Porém, tal conceito se caracteriza como uma teoria propositiva. Há de se observar que nosso autor, no decorrer de sua obra, entende que a realidade é forjada pela teoria, pela determinação de teorias que servem ao poder, principalmente aqueles poderes ligados ao interesse capitalista. Deste modo, nossa pesquisa não ocorrerá a partir da análise das relações sociais particulares de determinada sociedade, mas sim das teorias que moldaram [e moldam] a realidade do período moderno e a realidade do período pós-moderno. Este é o aspecto analítico da obra de Bauman: atividade crítica contínua das ideologias, sobre a base de suas raízes históricas e a análise do papel das ideologias na vida social durante a história. Entendemos que esta influência analítica ainda se encontra presente nos textos recentes de Bauman, mas perdeu-se, como veremos, nos textos propositivos, confundindo-se com aspectos da fenomenologia. O “sistema de valores” ou “conjunto de valores” que rege a ação do sujeito moral, individual ou socialmente, provém de uma ideologia específica e atende a determinados fins. A ideologia fundamental torna-se a própria cultura, que passou a ser entendida enquanto sistema de ordem social de realização das normas compartilhadas, internalizadas e mutuamente congruentes. Neste sentido, a cultura passa a ser mediadora que assegura o encaixe dos sistemas sociais com a personalidade, uma estação de serviço do sistema social que visa internalizar o processo de socialização, um conhecimento desenvolvido segundo interesse ligado ao poder. É a partir da cultura que emerge a referência para o agir moral. Este conjunto de valores é objeto de estudo da filosofia, principalmente da ética. Visamos analisar, segundo Bauman, qual o “conjunto de valores” (ideologia) que rege o comportamento dos sujeitos. Bauman procura as causas e as distingue nos períodos moderno e pós-moderno. No segundo momento da sua obra, Bauman procura apresentar sua teoria propositiva. Procuraremos seguir a ordem sugerida por Bauman, a saber, no primeiro momento realiza-se uma crítica, a identificação e crítica da ideologia, tanto sobre suas bases históricas como sobre o resultado da ideologia na vida cotidiana das pessoas. No segundo momento, a atividade é a proposição teórica enquanto respostas às necessidades, principalmente à necessidade de alternativa, em face da ideologia dominante. Inerentemente, tentaremos demonstrar que o autor oscila, fundamentando em teorias diversas e, muitas vezes, incapazes de atingir o objetivo proposto. Deste modo, seguindo o exposto acima, no primeiro capítulo do nosso trabalho, apresentamos as influências que Bauman recebeu, especificamente durante sua formação 14 acadêmica e sua atuação como professor, ainda em Varsóvia. Pretendemos problematizar se essa influência que Bauman recebeu no primeiro momento da sua vida intelectual é condição necessária para entender sua obra mais recente. No segundo capítulo, apresentamos o conceito de cultura segundo Bauman, que tem dupla função: é ao mesmo tempo Conceito e Categoria. Conceito enquanto objeto de análise que possibilita identificar a ideologia predominante nos valores sociais e Categoria enquanto práxis, pois é a atividade essencialmente humana, que pode ser reprodutora da ideologia dominante [passiva], ou revolucionária [ativa], pois a práxis de uma nova cultura é capaz de modificar a cultura dominante, o status quo. No terceiro capítulo nos propomos apresentar a ética do trabalho e a ética do consumo como atividades ideológicas, respectivamente, moderna e pós-moderna. O quarto capítulo apresenta a obra mais recente de Bauman e sua proposta ética pós-moderna. Visamos observar de modo mais dedicado as influências que Bauman recebeu do marxismo. Poderíamos melhor aprofundar tal tema a partir de outros autores que de certo modo também influenciaram Bauman, a saber: Lévinas, Weber e Freud. Contudo, o caráter do nosso trabalho não comporta uma pesquisa dessa monta. Assim, esperamos chegar a um resultado satisfatório, uma vez que o grau de complexidade do tema, por se tratar de questões contemporâneas, exige novos aprofundamentos. 15 Parte I: Das influências recebidas Capítulo I – Bauman e o Período em Varsóvia – professores e camaradas Segundo Fernandes1, uma investigação do desenvolvimento intelectual no continente europeu deve considerar a existência de uma historiografia polonesa das idéias, principalmente aquela por ele nomeada “Círculo de Varsóvia de história da filosofia e do pensamento social” (FERNANDES, 1971/77, p. 75)2. Tais pessoas compunham o grupo de jovens intelectuais, que engajados como militantes, participaram da luta contra o nazismo e abriram caminho para o advento do socialismo polonês. Este mesmo grupo participou entre 1956 e 1958 do movimento político de oposição ao regime Gomulka. A grande importância desenvolvida por tal grupo no que diz respeito ao desenvolvimento de uma contribuição significativa da Polônia no campo das idéias, encontra-se no debate metodológico e conceitual sobre o pensamento social contemporâneo, agregando elementos humanistas e buscando desenvolver pesquisas que atingiriam questões subjacentes, uma crítica direta, naquele momento, aos métodos biologicistas e positivistas. Por outro lado, o filósofo e fenomenólogo italiano Guido Néri, em seu livro dedicado a esta questão (Aporie della realizzazione: filosofia e ideologia nel socialismo reale. (Lo espírito del ’56 e la scepsi di Kolakowski), Feltrinelli, Milano, 1980) enumera como as principais figuras da inteligentsia polonesa a partir de 1956 Kolakowski, Baczko, Brus e Bauman. Todavia, é importante partimos da introdução do pensamento marxista na Polônia enquanto fonte de influências de Bauman, uma vez que ele, diretamente, após ingressar como estudante (de 1945-1948, inicialmente) na Universidade de Varsóvia, recebeu forte influência do marxismo lá adotado. Deste modo, pretendemos apresentar alguns aspectos importantes sobre a introdução do pensamento marxista na Polônia do pós-guerra, mais especificamente na 1 Rubem César Fernandes. Vision du monde et compréhension historique: sur le Rousseau de Baczko. In: Annales. Économies, Societés, civilizations. 26e anée, N. 2, 1971. pp 387-398. 2 Fernandes cita como representantes Círculo de Varsóvia de história da filosofia e do pensamento social, principalmente, os professores Baczko, Kolakowski, Pomian, Szacki, Walicki. Bauman não é citado explicitamente, porém, entendemos que ele deva ser igualmente considerado um representante do desenvolvimento de uma historiografia polonesa das idéias por ter participado ativamente, na maioria das vezes, das mesmas atividades acadêmicas e, quiçá, políticas, que os nomes citados por Fernandes. 16 Universidade de Varsóvia e como foi que se constituiu a chamada intelligentsia polonesa, à qual Bauman foi ligado: os aspectos históricos e as principais figuras [professores] que configuraram a adoção do pensamento marxista [ou marxiano, como veremos] na Polônia de Bauman. De forma concomitante, apresentaremos os fundamentos teóricos e metodológicos adotados em Varsóvia e, consequentemente, adotados pelo próprio Bauman3. Em muitos momentos, as abordagens podem se confundir, no sentido de tratarmos elementos históricos e teórico-metodológicos no mesmo texto. Contudo, a pertinência de tal abordagem será melhor compreendida no segundo capítulo, pois partimos do pressuposto que a obra atual de Bauman, necessariamente, deve ser analisada levando em consideração sua influência e metodologia recebidas ainda no período como estudante, e logo depois, como professor em Varsóvia. 1.1 Recepção do marxismo na Polônia Conforme Kolakowiski4, em sua obra “As principais correntes do marxismo”, que dedica um amplo espaço à introdução do marxismo na Polônia, Kazimierz Kelles-Kraus, Stanislaw Brzozowski e Rosa Luxemburgo são destacados representantes da introdução do marxismo na Polônia5. No entanto, nos ocuparemos aqui, sobretudo, do sociólogo 3 Uma das principais obras de Bauman que retrata bem o período de Varsóvia é seu manual de sociologia, traduzido como “Por uma sociologia crítica”. Muito embora tenha sido escrito já em inglês (1976), retrata fielmente sua influência teórico-metodológica herdada do período que viveu em Varsóvia (Por uma sociologia crítica: ensaios sobre senso comum e emancipação. Zahar. Rio de Janeiro: 1977) 4 Kolakowski, L. Las principales corrientes del marxismo. Vol. II. La edad de oro. Alianza Editorial, Madrid, 1976. “Kolakowski foi um dos principais filósofos poloneses da segunda metade do século XX e também um destacado ativista político. Durante a sua vida passou pelas mais diferentes correntes teóricas: primeiramente marxista "ortodoxo" e crítico da Igreja e da filosofia católica (período que vai do final dos anos 40 até meados dos anos 50), em um segundo momento torna-se um filósofo marxista revisionista – e ativo crítico do marxismo oficial (de 56 a 68 - segundo alguns autores nos últimos anos não podia nem ser mais considerado marxista) - a sua evolução não pode dissociar-se das lutas políticas do período, e por fim o terceiro período, após a sua expulsão da Universidade de Varsóvia, ocorrida em 68, tornou-se um anticomunista militante. Um exemplo da sua relação com o marxismo é o seu livro "As principais correntes do marxismo" que em alguns momentos peca por fortes simplificações. Aliás, segundo observam alguns analistas, Kolakowski sempre teve uma forte propensão à polêmica e nem sempre a travou de forma equilibrada. A amplitude da sua obra (obras dedicadas à filosofia católica, a Spinoza, ao positivismo, a Husserl, um conjunto de escritos dedicados a Marx e ao marxismo, além de uma extensa publicística) torna muito difícil uma avaliação geral da sua obra. No interior da obra de Kolakowski são particularmente importante seus escritos dedicados a Spinoza; as correntes religiosas na Holanda do século XVII: Swiadomosc religijna i wiez koscielna (traduzido para o francês como Chretiens sans eglises), que talvez este seja o seu livro principal”. 5 Para a análise da introdução do marxismo na Polônia, consultar igualmente o artigo de “O marxismo polonês entre os séculos XIX e XX” (Walicki, 1984, p. 291-314), no qual analisa a contribuição desses pensadores para o desenvolvimento de uma tradição marxista na Polônia. 17 Krzywicki, também citado por Kolakowski, cuja influencia se estendeu praticamente por três gerações da intelligentsia polonesa, inclusive aos já acima citados. Seu trabalho foi dedicado à pesquisa acadêmica, à docência e como articulista de periódicos acadêmicos. Krzywicki ingressou na Universidade de Varsóvia em 1878 como estudante de matemática. Anteriormente, teve contato com os socialistas, principalmente a vertente sansimoniana. Durante os estudos em Varsóvia leu O Capital, tendo se convencido por seus argumentos. Juntamente com “Stanislaw Krusinski (1858-86) y Bronislaw Bialobloki (1861-88), fundo el primer grupo marxista polaco e introdujo sus ideas em el publico lector” (KOLAKOWSKI, 1976, p. 197). Na leitura de Kolakowski, percebe-se que há uma distinção clara do marxismo adotado por Krzywicki, pois “ni él ni sus compañeros fueron marxistas ortodoxos em sentido estricto” (1976, p. 197). Assim também, ressalta Kolakowiski, Krzywicki desde cedo, porém só inicialmente, adotaria uma tendência, comum à época, [que depois a abandonaria] positivista e cientificista. Ambos seus colegas [citados acima] morreram muito cedo, antes mesmo de exercerem alguma influência. Contudo, juntamente com Krzywicki, pertenceram ao primeiro partido socialista polonês, o Proletariat. Este foi um grupo clandestino fundado em 1881 e que em 1885 foi dissolvido pelas autoridades. Seus líderes foram enforcados, sendo eles os primeiros mártires do socialismo marxista polonês. Krzywicki dedicou-se em 1883 a criticar por meio de artigos a teoria de Herbert Spencer e seus seguidores poloneses. Neste mesmo ano, foi expulso da universidade de Varsóvia por participar de uma manifestação política. Estabelece-se em Leipzig, onde preparou a primeira publicação de O Capital pelo grupo Krzywicki-Krusinski, trabalho que durou de 1884 a 1890. Estuda em Leipzig antropologia, sociologia e economia política e, posteriormente, vai à Suíça, onde manteve contato com socialistas alemães e russos, incluindo Kautsky e Bernstein, e no início de 1885 se instala em Paris. Durante este período publica vários artigos sobre marxismo revolucionário. Em 1888 volta à Polônia, à cidade de Plock, e, mais tarde, a Varsóvia, onde inicia várias atividades educacionais, legais e clandestinas. Krzywicki manteve estreito contato com a União dos Trabalhadores Poloneses de 1889, com outros partidos socialistas da época, porém não se filiou a nenhum deles. De 1890 a 1910, suavizou o tom de seus escritos políticos e passa a abordar em seus estudos o socialismo evolucionista. Praticamente, permaneceu em Varsóvia desde este período até a ocupação alemã, quando da sua morte. Segundo Kolakowski, 18 en su crítica de Spencer y de los darwinistas sociales, Krzywicki afirmaba que los evolucionistas, al construir modelos sociales según el modelo de un organismo vivo, estaban propagando de hecho la ideología de la solidariedad de clase, proponiéndose poner fin a la lucha de clases y cerrando sus ojos a la disolución de los tradicionales vínculos de unión en una sociedad marcada por las contradicciones y la competencia (1976, p. 199) Krzywicki também mostrou forte oposição às ideias social-darwinistas propugnadas pelos ideólogos da escola de Manchester. Segundo sua tese, a concorrência e o conflito social não podiam ser considerados como um caso particular da luta biológica pela sobrevivência dos mais aptos. Estes não estão determinados por leis biológicas, mas sim pelo caos da produção, que é uma etapa do desenvolvimento social e não uma lei da natureza. Neste contexto, a sobrevivência seria um privilégio do mais apto, e não uma capacidade. Krzywicki também atacou o “espírito de raça”, ele dizia que “no era... una categoria biológica sino um legado de unas condiciones históricas” (1976, p. 199). Desta forma, afirmava que o racismo não poderia explicar as mudanças das instituições sociais. Afirmou também que a idéia nacional na Europa era uma criação mercantil, para além do Estado-nação, estimulando uma consciência étnica. Seus principais ataques contra as teorias biológicas foram contra Lombroso e Gobineau. A posição de ambos, segundo Krzywicki, está numa posição de classe e não numa postura científica. Sobre Lombroso, dizia: El médico italiano pensaba que el crimen se debía a la herancia o rasgos antropológicos innatos, mientras que de hecho sus causas estaban en las condiciones sociales, la pobreza y la ignorancia” (KOLAKOWSKI, 1976, p. 200). Confrontou-se também com as teorias anarquistas. Afirmava que o anarquismo se diferenciava do socialismo pelos meios que utilizava, mas o fim era o mesmo. Os anarquistas acreditavam num constante conflito entre indivíduo e sociedade e consideravam a história como um progresso em que os seres humanos estavam constantemente subjugados pelas instituições. Por essa razão negavam participar de uma luta política, que se supunham instituições. Por outro lado, os socialistas não consideravam o desenvolvimento social uma patologia, mas um necessário desenvolvimento das forças dos seres humanos sobre a autoridade coletiva e as forças da natureza. Conforme Kolakowski, 19 para Krzywicki “el anarquismo[ ...] era uma estéril revuelta de formas de producción precapitalistas, arruinadas por la progressiva concentración del capital” (1996, p. 200). Krzywicki foi contrário aos movimentos de solidariedade, que acusava de pseudosocialismo cristão, pois combatiam o capitalismo em nome das instituições feudais e buscavam uma solução procurando tutelar os trabalhadores, ou as ideologias democráticas e, por fim, mudavam o sistema de classes pelo conceito indiferenciado de “povo”. O que tais democratas, na análise de Krzywicki, procuravam demonstrar com o conceito de “povo”, era, na verdade, uma combinação imperfeita dos mais variados estratos sociais, de aristocratas a artesãos e pequenos comerciantes. No “povo” não eram incluídos, por exemplo, os camponeses, classe destinada ao ostracismo mediante o progresso industrial. Segundo Kolakowiski, até aqui, os pontos de vista de Krzywicki são do marxismo clássico. Ele defendia o proletariado como única classe que pode, de fato, libertar a sociedade, isso sobre um progresso técnico e não pela ressurreição um sistema precapitalista. Afirma que: En todas las sociedades, desde las más primitivas en adelante, la distribuición de bienes, y por tanto la división de clases, depende del modo de producción. Las condiciones económicas “explican” la génesis de las ideologías o “son la base” de las instituciones políticas; las ideas morales y políticas surgen en respuesta a las necesidades sociales como formas necesarias en las que los hombres conciben sus propios intereses y son capaces de unirse para defenderlos. Las ideas no son sólo un poderoso agente del desarrollo social sino una condición necesaria del cambio institucional, sin embargo, son secundarias en el sentido de que surgen como articulación de intereses previamente desconocidos, y sólo pueden llegar a ser instrumentos de cohesión social si están ya presentes las condiciones materiales necesarias para esta cohesión, a saberla comunidad de ciertos intereses y la divergencia de otros (KOLAKOWSKI, 1996, p. 201-202) No que diz respeito à ideologia enquanto formadora do real, assim como vemos na citação acima de Krzywicki, esta mesma concepção será mantida nos demais marxistas que procederam ao professor polonês, principalmente, como veremos, o próprio Bauman. Esta concepção apresenta a manipulação da ideologia por meios econômicos, mas, também e principalmente, à manipulação que é reiterada pelos meios éticos e políticos, devido à compreensão da preexistência de um conjunto de valores de ordem heterônoma e alienante. Segundo ainda Kolakowski, a “revolução” foi tema quase inexistente na obra de Krzywicki. Contudo, ele adota a posição ortodoxa do marxismo sobre o tema. A saber, que 20 la contradicción entre el progresso técnico y el sistema de propriedad privada llevaría a una abolición revolucionaria del capitalismo. Esta crisis no podía producirse artificialmente sino debía ser el resultado de la madurez espotánea del capitalismo” (1976, p. 202) Desta forma, a tarefa dos socialistas seria “organizar la conciencia de clase del proletariado y asumir el control del proceso revolucionario en el momento oportuno” (1976, p. 202). Em outros escritos, como demonstra Kolakowski6, Krzywicki não se mostra tão fiel ao ideal do marxismo ortodoxo no que tange à revolução. Também, Krzywicki, segundo ainda Kolakowski, mostra-se muito simpático ao comunismo primitivo, distanciando-se, assim, do materialismo histórico, tornando muito remota, de algum modo, a conciliação do tema com sua posterior produção. Krzywicki, acerca do materialismo histórico, considerou-o como “completamente independiente de cualquier punto de vista filosófico, materialista o no” (1976, p. 203). Isto o diferenciava de autores fenomenalistas, empiriocriticistas ou kantianos. Pois, segundo Krzywicki, “aprehendemos en mundo de forma humana, haciendo distinciones y categorias que constituyen instrumentos de predicción, pero no realidades objetivas: creamos objetos a partir de impressiones, distinguimos la fuerza de la matéria e imponemos leyes a la naturaleza, seguiendo el modelo de la legislación humana” (1976, p. 203). Desta forma, toda evolução do mundo são construções da mente, e a razão pela qual projetamos na realidade é que a sociedade atual dos homens é de servos e não de amos das máquinas que por eles foram criadas. Ainda tratando de elementos do materialismo histórico, para Krzywicki o resultado do processo histórico não depende somente das condições objetivas, depende também “em gran parte de los constumbres, creencias, instituiciones, variaciones locales de temperamento o lo que se conoce como “espiritu de raza”, que a sua vez resulta de los efectos a largo plazo del entorno sobre la naturaleza humana” (Kolakowski, 1976, p. 206). Mais uma vez percebemos aqui o traço distintivo do pensamento marxista polonês, em grande parte influenciado por Krzywicki: o processo histórico se realiza de forma reiterada 6 Nos textos “Estúdio de la evolución social” e no prefacio da obra de Kautsky de tradução polonesa “Las doctrinas económicas de Karl Marx”, a revolução pode não ser obra nem do proletariado e nem da burguesia. Poderiam os meios de produção estar subordinados ao Estado, o que consistiria num capitalismo de Estado. Os trabalhadores se assentariam sobre a seguridade social e se introduziria a planificação econômica. Porém, o socialismo não seria implantado nessas condições, pois continuaria o trabalho assalariado e a produção fora do controle da classe trabalhadora. 21 nos costumes, crenças e instituições, de modo a reforçar a consciência da sociedade por meio da ideologia, fundamento dos valores que regem as relações entre os sujeitos. Divergindo da tese ortodoxa, os estudos de Krzywicki sobre as sociedades primitivas o levaram à conclusão de que não existe uma lei universal, e que a servidão7 não foi uma etapa necessária em todos os casos, isso reforça sua posição sobre o papel do desenvolvimento dos valores enquanto determinante das relações entre os sujeitos. Por fim, como afirma Kolakowski, o papel de Krzywicki “en la difusión de la teoría marxista es así un papel ambíguo […] la flexibilidad y eclecticismo de su enfoque fue una de las razones por las que el marxismo polaco dejó de asumir formas ortodoxas y tendió a disolverse en una tendencia general racionalista o historicista” (1976, p. 209). Não podemos concordar com Kolakowski que a introdução eclética do marxismo por Krzywicki na Polônia tenha resultado necessariamente na impossibilidade de uma abordagem ortodoxa. Todavia, como veremos, Bauman adota tal linha heterodoxa e fundamenta sua análise social na identificação da ideologia que fundamenta os valores e reitera as relações de produção, caso específico da sociedade capitalista moderna. 1.2 A intelligentsia polonesa e o marxismo: Para entendermos a formação e o desenvolvimento do pensamento marxista polonês após a Segunda Guerra Mundial (em particular, nos anos 1945-1948) e especificamente o de Zygmunt Bauman, é necessário, primeiramente, analisarmos as vicissitudes deste desenvolvimento no referido período. Leszek Kolakowski em seu livro Glówne Nurty Markisizmu (As principais correntes do marxismo) (1983, p. 169ss.) nos oferece uma classificação das diferentes fases do período: 1) os anos 1945-1949 se caracterizaram pela existência de elementos de um pluralismo político e cultural, que se restringirá gradualmente no decorrer do período, e que se expressava no pensamento filosófico e social na presença de diferentes correntes e professores estranhos a tradição marxista nas diferentes instituições universitárias - particularmente presentes na Polônia e na Tchecoslováquia; 2) 1949-1954 se caracteriza pela unificação do “campo socialista”, nos aspectos políticos e ideológicos e acompanhados de uma stalinização da cultura, através 7 Segundo Kolakowski, Krzywicki observava que a sociedade industrial, onde a pessoa está submetida quase que totalmente a vínculos “reificados” e a formas de cooperação impessoais, acaba por ter sua criatividade sufocada pelo dinheiro. Desta forma, o socialismo possibilitaria às pessoas a oportunidade de se relacionarem sem a intermediação necessária do capital e pudessem desenvolver relações espontâneas e diretas. 22 de diferentes métodos administrativos, entre os quais, o afastamento e a proibição do ensino dos antigos professores; 3) 1955-1968, sob o efeito da desestalinização surgem diferentes tendências anti-stalinistas e revisionistas, surgimento de várias correntes filosóficas. Durante o primeiro período, ao lado do pensamento marxista, coexistem diferentes correntes teóricas. A escola de lógica de Lwow-Varsóvia, cujos principais representantes eram Tadeusz Kotarbinski e Kazimierz Ajdukiewicz, os cientistas sociais Stanislaw Ossowski e Maria Ossowska e, representantes do pensamento marxista, Julian Hochfeld e Adam Schaff, entre outros8. Decisivos para a formação intelectual de Zygmunt Bauman9 foram Stanislaw Ossowski10, Maria Ossowska11 e Julian Hochfeld12. De forma mais direta, são esses os intelectuais e também professores da Universidade de Varsóvia, que influenciaram a obra de Bauman. Contudo, a influência recebida, principalmente pelos acima expostos, apresenta-se de forma nítida na obra de Bauman, principalmente no que tange ao pensamento humanista, à filosofia e sociologia da ética. Importante também apresentar, mesmo que brevemente, a biografia de Bauman e, deste modo, identificar melhor sua trajetória político-acadêmica: 1925: nasce Bauman, de uma família judia, na cidade de Poznán, Polônia; 8 O marxismo polaco tinha sua própria tradição, independente da Rússia, essa tradição carecia de uma forma ortodoxa e de uma determinada ideologia de Partido; o marxismo era somente um traço a mais, e não muito importante da cena intelecutal polaca (Kolakowski, 183, p. 174). Sobre Hochfeld, Schaff e Kolakowski, afirma o professor italiano de filosofia, Gianni Paganini, que o marxismo e a filosofia analítica, este da escola de Lwow-Varsóvia, caminham juntamente e desenvolvem, assim, a filosofia produzida na Polônia daquela época. PAGANINI, G. La filosofia negli altri paesi europei. In: Storia della Filosofia. Diretta da Mario Dal Pra. Cap. XX, pp. 476-486. Casa Editrice Dr. Francesco Vallardi – Società Editrice Libraria: Venezia: 1999. 9 Bauman refere-se sobre as influências exercidas em sua formação intelectual no livro Bauman sobre Bauman (BAUMAN, 2012), refere-se igualmente a influência de Hochfeld no seu pensamento, em um artigo dedicado a memória de Julian Hochfeld, no qual ele observa: o quanto devo a Julian Hochfeld me conscientizei apenas gradualmente, com o decorrer do tempo. Afinal, foi Hochfeld um fenômeno excepcional, na ciência e na política. ... escapa facilmente às divisões e às definições científicas. (BAUMAN, 1992, p. 15) 10 Stanislaw Ossowski (1897-1963), professor da universidade de Lodz, (1945-1947) e da universidade de Varsóvia, (1947-1953), foi um destacado sociólogo polonês. Defensor de uma sociologia humanista e anti- naturalista, diferenciando as ciências naturais das ciências sociais, exerceu uma forte influência sobre os sociólogos poloneses, em particular sobre Zygmunt Bauman, Jerzy Szacki e Edmund Mokrzycki. Em 1957, foi um dos criadores da Associação polonesa de sociologia e, entre 1959-1962, presidente da Associação Internacional de Sociologia. Sua obra principal é a “Estrutura da classe na Consciência Social”. (SMOLA, 2001, p. 128ss). 11 Maria Ossowska (1896-1974). Aluna de Tadeuz Kotarbinski, foi professora de sociologia, filosofia social e ética na Universidade de Lodz (1945-1948) e a partir de 1948 professora da Universidade de Varsóvia. (SMOLA, 2001, p. 128ss) 12 Julian Hochfeld (1911-1966). Foi um dos maiores sociólogos marxistas poloneses. Foi responsável pela formação dos já citados anteriormente (Zygmunt Bauman, Jerzy Szacki e Edmund Mokrzycki). Foi professor da Escola Central de Planificação e Estatística e chefe do Departamento de Materialismo Histórico da Universidade de Varsóvia a partir de 1951. Dedicou um conjunto de trabalhos ao marxismo e à tradição marxista. Foi igualmente deputado ao Parlamento e trabalhou no Departamento de Ciências Sociais na Unesco em Paris. (JASINSKA-KANIA; WESOLOWSKI.; WIATR, 1992, 9ss.) 23 1939: visando escapar da invasão nazista, em setembro deste ano bauman e sua família mudam-se para a união Soviética; ainda na URSS, Bauman junta-se ao exército e luta na frente russa; 1950: inicia a carreira acadêmica e torna-se professor em Varsóvia, Polônia; 1968: exila-se devido à campanha antissemita promovida pelas autoridades comunistas em 1968; 1971: torna-se professor na Universidade de Leeds, Inglaterra; 1990: Bauman aposenta-se como professor em Leeds e dedica-se à publicação de sua obra. 1.3 O “Círculo de Varsóvia de história da filosofia e do pensamento social”: a “ideologia- crítica” Como vimos, no que tange o marxismo na Polônia, podemos afirmar que foi um marxismo particular, principalmente sobre a importância de Krzywicki, os embates com as escolas de Lwow, a fenomenologia de Ingarden13, bem como o desenvolvimento de uma filosofia cristã. Durante o segundo período, a tentativa de implantar o socialismo na Universidade e na sociedade foi marcada por uma forte ofensiva ideológica e política, acompanhada de uma série de medidas coercitivas, que incluíam inclusive a proibição de ensino dos antigos professores na Universidade. Esses professores foram substituídos por jovens intelectuais, incluindo Kolakowski e Bauman. Entretanto, este segundo período vai se acabar com a morte de Stalin e com a desestalinização posterior a 1956. Como sabemos, o ano de 1956 foi marcado por inúmeros fatos, inclusive a volta de Gomulka ao poder e a Revolta húngara. Este é o terceiro período, já citado por Kolakowski, que ecoará nas várias filosofias, principalmente marxistas. As conseqüências desses acontecimentos na filosofia e a especificidade desse período foram objeto de investigação por György Markus14, filósofo da escola de Lukács, e pelo filósofo polonês das ciências, Wladyslaw Krajewski. 13 Sobre a escola de Lwow e a fenomenologia de Ingarden consultar PAGANINI, G. La filosofia negli altri paesi europei. In: Storia della Filosofia. Diretta da Mario Dal Pra. Cap. XX, pp. 476-486. Casa Editrice Dr. Francesco Vallardi – Società Editrice Libraria: Venezia: 1999. pp. 480. 14 In: Teoria do conhecimento no jovem Marx. Prefácio e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Editora Paz e Terra, 1974. pp. 113-129. 24 György Markus15 em sua análise sobra as diferentes correntes do marxismo na Europa oriental, identificará a existência de quatro diferentes correntes: 1) A “tendência extensional”, que poderíamos identificada como a corrente filosófica oficial e fortemente marcada pelas elaborações de Engels e Lenin, concepção esta que, como observa Markus: “se aplica ao conjunto da realidade, ou seja à natureza, à sociedade e ao pensamento”.16 As críticas a esta corrente darão lugar ao aparecimento de um conjunto de novas correntes. 2) “tendência cientificista” que privilegiaria a relação da filosofia com as ciências naturais e empíricas. 3) tendência “ideológica crítica” que entenderia a filosofia como uma visão de mundo e influenciaria as relações práticas. Além dessas correntes, Markus identifica ainda uma quarta, a 4) tendência “ontologia social”, identificada principalmente com a obra de Lukács. A segunda classificação, refrere-se propriamente a situação filosófica na Polônia, Wladyslaw Krajewski analisará a constituição de duas distintas correntes filosóficas, em resposta a crise da filosofia oficial, ou seja, as correntes: filósofos científicos (scientific philosophers) e filósofos antropológicos (antropological philosophers), enquanto a corrente dos filósofos científicos se aproximava da tradição positivista e privilegiavam o desenvolvimento do materialismo dialético, a corrente dos filósofos antropológicos privilegiava o desenvolvimento do materialismo histórico. (KRAJEWSKI, 1966, p. XIV- XIX). O “Círculo de Varsóvia de história da filosofia e do pensamento social”, e a sociologia de Zygmunt Bauman17, como não é difícil identificar, pertenceriam à “tendência ideologia crítica” e à “corrente dos filósofos antropológicos” (antropological philosopher), conforme as classificações apresentadas nos parágrafos anteriores, respectivamente, por Markus e Krajewski. 15 MARKUS, György. Teoria do Conhecimento no Jovem Marx, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974: Capítulo: Discussões e Tendências na Filosofia Marxista, pp. 113-129. 16 Idem Ibidem. 17 No interior deste cenário se constituirá a igualmente o marxismo acadêmico –Hochfeld, Bauman- da sociologia na Polônia. Consultar sobre esta questão, o artigo do sociólogo polonês Edmund Mokkrzycki: Marksizm, Socjologia, Realny Socjalizm (Marxismo, Sociologia, Socialismo Real). (MOKRZYCKI, 1992, 117ss.). 25 A concepção de cultura18 de Bauman [na nossa leitura] parte da classificação que Markus propõe na obra já citada. Neste caso, Bauman pertence a uma tendência chamada “ideologia-crítica”, que tem como ponto de partida a crítica marxiana das ideologias e declara que, em princípio, a filosofia é uma visão de mundo que influencia as relações práticas com a realidade19. Supõem-se relações não puramente técnicas, mas um sistema de valores20. Nessa perspectiva, a autonomia da filosofia seria apenas aparente; sua forma tradicional consistiria em atribuir valor universal a instituições impostas pela ordem social existente. Nesse sentido, a filosofia seria uma ideologia completada na falsa consciência, visando a apagar as contradições resultantes das necessidades exprimidas pelas classes antagônicas. Nesse quadro teórico, a perspectiva marxista pode, por sua vez, estar isenta de qualquer ideologia. A resposta, segundo Markus, é fornecida pela própria definição que damos de teoria marxista enquanto atividade crítica contínua das ideologias sobre a base de suas raízes históricas¸ à qual se acrescenta uma análise do papel das ideologias na vida social durante a história. A fonte das referências para as relações sociais não nasce somente, como afirmou Marx, das relações produtivas. Tais relações forçam necessariamente determinadas normas de relações sociais entre os indivíduos. Todavia, é importante frisar, que o “sistema ou conjunto de valores” estabelecido por determinada sociedade funciona não só como referência externa normativa, seja legal ou moral, mas age de modo a reiterar as relações já determinadas pela produção. A autonomia cultural de determinada sociedade é aparente. A relação de produção estão totalmente presentes na formação da personalidade dos sujeitos e reiterada pelos valores [referências éticas], colabora para a fixação de uma consciência social que visa aparentemente eliminar a oposição de classes e estabelecer ainda mais a ordem vigente, visando a conformação dos sujeitos ao dever ser. A partir dessa concepção e análise da cultura enquanto “sistema de valores” [a cultura pode ser compreendida como a totalidade da criação humana, incluindo, principalmente, o sistema de valores que visa oportunizar as relações sociais] que se constrói numa determinada sociedade, é que vamos problematizar se a leitura da obra do 18 Este tema será tratado no capítulo II. 19 Op. Cit. 120-121. 20 O conceito de “sistema de valores”, como veremos, diz respeito à própria cultura que determinada sociedade elabora visando referenciar suas relações sociais, ver capítulo II. 26 segundo-Bauman deve-se realizar com a lente das influências marxianas e a metodologia da obra do “primeiro-Bauman21”. Bauman recorre à ideologia-crítica principalmente no que tange à análise que ele realiza das influências ideológicas na ética moderna e pós-moderna e seus desdobramentos na moralidade nos respectivos períodos. Como visto, o sistema de valores de determinada sociedade é resultado da subjacente ideologia que visa necessariamente atender aos interesses da classe dominante. 21 Entendemos necessário periodizar a obra de Bauman em duas partes: o período inicial, o qual chamaremos de “primeiro-Bauman”, compreende os anos iniciais de sua formação e militância política, bem como sua obra e docência na Universidade de Varsóvia. Neste período nosso autor escreve em polonês. Referimo-nos ao período de 1945 a 1968, quando da sua expulsão da Universidade de Varsóvia. A fase posterior, a qual nomearemos de “segundo-Bauman”, compreende seu ingresso na Universidade de Leeds, Inglaterra, em 1972 e sua obra passa a ser escrita em língua inglesa. 27 Capítulo II – Cultura: Objeto e Práxis Apresentamos neste capítulo uma análise do conceito de cultura desenvolvido por Bauman, em particular, de sua obra publicada originalmente em 1973, A Cultura como práxis (Bauman, 2002 p. 316). Primeiramente, o autor realiza uma apreciação crítica sobre o conceito de cultura, normalmente utilizado enquanto objeto de análise para se compreender o funcionamento da sociedade. Na segunda apresentação, Bauman expõe sua particular concepção sobre a cultura e, em muitos elementos influenciado por Marx, concebe-a enquanto práxis libertadora. O interesse que temos na apresentação de ambas concepções de cultura segundo Bauman reside no fato de ser a cultura a atividade humana geradora de valores que se tornam referências ao comportamento dos sujeitos. Contudo, subjacente às formas de conceber a cultura, pode ser encontrada a ideologia que a determina. No primeiro caso, como veremos, a ideologia serve à ordem dominante; no segundo caso, a mesma cultura que pode ser serva e configurar o comportamento visando a dominação dos sujeitos por uma classe dominante, pode se tornar práxis libertadora, pois alternativamente substitui as referencias de comportamento impostas pela classe dominante. 2.1 Cultura enquanto objeto Segundo Bauman, a abordagem da cultura, seja ela sociológica ou filosófica terminou por maltratar o próprio conceito. Houve um reducionismo do conceito de cultura à atividade dos intelectuais, como as belas artes, as letras, o ócio e etc. Não obstante, houve também a introdução da cultura enquanto tema de estudos e pesquisas, que foi um trabalho desenvolvido pelos sociólogos da antropologia cultural estadunidense. Como afirma Bauman, tal conceito foi adotado por estes para expressar a premissa teórica e metodológica que entende a ordem social enquanto sistema, sobretudo, como a realização de normas compartilhadas, internalizadas e mutuamente congruentes. Tais sociólogos estadunidenses da antropologia cultural estudaram os mesmos elementos que seus colegas britânicos, contudo, estes procuraram denominar a cultura como estrutura social. Enquanto os primeiros procuraram observar o plano das normas, os segundos dedicaram-se a observar o plano dos atores. Em ambos os casos, afirma Bauman, o estudo da condição cultural possibilitou qualificá-la como objeto apto à identificação das leis do pensamento e da ação 28 humanas que explicariam a uniformidade tão onipresente na civilização, bem como as etapas do desenvolvimento e evolução enquanto resultado de uma história previamente identificada22. Deste modo, a cultura tornou-se exibição da regularidade social que permitia a análise mediante métodos da ciência. Não obstante as inúmeras orientações normativas e metodológicas de análise, a cultura ganhou status de entidade ordenada que se manifesta sistematicamente, de modo que pôde ser entendida como realidade que precede a ação. Neste quadro teórico, a cultura pode ser definida como interconexão de elementos da vida humana, um sistema social. Ela não se torna indicativo de que o ser humano se contempla ao mesmo tempo como escravo e amo de suas próprias criações, pois, muito embora o ser humano tenha a peculiar habilidade de criar seu próprio mundo, isso não garante a apropriação e/ou gozo devidos ao exercício criativo dos elementos que estabelecem suas próprias relações e satisfações, sejam elas de sobrevivências ou não. Resta, no caso de tais intérpretes da cultura, observar o que a criação humana revela de mecanismos que podem ser compreendidos e apreendidos, de modo que o determinismo da conduta possa ser conhecido, julgado e re-direcionado. Outro importante elemento fixado no conceito de cultura diz respeito à sua oposição em relação à natureza. A natureza pertence à ordem genética, biológica e a cultura e sua representação habitual contrapõem-se totalmente a uma pretensa ordem natural da vida humana. Enquanto criação humana, a cultura condensa em si o fundamento das ações humanas, uma vez que por meio da atividade cultural são alicerçadas as referências sociais básicas ao comportamento humano. Parafraseando Comte, Bauman cita sua célebre frase “saber para prever, prever para poder”23, que, na opinião do nosso autor, longe de ser um pronunciamento partidário de alguma escola filosófica em particular, reflete fielmente a atitude da classe dominante quando da aurora da ciência como tal, que continua até hoje impregnando a atividade científica. A abordagem positivista da cultura torna o próprio positivismo uma atitude normativa em termos sociais, muitas vezes até mais que isso, um ato de fé propriamente, pois a crença que se depositou na infalibilidade da previsão científica, por fim, tornou-a uma espécie de “religião” dos modernos cientistas. Torna-se possível defender a suposição de que o positivismo é a consciência da sociedade alienada. De fato, pode ser observada uma coerência entre o tipo de vida gerada 22 Bauman, 2002 (p. 316). Primeira publicação em 1973. 23 Op. Cit. p. 320. 29 pela sociedade baseada em premissas positivistas e a crença nas probabilidades de eliminação das diferenças (entendidas como problemas). A sociedade alienada distingue a esfera pública da esfera privada. Afirma Bauman que a mesma vida privada emerge desta separação: el fenómeno llamado sociedad se rasga em dos mitades, que alimentan la brecha que las separa, prosperam em la incurabilidad de la herida y recluyen em cada una de ellas los significados generados espontáneamente em su seno” (BAUMAN, 2002, p. 323). Segundo Bauman, a primeira metade da esfera privada é a capacidade de trabalho das pessoas; a segunda é a satisfação de suas necessidades únicas. Em outras palavras é “la separación de la creación y del control, el corazón de la alienación, subyace en la base de la realidad social y en la imagen mental de la sociedad” (BAUMAN, 2002, p. 324). Por outro lado, o ato criativo é a única maneira que o homem dispõe para controlar sua existência no mundo, caminho para estabelecer o processo duplo de assimilação e acomodação. Se o controle encontra-se em separado do ato criativo e se transfere à esfera do transcendental, assim diz Bauman, o “trabajo24 humano se apresenta al próprio sujeto como um acto totalmente vacío de su significado original e inato” (BAUMAN, 2002, p. 324). Neste contexto, a própria subjetividade deixa de ter sentido, desaparecem os significados óbvios e a esfera transcendental, ou seja, a sociedade converte-se em cabine de controle. Deste modo, o sujeito torna-se objeto de controle da sociedade e ele mesmo se apropria de sua subjetividade ilusória reconhecendo, assim, a inquestionável autoridade do público. Segundo Bauman, La filosofia del positivismo refleja fielmente esta realidad del alienado mundo de los humanos (2002, p. 324). E continua, La estrecha armonía entre la visión positivista del aspecto cognitivo de la relación del hombre con el mundo y la realidad alienada de su aspecto prático constituye probablemente la causa más importante de la sorpredente vitalidad y la impresionante contundencia de la argumentación positivista. (2002, p. 325) Contudo, salienta Bauman, que o positivismo é mais que uma filosofia dos filósofos profissionais ou mesmo uma práxis dos “científicos” professores, diz ele: “sus 24 Trataremos esta questão com maior afinco no capítulo II. 30 raízes epistemológicas así como sus orígenes axiológicas estan intimamente entrejidos com la textura misma del proceso vital humano em una sociedad alienada” (BAUMAN, 2002, p. 325), reduzindo a multifacetada relação do sujeito com seu mundo (alienado) a sua plataforma cognitiva. Esta relação cognitiva é o que conforma a mente à obviedade do sentido comum positivista, a saber: que a relação entre indivíduo e o mundo é uma relação essencialmente cognitiva, enfim explicitada na tentativa sempre contínua de por meio da identificação das leis da sociedade estabelecer o reino do dever ser. Marx e Engels, citados por Bauman, já contestaram tal enfoque quando das discussões sobre os textos de Bruno Bauer: las ideas nunca lleván más allá de la situación establecida, solo conducen más allá de las ideas de una situación establecida. Las ideas no pueden conseguir absolutamente nada. Para convertirse en reales, las ideas necesitan a los hombres, que aplican una fuerza práctica” (BAUMAN, 2002, p. 328)25. Em outros termos, o próprio Marx definiu esta revolução que pode acontecer mediante o empenho dos homens como “la coincidencia de las circunstancias cambiantes y de la actividad humana o cambio propio” (BAUMAN, 2002, p. 328)26. Contudo, a esperança de restaurar a perdida dignidade (como diz Bauman, se é que alguma vez ela existiu) da atual, mutilada e intimidada, subjetividade é improvável e fútil. “Desde luego, no eran la filosofia de Comte ni los princípios metodológicos de Durkheim los que subordinaben el mundo subjetivo del indivíduo al despotismo de la sociedad “objetiva”. Y no es probables, pues, que la estigmatización y la ridicularización publicas de Comte y Durkheim hagam desvanecer dicha tinaría” (BAUMAN, 2002, p. 329). São teorias de subjulgação do sujeito ao objetivismo destituído de ato criativo e, portanto, neutralizante da autonomia do indivíduo, características da sociedade moderna alienada, constituída sobre valores heterônomos e fantásticos, previsíveis, pois se dão a conhecer nas normas sociais [sistema de valores]. Contudo, a pretensa neutralidade positivista no que tange aos valores encerra-se ilusória, pois a própria condição objetivante da sociedade alienada caracteriza o pré-estabelecimento de valores a serem reproduzidos pelos membros da sociedade. O Wertfrei soa como uma falácia, o fundamento de fé positivista é 25 Texto citado por Bauman extraído a partir da tradução inglesa de Marx, e Engels “The Holy Family” 26 Citado por Bauman do texto em inglês The Germany Ideology. 31 necessariamente constituído de valoração, tal fato já é característico na definição a priori que nega a liberdade de escolher quaisquer caminhos, ratificando o rumo à ordem e ao progresso. Bauman, citando Gramsci, afirma que as leis naturais da economia, por exemplo, funcionam segundo o modo como as massas humanas se comportam, isto definido conforme sua rotina ordinária, monótona e superficial na sociedade alienada. A ciência positivista consegue descrever o real, sua isenção em termos de valores é aparente. Há, neste caso, um processo de conformação do sujeito ao “dever ser”. Por sorte, como o próprio Bauman diz, a ciência positiva não é a única possibilidade de conhecimento que os humanos necessitam e/ou podem criar. A apropriação das diversas ciências ou escolas filosóficas do conceito de cultura o reduziu ao interpretá-lo unicamente pelo aspecto institucionalizado ou institucionalizante, rotineiro e prescritivo da conduta humana. Esta abordagem do conceito de cultura é uma visão utilitária e extremamente técnica que gerou a sociedade alienada: no puedes conseguir tus fines a menos que te sometas a la autoridad de lo real; entonces serás capaz de controlarlo (...) [neste contexto] la cultura es una adaptación a ladura e inflexible realidad que solo se hace utilizable si uno se adapta a ella” (BAUMAN, 2002, p. 332). A sociedade alienada é a sociedade capitalista que se vale da utilização da cultura enquanto fonte dos valores que regem as relações e o comportamento entre/dos sujeitos. Essa internalização das referências visa reiterar o objetivo da lógica de produção: a cultura enquanto objeto pode ser conhecida pela classe dominante e manipulada [características próprias do positivismo] visando ordenar a vida dos sujeitos e conformá-los aos interesses dominantes. Neste caso, a cultura é mero objeto e oportunidade de controle social. 1.2 A cultura enquanto práxis A premissa que trata a sociedade unicamente como meio necessário para a sobrevivência humana é questionada por Habermas27 e aceita, nestes termos, pelo próprio Bauman, que o cita: 27 In: HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Zahar. Rio de Janeiro: 1982. pp. 288 ss. 32 La socieda no es únicamente um sistema de autopreservación. Una tentadora fuerza natural, presente em el indivíduo como libido, se há despegado del sistema conductual de autopreservación y reclama insistentemente su culminación utópica. [...] Lo que puede parecer supervivencia desnuda es siempre, en sus raíces, un fenómeno histórico. Luego está sujeta al criterio de lo que la sociedad pretende como buena vida para si misma. (BAUMAN, 2002, p. 333) A atividade humana supera a própria lógica de sobrevivência tão utilizada enquanto premissa ao pensamento social de cunho positivista. Bauman se vale de um conhecido texto de Marx28 para melhor expor tal questão: […] El animal sólo modela las cosas según los criterios y necesidades de la especie a la que pertenece, mientras que el hombre sabe cómo aplicar los principios inherentes al objeto en cuestión: así el hombre modela las cosas según las leyes de la belleza. […] Luego, es en el trabajo sobre el mundo objetivo donde el hombres se afirma como un ser de una especie. Esta producción es su vida de especie activa. A través de ella, la naturaleza aparece como su trabajo y su realidad. El objeto del trabajo es, por lo tanto, la objetivación de la vida de la vida de especie del hombre, ya que lo duplica no sólo intelectualmente, en su mente, sino también activamente, en la realidad, con lo cual, puede contemplar su imagen en el mundo que ha creado. (BAUMAN, 2002, pp. 333-334) O maior grau de criatividade que o ser humano pode alcançar se dá quando eles se encontram em estado de liberdade, livres de necessidades imediatas para assegurar os meios de sobrevivência, livres da penosa pressão de suas necessidades psicológicas. Com Bauman, podemos afirmar que a ordem das coisas é exatamente o contrário daquilo que implica a identificação e a sobrevivência enquanto adaptação a algum tipo de lógica social imposta. Somente as motivações de crescimento, como a cultura, são verdadeira e especificamente humanos. “La humanidade es el único proyecto conocido que trata de elevarse por encima de la mera existência, transcendiendo el reino del determinisno, subordiando el es al deberia” (BAUMAN, 2002, p. 335). E conceitua Bauman: “la cultura, que es sinónimo de existencia humana específica, es un ousado movimiento por la libertad, por liberarse de la necesidad y por liberarse para crear. Por parafrasear Santayana, es un chuchillo cuyo filo aprieta siempre contra el futuro” (BAUMAN, 2002, p. 335). Nestes 28 Inserir referencia do texto 33 termos, Bauman inaugura um conceito de cultura que se caracteriza pela práxis, a saber, libertadora. Principalmente libertadora de uma lógica social do tipo previsível, desenvolvida pelas análises positivistas e governos legalistas. Nos termos de Bauman, a cultura constitui a experiência humana no sentindo que constantemente coloca em xeque a discordância entre o real e o ideal. A cultura, de tal modo, questiona as limitações e imperfeições que invariavelmente funde conhecimento e interesse: “o más bién se puede decir que la cultura es un modo de la práxis humana en el cual el conocimiento y el interes son uno” (BAUMAN, 2002, p. 336). Todavia, o caráter incompleto, inacabado e imperfeito do real, sua efemeridade e sua fragilidade, subjazem no conceito de cultura do mesmo modo que a autoridade suprema do real respalda a ciência positiva. Para Bauman, a intenção de se construir uma sociedade socialista, em última instância, constitui-se em um esforço de emancipar a natureza humana, mutilada e humilhada, da sociedade de classes. Atualmente, podemos afirmar que o capitalismo, na avaliação do nosso autor, adquiriu um fundamento cultural. Isto significa que os ideais de uma boa vida, ou de bem estar, fins aceitáveis da ação moral dos sujeitos, acabaram por se tornar desejos percebidos como o reflexo das necessidades sugeridas pela lógica capitalista, principalmente a de consumo. Isto significa também que mesmo que sejam mudadas algumas ou até todas as estruturas do Estado, na visão de Bauman, dificilmente os costumes ou as relações entre os indivíduos serão modificadas. As satisfações da fantasia, poderosa arma capitalista em tempos atuais propugnada principalmente pelo marketing, cria uma realidade totalmente acima da verdadeira e apresenta as necessidades “reais” como aquelas que devem ser satisfeitas com determinado produto à venda na vitrine das lojas ou nos sites de compras. Muitas vezes, determinado produto apresentado como necessário às necessidades dos sujeitos adentram até seu foro íntimo, com a promessa de satisfazer questões tais como sentido de vida ou relacionados a crises existenciais, como se sua mera aquisição oportunizasse ao sujeito o alcance da felicidade, sua emancipação verdadeira. Neste contexto, afirma Bauman referindo-se a Lukács, que o grande fracasso socialista foi na verdade sua incapacidade de gerar uma cultura alternativa ao modelo capitalista, principalmente no nosso caso atual ao modelo consumista. Todavia, sua concepção marxista é substancialmente alterada, passando a tratar as questões oriundas da desigualdade de classes a partir dos resultados dessa, apontando como causa apenas as relações de valores, afastando-se, paulatinamente, da luta do materialismo histórico. 34 Deste modo, como afirma Bauman, se se visa atacar os modos de relação capitalistas, o primeiro passo é atingir suas raízes, ou seja, a cultura capitalista. Contudo, tal cultura capitalista demonstra uma forte hegemonia e uma enorme capacidade de sobrevivência, que na opinião de Bauman, Marx não pode alcançar completamente. Visando justificar sua afirmação, Bauman diz que Gramsci melhor expõe tal questão, pois entende que o grande sucesso do ideal capitalista que mesmo num Estado socialista continuou a existir [citam a experiência soviética] foi a concepção fundamental de produção e produtividade como dimensão necessária ao desenvolvimento humano. tal realidade, muitas vezes, foi praticada dentro de Estados socialistas, malogrando assim a necessária mudança que deve ocorrer também na cultura de determinado povo. Deste modo, na visão de Bauman, as medidas de Estado socialistas foram assimiladas e domesticadas pela cultura capitalista. Contribui-se para a expansão de uma cultura que contempla a produção necessariamente como fonte do progresso e o consumo como coroação desse ciclo; “el socialismo seguió mostrando los dientes, pero el capitalismo en las formulaciones más poderosas se volvió mucho más immune a su mordicidad” (BAUMAN, 2002, p. 102). Todavia, “la memória del socialismo como um proyecto cultural genuinamente opuesto a la cultura dominante del capitalismo sigue viva, por supuesto” (BAUMAN, 2002, p. 102). Contudo, a tradição do desafio cultural do socialismo foi desterrada do campo de luta e se refugiou, como diz Bauman, em uma crítica cultura em grande medida intelectual. A isto Bauman chama de divórcio do desafio cultural de uma política socialista, evento que classifica como a crise atual do socialismo. Se entendermos o socialismo enquanto proclamação e emancipação do homem das necessidades que lhe são impostas pela lógica de acumulação de riqueza como norma e guia dos padrões de relacionamento humanos, o socialismo, por sua vez, é a possibilidade de a sociedade colocar um freio na produtividade crescente e não o contrário. A incapacidade do capitalismo de constituir definitivamente um legado em favor das necessidades humanas de liberdade é evidente. Do ponto de vista cultural, por exemplo, a experiência da escassez é um produto colateral da aquisição de objetos que são considerados o único modo de autorrealização do sujeito e sua única compensação pelas humilhações de uma posição social degradada, sustentada pela cultura burguesa. Deste modo, na avaliação do próprio Bauman, o futuro do socialismo se decidirá no campo da cultura. Tomar consciência desta realidade não é tarefa fácil. A tese principal da crítica socialista era que o capitalismo não foi capaz de cumprir sua promessa: progresso tecnológico, governo com bases racionais e a 35 garantia de direitos do indivíduo. Por outro lado, “la cultura burguesa, en cierto sentido, proporcionaba um firme cimiento y una razón convincente para su contraparte socialista” (BAUMAN, 2002, p. 105). Contudo, mesmo em sendo a cultura o elemento que reitera a exploração capitalista, sem a modificação da realidade material, torna-se impossível propor uma nova realidade cultural-ideológica que modifique totalmente os modos de vida capitalistas. Por sua vez, na concepção de Bauman, há uma crise do capitalismo como nunca houve. Há um sentimento de perplexidade frente às crescentes crises, cíclicas aliás, e nenhum sinal de luzes que venham a apresentar soluções. Citando Normam Birnbaum, diz Bauman: “lo que enfrentamos es uma situación de genuína indeterminación histórica” (BAUMAN, 2002, p. 106). De fato, todas as situações históricas são indeterminadas. Variam apenas a partir de que grau seus atores, em primeiro lugar, consideram o status quo como problemático e, em segundo lugar, se estão decididos a mudar a situação para determinada direção. A experiência de indeterminação é um atributo desses atores pensantes, resulta, todavia, da experiência da primeira e da ausência da segunda: “los productores de utopías se van quedando sin ideas” (BAUMAN, 2002, p. 106). O brilho e eficiência das idéias em nosso época diminuíram em muito. Porém, como afirma o próprio Bauman, “las ideas nuevas y todavia non ensayadas están escaseando, no porque nuestra época sea menos rica em mentes perceptivas e intelectos inventivos que la que seguío a la Revolución Francesa, sino porque lá tarea de nuestros contemporâneos es incomparavelmente más compleja” (BAUMAN, 2002, p. 107). Os valores propugnados no período moderno já não existem. A tarefa dos produtores de utopias, como afirma nosso autor, é de “crear uma nueva cultura, em lugar de criticar, desafiar y corregir la que já existe. De ahí el sentimiento de indeterminación (BAUMAN, 2002, p. 107). A crise que passa o capitalismo em sentido estritamente econômico, e a crise que passa a proposta moderna de valores, enquanto substrato referencial às relações dos sujeitos, como pudemos ver, são oportunidades caras no atual momento, segundo a concepção de Bauman, ao estabelecimento de uma nova ordem cultural que venha aproveitar a oportunidade de crise que passa o capitalismo e, por fim, corrigir, como dito acima pelo nosso autor, aquilo que está aí. As normas culturais do capitalismo foram bem melhor elaboradas que as socialistas e não visaram propriamente o padrão rotineiro da vida das pessoas no sentido de fornecer-lhes um conjunto de artigos deontológicos, apresentaram-se enquanto possibilidades de vivências reais qualitativamente superiores a do socialismo real [principalmente o soviético, ao qual Bauman se remete 36 comparativamente] e, por fim, tais normas culturais tornaram-se o porta-voz “monopólico de la realidad, el realismo y la racionalidad” (BAUMAN, 2002, p. 107). Deste modo, a afirmação de Bauman parte da tese que a utopia socialista não deve argumentar contra o capitalismo com a tese de como o amanhã poderá ser, mas sim, e primeiramente, demonstrar que o amanhã deve e pode ser diferente. Entender que as idéias de uma cultura socialistas não encontrar assento dentro da realidade ordinária. Mas, podemos claramente perceber que alcançar alguma nova cultura em território capitalista é algo muito mais difícil que propor mudanças materiais e, assim, posteriormente, culturais. Segundo Bauman, o pensamento marxista da era industrial evolui nos dias atuais, uma boa expressão dessa adequação às novas realidades pode ser encontrada nas palavras de Marcuse, que Bauman o cita e aqui o reproduzimos: Lo que esta em jogo em la revolución socialista nos es solo el grado de satisfación que se puede alcanzar dentro del universo de necessidades existente [...] La revolución implica uma transformación radical de las necesidades y las aspiraciones em si mismas, tanto culturales como materiales, de consciencia y de sensibilidad, de trabajo y de ócio. Esta transformación aparece la lucha contra la transformación del trabajo, contra la primacía y multiplicación de actos estúpidos e mercancias estúpidas, contra el individuo burguês codicioso, contra la servidumbre disfrazada de tecnologia, contra la precariedad disfrazada de buena vida, contra la contaminación como una forma de vida (BAUMAN, 2002, p. 110) No capítulo seguinte, procuramos problematizar se Bauman fundamenta sua ética pós-moderna em elementos materialistas, tais como a concepção de cultura, acima exposta, que conforma o comportamento dos sujeitos. Porém, como veremos a seguir, mesmo utilizando-se da teoria marxista herdada de Varsóvia [ideologia-crítica], Bauman, que realiza bem o papel de analista da realidade social moderna e pós-moderna, peca quando o assunto é fundamentar uma nova cultura capaz de práxis libertadora da lógica de consumo da sociedade hodierna. Todavia, teceremos maior crítica quando da exposição do assunto no capítulo a seguir. 37 Parte II Bauman: análise e proposição éticas Capítulo III – Ética Moderna e Ética Pós-moderna Bauman considera que as transformações que possibilitaram a perspectiva pós- moderna da ética podem ou poderão introduzir uma nova concepção de moralidade bem diversa daquela ortodoxa. Moralidade para Bauman é a prática dos preceitos ou referências éticas. A moralidade moderna [ética ortodoxa], de matriz kantiana, à qual Bauman se remete de forma crítica, está baseada no caráter eminentemente heterônomo da vida moral. Em outras palavras, a moralidade tornou-se referenciada (ironicamente, em tempos de proclamação da autonomia e liberdade do indivíduo, característica também principal do ideal iluminista e, por suposto, moderno) por elementos exteriores ao sujeito moral. A referência básica para a ação moral, por sua vez, baseada em princípios majoritariamente advindos da concepção de direito natural racional, por sua vez, ao invés de proclamar e reafirmar a autonomia do indivíduo em relação às normas de instituições, reforçou ainda mais sua dependência de parâmetros externos e oriundos de outras fontes, impossibilitando a reflexão e decisão próprias do sujeito moral. A modernidade é uma formação social que se iniciou no século XVIII e se consolidou de modo mais amplo no século XIX. A pós-modernidade, por outro lado, não é um mutante contaminado da modernidade, muito menos uma modernidade em estado de colapso, ou um caso de modernidade em crise. Uma teoria da pós-modernidade, então, não pode ser uma teoria da modernidade modificada. O conceito de pós-modernidade, para Bauman, se refere às condições sociais que apareceram nos países europeus do século XX, principalmente nos anos imediatos ao pós-guerra. O termo, ao mesmo tempo, dá a ideia de ruptura e continuidade e, segundo Bauman, esta característica de continuidade e de ruptura concomitantes melhor responde às complexas relações, tanto as novas como as mais antigas. Para se construir uma teoria da pós-modernidade é necessário um espaço cognitivo ordenado, um conjunto de premissas diferentes e, por suposto, novas exigências de linguagem. Esta teoria, afirma Bauman “será relevante em la medida em que se libere de 38 conceptos y problemas generados por el discurso de la modernidad” (BAUMAN, 2002, p.83). Sobre as influências na pós-modernidade, Bauman salienta que esta deve se livrar da metáfora de progresso que saturou todas as teorias da sociedade modernista, tornando-as competitivas [as teorias] entre si. A condição pós-moderna constitui-se sem um itinerário preconcebido, aplica-se, de modo análogo, a metáfora dos movimentos de Brown29: nenhum estado temporal resulta necessariamente de um anterior e nem é causa suficiente do estado posterior. A condição pós-moderna, segundo o próprio Bauman, “és no-determinada y no- determinante. Libera al tiempo: aminora la influencia limitadora del pasado y protege eficazmente al futuro de la colonización” (BAUMAN, 2002, p. 84). Sugere ainda nosso autor que as teorias da pós-modernidade se libertem da ideia de sistema [ele faz uma auto- crítica por tratar no mesmo texto o tema sociedade], pois não há, no seu ver, uma totalidade soberana. Sugere ainda, que a categoria sociedade seja substituída pela categoria socialidade, pois, segundo ele, melhor se adapta à modalidade processual da realidade social e ao jogo dialético entre casualidade e regularidade, considerando as estruturas enquanto realizações emergentes. Neste primeiro momento, vamos apresentar a análise da ética moderna segundo Bauman e, posteriormente, sua concepção de ética do trabalho enquanto exemplo prático da moralidade moderna. Neste ponto é possível perceber a relação entre referências externas (heterônomas) e seu papel de reiterar as relações segundo a ordem de interesse da classe dominante. Em seguida, apresentamos a concepção de ética pós-moderna de Bauman. Ele parte de uma análise da moralidade pós-moderna e aponta que as referências modernas já não são mais as únicas e verdadeiras. Sugerimos que há uma cacofonia de “referências” à ação do sujeito. Como prática de moral pós-moderna, apresentamos sua análise da ética enquanto atividade de consumo [também sugerida por Bauman]. Durante o texto é apresentada a análise de Bauman sobre a falta de referências “verdadeiras” [modernas]. Para o autor o período pós-moderno é a grande oportunidade da ética: revisar suas bases ideologias e proporcionar maior autonomia ao sujeito. Podemos observar certo dualismo na apresentação que Bauman faz da ética moderna e da ética pós-moderna, porém, com algo em comum: a primeira carrega em si a rigidez, a totalidade e o adestramento. A pós- modernidade, por sua vez, mesmo se assentando sobre a fluidez e a falta de referências 29 Foi identificado pelo biólogo estadunidense Robert Brown. Sua teoria se baseia na concepção de forças desproporcionais exercidas sobre as moléculas, resultando em um movimento aleatório. Alguns teóricos baseiam-se nessa concepção de movimento, principalmente os ligados à Teoria do Caos. 39 absolutas, ambas mantêm o caráter de controle social. Procuraremos, ao final do capítulo, melhor referenciar tal questão. 3.1 Ética Moderna Para Bauman, todo o período moderno constituiu-se em uma forma bem peculiar de fundamentação da moralidade e da vida moral, em termos ocidentais, que por, fim, tornou-se realidade a partir da negação daquele que em tese foi o ideal: a partir de princípios, os Estados-nação e, por fim, a ação individual, tornou-se referenciada por orientações heterônomas, muitas vezes codificadas, e a confusão gerada por essa externalidade visando a reprodução na ação dos sujeitos contribuiu, em muito, para se conceber que a ação moral fosse prescrita ou referendada por alguma autoridade nesse campo. Mesmo que no interior das teses modernas haja coerência teórica, na prática, a efetivação dessas teorias tornou-se ferramenta propícia à fundamentação de uma nova autoridade que substituiu (isto em relação à autoridade religiosa medieval) as figuras anteriores por novas, mantendo os mesmos papéis. A figura do legislador, por exemplo, principalmente nos países que os adotaram como fonte do direito material, aos poucos, e respaldados pela autoridade e coercitividade30 oficiais do aparelhamento do Estado, tornou- se a referência não só para as relações jurídicas, mas também às relações sociais não- jurídicas, nivelando para baixo a compreensão, e quiçá a própria consciência social, daquilo que é o padrão mínimo da ética. Em outras palavras, podemos afirmar que a concepção moderna de ética tornou possível uma moralidade que, ao invés de praticar aquilo que foi propugnado na aurora do período moderno [a autonomia dos indivíduos que, baseados em elementos racionais e, sobretudo, interpretes de princípios naturais, comuns a todos os 30 Ao comentar o livro de Freud, Das Unbehagen in der Kultur de 1930, Bauman salienta que “sabemos, agora, que era a história da modernidade que o livro contava” (1998, p. 07). e, esta, pode ser entendida a partir da seguinte mensagem: “Você ganha alguma coisa mas, habitualmente, perde em troca alguma coisa” (1998, p. 07). Civilização, Cultura e Modernidade, para Bauman, são equivalentes e o termo “civilização moderna, por essa razão, é um pleonasmo” (1998, p. 07). Segundo sua definição, a Modernidade pode ser definida em três termos: “beleza( essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela civilização), limpeza (a sujeira de qualquer espécie parece-nos incompatível com a civilização) e ordem (a Ordem é uma espécie de compulsão à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão). (BAUMAN, 1998, p. 08). Assim, para a Modernidade, não há nada que predisponha o homem naturalmente preservar a beleza, conservar-se limpo e observar a rotina chamada ordem. Desta forma, re-afirma Bauman aquilo que Freud já denunciou: “a civilização se constrói sobre uma renuncia ao instinto” (1998, p. 08). 40 homens, pudessem desenvolverem-se rumo à liberdade de relações fundamentadas em instituições de autoridade] assimilaram um padrão ético que se baseou nas novas instituições modernas, criando uma ética que foi confundida com o próprio direito material, tornando-se a uma ética baseada nas leis efetivadas pelo Estado, nivelando para baixo as relações morais, fundamentadas apenas em princípios referenciados naquilo que “é permitido” ou “não é permitido”. A rejeição dos filósofos modernos a qualquer fundamento metafísico e a insistente tentativa de levar o sujeito esclarecido à liberdade e autonomia previu, num primeiro momento, segundo Bauman, a uma eliminação das diferenças e sua unificação pela Razão. Kant foi figura chave nesse processo, pois, a ética não era mais uma resposta a determinadas situações particulares, mas sim uma questão de agir em conformidade com a lei, com os resumos universais. Kant elabora uma teoria de noção autônoma do agente moral. Esta questão não estava ligada à obediência a qualquer lei – e com certeza, não às leis da religião ou tradição – mas sim uma questão de obediência à lei moral que o agente havia formulado usando sua racionalidade, livre e autônoma. Para os modernos, o sujeito moral era livre no sentido de que ele não era governado pela religião, tradição ou pela natureza humana, mas por uma lei universal que ele mesmo havia formulado por meio da sua capacidade racional. Diz Bauman, “o ‘homem universal’, reduzido só aos ossos da ‘natureza humana’, devia ser (...) um “eu não-sobrecarregado” (1997, p. 49). Devia elevar- se das “raízes e lealdades comunais; de erguer-ser, por assim dizer, a plano mais elevado e ter daí visão dilatada, imparcial e crítica das exigências e pressões comunais” (1997, p. 49). Este “eu não-sobrecarregado” presumia certa autonomia em relação a sua comunidade local, aos costumes muitas vezes ditados por líderes religiosos ou comunitários, uma verdadeira emancipação dos costumes locais visando a prática das aspirações universalistas inerentes à racionalidade, sua verdadeira natureza. Outra característica importante a ser frisada na crítica desenvolvida por Bauman é a característica teleológica da modernidade e seus impactos na ação moral do sujeito. Para Bauman, “a alteridade foi temporalizada de maneira característica da idéia de progresso: o tempo significaria hierarquia – ‘mais tarde’ identificava-se com o ‘melhor’, e ‘mau’ com o ‘fora de moda’ ou ainda não desenvolvido adequadamente” (1997, p. 48). “A confiança nas capacidades milagrosas e curativas do tempo – e especialmente sua parte ainda não realizada, parte que se podia fantasiar livremente, e lhe atribuir poderes mágicos sem medo do teste empírico – veio finalmente a ser o traço saliente da Mentalidade Moderna” 41 (BAUMAN, 1997, p. 53). Essa alteridade, principalmente a ética (pois, agora estabelecida por códigos legais), aliada à visão teleológica da modernidade, acabou por auxiliar na manutenção de um Estado (consequentemente de um poder), que pôde a todo o momento prorrogar suas obrigações com a desculpa implícita de melhoria com o passar do tempo: “o sonho da universalidade como destino último da espécie humana e a determinação de realizá-lo, tomou refúgio no conceito processual de universalização. Aí ele estava seguro – enquanto se podia crer razoavelmente que o processo de universalização acontece, que se pode visualizar com credibilidade a ‘marcha do tempo’ como incoercível e que ela levará ao progressivo desgaste, e eventualmente à extinção, das atuais diferenças.” (BAUMAN, 1997, p. 53). A crença em uma moralidade que pode a cada dia elevar-se em seus propósitos e ações tornou a autoridade do Estado ainda mais justificada e, até, desejável, pois garantiria a segurança e o direito de propriedade, além de outros valores outrora negados e que com o advento do Estado moderno passam a integrar a agenda política das nações. Porém, como se observou, a proposta moderna de autonomia do indivíduo viu-se concretamente realizada na heteronomia do poder legislador do Estado, e possível, agora, graças às condições ambientais proporcionadas pelo Estado e por meio da garantia “inconteste” de sua legislação. A modernidade é o que é – uma obsessiva marcha adiante – não porque queira mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torne mais ambiciosa e aventureira, mas porque suas aventuras são mais amargas e suas ambições frustradas. A marcha deve seguir adiante porque qualquer ponto de chegada não passa de uma estação temporária. Nenhum lugar é privilegiado, nenhum melhor do que outro, como também a partir de nenhum lugar o horizonte é mais próximo do que de qualquer outro. É por isso que a agitação e perturbação são vividas como uma marcha em frente; é por isso, com efeito, que o movimento browniano parece adquirir verso e reverso e a inquietude uma direção: trata-se de resíduos de combustíveis queimados e fuligem de chamas extintas que marcam as trajetórias do progresso. (BAUMAN, 1999, p. 18). As ações políticas podiam ser prorrogadas e assim mantinham (não só mantinham, mas incentivavam) seus membros a aderirem ainda mais ao projeto de resolução de problemas e conquista utópica: Da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um télos alcançável de mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa... da ordem perfeita em que tudo é colocado no lugar certo [...] do completo domínio sobre o futuro. Infelizmente, não foi desta forma a realização efetiva de tal sociedade, a determinação das teorias modernas. Com certeza, devemos ainda render 42 louros à conquistas que são herança da modernidade, contudo, como o próprio Bauman diz, “o pensamento e a prática morais da modernidade estavam animados pela crença na possibilidade de um código ético não ambivalente e não aporético. Talvez ainda não se tenha encontrado esse código. Mas com certeza ele está à espera na virada da esquina. Ou na virada da próxima.” (BAUMAN, 2006, p. 15). Bauman não discute os problemas internos das teorias desenvolvidas durante o período moderno, principalmente sobre a coerência das teses da racionalidade enquanto fundamento que desenvolve no sujeito uma ação autônoma no seu agir moral. Também não desenvolve uma crítica acerca das questões epistemológicas sobre a moralidade. Ele não dedica seu estudo a problemas, como por exemplo: O que é moralidade? O que é a prática moral? O que é o homem moral? Em suma, Bauman não se preocupa em discutir estritamente a Razão Moderna e as questões de conhecimento ligadas ao tema. De forma particular, nosso autor procura identificar qual o resultado da concepção moderna de ética na vida efetiva das pessoas. Ele aplica questões filosóficas (no caso o conceito de ética, por exemplo) a situações sociológicas. E, a partir disto, desenvolve uma crítica sobre as concepções de ética moderna e pós-moderna. Ou seja, utiliza-se da filosofia como crítica social. Primeiramente, Bauman identifica que na Modernidade, mesmo sendo a autonomia e a liberdade bandeiras gêmeas nascidas da racionalidade, não foi confiado ao sujeito a responsabilidade total de seus atos. Os pensadores modernos sempre viram com desconfiança uma moralidade provinda dos instintos e toda a sua investida se constituiu em uma grande empresa para forjar a natureza humana aos moldes da elite ilustrada. Disse D’Alembert: “a multidão era ignorante e estupidificada (...) incapaz de ação forte e generosa (apud BAUMAN, 1997, p. 34). Teoricamente, como afirma Bauman, Kant vai ser o grande responsável por desenvolver na mentalidade moderna a atitude moral conforme prescrições universais. O enquadramento kantiano da ética como lei teve grande impacto sobre a realidade social no período moderno. Desta forma, a ética moderna era uma “ética- lei”. Esta lei libertaria o indivíduo de toda forma de instinto e tradição e o levaria à autonomia de práticas éticas universais. Contudo, na visão de Bauman, a prática de prescrições do tipo universais não realiza o indivíduo enquanto ser autônomo. Este alicerce tornou-se a característica básica dos modernos: por meio da Razão, renunciariam a toda forma instintiva de comportamento e como homens e mulheres esclarecidos, progrediriam cada vez mais rumo à plena liberdade. Diz Bauman: 43 Kant, Descartes e Locke (como Francis Bacon antes deles) foram todos movidos pelo sonho de uma humanidade magistral (quer dizer coletivamente livre de restrições) – única condição na qual, acreditavam, a dignidade humana pode ser respeitada e preservada. A soberania da pessoa humana era a preocupação declarada e subjetivamente autêntica desses filósofos; foi em nome dessa soberania que eles quiseram elevar a Razão ao cargo de suprema legisladora. E, no entanto, havia certa [...] – afinidade eletiva – entre a estratégia da razão legislativa e a prática do poder estatal empenhado em impor a ordem desejada sobre a realidade rebelde. (BAUMAN, 1999, p. 35). Na Modernidade, a fundamentação dos valores baseou-se na crença na racionalidade, na cientificidade, nos valores de liberdade que foram assumidos e postulados pelo Estado moderno. Com isso, exigiu-se somente “reconhecer como morais as normas que passam pelo teste de certos princípios universais, extratemporais e extraterritoriais (...) sobretudo a rejeição das pretensões comunais, ligadas a tempo e território” (BAUMAN, 1997, p. 50). A universalização e fundamentação da ética (a primeira produzida pelos filósofos e a segunda pelos legisladores, agregados ao poder do Estado), mesmo sem terem objetivamente um contrato de cooperação ou complementariedade, trabalharam conjuntamente firmando a heteronomia da moral. Se Kant introduziu a idéia de ética como lei, na sociologia, Durkheim em particular, é quem vai promover outra idéia principal da ética moderna: que a moral é uma construção social, assinala Bauman. Assim, de acordo com Durkheim, o homem natural tem capacidade ética, porém, somente através dos esforços de socialização promovidos pela sociedade é que pouco a pouco ele vai se transformando em um ser social, logo ético. Esta concepção, conforme Bauman afirma, remonta a Thomas Hobbes e sua famosa formulação do “estado de natureza”. No “estado de natureza” de Hobbes, o homem é um ser egoísta e amoral que só persegue seus próprios interesses. Desta forma, tal estado assume a forma de uma guerra em potencial contra todos, o famoso bellum omminium contra omnes. Aqui, o ponto nevrálgico de tal concepção é que o homem somente se torna moral no momento em que deixa o “estado de natureza”. Fora da sociedade ele é um “vazio moral”, ao entrar no reino social, no entanto, é transformado em um ser moral no sentido preciso que ele aceita sujeitar-se às leis do Estado Soberano. Completamente de acordo com as práticas dos legisladores modernos, Durkheim e sua teoria social, consideraram a ética como uma heteronomia, ou seja, que o indivíduo deve ser inoculado por meio da socialização. 44 Para Bauman, esta ligação se deu, sobretudo, a partir da elaboração de filósofos: “O laço estreito entre a obediência a normas morais e a manutenção da crença na Universalidade, foi com toda probabilidade sobretudo idéia de filósofo e preocupação de filósofo” (BAUMAN, 1997, p. 48). Tal laço foi postulado, conforme afirma Bauman, a partir da busca de coerência e congruência imputado aos homens e mulheres comuns. Assim, coerência e congruência são “a marca profissional dos filósofos” (BAUMAN, 1997, p. 48). A primeira visava estabelecer uma relação harmônica com o projeto moderno de Esclarecimento para o progresso do homem e do mundo, enquanto a segunda visava aliar o comportamento das pessoas a este mesmo fim. Desta forma, coerência e congruência estavam na proposta central de superação das ambivalências, principalmente aquelas dos seres humanos, agora cidadãos do Estado, que deviam se libertar das tutelas que os mantinha cativos e que, desde então, poderiam fazer uso da sua própria razão, independentemente de outrem. A proposta de obediência às normas morais aliada à crença na universalidade, na leitura de Bauman, impulsionou a efetivação do Estado como autoridade moral. Esta nova autoridade vinha substituir, sobretudo, a tutela das pessoas da religião e de costumes ligados às comunidades. Todavia, como salienta Bauman, a proposta universalista do Estado enquanto autoridade moral visou, na verdade, imputar nos cidadãos suas ambições locais sob bandeiras universalistas. Ao mesmo tempo em que filósofos trabalhavam seriamente para a implantação de uma unidade de costumes coerente e congruente à proposta moderna, acontecia, inerentemente, a ampliação de um poder local que se pretendia universal. Tal movimento legitimou nos mais variados Estados, durante este período, um determinado poder (o hegemônico dentre os que haviam) que direcionou a conduta dos seus cidadãos. Neste contexto, qualquer iniciativa individual que não se baseasse nos princípios da racionalidade e no itinerário para o progresso era visto com desconfiança. “A verdade é uma (...) a escolha do indivíduo não bastava, devia ser assegurada por uma autoridade, coerentemente a esta. Ir por outro caminho é um erro, ‘ignorância e imaturidade’” (BAUMAN, 1997, p. 48). Nesse período via-se a livre decisão do indivíduo como aliada ao impulso, aos sentimentos, aos instintos. Qualquer comportamento originado dessas fontes devia ser combatido, re-educado. O comportamento das massas era imprevisível, incalculável e estava assentado sobre a crueza, crueldade e paixões selvagens. Assim, os filósofos foram os encarregados de “revelar” aos homens e mulheres comuns sua “verdadeira natureza”. Tal natureza já 45 nasce sob a bandeira universalista da “natureza humana”, comum a todos os homens. Porém, esta natureza é irrealizável por conta própria, precisa da ajuda dos portadores da razão, os guias que levariam as pessoas à “iluminação”: “Primeiro, este potencial deve ser revelado (...) em segundo, devem ser ajudadas no seguimento desses padrões por um ambiente cuidadosamente planejado (...) Ambas as tarefas requerem evidentemente habilidades profissionais, primeiro dos mestres, depois dos legisladores” (BAUMAN, 1997, p. 35). Os primeiros, seriamente, apresentaram a proposta universalista de realização das potencialidades humanas por meio da Razão, dos princípios morais e tantos outros argumentos visando a já mencionada coerência e congruência ao projeto do Esclarecimento. Por outro lado, sedentos de poder, estavam os legisladores, responsáveis por criar um ambiente seguro e propício à manifestação da verdadeira natureza dos homens e mulheres tutelados pelo Estado. Desta forma, estava dado o laço que uniu de forma exitosa universalidade e normas morais (esta, filha predileta e dedicada dos detentores do poder do Estado). Os criadores do ambiente favorável à realização da natureza humana, ou seja, os legisladores, acabaram por obter sua ação fundamentada filosoficamente. Sua prática, ampliação e legitimação do poder adentraram, por meio de sua autoridade moral, a vida íntima dos cidadãos e passaram a reger o campo estritamente interior da ação do indivíduo, fato este que assegurou grande tranqüilidade para a manutenção do poder. Diz Bauman: única maneira em que a liberdade individual poderia ter conseqüências moralmente positivas (na prática, se não em teoria) é entregar aquela liberdade aos padrões heterônomos estabelecidos; ceder às agências socialmente aprovadas o direito de decidir o que é bom e sujeitar-se a seus veredictos. O que significa, em suma, substituir a moralidade pelo código legal, e modelar a ética segundo o padrão da lei. A responsabilidade individual é então traduzida (de novo na prática, ainda que não na teoria) como a responsabilidade de seguir ou transgredir as normas ético-legais socialmente endossadas. (BAUMAN, 1997, p. 37) Desta forma, como afirma nosso autor, “a ética [leia-se ética moderna] – um código moral, que pretende ser o código moral, o único conjunto de preceitos harmonicamente coerentes ao que se deve obediência toda pessoal moral – visualiza a pluralidade de caminhos e ideais humanos como um desafio, e a ambivalência dos juízos morais como um estado mórbido de coisas que se deseja corrigir” (BAUMAN, 2006, p. 29). Toda ação que provesse dos instintos era vista com maus olhos. A natureza em si, o ser 46 humano em seu estado ingênuo, sem ter aprendido na escola dos sábios e buscado uma prática segundo os costumes adotados pela pólis, não poderia agir corretamente. A razão veio justamente para resolver esse mal estar e direcionar o ser humano que, progressivamente, adquiriria sua perfeição enquanto cidadão-membro do Estado-nação. Todavia, a proposta universalista extrapolou os limites do Estado. Afirma Bauman que “o postulado de universalidade sempre foi demanda sem endereço; ou, um pouco mais concretamente, espada com o gume voltado para grupo seleto (bauman, 1997, p. 49). Sempre estavam na mira do canhão da universalidade os costumes paroquianos, práticas comunais. No entender de Bauman, esta tentativa que buscou sem medidas libertar o ser humano do jugo dos mitos, da religião e do despotismo, acabou por impor determinados limites que, se bem entendidos à luz dos nossos dias, caminharam na direção oposta de seus propósitos. O esforço desmedido da Modernidade em conquistar um código que pudesse resolver tais diferenças e ambigüidades resultou em uma ilusão. Por outro lado, o indivíduo viu-se obrigado a cumprir uma moralidade determinada pelo Estado na sua legislação. O que seria emancipação e autonomia das práticas locais configurou-se determinantemente na heteronomia legalista da nação-estado: a moralidade passa a ser determinada nos códigos e esta, paulatinamente, torna-se a única “obrigação moral” dos indivíduos. Assim, até o próprio Estado viu-se vítima de seu postulado, pois “o postulado da uni