UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP “Julio de Mesquita Filho” Campus de Marilia Maurício Gonçalves Saliba A EDUCAÇÃO COMO DISFARCE E VIGILÂNCIA: análise das estratégias de aplicação de medidas sócio- educativas a jovens infratores Marilia-SP 2006 MAURÍCIO GONÇALVES SALIBA A EDUCAÇÃO COMO DISFARCE E VIGILÂNCIA: análise das estratégias de aplicação de medidas sócio-educativas a jovens infratores Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista – UNESP - “Julio de Mesquita Filho” (área de concentração: “Ensino na educação brasileira”), para obtenção do título de doutor em educação. ORIENTADOR: Prof. Dr. Kester Carrara Marilia-SP 2006 Saliba, Maurício Gonçalves S165e A educação como disfarce e vigilância: análise das estratégias de aplicação de medidas sócio-educativas a jovens infratores/ Maurício Gonçalves Saliba – Marília, 2006. 175f. ; 30 cm. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia e Ciências , Universidade Estadual Paulista, 2006. Bibliografia: f. 129-131 Orientador: Profº Dr. Kester Carrara 1.Educação.2. Controle.3.Poder. I. Autor. II.Título. CDD 370.1 Dedico esse trabalho à Jurema, minha esposa, pelo apoio e compreensão em todos os instantes e, principalmente, pelo incentivo, desde o primeiro momento. Dedico também as minhas filhas Isadora e Isabella que, a despeito da pouca idade de ambas, souberam compreender os momentos que não pude estar presente. AGRADECIMENTOS: Gostaria de agradecer ao meu orientador, Prof. Dr. Kester Carrara, pelo apoio e dedicação em todos esses anos. Agradecer sua maneira cordial, mas ao mesmo tempo competente e séria, durante toda a orientação. Mais do que a orientação de uma pesquisa serviu-me como modelo de profissional que procurarei seguir durante toda minha carreira. Agradeço muito à banca de qualificação, composta pelas Dras: Olga Maria P. Rodrigues, Sandra Gimeniz-Paschoal e pelo Prof. Dr. Kester Carrara, que muito colaboraram para o aprimoramento de meu singelo trabalho e pelo grande estímulo que aquele momento significou. Agradeço aos professores da banca de defesa, Dras: Olga Maria P. Rodrigues, Sandra Gimeniz-Paschoal, Maria de Lourdes Morales Horiguela e Tânia Maria Santana de Rose, nomes de muita reputação e prestígio na instituição, por terem aceito o convite, Odeio os indiferentes. Acredito que viver significa tomar partido. Indiferença é apatia, parasitismo, covardia. Não é vida. Por isso, abomino os indiferentes. Desprezo os indiferentes, também porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Vivo, sou militante. Por isso, detesto quem não toma partido. Odeio os indiferentes. Antonio Gramsci RESUMO O objetivo deste trabalho de pesquisa é analisar a utilização do escopo educativo, utilizado nas modernas propostas de parcerias da FEBEM com as ONGS, utilizando-se do conceito de reeducação como forma de legitimar práticas de vigilância e controle social. Parte da hipótese de que o verniz educativo, com ideal civilizador e emancipador, pode, de forma sutil, conferir maior poder de domínio e maximizar as estratégias de vigilância social. Dessa forma, pretendeu-se verificar as formas de utilização dos conceitos de educação e cidadania como estratégia de diluição da repressão e do domínio sobre os adolescentes infratores. Portanto, quando a vigilância social é diluída no nobre ideal da educação, aproveitando-se da sua propalada capacidade de promover a cidadania, a autonomia e a liberdade, sua eficácia é maximizada, pela invisibilidade das estratégias do poder. Para isso efetuou-se a pesquisa em uma ONG que efetua atendimentos a adolescentes infratores através de contrato de parceria com a FEBEM. O estudo foi dividido em três etapas para possibilitar maior profundidade na analise e maior compreensão da estratégia. Como primeiro estudo etapa da pesquisa procedeu-se o exame dos processos de aplicação das medidas sócio educativas de Liberdade Assistida; no segundo estudo fez-se uma entrevista com os pedagogos, psicólogos e educadores do projeto através da aplicação de um roteiro de entrevista semi-estruturado, remetido a todos os técnicos do projeto; no terceiro estudo buscou-se analisar as conseqüências da parceria ONG/FEBEM aos adolescentes por meio da verificação da quantidade de adolescentes que são penalizados com a medida sócio educativa de Liberdade Assistida antes e após a celebração da parceria FEBEM/ONG. Com base no referencial teórico e nas analises processadas conclui-se que o propósito educacional dilui e oculta uma estratégia de vigilância, controle e normalização. PALAVRAS CHAVES: EDUCAÇÃO; CONTROLE; PODER ABSTRACT Analyzing the utilization of educational scope is the goal of this work of research, that was used in the modern proposals of partnership of the FEBEM along with the ONGS, by the renowned and seductive term education as a way to legitimize violence practices and social control. It starts on the hypothesis that the role of education with its noble civilizing and emancipating ideal can smoothly ascribe a larger dominant power and make stronger the strategies of social vigilance. At this point, one intended to verify how the education and citizenship concepts have been applied to strategies for repression extinction and for dominance upon the misadjusted adolescents. However, once the social vigilance is extinct into the noble ideal of education, by taking advantage of its divulged capacity of promoting the citizenship, autonomy, and the freedom, its effectiveness is maximized through invisibility of the strategies of power. For so much, a research was carried out in the ONG of Santa Cruz do Rio Pardo city, which provides occupations to misadjusted adolescents by the partnership deal with the FEBEM. The study has been divided into three steps in order to permit a deeper analysis and wider understanding of the strategy. As the first step study of the research, we have got the exam of the processes of application of the social educative measures of Watched Freedom; in the second study an interview with the educators, psychologists, and teachers of the project through the application of a list of semi-structured questions, concerned to all technicians of the project; in the third study, we sought to analyze the consequences of the partnership ONG/FEBEM to the adolescents through the verification of the quantity of adolescents who have been punished within the social educative measures of Watched Freedom before and after the celebration of the partnership ONG/FEBEM. Based on the theoretical reference and on the analyses carried out, we could conclude that the educational purpose cancel and hide a strategy of vigilance, control, and normalization. Key words: EDUCATION; CONTROL; POWER SUMÁRIO 1 – EDUCAÇÃO, HUMANIZAÇÃO E SUBJETIVIDADE................................................................... 12 1.1 Educação e socialização.................................................................................................................. 17 1.2 Educação e disciplina...................................................................................................................... 26 1.3 Do surgimento do social ao “Tribunal de Menores” ...................................................................... 31 1.4 O surgimento do social no Brasil.................................................................................................... 50 2 – O CONTROLE SOCIAL: PANOPTISMO, DISCIPLINA E BIOPODER. ...................................... 57 3 – ADMIRÁVEL MUNDO NOVO: A PÓS-MODERNIDADE E A EMERGÊNCIA DA SOCIEDADE DE CONTROLE ............................................................................................................... 74 4 – AS MEDIDAS JUDICIAIS SÓCIO-EDUCATIVAS E A EDUCAÇÃO.......................................... 87 4.1 A forma de atuação do Poder Judiciário em relação ao adolescente infrator: ................................ 90 4.2 As aplicações das medidas sócio-educativas através do modelo de parceria FEBEM/ONG:........ 93 5 – MÉTODO ......................................................................................................................................... 100 5.1 – Descrição do problema e objetivo: ............................................................................................ 100 5.2 Metodologia: ................................................................................................................................. 101 6 – ANÁLISE DOS DADOS - A EDUCAÇÃO COMO VIGILÂNCIA E ESTIGMA ........................ 113 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................ 127 8 — REFERÊNCIAS.............................................................................................................................. 129 APÊNDICE............................................................................................................................................. 132 ANEXOS ................................................................................................................................................ 152 9 APRESENTAÇÃO Este trabalho é um estudo que pode ser compreendido como prolongamento de minha dissertação de mestrado, defendida em 2002, também sob a dedicada e enriquecedora orientação do Prof. Dr. Kester Carrara. A temática de ambas é a questão da violência e da criminalidade entre adolescentes e as formas de controle promovidas pelo Judiciário dissimuladas pelo véu da educação. Sou graduado em história e fiz em 1996 uma especialização em história social. Sempre me interessei muito pela questão da violência e do controle social. A concepção desse trabalho de pesquisa teve início quando eu ainda era Escrevente Técnico Judiciário no Fórum da Comarca de Santa Cruz do Rio Pardo, Estado de São Paulo. A cidade é pequena, com população em torno cinqüenta mil habitantes, mas possui a maior favela da região, que possui, para uma cidade do interior, um número elevado de famílias faveladas, por volta de três mil. Conseqüentemente existe um grande número de adolescentes infratores. Trabalhei no Cartório Cível que ficava ao lado do Cartório da Infância e da Juventude e diariamente acompanhava os casos de adolescentes infratores e suas famílias por meio dos interrogatórios, das advertências e acompanhava suas angústias e a condição miserável de existência à qual estavam submetidos. Ao observar a atuação do Poder Judiciário com relação àqueles garotos me interessei por leituras sobre o assunto e passei a analisar a estratégia judicial de controle da criminalidade de jovens e adolescentes. Percebi que, na realidade, o Judiciário não julgava efetivamente os adolescentes infratores, mas os examinava. Ao fazer uso do poder de sedução dos conselhos terapêuticos dos seus técnicos (psicólogos, assistentes sociais e pedagogos) sobre as famílias pobres e sedentas por qualquer auxílio, o Judiciário faz uma vigilância profunda e invisível. 10 Um outro problema, que sempre me chamou muita atenção, era o preconceito social ao jovem que havia cumprido medida sócio educativa. Ou seja, era visível o fato de que, para aqueles garotos, estar cumprindo uma medida significava receber uma marca social indelével. Na expressão do adolescente punido pela medida a baixa estima, a vergonha e o olhar resignado significava a compreensão de sua situação de exclusão. O que mais me assustava era como o escopo educativo e, principalmente, profissionalizante, anunciado e prometido pelas medidas sócio-educaticas, atraia e quebrava a resistência dessas famílias ao acompanhamento social efetuado pelos técnicos. É impressionante como esses adolescentes e sua família são refratários a qualquer aproximação dos policiais, mas se mostram extremamente receptivos ao trabalho dos psicólogos, assistes sociais e pedagogos. Através da conquista dessa tolerância, o Judiciário vasculha a vida do adolescente, de sua família e daqueles que o rodeiam. Ao avaliar a força do conceito educação, decidi pesquisar, nesta tese, diferentemente do que havia feito em minha dissertação, o trabalho educacional das parcerias público/privado, organizado pela FEBEM em substituição ao atendimento dos técnicos do Poder Judiciário. Interessei-me pelo discurso sedutor e persuasivo da educação como promessa de reinserção social aos adolescentes infratores pelo do ensino profissionalizante e da autonomia. Procurei analisar como se efetivava, na prática, o processo educativo. Ou seja, busquei verificar se a utilização dos conceitos medidas sócio- edicativas e educação eram apenas formas de encobrir a vigilância, a fim de se evitar a resistência dos adolescentes e sua família. Este trabalho tem por OBJETIVO analisar a utilização do conceito educação como forma de legitimar práticas de vigilância e controle na parceria FEBEM/ONG. Partindo da HIPÓTESE de que o verniz educativo, com seu ideal civilizador e emancipador conferem, de forma sutil, maior poder de controle e maximizar as estratégias de vigilância 11 social; pretendeu-se verificar as formas de utilização dos conceitos de educação e cidadania como estratégia de diluição da repressão e do domínio sobre os adolescentes infratores. 12 1 – EDUCAÇÃO, HUMANIZAÇÃO E SUBJETIVIDADE Quando se fala em valores e comportamentos sociais, vem sempre à mente a questão sobre o que é natural, ou seja, faz parte da essência humana e o que é social, ou seja, depende de nossa vivência e do processo de socialização. Nesse sentido, a grande virada científica darwiniana foi, sem dúvida, a prova de que a ciência poderia compreender e intervir no comportamento humano. Para Sibilia (2003, p. 158) “na época em que Charles Darwin deu a conhecer as engrenagens da natureza, os fenômenos biológicos próprios à espécie humana ingressaram na ordem do saber e do poder, alimentando as tecnologias que procuravam controlá-los e modificá-los”. Mas antropologicamente, quem somos nós? Qual é nossa essência? Qual é a possibilidade de controlar o comportamento humano? A antropologia cultural já demonstrou a importância da transmissão de conhecimentos para a evolução da espécie humana. Por meio dela se sabe que a educação, no sentido de transmissão de conhecimentos e sociabilidade, nasceu com a humanidade, ou até mesmo antes dela. A sociabilidade, assim como os cérebros grandes, é relativamente rara na evolução. (...) embora muitas espécies se agreguem em grupos de indivíduos, suas interações não são necessariamente sociais em qualquer sentido significativo que se dê a esse termo. Talvez seja verdade que a maioria das espécies sociais vivam em grupos, mas não é verdade que todos os grupos sejam sociais (FOLEY, 2003, p. 209-210). Assim, se a sociabilidade não é um traço unicamente humano, a transmissão de conhecimento é. Quando se fala em humanos deve-se relevar a importância histórica da transmissão do conhecimento e da educação dos membros de um determinado grupo. Diferentemente das outras espécies os humanos têm necessidade de educar, de encontrar meios pedagógicos de transmitir conhecimentos e socializar os indivíduos. Se viver em sociedade, com grande número de indivíduos e 13 com organização complexa, é uma característica humana, transmitir conhecimentos, valores e símbolos por meio de processos educacionais também o é: O homem tem uma dependência tão grande em relação aos símbolos e sistemas simbólicos a ponto de serem eles decisivos para a sua viabilidade como criatura e, em função disso, sua sensibilidade à indicação até mesmo mais remota de que eles são capazes de enfrentar um ou outro aspecto da experiência provoca nele a mais grave ansiedade (GEERTZ, 1999, p. 114). Conforme GEERTZ (1999) a criação de sistemas simbólicos é específica dos humanos e tem por finalidade criar uma ordem nas coisas que afaste o medo inato do caos e do desconhecido. Inevitavelmente a transmissão desses símbolos se dá por um processo de educação que fornece a todos os membros da comunidade os valores que nortearão sua vida. Ser humano significa criar símbolos, valores, crenças e transmiti-los às gerações futuras. Não seria possível aos humanos sobreviverem sem esse processo de transmissão de conhecimentos de geração para geração. Essa vocação ancestral para ensinar pode ser considerada como essencial, pois “ser humano consiste na vocação de compartilhar com todos o que já sabemos, ensinando os recém-chegados ao grupo o que devem conhecer para se tornarem socialmente válidos” (SAVATER, 2000, p. 36). Para o autor, os homens, diferentemente dos animais, têm potencial à humanização, que só existe como possibilidade que se revela socialmente e por intermédio do aprendizado e da transmissão de valores. Assim, de alguma maneira somos condicionados, pois o que é próprio do homem não é simplesmente o aprender, uma vez que todos os animais aprendem, mas aprender com os outros. Trata-se, decerto, de uma forma de condicionamento, que no entanto não acaba com nenhuma antiga liberdade original, mas possibilita justamente a eclosão eficaz do que humanamente chamamos de liberdade. A pior das educações potencializa a humanidade do indivíduo com seu condicionamento, ao passo que um ilusório limbo selvagem incondicionado não faria mais que bloqueá-lo indefinidamente (SAVATER, 2000, p. 38). 14 A afirmação é interessante, uma vez que acredita que é a transmissão de valores e saberes dentro do grupo que forma a subjetividade, ou seja, naturalmente ela não existe, sendo apenas uma “série de disposições genéricas, fruto do acaso biológico”. Assim, como seres condicionados, visto que não há personalidade própria, é a educação que forja nossa identidade e nossa subjetividade social. Essa peculiaridade humana de formação e humanização pela transmissão de conhecimentos é fruto da constatação de que a sucessão de revoluções tecnológicas na história só poderia ter ocorrido por um processo cumulativo de conhecimento e tecnologias. (...) a interação entre esses esforços de controle da natureza e de coordenação das relações humanas e a cultura entendida como o patrimônio simbólico dos modos padronizados de pensar e de saber que se manifestam, materialmente, nos artefatos e bens; expressamente através da conduta social e, ideologicamente, pela comunicação simbólica e pela formulação da experiência social em corpos de saber, de crenças e de valores (RIBEIRO, 1987, p. 34). No tema da formação da subjetividade há uma corrente antropológica que enfatiza o jogo como forma ancestral de transmissão dos saberes acumulados. Para essa vertente existe historicamente algo mais nas atividades lúdicas do que simplesmente a diversão. Ou seja, deve haver uma finalidade biológica na atividade do jogo que cumpre historicamente uma função social. Ao tratar o problema do jogo diretamente como função da cultura, e não tal como aparece na vida animal ou da criança, estamos iniciando a partir do momento em que as abordagens da biologia e da psicologia chegam a seu termo. Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a, desde as mais distantes origens até a fase da civilização em que agora nos encontramos (HUIZINGA, 2001, p. 6). Percebe-se a importância cultural do jogo como forma de socialização e de explicação da realidade. A sua permanência na história é o mais forte indício de sua importância e necessidade 15 humana. Por essa afirmação, confirma-se a tese de que o ser humano é mais do que faber1 é também luden2. Mesmo tendo uma dimensão de evasão da vida real e de algo desinteressado, o jogo é um acompanhamento ou prosseguimento de nossa vida cotidiana. Desse modo o autor afirma que todas as instituições humanas (a política, o direito e a religião) são estruturadas a partir do lúdico. Como função social, o jogo “ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida torna-se uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade” (HUIZINGA, 2001, p. 12). Se a educação, que pode se dar até mesmo pelo jogo e pelo do lúdico, é fundamental para a formação de nossa subjetividade, somente terá possibilidade de surgir, como configuração formal, a partir da centralização do poder e o surgimento do Estado. A formação de nossa consciência social e o autocontrole, que é seu produto, como efeito de uma determinada forma de educação, surge no ocidente num contexto histórico preciso. A relação entre autocontrole e centralização política está presente nas teses do trabalho do sociólogo alemão Norbert Elias (1994). Para ele (1994, v. 1) o autocontrole surge por meio de três condições históricas que podem ser descritas como “parteiras do processo civilizador”, que são as seguintes: centralização do poder e o Estado Moderno; a codificação do comportamento através de regras comuns compartilhadas pelas pessoas e pela adesão voluntária dos indivíduos à ordem civilizada. Elias (1994, v.2) afirma que há relações entre a formação do Estado Nacional e a constituição da consciência e do autocontrole individual. O autor defende a tese de que a sociedade se transforma e, ao longo de seu desenvolvimento, a sua força de coação externa se transforma em auto-coação. Para o autor, a formação do Estado, desde a Idade Média (arrecadação de impostos, exército e sistema jurídico), está relacionada com a formação da consciência e do autocontrole individual. Dessa forma, a regulamentação do Estado forjaria e desenvolveria as regras internas presentes na formação da subjetividade. 1 Homo faber – ser humano que trabalha 2 Homo Ludens – ser humano que se diverte 16 A racionalização e o avanço dos patamares da vergonha e da repugnância expressam uma diminuição do medo físico direto a outras pessoas e uma consolidação das ansiedades interiores automatizadas, das compulsões que o indivíduo agora exerce sobre si mesmo. Em ambas, são igualmente manifestadas a capacidade de previsão maior e mais diferenciada e a visão a longo prazo que se tornam necessárias a fim de que grupos de pessoas cada vez maiores possam prever sua existência social numa sociedade crescentemente diferenciada (ELIAS, 1994, p. 243). Há, portanto, um movimento rumo ao autocontrole que é denominado por Elias de “processo civilizador”. Esse processo impõe aos indivíduos o aumento das atividades, desencadeando uma maior dependência social e tornando a rede de relações sociais mais complexas. Para Elias, é no momento de transição da Idade Média para o Renascimento que se reforça o controle das pulsões, do autocontrole e das emoções, mas também de um novo conceito, que é o tempo. Para ele, não foi a intensificação do comércio e da moeda que marcou a passagem da Idade Média para a Moderna, mas a mudança no conceito de tempo. O novo conceito de tempo passa a regular as relações sociais. É o tempo e seu código temporal, com sua crescente importância que passa a regular as relações sociais, demarcando rotinas e atividades e que, segundo o autor, propicia o desenvolvimento social. Os dias da semana se repetem, os dias de trabalho são intercalados com folgas permitindo aos indivíduos se organizarem em função do tempo e oferecendo maior previsibilidade do próprio cotidiano. Uma das características que tornam muito clara essa conexão entre o tamanho e a pressão interna à rede de interdependência, por um lado, e à constituição psicológica do indivíduo, por outro, é o que chamamos de “ritmo” de nosso tempo. Esse “ritmo” nada mais é que uma manifestação do grande número de cadeias entrelaçadas de interdependência, abrangendo todas as funções sociais que os indivíduos têm que desempenhar, e da pressão competitiva que satura essa rede densamente povoada e que afeta, direta ou indiretamente, cada ato isolado da pessoa (ELIAS, 1994, v. 2, p. 207). Vê-se, portanto, a importância antropológica da transmissão dos saberes e da cultura. Seja através do mito, dos jogos ou das horas de conversa informal perto do fogo, a transmissão dos conhecimentos acumulados é o que nos torna plenamente humanos e nos define. Os estudos 17 antropológicos aqui expostos deixam claro que se a educação pode nos tornar humanos tem capacidade também de nos controlar. Se a humanidade é uma construção social, que se efetiva pela educação, domina-la significa controlar o poder. Assim, por um lado a educação é indispensável como função social e fator de humanização, mas por outro pode servir de instrumento de manipulação social. Essa dimensão instrumental da educação é que a separa da sua suposta neutralidade. Se a educação é indispensável à humanização e faz parte integrante da história da humanidade, também se compreende sua capacidade de forjar a subjetividade e o autocontrole. 1.1 Educação e socialização Se para a antropologia a educação acompanha a história da humanidade e está presente em todos os momentos, sabe-se também que ela se apresentou de várias formas até nossos dias. Presente desde os primórdios da humanidade, a cada momento histórico a educação se revestiu de características próprias. Partindo da hipótese de que o indivíduo só se humaniza pelo processo de transmissão do conhecimento, é importante que se faça uma análise histórica da educação como instituição. Quando se fala em história da educação logo se pensa no modelo de educação grega. Foi na Grécia do período clássico que a história presenciou, pela primeira vez, a discussão sobre a importância e o sentido da educação. Os gregos não formavam no período clássico uma unidade política e cultural. As duas principais cidades-Estado tinham concepções culturais e educativas diferenciadas e específicas. Foram os filósofos atenienses, especialmente Platão, que deram importância sem precedente à educação e à criança, como fonte de compreensão da degradação social e política de seu tempo. Percebe-se nos escritos de Platão a relação entre as “qualidades de uma pólis e a dos indivíduos que a compõem” 18 (KOHAN, 2003, p. 27). Para Platão, a regeneração da pólis dependeria da educação. Fazia-se necessário um projeto educativo que forjaria o sujeito ideal para a composição de uma sociedade justa. Para ele: (...) a infância é um degrau fundador na vida humana, a base sobre a qual se constituirá o resto. Como veremos, a educação da infância tem projeções políticas: uma boa educação garante um cidadão prudente. (...) É certo que há naturezas mais dispostas que outras para a virtude. Mas também é verdade que uma boa educação pode corrigir uma má natureza e que uma educação inadequada faz estragos nas melhores naturezas (KOHAN, 2003, p. 39-40). Neste trecho é nítida a ideia de educação como função política, e de possibilidade de construção da sociedade que se deseja pela formação da criança. Platão foi o primeiro pensador a conceber termos como, por exemplo, néos (jovem), néotes (juventude), entre outros, para designar um período da vida ainda não concebido historicamente. Sua preocupação política se expressa na formação do homem e na concepção, ainda moderna, de inferioridade da infância. A criança como matéria prima social é, ao mesmo tempo, desvalorizada de sua humanidade, sendo, segundo a concepção platônica, um humano em potencial. Ela está, naquele momento, em um estágio inferior, “é o tempo da incapacidade, das limitações no saber, da falta de experiência e a imagem da ausência do saber, do tempo e da vida” (KOHAN, 2003, p. 45). O seu oposto é o homem adulto, cujas características são, entre outras, a racionalidade, o destemor e o equilíbrio. Percebe-se que a preocupação não é com as crianças mas com o futuro adulto e suas relações e obrigações com a pólis. Educa-se para politizar os novos, para fazê-los participantes de uma pólis que se define, previamente, para eles. As relações entre política e educação são carnais: educa-se a serviço de uma política a um só tempo em que a ação política persegue, ela mesma, fins educativos. Por isso a educação é tão decisiva para Platão, porque é sua melhor ferramenta para alcançar a pólis sonhada (KOHAN, 2003, p. 59). 19 Os textos demonstram claramente que se a educação é uma característica humana e seu uso político pode ser observado durante toda a história. Mesmo não tendo sido adotado em Atenas, o projeto educacional de Platão, suas premissas sobre a inferioridade da criança e relação entre educação e política foram acolhidas e sempre estiveram presentes. A Grécia clássica apresenta a educação com características políticas e econômicas de seu tempo. Em Atenas o crescimento da importância do comércio e, conseqüêntemente, sua posição de liderança no cenário político grego, deu características importantes e únicas ao seu modelo de educação na antiguidade. Da sua primeira grande formulação até nossos dias houve mudanças substanciais, mas seu aspecto político sempre esteve presente. Para compreendermos essa transformação da importância da escola como locus ideal da aquisição da cidadania, é necessário que façamos uma retrospectiva histórica buscando sua origem. A princípio podemos encontrar o conceito na Pólis grega, mas quando pensamos na sua concepção moderna, devemos buscar sua gênese na gestação da sociedade industrial burguesa do século XVII e XVIII, à qual está relacionada ao surgimento da vida na cidade em contraste com o ruralismo do período medieval. A ascensão da burguesia representou a tomada do poder político e com ele uma nova proposta de sociedade. Com as teorias de John Locke, o Estado de direito se opõe ao poder despótico e se estabelece como um poder político teoricamente neutro, que deve velar para impedir os conflitos sociais e garantir a propriedade como um direito natural. Na teoria política liberal de Locke, ao contrário do absolutismo hobbesiano3, o Estado não tem autoridade para governar como deseja e os indivíduos renunciam apenas ao seu direito de poder executivo, mas só o consentimento legitima o poder. Ao contrário da submissão e renúncia total dos direitos, pressupostos básicos da teoria do Estado absoluto de Hobbes, o consentimento que Locke propõe não confere poderes ilimitados a alguém, que para 3 Cujas teses pressupõem a necessidade de um governo forte, centralizado e autoritário. 20 exercê-lo precisa seguir certas regras e apoiar-se na comunidade. O contrato social que estabelece direitos e deveres aos cidadãos e ao governante permite a rebelião como forma legítima de participação política. Portanto, a base da teoria de Locke (2002) e do Estado liberal é a defesa da legitimidade do governo somente pelo consentimento dos cidadãos. “Constituir o legislativo é o primeiro ato fundamental da sociedade, princípio da continuação da união de todos sob a direção de pessoas escolhidas e vínculos das leis elaboradas por estas, pelo consentimento e escolha do povo” (LOCKE, 2002, p. 145). Vê-se que, segundo Locke, o parlamento é o locus do povo, que representa a participação direita dos cidadãos. A partir dessa concepção, abre-se o espaço para o surgimento da figura do cidadão. O novo contrato social que pressupõe o consentimento como fator de legitimação não pode se firmar numa sociedade de súditos e analfabetos. A passagem do súdito ao cidadão implica a alfabetização. Ler e escrever é a condição básica para o novo homem-cidadão, que pelo consentimento outorga poderes e legitima a ação dos governantes. “Assim, creio que uma forma de compreender a cidadania é ver como ela se desenvolve juntamente com o capitalismo, pois estará também vinculada a visão da classe que a instaurou: a classe burguesa” (COVRE, 2002, p. 21). Essa nova concepção política implica, como já foi dito, uma nova concepção de sociedade o que pode ser observada no discurso dos iluministas. Rousseau (2004) vai pensar num novo homem, que seja livre, feliz e que respeite a liberdade dos outros, conciliando interesses particulares e interesse geral. “Formar o cidadão não é tarefa para um dia, para contar com eles quando homens é preciso instruí-los ainda crianças” (ROUSSEAU, 2004, p. 300). Portanto, a formação desse homem novo, forjado para viver numa nova sociedade, de “liberdade, igualdade e fraternidade”, passava pelo projeto de uma escola nova e de uma pedagogia que transformaria os indivíduos em cidadãos. Tarefa que os pensadores iluministas expressaram de forma brilhante na sua obra síntese a Enciclopédia, editada em 1751. Essa obra retrata a confiança no progresso e o entusiasmo dos intelectuais franceses na possibilidade de aperfeiçoamento do gênero humano, do 21 surgimento de uma nova sociedade, opondo-se de forma radical à ordem escolástica e aos privilégios da nobreza e do clero. Propunha mudanças radicais nas instituições, como forma de reformar a sociedade e o destino dos homens. Imbuídos pela atmosfera filosófica do período, os enciclopedistas comparam Rousseau a Hobbes, para chegar à conclusão que ‘tanto um como outro exageraram’. A Enciclopédia preconiza um equilíbrio entre a bondade e a maldade do homem, já que a espécie humana viveria entre felicidade e desgraça, em perpétua vicissitude, cercada de limites que não pode transpor. Tomando a vontade humana com um dos atributos que o singulariza, o homem é assim definido por Diderot: ‘ser que sente, reflete, pensa, que passeia livremente na superfície da terra, que parece ser superior a todos os outros animais que domina, que vive em sociedade, que inventou as ciências e as artes, que tem uma bondade e uma maldade própria, que a si mesmo se deu mestres, que fez leis para si’ (BOTO, 1996, p. 42). Percebe-se, na citação, a definição do conceito de natureza humana feita por Diderot e a importância política do projeto de educação dos enciclopedistas. O tom profético da idéia de reformar o homem para reformar a sociedade é intensificado a partir do século XVIII. A idéia de educação passa a ser acompanhada do tema de engrandecimento da nação e, nesse contexto, como uma questão de Estado. Como vemos, educação como obrigação estatal é um debate contemporâneo, no entanto, tem sua gênese no movimento iluminista. A instrução obrigatória constitui uma possibilidade única de fazer que todas as crianças, seja qual for sua origem, vivam do mesmo modo e, nesse sentido, formem uma comunidade ainda que por alguns anos — com a condição de que as distinções de classe e de fortuna não se prolonguem mais oficialmente no interior do colégio, como era o caso do século XVII (...) (DIDEROT, apud BOTO, 1996, p.52). A educação para todos, agenciada pelo Estado, é o pressuposto da utopia da igualdade. A eliminação do que era considerado no Antigo Regime, pelos iluministas, um modelo arcaico de privilégios e obscurantismo e a criação da nova sociedade define-se no projeto de uma nova escola. Uma proposta de escola laica, gratuita, obrigatória para ambos os sexos e pública passa a ganhar força durante 22 a Revolução Francesa. Influenciados pela idéias da Enciclopédia, os revolucionários radicalizaram o tema da educação exaltando-a como forma de fortalecer o espírito público e a unidade nacional. “Os discursos de Robespierre a respeito da necessidade do culto ao Ser Supremo como estratégia de sacralidade patriótica acenavam com freqüência para o corolário de uma pedagogia cívica a modelar os futuros cidadãos republicanos. O homem novo deveria ser, pois, educado pela pátria e para a nação (...)” (BOTO, 1996, p. 100). Dessa maneira, percebe-se que o modelo pedagógico ocidental foi construído alicerçado na crença de que a racionalização, a ciência e a instrução assegurariam a liberdade da consciência e a felicidade. Se por um lado, no contexto da luta revolucionária, a educação era o trunfo da burguesia contra os privilégios da nobreza, contra a ignorância e os mitos que dominavam o imaginário popular e legitimavam o poder absoluto, por outro expressava a crença de que uma nova era chegara, e com ela um novo homem. Somente a educação, por meio da difusão do conhecimento, teria o poder de emancipar o homem e formá-lo moralmente para vida social. As propostas oriundas da revolução preconizam a Educação como uma questão nacional, portanto, obrigação do Estado, direito do cidadão e imprescindível a todas as crianças e as conseqüentes punições para os pais que a negligenciasse. Essas propostas foram longamente debatidas no processo revolucionário francês, uma vez que as idéias pedagógicas centradas na igualdade essencial entre os homens expressavam um projeto progressista e radical para a época. Em outros termos, a burguesia ao criar os sistemas nacionais de ensino definiu a escolarização obrigatória, gratuita e laica como uma das condições para a consolidação da ordem democrática. Assim, a escola moderna foi elaborada como utopia de libertação e igualdade, expressando o progresso da civilização e da sociedade. A própria história dos colégios tem sempre um sentido evolucionista. 23 No século XIII, os colégios eram asilos para estudantes pobres, fundados por doadores. Os bolsistas aí viviam em comunidades, segundo estatutos que inspiravam em regras monásticas. Não se ensinava nos colégios. A partir do século XV, essas pequenas comunidades democráticas tornaram-se institutos de ensino, em que uma população numerosa (e não mais apenas os bolsistas da fundação, entre os quais figuravam alguns administradores e professores) foi submetida a uma hierarquia autoritária e passou a ser ensinada no local (ARIÈS, 1981, p. 169). Como a evolução da instituição escolar está ligada a uma evolução paralela do sentimento das idades, da infância e da família, como se observou nos discursos dos revolucionários da França, desde o século XVIII tornou-se o lugar ideal para a infância. As crianças são vistas como “seres destinados à escola” (GUIRALDELLI, 1996, p.20). Essas duas instituições, família e escola, cobrem todo o período da infância-adolescência e são destinados à formação social, produzindo adultos com comportamentos socialmente aceitos. Nesse período, em quase todos os países ocidentais sucederam-se reformas no ensino buscando propiciar um ingresso cada vez maior de crianças nas escolas. A escola, já na metade do século XVIII, deixou de ser privilégio de uma elite para tornar-se uma instituição de caráter popular e aberta a todas as camadas sociais. Essa nova escola, organizada em colégios, surge atrelada ao capitalismo, com suas diretrizes ditadas pela civilização industrial e reproduz a ideologia da classe dominante, vinculando-se diretamente à preparação das classes populares ao sistema fabril. Ela foi paulatinamente ocupando um lugar cada vez mais orgânico e funcional. Como revolução política, a Modernidade gira em torno do nascimento do Estado moderno, que é um Estado centralizado, controlado pelo soberano em todas as suas funções (...). Como revolução social, promove a formação e afirmação de uma nova classe: a burguesia, que nasce nas cidades e promove o novo processo econômico (capitalista), assim como delineia uma nova concepção do mundo (laico e racionalista) e novas relações de poder. (...) Tudo isso implica e produz também uma revolução na educação e na pedagogia. (...) Mas mudam-se também os meios educativos: toda a sociedade se anima de locais formativos, além da família e da igreja, como ainda da oficina; também o exército, também a escola (...) (CAMBI, 1999, p. 197-198). 24 Concretamente, no momento em que todas as crianças são aglutinadas em colégios, a classe dominante tem a possibilidade de expandir sua ideologia da ordem e da produtividade. É esse papel de reprodutor da ideologia dominante que a educação será alvo de crítica e de disputa. Segundo os teóricos da luta de classes, a luta política passa efetivamente pela conquista ideológica das classes populares e, dessa forma, a escola torna-se palco dessa batalha. Além do campo da disputa política, toda a crítica à escola se dará em termos pedagógicos, ou seja, como e o que será ensinado nas escolas. A classe liberal burguesa busca manter sua hegemonia por meio da modernizações pedagógicas, articulando e atrelando o interesse dos dominados com os seus. Desde o século XVIII, quando acontece a escolarização em massa, a educação tem assumido uma variedade enorme de formas: religiosa, tradicional, nacionalista, liberal, centrada-na-criança, socialista, comportamentalista, fascista, construtivista, pedagogia crítica, etc. Um exemplo claro desse processo é o movimento da Escola Nova que, a rigor, teve um caráter progressista em relação à escola tradicional, mas que pode ser visto também como um rearranjo burguês na sua estratégia de manutenção e controle hegemônico da ideologia dominante. Todas essas reformas educacionais baseavam-se em práticas e pressupostos típicos da modernidade, fundamentado na crença da escola como instrumento transmissor de conhecimentos e verdades. Por outro lado, a luta política dos dominados tem o processo inverso, pois busca desarticular os interesses dominantes e rearticulá-los em torno dos seus interesses. Nesses termos, a escola pode ser compreendida no quadro da luta de classes, pois enquanto aparelho ideológico, é um instrumento da burguesia na luta ideológica contra o proletariado (SAVIANI, 2000, p. 28). Portanto, no confronto político entre esquerda e direita, ambos acreditavam no modelo de escola pública, gratuita, leiga e obrigatória como expressão do avanço civilizatório. A crítica sempre ficava restrita ao campo pedagógico e ideológico. Em nenhum momento a escola, na sua organização física e disciplinar havia sido alvo dessa batalha. Toda a dominação política envolvida em sua organização burocrática e sua coerção moral, como forma de controle e conformação social, se dilui no seu suposto 25 cientificismo e na sua racionalização organizacional, cujos procedimentos se assemelham a uma linha de produção. Isso fica evidente na afirmação de Saviani (2000, p. 88) de que “a importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É realizando-se na especificidade de que lhe é própria que a educação cumpre a sua função política”. Se pensarmos em países que passaram por revoluções de caráter socialista, contrária à ordem capitalista, veremos que a escola prosseguiu organizada da mesma maneira. A mudança se deu prioritariamente no campo ideológico. Observando seu modelo escolar vê-se que sua organização, suas práticas, seus métodos, suas técnicas e suas regras são idênticas às dos países capitalistas. É pela aprendizagem de alguns saberes contidos na inculcação maciça da ideologia da classe dominante que, em grande parte, são reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, ou seja, as relações entre explorados e exploradores. Os mecanismos que produzem esse resultado vital para o regime capitalista são naturalmente cobertos e dissimulados por outra ideologia da Escola universalmente aceita, que é uma das essenciais da ideologia burguesa dominante: uma ideologia que representa a Escola como neutra, desprovida de ideologia (uma vez que é leiga), onde os professores, respeitosos da ‘consciência’ e da ‘liberdade’ das crianças que lhes são confiadas (...) pelos ‘pais’ (...), conduzem-nas à liberdade, à moralidade, à responsabilidade adulta pelo seu exemplo, conhecimentos, literatura e virtudes “libertárias”(ALTHUSSER, 2001, p. 80). Como era manifesto a função política da educação, a crítica ao seu papel sempre se localizou na sua atuação como aparelho reprodutor da ideologia dominante. A ideologia foi, nesse momento, a grande vilã da educação e o alvo preferencial das disputas entre as teorias de esquerda e de direita. Destarte, o poder ideológico da escola era visível e identificado como uma extensão do Estado. Para a esquerda, a derrocada do controle burguês dependia do assalto ao Estado e a destruição de seus aparelhos repressivos, como o exército e a polícia, e ideológicos, como a religião e a escola. No Brasil várias teorias educacionais eram críticas com relação ao capitalismo e apelavam à conscientização. Nesse aspecto, Paulo Freire foi nosso representante mais importante. 26 (...) Esta nos parecia uma das grandes características de nossa educação. A de vir enfatizando cada vez mais em nós posições ingênuas, que nos deixam sempre na periferia de tudo o que tratamos. Pouco ou quase nada, que nos leve a posições mais indagadoras, mais inquietas, mais criadoras. Tudo ou quase tudo nos levando, desgraçadamente, pelo contrário, à passividade, ao conhecimento memorizado apenas, que não exigindo de nós elaboração ou reelaboração, nos deixa em posição de inautêntica sabedoria (FREIRE, 1989, p. 95-96). Em suma, o poder sempre esteve em lugares de fácil visibilidade e se dava de forma repressiva ou ideológica, tendo a escola um papel importante na manutenção da ordem capitalista. É a classe dominante que definiu quais os saberes dignos de serem transmitidos e apreendidos, eliminando outros que, segundo decisão arbitrária, são indignos. “toda a ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, dum arbítrio cultural” (BOURDIEU, 1975, p. 24). 1.2 Educação e disciplina Se a educação ou a escolarização sempre foi vista como neutra e apenas o conhecimento transmitido era o foco da discussão, podemos perceber uma mudança no foco dessa discussão com o surgimento das teorias do filósofo francês Michel Foucault. Para ele, mais importante que servir como veículo para a difusão da ideologia da classe liberal burguesa, as práticas e a organização escolar servem como forma de disciplinar e normalizar o comportamento dos sujeitos e, consequentemente, de controle social. Isso quer dizer que sua força não está apenas na reprodução da ideologia dominante, mas principalmente no controle do comportamento dos indivíduos. Para Foucault (1999), o Estado moderno já nasce com o desejo de governar e controlar toda a sociedade, ou seja, o Estado moderno tem que resolver o problema da governabilidade. 27 (...) mas ao mesmo tempo a exerce segundo um novo itinerário que é o da “microfísica do poder”, ou seja: um poder que age em muitos espaços do social, de forma capilar, micrológica justamente, e que penetra nas consciências através de corpos, através do controle minucioso dos gestos, posições, atitudes físicas, estabelecendo a ordem de uma disciplina, tornando, assim, os sujeitos dóceis, possuídos e guiados pelas finalidades do poder. O indivíduo é controlado a partir do corpo, mas para tornar dócil, também, e sobretudo, a sua consciência (CAMBI, 1999, p. 202). Foucault não nega à escola o caráter de retransmissora da ideologia da classe dominante, mas vai além, mostra que essa é a face visível do seu poder, visto que sua real força é a de modeladora dos desejos e do comportamento dos indivíduos, localizando-se ao nível disciplinar e não teórico. Por disciplina Foucault (1999) entende a maneira como se exerce o poder nas sociedades européias do século XVII em diante. Por esse conceito, o autor procura compreender o funcionamento das instituições modernas, entre elas o aparelho escolar. Para ela, a função mais importante desses aparelhos é fornecer, para o sistema, adultos domesticados, a fim de que suas funções produtivas sejam executadas sem resistências ou desvios. Desse modo, a disciplina quebra a resistência dos indivíduos ao trabalho desumanizante do capitalismo, criando o indivíduo útil e dócil, cujo tempo de vida se transformou em força de trabalho. O indivíduo moralmente apto a viver no sistema capitalista, é aquele que se regule, em primeiro lugar pelo hábito criado na mecânica dos gestos e condutas, em segundo lugar, pela culpa, pelo sentimento de desvio moral com relação ao social, em terceiro lugar, pelo julgamento de seus pares e iguais. O indivíduo assim formado tende a reagir, diante de qualquer reação afetiva ou comportamental discordante do seu meio, com uma extrema sensação de desconforto e aflição (COSTA, 1999, p. 200). É possível abstrair que a sociedade ocidental, da era da revolução industrial, não manteria sua ordem apenas fundamentando-se na lei e na repressão. Para isso, mais importante que a lei, na manutenção da ordem social, é o poder da norma. Assim, no conceito foucaultiano, a norma é a maior responsável pela criação dos padrões de comportamento social, pois se estende por todo o corpo social 28 através de um novo saber que se expressa no surgimento das ciências-humanas, tais como a psiquiatria, a psicologia, a sociologia, a pedagogia, entre outras. Os indivíduos passam a ser controlados durante toda a sua existência por saberes que determinam o que é certo e o que é errado. Como se sabe, a ordem da lei tenta obstruir o comportamento indesejável se impondo pela repressão, pela negação e por um poder essencialmente punitivo e coercitivo. Seguindo os passos de Foucault (1999), vê-se que a norma, ao contrário desse efeito negativo e visível, age à margem da lei, empregando uma tecnologia de sujeição própria. Visa, prioritariamente, à prevenção pela regulação, pelo controle, incentivando, majorando, extraindo e diversificando comportamentos e sentimentos até então imperceptíveis, produzindo novos comportamentos e características sentimentais e sociais. Segundo Foucault (1999, p. 88) “esses mecanismos (de controle) se formaram obscuramente durante o século XVIII para responder a certos números de necessidades e, assumindo cada vez maior importância, se estenderam finalmente por toda a sociedade e se impuseram a uma prática penal”. Os mecanismos da norma invadiram as instituições, tais como a família, o exército, a prisão, o hospital e, finalmente, a escola, que a implementou socialmente. Para Foucault (1999) a escola se transforma, na modernidade, num importante aparelho de controle social e normalização. Mais do que reprodutor da ideologia da classe dominante, o poder político da escola se encontra na sua capacidade de transformar os indivíduos em adultos dóceis, preparados para suportarem, resignados, todas as adversidades do sistema capitalista. São necessárias duas coisas para que se forme a sociedade industrial. Por um lado é preciso que o tempo dos homens seja colocado no mercado de trabalho, oferecido aos que o querem comprar, e comprá-lo em troca de um salário; e é preciso, por outro lado, que esse tempo dos homens seja transformado em tempo de trabalho (FOUCAULT, 1999, p. 116). Portanto, como forma de preparar o indivíduo apto a viver no sistema capitalista e industrial, a escola tem um papel fundamental. Nesse sentido, uma de suas funções, mas talvez a 29 primordial é a normalizadora que tem como projeto a organização e o controle do tempo dos indivíduos nela inseridos, introjetando-lhes um relógio moral. A escola se encarrega da quase totalidade do tempo de vida das pessoas. Todo o tempo é controlado por meio de chamadas, sinais, verificações de presenças, sendo punida por atrasos e recompensadas pela pontualidade. Antes de colocar o seu tempo à disposição do mercado de trabalho, as pessoas o colocam à disposição da escola que, pelas suas normas e disciplinas as transformará em úteis e dóceis ao sistema. A segunda função da instituição escolar, segundo Foucault (1999), é controlar o corpo dos indivíduos. Mas como controlar o corpo? Se o controle do tempo faz com que o tempo dos homens e da sua vida se transforme em força de trabalho, a escola tem que fazer com que o corpo dos homens se torne força de trabalho. Ou seja, é necessário que os indivíduos não aceitem apenas colocar seu tempo à disposição do trabalho, mas também que adquiram aptidões e qualidades. O corpo dos indivíduos deve ser formado, qualificado como corpo capaz de trabalhar. A terceira função da escola é o da micropenalidade, ou seja, o poder que se tem de punir e recompensar permanentemente os indivíduos nela inseridos. No seu interior funciona um micro poder judiciário onde, de forma ininterrupta, os indivíduos são julgados, avaliados, classificados e comparados. O sistema escolar é também inteiramente baseado em uma espécie de poder judiciário. A todo o momento se pune, se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior. Poder Judiciário que, por conseguinte, duplica de maneira bastante arbitrária, se não se considera sua função geral, o modelo do poder judiciário. Por que para ensinar alguma coisa a alguém, se deve punir e recompensar? (FOUCAULT, 1999, p. 121). No sistema escolar evidencia-se a sua função de controladora dos padrões de comportamento, pois nela o respeito pela disciplina e a ordem é mais valorizado do que a criatividade, a liberdade e o popular senso crítico. O indivíduo escolarizado é permanentemente examinado uma vez 30 que se encontra vigiado por todos os lados. No seu interior todo comportamento divergente é rapidamente detectado e a vigilância passa a ser mais severa. Distribuídos em carteiras e fileiras, cada um possui seu espaço próprio, onde pode ser localizado, produzindo uma visibilidade que traz a sensação da vigilância constante e rotineira, prolongando seus efeitos de submissão para fora do espaço escolar. Toda essa normalização disciplinar produz o adulto útil e dócil, transformando o seu tempo e sua vida em força produtiva. Assim, a autodisciplina é a finalidade da escola moderna, cujo modelo institucional é imprescindível na sociedade capitalista. Educar é sujeitar os alunos a poderosas técnicas hierárquicas por meio de vigilância, exame e avaliação. De forma crescente, a pedagogia tem enfatizado o autodisciplinamento, pela qual os estudantes devem conservar a si mesmos e aos outros sobre controle. Segundo Foucault, as técnicas/práticas que induzem a esse comportamento podem ser chamadas de tecnologias do eu. Essas tecnologias agem sobre o corpo: olhos, mão, boca, movimento. Por exemplo, em muitas salas de aula, os estudantes depressa aprendem a levantar as mãos antes de falar em classe, a conservar seus olhos sobre o seu trabalho durante um teste, a conservar seus olhos no professor, a dar a aparência de estar escutando quando o professor está dando instruções, a permanecer em suas carteiras. Podemos dizer que as pedagogias produzem regimes corporais políticos particulares (SILVA, 1998, p. 14). Dessa forma, a reflexão de Foucault sobre o poder político da escola desloca-se da preocupação ideológica para as relações de poder diluídas na sua organização e no funcionamento do seu interior. Essas relações de poder são imanentes à educação, surgem não apenas nos discursos, mas, sutilmente, em toda a prática educativa. Toda convicção no papel libertador da escola se esvai quando se percebe que há um poder oculto e dissimulado. Enquanto discutia-se o papel ideológico da escola, o poder de controle e de submissão estava onde jamais havia sido procurado: nas relações mais simples e, aparentemente, banais. Professores que julgavam trabalhar conteúdos extremamente críticos e libertários se depararam utilizando práticas educacionais que anulavam toda a capacidade individual de reação e, ao contrário, de estar formando o cidadão crítico e participativo, cauterizavam a liberdade individual, produzindo sujeitos governáveis, dóceis e manipuláveis. 31 Enfim, a disputa político-ideológica que se travou em torno da escola4, como possibilidade de mudança social, nos parece agora, pela teoria foucaultiana, constituída de uma miopia crônica. Enquanto preocupava-se tão somente com o discurso pedagógico, não se conseguia avaliar a extensão política das práticas pedagógicas. Mesmo com o discurso de formar cidadãos críticos e emancipados, colaborava-se na vigilância, na normalização e no exame, a que todos estavam submetidos. O moderno modelo escolar que se mostrava expressão e reflexo do progresso da ciência pedagógica revela-se eivado de táticas de controle e dominação. Ao contrário da educação proporcionar a liberdade, pois deveria promover a transformação dos indivíduos em seres mais racionais, livrando-os dos mitos e crendices, ela lhes toma a liberdade e os transforma em sujeitos dóceis e obedientes, sem capacidade de reação ou indignação, por estratégias que estavam completamente ocultas. 1.3 Do surgimento do social ao “Tribunal de Menores” Se a educação teve, historicamente, uma forte vertente de controle social, ela esteve a partir do século XVIII acompanhada de uma série de intervenções sociais, por intermédio da nascente ciências humanas, que se definem na esfera do social. A escola moderna estará inserida, na modernidade, na chamada sociedade disciplinar cuja organização se dará em torno da questão social. Todo o investimento político na questão social se deu pelo fato da evidência de que apenas a coerção econômica não resolveria os problemas da submissão operária. Se o surgimento da sociedade industrial é recente, o social também é uma preocupação bastante contemporânea da história ocidental que pode ser caracterizado como: 4 É só lembrar-se de toda a repressão sofrida por professores durante o período da ditadura militar de 1964. 32 O social tem por referência um “setor particular” em que se classificam problemas na verdade bastante diversos, casos especiais, instituições específicas, todo um pessoal qualificado (Assistentes “sociais”, trabalhadores, “sociais”). Fala-se de chagas “sociais”, do alcoolismo à droga, de programas sociais, da reprodução ao controle da natalidade; de desadaptações ou adaptações sociais (do pré-delinqüente, do indivíduo com distúrbios do caráter ou do deficiente, até os diversos tipos de promoção) (DELEUZE, apud GADELHA, 1998, p. 90). Se social é um conceito bastante amplo, é por ele que podemos compreender e buscar a gênese das grandes políticas públicas da história do ocidente. No século XVIII emerge uma série de novos saberes e conhecimentos que desencadeiam estratégias de transformações dos sentimentos, dos costumes e da vida cotidiana. Surge, nesse momento, a família burguesa, cuja conduta teria se iniciado com os nobres e, logo após, a burguesia e, finalmente, alastrando-se para todas as classes sociais. A formação do sentimento burguês e da estruturação da família burguesa não foi uma evolução natural do homem, mas parte de um movimento de reforma moral pelo qual passou o ocidente nesse período. Essas reformas morais são, paulatinamente, estatizadas e, a partir daí implementadas, cuja estratégia Foucault (1981) chama de biopolítica. Para ele, em cada época histórica vigoram determinados dispositivos de poder que se estabelecem em determinadas formas de saber (poder/saber). Filantropos, educadores, economistas, médicos, psicólogos e assistentes sociais, entre outros, atuaram por uma sintonia do saber dominante a fim de justificar e legitimar uma nova moral social. A nova maneira de se ver a sociedade e de atuar sobre ela foi descrita por Foucault como o surgimento de novos regimes de verdade. Para ele, cada época histórica tem seu regime de verdade dominante, que expressa em discursos, normas, regras, senso comum, etc. Para Bujes (2002, p. 25) “em que pesem todas as fragilidades dos significados, a sociedade busca constantemente estratégias e táticas para fixar certos sentidos, através das coerções dos discursos tomados como ‘verdadeiros’”. Ou seja, as concepções de mundo, de infância, de crimes, do comportamento, são naturalizadas e dilui-se sua fabricação histórica. 33 “A infância torna-se objeto de olhar do Estado e de um olhar científico, moral, religioso e até familiar” (BUJES, 2002, p. 38). Nessa perspectiva a intervenção social, efetuada por intermédio das biopolíticas, se estruturam sobre as bases dos regimes de verdade. (...) levando-se em consideração o que ele chama de bio-política: essa proliferação das tecnologias políticas que irão investir sobre o corpo, a saúde, as formas de se alimentar e de morar, as condições de vida, o espaço completo da existência, a partir do século XVIII, nos países europeus. Técnicas que, no seu ponto de partida, encontram seu pólo de unificação naquilo que então se chamava polícia: não no sentido restritamente repressivo que lhe atribuímos atualmente, mas segundo uma acepção mais ampla englobando todos os métodos de desenvolvimento da qualidade da população e da potência da nação (DONZELOT, 1986, p. 12). Tem-se aí uma descrição perfeita do que seriam as estratégias de biopolítica que tiveram sua estruturação no século XVIII. Em razão de sua função social, os grandes alvos dessa estratégia foram a criança e a reorganização da família para a preservação da infância. Como foi visto, no capítulo anterior, a industrialização desorganizou a família de seu modelo tradicional e trouxe graves problemas à sobrevivência dos indivíduos. Os mais afetados por esses problemas eram os mais frágeis e as crianças. Além disso, a miséria e a perda de seus valores quebraram e fragilizaram os vínculos familiares e provocaram a desagregação familiar. O abandono das crianças, a miséria e a promiscuidade sexual se transformaram em regra geral. Assim, na descrição de Foucault (1981) um dos fenômenos primordiais da sociedade industrial foi a tomada de poder sobre o homem. Ou seja, uma série de conhecimentos e saberes, expressos em conhecimentos científicos, políticos e econômicos são implementados pelos Estados no final do século XVIII e definidos no século XIX. As biopolíticas de planejamento, específicas para cada país, têm por finalidade intervir na vida e na população, modificá-las e impor-lhes regras. Em razão da intensa pauperização, a população passou a representar um problema político que precisava ser equacionado. A biopolítica é definida por Foucault (1981) como a maneira como se tentou racionalizar 34 os problemas propostos à prática governamental a um conjunto de seres vivos, constituídos em população, tais como saúde, higiene, natalidade e raças. Surgem, nesse período, mecanismos que fazem funcionar a sociedade industrial. São mecanismos muito mais sutis e invisíveis do que os utilizados anteriormente (tais como a servidão e escravidão), pois são provenientes de novos conhecimentos e saberes que surgiram pelas incipientes ciências sociais e humanas. Para Donzelot (1986) surge nesse período, lastreado nos novos conhecimentos científicos, uma vasta literatura crítica voltada para os costumes educativos da época, principalmente as questões sobre os cuidados com as crianças, o abandono, a criação de filhos por nutrizes e amas de leite. Buscava-se reorganizar a confusa e caótica organização urbana, pelas políticas de saneamento, higiene e planejamento. Essas medidas foram aplicadas com certa violência, suscitando revoltas populares e resistências. A derrubada dos barracos, a numeração das casas, a determinação da iluminação noturna, a vacinação obrigatória e a abertura das avenidas são alguns exemplos dessa fúria higiênica. Os novos bulevares permitiam ao tráfico fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, de um extremo ao outro — um empreendimento quixotesco e virtualmente inimaginável, até então. Além disso, eles eliminariam as habitações miseráveis e abririam “espaços livres” em meio a camadas de escuridão e apertado congestionamento, até então. (...) Os bulevares representavam apenas uma parte do amplo sistema de planejamento urbano, que incluía mercados centrais, pontes, esgotos, fornecimentos de água, a Ópera e outros monumentos culturais, uma grande rede de parques (BERMAN, 2001, p. 146). O bota abaixo de forma autoritária remodelava as cidades e as modernizava, utilizando-se das inovações tecnológicas das novas linha de pensamento urbanístico que tinham por finalidade última a preservação da saúde e a higiene dos habitantes. As habitações populares construídas a partir desse momento em bairros operários traziam o novo modelo arquitetônico priorizado pelos engenheiros, com 35 vários compartimentos isolados, valorizando os espaços individuais, preservando a intimidade nos espaços fechados, formando um ambiente moral e higiênico. Os altos índices de mortalidade infantil causavam temor nas elites pelo desperdício das forças de trabalho que estavam ligados ao despreparo e à negligência das mães nos cuidados dos filhos. É importante observar que esse comportamento negligente, em relação aos cuidados das crianças, não estava restrito às famílias pobres, mas era um comportamento comum. Na extremidade mais pobre do corpo social, o que é denunciado é a irracionalidade da administração dos hospícios, o pouco benefício que o Estado retira da criação de uma população que excepcionalmente chega a uma idade onde pode reembolsar os gastos que provocou. Trata-se neste caso, da ausência de uma economia social. Na extremidade mais rica, a crítica se dirige à organização do corpo com vistas a um uso estritamente perdulário, através do refinamento de procedimentos que fazem dele um puro princípio do prazer. Temos nesse caso a ausência de uma economia do corpo (DONZELOT, 1986, p. 18). Pode-se afirmar que havia uma ausência da economia do corpo em todas as classe sociais, mas a mais preocupante era com relação aos miseráveis. Com a vasta literatura científica produzida naquele momento, inicia-se uma série de críticas a esse comportamento, principalmente aos cuidados com as crianças. É importante frisar que, de forma diferenciada, esse questionamento inicia-se com os médicos e posteriormente juntam-se a eles os administradores. As críticas serão direcionadas ao questionamento dos costumes educativos, do comportamento da família e sua organização e aos cuidados com as crianças. Ou seja, o discurso para as elites não era o mesmo para as classes populares. Segundo Guirado (1986, p. 31) “nas classes burguesas é a Medicina a instituição que, a princípio se ocupa disto numa ampliação de seu âmbito de ação, reivindicando para si o controle sobre a sobrevivência física e psicológica das crianças”. Vê-se aí a consolidação do saber médico e sua aliança estratégica com a família. A intervenção médica transforma a família burguesa imprimindo-a uma face intimista e “berço da educação e do afeto e uma nova posição para a mulher” Guirado (1986, p. 31). 36 O que perturba as famílias são os filhos adulterinos, os menores rebeldes, as moças de má reputação, enfim, tudo o que pode prejudicar a honra familiar, sua reputação e sua posição. Em compensação, o que inquieta o Estado é o desperdício de forças vivas, são os indivíduos inutilizados ou inúteis. Então, entre esses dois tipos de objetivos há uma convergência momentânea sobre o princípio da concentração dos indesejáveis da família. Mas se, para as famílias, essa concentração é encarada como exclusão, alívio, para o Estado ela vale como interrupção das custosas práticas familiares, como ponto de partida de uma vontade de conservação e de utilização dos indivíduos (DONZELOT, 1986, p. 29). Essa vontade de conservação e de aproveitamento das forças úteis é geradora de uma série de intervenções corretivas que se abre sobre a vida familiar, através do saber médico/sanitário. Segundo Guirado (1986) esse saber médico avança gradativamente e se impões sobre o saber popular e empírico, definindo um novo estatuto e poder em que a mulher ocupara um novo espaço, o de executora das decisões do médico. A família vai, paulatinamente, fechando-se em torno de si mesma, promovendo uma estrutura de proteção contra o público, e evitando as influências negativas do antigo modelo educativo, tais como a criação em famílias substitutas, as pajens e a promiscuidade social. Uma nova ordem nas relações afetivas está sendo introduzida, recebendo a mulher o status de guardiã da moralidade e das relações sociais. Nas classes populares as estratégias são diferentes, pois segundo Donzelot (1986) é a administração pública que primeiro chega até elas. Prevenção é a palavra de ordem, sendo no início o isolamento (hospícios para crianças abandonadas), que passa a ser criticado pelos higienistas vai, paulatinamente, sendo substituído, por sugestão e acompanhamento dos próprios higienistas, por novas estratégias. Lastreadas no princípio da vigilância e do controle, essas novas táticas, que continuam tendo como foco a marginalidade como desvio social, atacam tudo que se considerava ameaça à ordem social e ao modelo de família burguesa, agindo por meio do controle dos perigosos hábitos do abandono, da prostituição, da desorganização familiar e da mãe desleixada. Surgem projetos de filantropia para 37 auxílio maternidade, que se materializarão no projeto legal de salário-família. A preparação do adulto útil e dócil ao sistema deveria se iniciar com a educação das crianças. É nesse momento que, nos países industrializados, se difundem as escolas laicas, públicas e obrigatórias, tendo como uma de suas finalidades a difusão de uma moral mais rígida, bombardeando para dentro das famílias, por intermédio da criança, as normas de bons hábitos, comportamentos sadios, higiênicos e disciplinados, introduzindo no lar a civilização dos costumes. Fica evidenciada, nessas propostas de vigilância e controle, a ênfase sobre a mulher por intermédio da criança e do abandono. Um feixe de saberes investe sobre a família, a mulher e a criança, com a intenção de modelar seu comportamento e impor normas e procedimentos através da “difusão de práticas de higiene e saúde que são características das formas de vida burguesas” (GUIRADO, 1986, p. 52). Há uma ligação orgânica entre o médico e a família que repercutirá na sua organização, da seguinte maneira: 1. o fechamento da família contra as influências negativas do antigo meio educativo, contra os métodos e os preconceitos dos serviçais, contra todos os efeitos das promiscuidades sociais; 2. a constituição de uma aliança privilegiada com a mãe, portadora de uma promoção da mulher por causa deste reconhecimento de sua utilidade educativa; 3. a utilização da família pelo médico contra as antigas estruturas de ensino, a disciplina religiosa, o hábito do internato (DONZELOT, 1986, p. 23/4). Percebe-se as linhas de poder que cruzam a superfície social e produzem campos de práticas de saberes. Foucault (2002, p. 18) crê que “essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos (...) uma espécie de pressão e como que um poder de coerção”. Portanto, esses discursos de verdade vão ganhando força e se adequando aos princípios econômicos e políticos que estão cada vez mais se justificando e racionalizando a partir de uma teoria das riquezas e das produções. Ou seja, esse discurso higienista de preservação da criança e remodelação da família baseado no princípio da vigilância vai ao encontro aos 38 novos fundamentos da economia. Há discursos que são excluídos e outros que são incitados pela vontade de verdade. Enfim, em escala muito mais ampla, é preciso reconhecer grandes planos no que poderíamos denominar a apropriação social dos discursos. Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo (FOUCAULT, 2002, p. 44). São introduzidas novas relações afetivas que modificam completamente a concepção da infância e lhe concedem uma nova maneira de agir. O papel dos pais vai ganhando novos padrões e direcionamento pelo discurso normalizador. Se antes o pai e a mãe ficavam todo o tempo longe do lar, serão incitados a estarem mais em casa, com papéis mais bem definidos e com a função de controlarem o processo de educação de seus filhos. Uma nova modalidade de família surgiria, da promoção do sentimento da família, que supera o pouco valor que lhe é atribuído na Idade Média. No período medieval a família se organizava por meio de uma relação sentimental ligada aos princípios de linhagem e, portanto, restrito à nobreza. Os novos saberes glorificam as famílias nucleares, formadas pelos seus membros próximos, pais e filhos, amparada por um novo sentimento. Segundo Ariès (1981), esse sentimento está muito ligado ao sentimento da infância. As preocupações com a honra, com a linhagem, com a integridade do patrimônio ou com a antigüidade do nome são paulatinamente afastadas e sendo substituídas pela preocupação exclusiva com a reunião inseparável dos pais e filhos. A família nuclear burguesa ganha os contornos que serão característicos dessa nova instituição na modernidade. Esse novo “sentimento em relação à infância” alterou de modo radical as instituições nas quais as crianças estarão inseridas. Na medida em que surgem as novas relações internas com a criança, transforma-se totalmente 39 a estrutura da família. A preocupação de isolar a criança do mundo dos adultos, pelo rigor moral, era uma constante na pedagogia dos educadores. Nesse conjunto de mudanças, os pais se preocupam em vigiar seus filhos mais de perto e não abandoná-los. Esse novo discurso, revaloriza as tarefas educativas, mudando a imagem da infância e transformando-se em centro das atenções familiares. Nesse contexto, o status da mãe recebe uma promoção, transformando-se em ponto de apoio das intervenções sanitárias. A família é isolada do espaço público intensificando sua segregação. Essa prática de isolamento representará as primeiras formas de atendimento da marginalidade que constituía uma ameaça à ordem social e, sobretudo, à ordem familiar burguesa. Controlar o abandono, a marginalidade e a vida fora do casamento através da segregação, visava depurar a sociedade de seus inconvenientes. No outro extremo, nas classes populares, surgem inúmeras associações filantrópicas e religiosas, que, baseando-se no conceito da vontade de conservação e nos saberes dominantes da época, assumem o objetivo de ajudá-las a moralizar o seu comportamento, convergindo seus esforços para a restauração da vida familiar. Essa iniciativa é tomada primeiramente pelas sociedades patronais e depois disseminada por inúmeras associações filantrópicas que negociam a ajuda material e financeira pela obrigatoriedade do casamento legítimo. Esse método de incentivo ao casamento mostra-se útil quando fortalece o lugar institucional das mulheres das classes menos favorecidas, fazendo-as recuar do mercado de trabalho e centrando-as na vida familiar. O árduo trabalho doméstico é o dote que deve ser pago pela mulher como substituição àquela antiga convenção matrimonial. A valorização do papel materno, apoiado pelo saber científico dos médicos, persuadindo as mulheres, tanto da classe alta como das camadas baixas, ao sentimento inato do amor materno, sendo que a maternidade, a educação da criança e os cuidados com o lar realizam uma vocação natural da boa mãe. A esposa-mãe é elevada ao papel central da família, com responsabilidade moral conferida pelo discurso médico, na clausura do lar. 40 Enclausurada em seu papel de mãe, a mulher não mais poderá evitá-lo sob pena de condenação moral. Foi essa, durante muito tempo, uma causa importante das dificuldades do trabalho feminino. A razão também do desprezo ou da piedade pelas mulheres que não tinham filhos, do opróbrio daqueles que não os queriam. Ao mesmo tempo em que exaltavam a grandeza e a nobreza dessas tarefas, condenavam-se todas as que não sabiam ou não podiam realizá-las à perfeição. Da responsabilidade à culpa, foi apenas um passo, rapidamente dado ao aparecimento da menor dificuldade infantil. (...) As mulheres mais realizadas em sua condição de mãe aceitaram com alegria carregar esse terrível fardo (BADINTER, 1985, p. 238). Esse movimento é acompanhado do surgimento, a partir do final do século XIX, de uma série de profissões ligadas ao trabalho social, tais como a assistente social, os educadores especializados e a psiquiatria. Para Bauman (1997, p. 180), “o fechamento da família na casa familiar (...) e a elevação da família à posição de controladora no processo da educação da criança não5 era o resultado de um processo natural e espontâneo”. Segundo o autor, o “desenvolvimento das famílias no papel de ‘canais capilares’ do sistema societário de controle e vigilância (...) carecia de um profundo esforço legislativo, de ação social coordenada e intensa propaganda dos novos padrões de coabitação íntima”. Sua atuação se inseria sobre as classes populares visando à patologia da infância como alvo privilegiado que poderia se dar de duas maneiras: a infância em perigo, que não se beneficia de todos os cuidados da criação e da educação e a infância perigosa, a da delinqüência. Esses profissionais desempenharam uma função importante na disseminação dos novos valores e do saber dominante, pretendendo à proteção da infância e ao questionamento das atitudes repressivas ou permissivas dos pais. O discurso dominante tinha como verdade o conceito de liberdade e autonomia da família frente aos valores tradicionais, ou seja, um novo código familiar é estimulado, visando preparar mais para a vida conjugal do que a mera preservação do patrimônio. Assim, os novos profissionais do social propagavam os novos valores e padrões de intimidade familiar. 5 Grifo meu. 41 Esse discurso irá forjar, desde o século XVIII segundo Badinter (1985), uma nova imagem da mãe, cujos traços se acentuarão nos séculos seguintes. Para a autora, o primeiro indício de mudança do comportamento materno é a vontade nova de aleitar ela própria o filho, e só a ele. Esse desejo, não é natural, mas advindo do novo saber propagado pelo social. Quando as mães pobres abdicam de ganhar um rendimento extra, deixando de amamentar uma criança estranha para não colocar em risco a saúde de seu filho e porque constitui uma “intrusão indesejável no seio da vida privada da unidade doméstica” já se está consolidando o modelo de mãe burguesa. Gradualmente vai surgindo o ideal intimista do mundo moderno. Sob o olhar atendo dos Assistentes Sociais e dos higienistas, surge uma nova estratégia de controle e vigilância sobre o segmento marginalizado e de todo o modo de vida. Paralelamente a essas novas práticas, dispositivos e normas, surge a legislação sobre o assunto, já reivindicada pelos filantropos, que dará suporte legal as mudanças em curso. No século XIX multiplicam-se as leis de cunho filantrópico-assistencial. Segundo Donzelot (1986, p. 75/6), “desde a década de 1840 até o final do século XIX, as leis que editam normas protetoras da infância se multiplicam”, na França podemos citar como exemplo as seguintes leis: trabalho infantil (1840-1); insalubridade das moradias (1850); contrato de aprendizagem (1851); sobre a vigilância das nutrizes (1876); sobre a obrigatoriedade escolar (1881), entre outras. Para o autor, elas tinham natureza sanitária e política, buscando corrigir a situação de abandono das crianças das classes trabalhadoras e, na mesma medida, reduzir a capacidade sócio-política dessas camadas, rompendo os “vínculos iniciáticos adultos- criança, a transmissão autárquica dos saberes práticos, a liberdade de movimento e de agitação que resulta do afrouxamento de antigas coerções comunitárias”. Ora, esse sentimento tão forte se formou em torno da família conjugal, a família formada pelos pais e seus filhos (...). Nada aí lembra a antiga linhagem, nada acentua a ampliação da família ou a grande família patriarcal, essa invenção dos tradicionalistas do século XIX. Essa família, ou a própria família, ou ao menos a idéia que se fazia da família ao representá-la e exaltá-la, parece igual à nossa. O sentimento é o mesmo. Esse sentimento está muito ligado ao sentimento da 42 infância. Ele afasta-se cada vez mais das preocupações com a honra da linhagem ou com a integridade do patrimônio, ou com a antiguidade ou permanência do nome: brota apenas da reunião incomparável dos pais e filhos (ARIÈS, 1981, p. 222). A emergência do social, com sua característica intervenção, não afetaria a concepção e o funcionamento do Estado liberal do século XIX, ao contrário, o liberou das mazelas por ele criadas, dinamizando as forças produtivas pelas práticas racionais de controle social. Para Donzelot (1986, p. 84) “o social extirpa, do funcionamento da economia, esse quinhão do pobre que, bem ou mal, ela teve que assumir durante o século XIX e o libera, portanto, desse último entrave”. A filantropia e a assistência social se ajustam para reorganizar a família em torno de laços de solidariedade que servirão como estratégias de retaliação aos anormais. A partir desse novo saber/poder todo desvio do que se considerava normal sofreria intervenção terapêutica. Organiza-se uma política higienista social de purificação da cidade dos espaços privados. As casas são invadidas por médicos e sanitaristas que vistoriam de forma minuciosa os bairros e casas impondo as medidas higiênicas. Passa-se a administrar todos os problemas relativos à população, tais como: epidemias, endemias, natalidade, procriação, incapacidade física dentre outros. Segundo Rago (1997, p. 164) “os médicos higienistas, portanto, percebem-se como autoridades necessárias e competentes para vistoriar minuciosamente a habitação e os bairros populares, incentivando o asseio e impondo autoritariamente a execução de medidas higiênicas”. Ainda segundo a autora, os higienistas sociais se ocupam com a medicalização da cidade, com a desinfecção dos lugares públicos, com a limpeza dos terrenos baldios, com a arborização das praças e com o alinhamento das ruas. A habitação do pobre não escapará ao desejo de disciplinarização do proletariado manifestado pelos dominantes. Na moradia operária, a burguesia industrial, os higienistas e os poderes públicos visualizam a possibilidade de instaurar uma nova gestão da vida do trabalhador pobre e controlar a totalidade de seus atos, ao 43 reorganizar a fina rede de relações cotidianas que se estabelecem no bairro, na vila, na casa e, dentro desta, em cada compartimento. Destilado o gosto pela intimidade confortável do lar, a invasão da habitação popular pelo olhar vigilante e pelo olfato atento do poder assinala a intenção de instaurar a família nuclear moderna, privativa e higiênica, nos setores sociais oprimidos (RAGO, 1985, p. 163). Surge uma gama de interesses educacionais, médicos e higienistas que produzem um novo saber sobre a criança legitimando e estruturando a ação do social. Para Sibilia (2003, p. 162), “a partir dos dados coletados meticulosamente junto aos cidadãos dos Estados-nação, os profissionais das novas ciências humanas foram capazes de calcular previsões, índices, médias, estimativas e probabilidades”. Isso possibilitou a intervenção racional no “substrato biológico das populações através de leis e regulamentações sanitárias, planejamentos reprodutivos, campanhas de aprendizado em saúde pública, propagação de hábitos e costumes ligados à higiene e à prevenção de doenças”. No que diz respeito ao progresso científico da higiene, seus benefícios para os indivíduos são inegáveis. Não se trata de negar ou desvalorizar a importância destes fatos. O que importa é notar que a própria eficiência científica da higiene funcionou como auxiliar na política de transformações dos indivíduos em função das razões do Estado. Foi porque a medicina era, de fato, empírica e conceitualmente científica que sua ação política foi mais operante (COSTA, 1999, p. 32). O modelo propagado pelos higienistas para a família era o intimismo doméstico, que pressupunha uma nova forma de convivência familiar. Nesse discurso, buscava-se construir a reclusão familiar ao lar, transformando seus membros, segundo Costa (1999) em fiscais da higiene. O exaustivo trabalho de conquista e colonização da família resultou na aproximação de seus membros e no surgimento do modelo característico da sociedade moderna industrial a família burguesa. Para Costa (1999, p. 144) “o cuidado com a saúde física produziu um imenso acréscimo de atenção para o 44 psiquismo”, o que resultou em cuidados cada vez mais especiais e com a busca do equilíbrio familiar, valorizando, observando e controlando os mínimos comportamentos dos filhos. O saber/poder e seu vínculo científico/político forjou, por meio de sua aliança com o Estado, a família ideal da sociedade industrial por meio da vigilância executada pelos seus próprios membros. A exaltação higiênica do corpo, da casa, da educação, em defesa da saúde, desenvolveu na família uma acuidade que ela não possuía. Refinando seus instrumentos de ausculta, em breve ela foi capaz de ouvir ruídos aos quais era totalmente surda. Através da captação preventiva da manifestação mórbida, a família iniciava-se, ao mesmo tempo, no prazer da descoberta dos fios da saúde. Entre o medo de agressões físicas e morais, o cuidado com o investimento de capitais e o fascínio pelo universo sentimental, o “intimismo” proliferava e enraizava-se (COSTA, 1999, p. 144). A partir desse momento altera-se o comportamento, a relação e, consequentemente, o compromisso com a infância. O futuro adulto passa a ser considerado fruto das relações familiares de sua infância. A valorização dos cuidados psicológicos passou a exigir dos pais e da família uma observação constante e ininterrupta, não sendo mais permitido espaços para qualquer tipo de comportamento considerado anormal pelo discurso normalizante dos higienistas. Os comportamentos passaram a ser definidos como normais e anormais. Nesse contexto, completando o domínio sobre a família, surge um complexo tutelar que se inicia pela ação de grupos de filantropos e se transforma, no século XIX, no Tribunal de Menores. Como complemento da legislação social, surge o tribunal de menores que canalizará a vigilância e o controle sobre a família. Esse novo poder, que age em nome da prevenção, surge com a lei de 1889, a qual determina serem os pais e mães, que por algum motivo comprometam a segurança, a saúde e a integridade física e moral de seus filhos, ou mesmo por delitos cometidos contra a criança ou por ela, destituídos de seus direitos e do pátrio poder, podendo o Juiz confiar a guarda da criança a uma 45 instituição filantrópica ou a terceiros. As leis de 1898 e 1912 iriam organizar progressivamente uma transferência de soberania da família moralmente insuficiente para o corpo de notáveis filantropos, magistrados e médicos especializados na infância. Organiza-se um sistema de vigilância contínuo e de delação legítima, na qual a relação dos filantropos com a família é modificada. Uma etapa importante da organização dessa nova e complexa estrutura de ação social surge com a educação. A adequação do sistema escolar está diretamente ligada à idéia de controle social e de difusão dos novos valores e ética. Juntamente com essa crescente divisão do comportamento no que é e não é publicamente permitido, a estrutura da personalidade também se transforma. As proibições apoiadas em sanções sociais reproduzem-se no indivíduo como formas de autocontrole. A pressão para restringir seus impulsos e a vergonha sociogenética que os cerca — estes são transformados tão completamente em hábitos que não podemos resistir a eles mesmo quando estamos sozinhos na esfera privada (ELIAS, 1994, vol. 1, p. 189). A escola de massa difunde o saber dos especialistas civilizadores através dos novos regimes de comportamento e da nova disciplina corporal do burguês desodorizado, proposto pelos filantropos. Para Ariès (1981, p. 170) “a evolução da instituição escolar está ligada a uma evolução paralela do sentimento das idades e da infância”. Assim, ela faz parte do contexto de valorização da infância e do papel da família. A formação moral preconizada pelo saber/poder se apoiará num suporte institucional indispensável e nuclear que é a escola. Para Elias (1994, p. 189) “o código social de conduta grava-se de tal forma no ser humano, desta ou daquela forma, que se torna elemento constituinte do indivíduo”. A escola se remodela com medidas de separação dos sexos e das idades, passa-se a exigir uma formação especializada aos agentes educativos e surgem espaços fechados e hierarquizados para a educação. A criança deixa de ser socializada pelo espaço público e da vivência com o adulto, pois sua formação ficará a cargo dessa nova instituição. Para Bujes (2002, p. 58) é importante notar que a 46 “Educação Infantil surge no contexto de mudanças sociais, políticas e econômicas profundas que ocorreram na Europa (...) e que vão se consolidando novos arranjos sociais e encaminhando novas compreensões acerca dos papéis dos sujeitos e das instituições da sociedade”. Fica evidente que o alvo dessas intervenções é a criança, pois ela representa a base sobre a qual se busca criar uma nova subjetividade. A escola representará um longo período de enclausuramento da criança, que será cada vez mais escolarizada. Segundo Bujes (2002, p. 58) a escola foi “originalmente uma forma de organização social que esteve a cargo da caridade (e mais tarde da filantropia), portanto, com um caráter marcadamente assistencial”. Assim, a escolarização não pode estar desvinculada do conceito médico- higienista e da intervenção social. Pode-se perceber que a difusão da escolarização e o aumento dos colégios foram fundamentais na concretização dessa estratégia. O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina completou a evolução que conduziu da escola medieval, simples sala de aula, ao colégio moderno, instituição complexa. Para Ariès (1981) essa evolução da instituição escolar está ligada a uma evolução paralela do sentimento das idades da infância. Segundo o autor, o colégio se popularizou, tornando-se um instrumento para a educação da infância e da juventude em geral. A partir do século XVI, o colégio modificou e ampliou o recrutamento, tornando-se então uma instituição essencial da sociedade. O novo modelo de escolarização partia do mesmo princípio adotado pela estratégia médico-higienista social, o da individualização. Escolarizada, a criança será observada e corrigida nos seus menores atos. Nada mais é insignificante aos olhos do professor. Busca-se a formação do homem, com a formação de seu caráter e controle de seu comportamento. A partir do século XV e, sobretudo, nos séculos XVI e XVII, apesar da persistência da atitude medieval de indiferença à idade, o colégio iria dedicar-se essencialmente à educação e à formação da juventude, inspirando-se em elementos da psicologia (...). Descobriu-se então a necessidade da disciplina: uma disciplina constante e orgânica, muito diferente da violência de uma autoridade mal respeitada. Os legisladores sabiam que a sociedade turbulenta que eles comandavam exigia um pulso firme, mas a disciplina escolar teve origem na 47 disciplina eclesiástica ou religiosa; ela era menos um instrumento de coerção do que de aperfeiçoamento moral e espiritual (...). Os educadores a adaptariam a um sistema de vigilância permanente das crianças, de dia e de noite, ao menos em teoria. A diferença essencial entre a escola da Idade Média e o colégio dos tempos modernos reside na introdução da disciplina. Os mestres tendem a submeter o aluno a um controle cada vez mais estrito, no qual as famílias, a partir do fim do século XVII, cada vez mais passaram a ver as melhores condições de uma educação séria. A criança, enquanto durava sua escolaridade, era submetida a uma disciplina cada vez mais rigorosa e efetiva, e essa disciplina separava a criança que a suportava da liberdade do adulto. Assim, a infância era prolongada até quase toda a duração do ciclo escolar (ARIÈS, 1981, p. 190-191). Essa transferência da aprendizagem da família e da sociedade para a escola revela também a tentativa de transformar a criança em disseminadora dos novos valores, pois ao mesmo tempo, a família concentrou-se em torno da criança. A concentração da preocupação da família na criança demonstra a grande transformação pela qual passou essa instituição familiar e escolar. Portanto é uma transformação em conjunto, sendo a escola seu complemento, que substituirá as antigas formas práticas de aprendizagem. Difunde-se o hábito geral de educar os filhos, sem a necessidade de se afastar deles para a aprendizagem. Com o aumento do número de unidades escolares esse hábito é difundido por todo o corpo social com o declínio definitivo dos antigos métodos de aprendizagem e um projeto de moralização que refletia o imperativo de uma reorganização social num dado momento histórico. Segundo Ariès (1981, p. 185), na França “uma nova noção moral deveria distinguir a criança, ao menos a criança escolar, e separá-la: a noção de criança bem-educada”. Essa noção era inexistente no século XVI e formou-se no século XVII. Bem educada significa preservada da imoralidade, “a antiga turbulência medieval foi abandonada primeiro pelas crianças, e finalmente pelas classes populares: hoje, ela é a marca dos moleques, dos desordeiros, últimos herdeiros dos antigos vagabundos, dos mendigos, dos fora-da-lei (...)”. Os filantropos ao mesmo tempo em que ensinavam as virtudes da higiene e as normas de comportamentos às famílias, examinavam os indivíduos e suas condições de vida. Há uma mudança tática, ao contrário de reprimir, gerir a população por meio da difusão de normas de comportamento e de 48 moralidade. Para Donzelot (1986) a valorização da família e da criança, a partir do século XIX, não poderia ser atribuída ao triunfo da modernidade ou ao progresso da civilização, mas sim como resultado de uma estratégia de controle. (...) De modo que se poderá tentar compreender a liberalização e a revalorização da família, que irão se desenvolver no final do século XIX, não como o triunfo da modernidade, a mutação profunda das sensibilidades, mas sim como o resultado estratégico da acoplagem dessas duas táticas filantrópicas (DONZELOT, 1986, p. 58). As duas táticas filantrópicas às quais o autor se refere são as linhas pelas quais a filantropia se efetiva. A primeira delas é a assistencial, pelo “ensino das virtudes, fornecendo conselho eficaz em vez de caridade humilhante e promovendo a autonomia familiar”. A segunda é a que ele denomina de médico-higienista, que se apoiam na necessidade de conservação da população e que se dará por meio da educação dos costumes de higiene. Às famílias seriam atribuídas as responsabilidades da tarefa de disciplinar e normalizar o comportamento de seus membros e de organizar sua subsistência. O conceito fundamental era que controlando a infância perigosa evitava-se o eventual adulto criminoso. Em 1889, na França, edita-se uma lei que determina serem os pais e mães, que por algum motivo comprometam a segurança, a saúde e a integridade física e moral de seus filhos, destituídos de seus direitos de pátrio poder, podendo o Juiz confiar a guarda da criança a uma instituição filantrópica ou a terceiros. Em 1898 e 1912 surgem leis que iriam organizar progressivamente uma transferência de soberania da família moralmente insuficiente para o corpo de notáveis filantropos, magistrados e médicos especializados na infância. Nota-se que em nome da segurança e da integridade física da criança organizou-se um sistema contínuo de vigilância, que através das leis editadas pelo Estado permitiu os agentes das normas de saúde e educação penetrarem legitimamente nos lares e tornarem-se mediadores entre as famílias e a justiça. O século XIX foi, portanto, o momento de organização e definição das políticas de controle das 49 famílias e da infância. A edição das normas sanitárias e educativas propiciou ao movimento assistencial a legitimação de sua ação. O efeito dessas intervenções foi positivo na luta contra a força ameaçadora do anonimato e da surpresa, uma vez que a vigilância filantrópica recebeu grande apoio do Estado por meio de edição de leis. A vigilância das famílias pobres alicerçadas no ideal da educação, da higiene e da normalização dos comportamentos, possibilitou a difusão das normas e manteve o Estado liberal, de característica não intervencionista, afastado da intervenção direta. Essa iniciativa incitava a família a reforçar seus laços, promover o auto-controle e assistir continuamente seus membros. Desse modo, evitaria a intervenção normativa e legal, definidas no novo código de leis, que colocaria em risco a suspensão do pátrio poder. Conforme se verifica nos autores citados, com a formação e a difusão da escola pública e sua obrigatoriedade a todas as classes, estava sendo concluído o q