unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARIÂNGELA ALONSO DA RECEITA À PAIXÃO: A mise en abyme em Clarice Lispector ARARAQUARA – S.P. 2015 MARIÂNGELA ALONSO DA RECEITA À PAIXÃO: A MISE EN ABYME EM CLARICE LISPECTOR Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutora em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientadora: Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite Bolsa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ARARAQUARA-SP 2015 Alonso, Mariângela Da receita à paixão: a mise en abyme em Clarice Lispector / Mariângela Alonso — 2015 238 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) — Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Guacira Marcondes Machado Leite 1. Literatura Brasileira. 2. Teorias e crítica da narrativa. 3. Mise en abyme. 4. Lispector, Clarice. I. Título. MARIÂNGELA ALONSO DA RECEITA À PAIXÃO: A MISE EN ABYME EM CLARICE LISPECTOR Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras-UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutora em Estudos Literários. Linha de Pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador (a): Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite Data da defesa: 04/05/2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: _____________________________________________________________________________ Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite (UNESP/FCLAr) 1º Examinador Profa. Dra. Maria das Graças Gomes Villa da Silva (UNESP/FCLAr) 2º Examinador Profa. Dra. Silvana Vieira da Silva (UNESP/FCLAr) 3º Examinador Prof. Dr. Arnaldo Franco-Júnior (UNESP/IBILCE) 4º Examinador Profa. Dra. Aparecida Maria Nunes (UNIFAL/MG) Local: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”-UNESP/FCLAr Para aquela que renasceu da “desorganização profunda” e me ensinou com sua força: tata Bel. AGRADECIMENTOS A Deus, pela vida. Em especial à professora Guacira, orientadora e amiga, a quem muito admiro e respeito. Agradeço a confiança, o apoio constante e a generosidade com que sempre me acolheu. Sou eternamente grata pela orientação criteriosa e paciente, através da qual me ensinou a ser a pesquisadora que sou. À professora Maria Graciete Besse, pelo acolhimento durante o estágio de pesquisa desenvolvido na Université Sorbonne-Paris IV (Lettres et Civilisations). Sou grata pela partilha entusiasmada de conhecimento durante as tardes de terça no CRIMIC (Centre de Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibériques et Contemporains), que ficarão para sempre na memória. À professora Maria das Graças Gomes Villa da Silva, pelos valiosos apontamentos feitos no Exame de Qualificação e pela participação na banca. À professora Silvana Vieira da Silva, pela amizade e disposição em fazer parte da banca examinadora. Ao professor Arnaldo Franco-Júnior, a quem muito admiro e cujos estudos ajudaram a nortear minha pesquisa. Sou grata pela atenção constante durante a participação no curso sobre Clarice Lispector na UNESP/IBILCE. À professora Aparecida Maria Nunes, grande inspiradora desta tese, com quem tudo começou. Agradeço pela amizade, disposição e desprendimento sempre carinhosos. Aos professores Alcides Cardoso dos Santos e Sylvia Telarolli, pela disponibilidade atenciosa e pelas animadas colaborações. À professora Fani Miranda Tabak, da UFTM, pelo parecer favorável à obtenção da Bolsa de Doutorado Sanduíche. Ao meu pai, Luiz Alonso (in memoriam), que mesmo em outro plano, sempre esteve presente. Agradeço-o pela determinação e autenticidade que herdei. À minha mãe Lourdes, que sempre me incentivou. Sou grata pelo amparo, pela prontidão em me ajudar e pela torcida entusiasmada. Aos meus irmãos Osvaldo, Maria Isabel e Marta, que sempre me motivaram. Ao meu amor, Du, por seu companheirismo e apoio incondicional, por estar sempre pronto a me ouvir. Sou grata pelas argutas contribuições, que muitas vezes tornaram o meu olhar mais clínico para este trabalho. Agradeço pela vida que tenho ao seu lado. À Fundação Biblioteca Nacional-Rio de Janeiro, pela pesquisa realizada em janeiro de 2013. Em especial à Carla Ramos, coordenadora de publicações seriadas. À Fundação Casa de Rui Barbosa-Rio de Janeiro, pela pesquisa realizada em abril de 2015. Em especial a Cláudio Vitena, responsável pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. À Fondation Calouste Gulbenkian-Délégation en France, pelas pesquisas que complementaram o estágio realizado no exterior. Em especial à Maria Arlete Darbord, pela disposição carinhosa. Ao jornalista Alberto Dines, pela prontidão com que partilhou conhecimentos e reflexões em torno da trajetória de Clarice. À redação da revista Casa & Jardim, em especial à jornalista Thaís Lauton, que não mediu esforços para colaborar com a confirmação e esclarecimento de informações importantes. À Magna Tânia Secchi Pierini, pela amizade e cooperação. À Natali Fabiana da Costa e Silva, pela amizade, bom humor e apoio. Sem ela, tudo teria sido mais difícil na França. À Corina Nuţu, porque nossos caminhos se cruzaram no CRIMIC, com Clarice e Pessoa, ligando o Brasil à Romênia, numa amizade duradoura. À Lígia Maria Pereira de Pádua Xavier, por tão gentilmente colaborar com as traduções do francês. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação e da Biblioteca, pelos esclarecimentos sempre pacientes. Em especial, Rita Enedina Benatti Torres, Maria Clara Bombarda de Brito e Camila Serrador. Ao Cnpq, cujo apoio financeiro tornou possível o desenvolvimento desta pesquisa e a realização de atividades que enriqueceram sobremaneira minha formação. À Capes, pela bolsa concedida, a qual permitiu o estágio realizado em Paris durante os meses de setembro/2013 a janeiro/2014. À UNESP de Araraquara, minha alma mater. Meu muito obrigada a todos! Vamos à história das baratas! “A barata ignora nossos xingos, que não lhe atingem a estrutura. E daí, se formos tão severos com ela, que palavras terríveis guardaremos para qualificar indivíduos incomparavelmente mais daninhos, pois não devastam só uma gaveta, mas regiões inteiras do globo, e fazem recair seu poder maléfico sobre a humanidade em geral?” (ANDRADE, 1984, p. 111) Le miroir d’un moment Il dissipe le jour, Il montre aux hommes les images déliées de l’apparence, Il enlève aux hommes la possibilité de se distraire. Il est dur comme la pierre, La pierre informe, La pierre du mouvement et de la rue, Et son éclat est tel que toutes les armures, tous les masques en sont faussés. Ce que la main a pris dédaigne même de pendre la forme de la main, Ce qui a été compris n’existe plus, L’oiseau s'est confondu avec le vent, Le ciel avec sa vérité, L’homme avec sa realité. (ÉLUARD, 1970, p. 166) RESUMO As narrativas de Clarice Lispector expandem-se para além dos espaços ficcionais, caracterizando-se pela recusa à narrativa fechada e acabada ao buscar formas líquidas e inconclusas, que perpetuamente se desmancham para novamente se construir, num movimento circular e escorpiônico, restando à autora tecer e destecer o texto num contínuo entrelaçamento. Assim, a massa textual assinala a intersecção en abyme de encadeamentos significativos diversos, isto é, um jogo narrativo especular no qual cada obra que se encerra tende a fechar um ciclo que será retomado pela obra seguinte e assim sucessivamente, como as eternas bonecas russas ou as emblemáticas caixas chinesas. Nesse sentido, a presente pesquisa propõe o estudo do processo de escrita moderna de Clarice Lispector, utilizando como corpus as narrativas de Meio cômico, mas eficaz; Receita de assassinato (de baratas); A quinta história e A paixão segundo G.H. O escopo do trabalho é examinar as relações entre os textos mencionados, inserindo-se nos estudos de intertextualidade, processo definido como a retomada de um texto por outro e, assim, as relações entre diferentes textos de autores diversos. Porém, esta investigação centra-se em textos de um mesmo autor, pautando-se no que o teórico Gérard Genette concebeu como autotextualidade ou intratextualidade, fenômeno caracterizado pela remissão à própria obra. Para tanto, buscamos empreender um caminho possível de análise aos textos mencionados, guiando-nos pelos estudos de Lucien Dällenbach (1977), Gérard Genette (1982), Jean Ricardou (1978), entre outros. Palavras-chave: mise en abyme; espelho; Clarice Lispector; receitas; A quinta história; A paixão segundo G.H. ABSTRACT Clarice Lispector’s narratives expand beyond the fictional spaces, characterized by refusal to closed and finished narrative to seek liquid and unfinished forms, which perpetually fall apart to be built again in a circular motion, then the author weaving and unweaving the text in a continuous entanglement. Thus, the textual mass en abyme indicates the intersection of several major chains, i.e., a narrative mirror game in which each work ending tends to close a cycle, resuming the next operation and so on, as the eternal Russian dolls or flagship Chinese boxes. In this sense, this research proposes the study of modern writing of Clarice Lispector process, using as corpus the narratives Meio cômico, mas eficaz; Receita de assassinato (de baratas); A quinta história and A paixão segundo G.H. The scope of work is to examine the relationships between the above texts, according to studies of intertextuality. The process indicated before is defined as the resumption of a text on the other and thus the relationships between different texts by different authors. However, this research focuses on texts by the same author, basing on what the theoretical Gérard Genette conceived as autotextuality or intratextuality, a phenomenon characterized by reference to the work itself. Therefore, we seek to undertake a possible way of analysis of the mentioned texts, guiding us by Lucien Dällenbach (1977) studies, Gérard Genette (1982), Jean Ricardou (1978), among others. Key words: mise en abyme; mirror; Clarice Lispector; recipes; A quinta história; A paixão segundo G.H. RÉSUMÉ Les récits de Clarice Lispector s’étendent au-delà des espaces fictifs et se caractérisent par le refus du récit fermé et achevé, en quête de formes liquides et inconcluses qui perpétuellement se rompent pour de nouveau se rétablir, dans un mouvement circulaire et scorpionique, l’ auteur ne devant que tisser et détisser le texte dans un entrelacement continu. Aussi la masse textuelle signale-t-elle l’ intersection en abyme d' enchaînements significatifs divers, c’est-à-dire un jeu narratif spéculaire dans lequel chaque oeuvre qui se termine, tend à fermer un cycle qui sera repris par l’ oeuvre suivante, et ainsi de suite, comme les éternelles poupées russes ou les emblématiques boîtes chinoises. C'est dans ce sens que cette recherche propose l’ étude de l’ écriture moderne de Clarice Lispector, en utilisant comme corpus les récits de Meio cômico, mas eficaz; Receita de assassinato (de baratas); A quinta história et A paixão segundo G.H. L'objectif du travail c' est d’ examiner les relations entre les textes mentionnés qui s' insèrent dans les études d' intertextualité, processus défini comme la reprise d’un texte par un autre et, ainsi, les relations entre des textes différents d'auteurs divers. Toutefois, cette investigation est centrée sur des textes d’ un même auteur et se fonde sur ce que Gérard Genette a conçu comme autotextualité ou intratextualité, phénomène caractérisé par la remise de l'auteur à son oeuvre même. Pour cela, on cherche d'entreprendre une voie possible d’ analyse des textes mentionnés à travers les études de Lucien Dällenbach (1979), Gérard Genette (1982), Jean Ricardou (1978), parmi d’autres. Mots-clés : mise en abyme; miroir; Clarice Lispector; recettes; A quinta história; A paixão segundo G.H. Lista de Ilustrações Capa: Vanity (2011), Catherine Chalmers. C-print, 60 x 40 cm Figura 1: O brasão ........................................................................................................ 36 Figura 2: O casal Arnolfini (1434), Jan Van Eyck. 82 x 59,5 cm, National Gallery, Londres. .......................................................................................... 42 Figura 3: Detalhe do quadro O casal Arnolfini (1434), Jan Van Eyck ........................ 42 Figura 4: As meninas (1656), Diego Velásquez. 310 x 276 cm, Museu do Prado, Madrid........................................................................................................... 44 Figura 5: Numeração das personagens de As meninas (1656), Diego Velásquez. ....... 44 Figura 6: Proposição da tipologia da narrativa especular ............................................ 49 Figura 7: Frontispício do semanário Comício, Rio de Janeiro, 8-8-1952 .................... 95 Figura 8: Meio cômico, mas eficaz. Comício, Rio de Janeiro, 8-8-1952, p. 18 ........... 96 Figura 9: Versão ampliada de Meio cômico, mas eficaz Comício, Rio de Janeiro, 928-8-1952, p. 18 .............................................................................................. 96 Figura 10: Diário da Noite, Rio de Janeiro, 16-8-1960, p. 19 .................................... 107 Figura 11: Pastoral ....................................................................................................... 120 Figura 12: A quinta história (versão Casa e Jardim) .................................................... 123 Figura 13: Capa e prefácio revista Casa e Jardim ........................................................ 124 Figura 14: A quinta história (versão revista Senhor) ................................................... 131 Figura 15: Hexágonos ................................................................................................. 134 Figura 16: Aveia Quaker .............................................................................................. 144 Figura 17: Fermento em pó Royal................................................................................ 144 Figura 18: La vache qui rit ........................................................................................... 145 Figura 19: Droste .......................................................................................................... 145 Figura 20: Escadaria (1951), de M. C. Escher ............................................................ 153 Figura 21: Quadrado Mágico de O castelo dos destinos cruzados, de Italo Calvino ........................................................................................................ 163 Figura 22: Quadrado Mágico de Avalovara, de Osman Lins ....................................... 163 Figura 23: Chiliagon (2012), de Alena Kotzmannova. Fat Gallery, Brno. .................. 205 Figura 24: Laço de Moebius I (1961), de M.C. Escher ................................................ 207 SUMÁRIO Introdução ........................................................................................................................ 14 Capítulo 1: Entre espelhos e abismos .............................................................................. 18 1.1 Da intertextualidade ................................................................................................... 19 1.2 Mise en abyme: definições ........................................................................................ 34 Capítulo 2: Embriões de textos, cirandas de baratas ....................................................... 77 2.1 Baratas e espelhos ...................................................................................................... 78 2.2 Baratas e receitas ....................................................................................................... 88 Capítulo 3: Matemática de espelhos ou A quinta história ............................................. 116 3.1 Baratas em revista (s) .............................................................................................. 118 3.2 Uma legião de baratas.............................................................................................. 136 3.3 Matemática de baratas ............................................................................................. 155 Capítulo 4: Uma fita de Moebius ou A paixão segundo G.H. ....................................... 170 4.1 A eclosão do imago ................................................................................................. 172 4.2 Itinerários críticos .................................................................................................... 175 4.3 Ápeiron .................................................................................................................... 194 4.4 Retomadas ............................................................................................................... 212 Considerações finais ...................................................................................................... 219 Referências ................................................................................................................... 223 Anexo: Conto: A quinta história, de Clarice Lispector ................................................. 235 14 Introdução Introdução 15 INTRODUÇÃO Como se fora brincadeira de roda (memória) Vai o bicho-homem fruto da semente (memória) Renascer da própria força, própria luz e fé (memória) Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós (história) (Gonzaguinha, “Redescobrir”) A presente pesquisa insere-se nos estudos de intertextualidade e tem por objetivo a compreensão do procedimento narrativo da mise en abyme em obras de Clarice Lispector, tais como Meio cômico, mas eficaz; Receita de assassinato (de baratas); A quinta história e A paixão segundo G.H. Clarice Lispector está entre os autores mais celebrados e estudados da literatura brasileira. Toda essa consagração deve-se à peculiaridade de sua obra de modo a revelar um encontro particular com o público: “os leitores criaram, de Clarice Lispector, uma figura misteriosa e enigmática, colada aos seus livros e imersa nos jogos de linguagem” (CASTRO SILVA, 2012, p. 259). A literatura clariciana opera com um tecido nada homogêneo, repleto de fragmentos e linhas de fuga que dominam o plano da expressão. O resultado é uma obra inacabada, resgatada na reintegração de um novo cenário, extenso e próprio. Assim, a autora deixa entrever o fato de que por trás da técnica que domina, há todo um projeto de compreensão e revelação de um mundo que se concretiza. A construção do texto provém da curiosa montagem de achados e perdidos, resíduos de linguagem encaixados nas crescentes multiplicações textuais: Só trabalhava com o inesperado, o que podia acontecer até mesmo quando estava no cinema. Escrevinhava então, nas costas de um talão de cheques, em lenços de papel ou em envelopes vazios, frases ou textos inteiros. (BORELLI, 1981, p. 82) Nessa intrigante ciranda, o conjunto textual transmigra por romances, contos e crônicas. O jogo especular da mise en abyme reflete-se na repetição de temas que se cruzam por escritas curtas ou extensas, tais como capítulos inteiros de romances que surgem metamorfoseados em artigos de jornais, permeando a escritura: “[...] fragmentos Introdução 16 de seus textos, em diálogo interno, endogâmico, migram incessantemente, criando, a cada nova posição, significantes diferentes” (WALDMAN, 1998, p. 97). A natureza dos textos claricianos percorre uma espécie de bricolagem e pode ser facilmente intercambiável. Compondo um “sistema de interação errática” (MORICONI, 2001, p. 215), a narrativa de Lispector guia-se por um fluxo de palavras, implicando movimento. Nesse sistema, não há qualquer referência a um ponto central ou a um caminho predeterminado. Por isso, a discussão a respeito dos aspectos intratextuais deve levar em conta o processo de fragmentação presente na própria gênese da obra de Clarice Lispector. Parte e todo são elementos complementares e particulares: “a ambiguidade de totalidade e fração parece ser fundamental para encontrar o modo próprio da construção da obra clariciana” (PONTIERI, 1999, p. 119). Conforme já observado pela crítica, tais obsessões textuais percorrem os temas, apresentando-se como indagações metafísicas e metalinguísticas. A procura da palavra encontra terreno fértil na nomeação da existência e nas questões identitárias. Como exemplo desta ciranda de textos, sobressai a figura da barata, reelaborada diversas vezes pelo imaginário da escritora. Retornando de forma multifacetada, tanto em textos breves como as receitas intituladas Meio cômico, mas eficaz e Receita de assassinato (de baratas), como no conto A quinta história e no romance A paixão segundo G.H., a imagem da barata revela-se como um terreno fértil para o que estamos buscando com esta pesquisa. Nessa retomada intratextual, despontam fragmentos de conjuntos variados, às vezes alterados com mínimas modificações, com pequenos cortes ou ainda com mudanças radicais, tais como a supressão ou adição de parágrafos inteiros, intrigantes peças de um quebra cabeça: “Processa-se, desse modo, com a recente composição, uma profunda transformação no corpo textual, subsistindo, por vezes, apenas a ideia primeira, bruta” (CURI, 2001, p. 42). Expandindo-se para além dos espaços ficcionais, a escrita clariciana mostra-se em sua multiplicidade, legando-nos uma produção literária diversificada em crônicas, contos e romances. A realização estética de sua obra manifesta-se no campo da sensibilidade, captando as formas, os ritmos e suas pulsões, oferecendo ao leitor toda rede de relações do espaço da ficção. Assim, buscaremos confrontar os textos escolhidos como corpus desta pesquisa, focalizando a mise en abyme como força criativa e questionadora na obra de Clarice Lispector. Introdução 17 No primeiro capítulo é apresentada a conceituação da mise en abyme sugerida pelos estudiosos, desde os postulados de Andre Gide até leituras mais recentes efetuadas pela crítica. O procedimento da mise en abyme desdobra-se em diversas formas de representação, dificultando certo consenso teórico por parte dos investigadores. Concentramos no segundo capítulo as conceituações e análises das obras em estudo, mais especificamente no que tange às receitas Meio cômico, mas eficaz e Receita de assassinato (de baratas). A intrigante estrutura abismal presente nesses dois textos encaminhou nossa discussão em torno da especularidade como possível embrião dos textos seguintes, em consonância com as vozes da crítica. Tais receitas permitiram o vislumbre do processo de amplificação presente na narrativa clariciana. O conto A quinta história é objeto de estudo do terceiro capítulo, em que tratamos do cotejamento das versões publicadas nas revistas Casa e Jardim e Senhor. O conto apresenta uma estrutura narrativa concêntrica e espiralada, na qual cinco histórias ilustram o jogo especular de um universo obsessivo e invadido novamente pelo motivo das baratas. Tal procedimento serviu de base para discutirmos os efeitos do procedimento abismal do encaixe, presente desde as receitas. Além disso, o alcance teórico da mise en abyme permitiu um diálogo com as mais variadas áreas de atuação, como a arte, a filosofia e a matemática, as quais enriqueceram as reflexões apresentadas. Por fim, no quarto capítulo, abordamos o romance A paixão segundo G.H., ponto final deste novelo narrativo, marcado pelo encontro repulsivo, mas necessário, da escultora G.H. com uma barata, ser que permite uma longa introspecção. Procuramos confrontar as formas e modos de expressão desta narrativa com as anteriores, indicando as confluências e divergências formais e temáticas presentes, confirmadas pelo projeto de uma literatura realizada em abismo e para sempre questionada no universo da crítica. As narrativas do corpus em questão apresentam não apenas um diálogo endogâmico como também uma continuidade crítica, sobretudo com relação a um princípio caro à obra de Clarice Lispector, a mise en abyme. 18 Capítulo 1 Entre espelhos e abismos Entre espelhos e abismos 19 1 ENTRE ESPELHOS E ABISMOS Os espelhos Os espelhos acendem o seu brilho todo o dia Nunca são baços E mesmo sob a pálpebra da treva Sua lisa pupila cintila e fita Como a pupila do gato Eles nos reflectem. Nunca nos decoram Porém é só na penumbra da hora tardia Quando a imobilidade se instaura no centro do silêncio Que à tona dos espelhos aflora A luz que os habita e nos apaga: Luz arrancada Ao interior de um fogo frio e vítreo (ANDRESEN, 1990, p. 57) 1.1 Da intertextualidade Durante a primeira metade do século XIX sobreveio a discussão em torno da existência de duas modernidades distintas, sendo a primeira caracterizada pela ideia burguesa do progresso científico e tecnológico; e a segunda apreendida em relação a um conceito estético, que corroborou para dar vida às chamadas vanguardas, estando, “[...] desde os seus inícios românticos inclinada na direção de atitudes radicais antiburguesas” (CALINESCU, 1999, p. 49). Tal modernidade elegeu o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) como o seu principal teorizador, cuja poesia, centrada na tensão indissolúvel entre passado e presente, tradição e modernidade, materializou uma nova consciência de tempo, intensificando o trabalho com a linguagem poética. Ao lado de Baudelaire, escritores como Arthur Rimbaud (1854-1891), Stéphane Mallarmé (1842-1898), artistas plásticos como Paul Gauguin (1848-1903), Vincent Van Gogh (1853-1890), Paul Cézanne (1839-1906), entre outros, souberam romper com a visão realista da arte, ao oferecer novas formas de expressão, calcadas na dissonância e na negatividade dos discursos. Este rompimento provocou reações inesperadas, propiciando a abertura para o movimento moderno e as vanguardas das primeiras décadas do século XX. Entre espelhos e abismos 20 A incorporação dos ideais estéticos das experiências das vanguardas propiciou a análise do objeto literário em diálogo com as demais manifestações artísticas, engendradas sob o código da intertextualidade. Portanto, a representação literária define-se sistematicamente como um mosaico de referências dos demais sistemas artísticos. Desse modo, a modernidade estética conta com uma espécie de poética do recorte, ou seja, escrita que se espelha constantemente na sua reescrita, em fragmentos textuais que atuam como peças de um jogo, obstruindo a passagem de ideias gerais e atitudes conclusivas, as quais surgem como repetição no texto literário: “Fora da intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal como a palavra duma língua ainda desconhecida” (JENNY, 1979, p. 5). Assim, recorrendo à afirmação do poeta Stéphane Mallarmé – “Mais ou menos todos os livros contêm, medida, a fusão de qualquer repetição” (MALLARMÉ apud JENNY, 1979, p. 5) –, assenta-se a prática da intertextualidade como fenômeno que propicia a compreensão e consequentemente, a abordagem da obra literária. Decerto, as perspectivas sobre a intertextualidade interessam particularmente a este estudo, uma vez que a opção pelo recurso intertextual é constantemente adotada na ficção de Clarice Lispector. Sua obra fundamenta-se em uma estrutura bifurcada, em que se destacam um arsenal de citações e alusões que vão desde autores nacionais e estrangeiros, até passagens bíblicas, textos jornalísticos, pinturas, bilhetes, cartas e telegramas, atestando que “o literário não é o único gênero a comprazer a autora” (IANNACE, 2001, p. 21). Assim, faremos uma explanação teórica acerca da intertextualidade, a fim de embasar, posteriormente, a análise das narrativas claricianas, as quais constituem o corpus deste estudo. O conceito de “intertextualidade” foi adotado e difundido por Julia Kristeva (1941- ), nos anos sessenta do século XX, a partir dos estudos de Mikhail Bakhtin (1895- 1975). O termo foi explicitamente apresentado por Kristeva como uma tradução da noção do dialogismo bakhtiniano, sendo indissociável dos estudos do grupo de teóricos colaboradores da revista francesa Tel Quel, fundada em 1960 por Philippe Sollers (1936- ). Ao deter-se nas colocações de Bakhtin acerca do dialogismo, ou seja, do entrecruzamento de vozes presentes em um texto, Kristeva enfatiza umas das descobertas do teórico russo: “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64), Entre espelhos e abismos 21 instaurando, dessa maneira, a noção de intertextualidade em detrimento da de intersubjetividade. Repensando os pressupostos bakhtinianos a respeito da abordagem da palavra nos interstícios textuais, a autora afirma: “[...] o estatuto da palavra como unidade minimal do texto revela-se como mediador que liga o modelo estrutural ao ambiente cultural (histórico), assim como o regulador da mutação da diacronia em sincronia (em estrutura literária)” (KRISTEVA, 1974, p. 64). Para a estudiosa, devido à noção de estatuto, a palavra surge “espacializada”, relacionando-se com três dimensões (sujeito-destinatário-contexto), num conjunto de “elementos ambivalentes” em diálogo. Nessa concepção, “a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA, 1974, p. 54), acarretando a ilimitada repetição e reinvenção de formas e conteúdos no espaço dialógico dos textos: “O romance, em particular, exterioriza o diálogo linguístico” (KRISTEVA, 1974, p. 64). Nesse sentido, o dialogismo bakhtiniano determina a escrita como intertextualidade, ou seja, como subjetividade e comunicatividade, que dá lugar à chamada “ambivalência”, termo que acarreta reciprocamente o envolvimento da história (sociedade) no texto e deste na história, para além de uma compreensão apenas linguística. A abordagem e significação da intertextualidade fomentada por Mikhail Bakhtin e Julia Kristeva engendrou, por meio das pesquisas realizadas no circuito da crítica francesa, a difusão de incontáveis teorias que ampliaram a compreensão do conceito, inaugurando novas leituras e estratégias discursivas em suas formas de utilização. Desse modo, o presente capítulo destina-se à apresentação de uma dessas teorias, sem a vaidade de tomá-la como única e definitiva, mas sim com o desejo de percorrê-la, explorando suas potencialidades no que tange ao desenvolvimento e explanação do corpus desta pesquisa. Na profusão de releituras e abordagens acerca da intertextualidade encontram-se os estudos de Roland Barthes (1915-1980) e Michael Riffaterre (1924-2006), os quais delimitam e reduzem o conceito a um campo de ação. No artigo intitulado Théorie du texte, escrito para a Encyclopaedia Universalis, Barthes aborda a intertextualidade, relacionando-a com a prática da citação, conforme afirma: “Todo texto é um tecido novo de citações passadas” (BARTHES apud SAMOYAULT, 2008, p. 23). A afirmação faz repercutir a colocação do poeta Stéphane Mallarmé, supracitada, conservando proximidade com os argumentos de Kristeva: “[...] o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem é raramente Entre espelhos e abismos 22 localizável, de citações inconscientes ou automáticas, feitas em aspas” (BARTHES apud SAMOYAULT, 2008, p. 24). O autor recupera o conceito em Le plaisir du texte (1973), estendendo-o ao emprego da leitura ao utilizar a obra de Marcel Proust (1871-1922) como uma espécie de medida da leitura relacionada à memória: Saboreio o reino das fórmulas, a derrubada das origens, a desenvoltura que faz vir o texto anterior do texto ulterior. Compreendo que a obra de Proust é, pelo menos para mim, a obra de referência, a mathesis1 geral, a mandala de toda a cosmogonia literária [...] Proust [...] isso não é uma ‘autoridade’; simplesmente uma lembrança circular. E isso é bem o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito – que este texto seja Proust, ou o jornal cotidiano, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida. (BARTHES, 1973, p. 59 apud SAMOYAULT, 2008, p. 24) Como se vê, Barthes propõe uma via de mão dupla para a recepção literária, pautada na escritura e leitura, permitindo, assim, a concepção de uma “intertextualidade de superfície”, caracterizada pelo “estudo tipológico e formal dos gestos de retomada” (SAMOYAULT, 2008, p. 24), e de uma “intertextualidade de profundidade”, marcada, por sua vez, pelo “estudo das numerosas relações nascidas dos contatos dos textos entre si” (SAMOYAULT, 2008, p. 25). Em La production du texte (1979) e Sémiotique de la poésie (1983), Michael Riffaterre amplia o conceito de intertextualidade, direcionando-o para a recepção literária. Para Riffaterre, “o texto poético não se refere ao mundo, mas a outros textos e toda uma outra concepção testemunha de uma ilusão referencial” (RABAU, 2002, p. 60, tradução nossa)2. Nesse sentido, o intertexto, como um efeito de leitura, define-se pela percepção que o leitor tem das relações acerca de uma obra e outra que a precedeu ou a seguiu. Por sua vez, a intertextualidade caracteriza-se pelo “conjunto dos textos que encontramos na memória à leitura de uma dada passagem” (RIFFATERRE, 1981, p. 4 apud SAMOYAULT, 2008, p. 25). Desse modo, o texto constitui-se em “um conjunto de pressuposições de outros textos”, dada a necessidade de se compreender o texto a partir de seu intertexto. Em Le travail de la citation (1979), Antoine Compagnon (1950- ) apresenta uma sistematização da intertextualidade, ligando-a à esfera da citação. Para 1 Conhecimento; ciência. Cf. FORLIN, 2005, p. 46. 2 Trecho original: “le texte poétique ne réfère pas au monde mais à d’autres textes et tout autre conception témoigne d’une illusion référentielle” (RABAU, 2002, p. 60). Entre espelhos e abismos 23 Compagnon, o trabalho da citação na escrita implica a utilização de processos fundamentais no sentido e no enfrentamento com os textos: A leitura e a escrita, porque dependem da citação e a fazem trabalhar, produzem texto, no seu sentido mais material: volumes. A modalidade de existência da citação é o trabalho. Ou ainda, se a citação é contingente e acidental, o trabalho da citação é necessário, ele é o próprio texto. (COMPAGNON, 1996, p. 34) Compagnon avalia as práticas de reescritura, oferecendo a noção de texto como colagem ou bricolagem: “toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário” (COMPAGNON, 1996, p. 29). Nesse sentido, o escritor, como um bricoleur, tem a função de citar textos de outrem a fim de construir o seu próprio texto. Com efeito, a leitura e a percepção de outros universos ficcionais ocorrem com frequência na obra de Clarice Lispector, adquirindo o teor de reinvenção, “num constante e lúdico exercício de interpretação” (GOTLIB, 2001, p. 12). Dentre os inúmeros exemplos, está a crônica “Tortura e glória”, publicada no Jornal do Brasil em 2 de setembro de 19673. A matéria desse texto é reaproveitada, surgindo, com algumas alterações, no conto “Felicidade clandestina”, da coletânea homônima, publicada em 1971. O tema ainda reaparece em “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”, crônica publicada no Jornal do Brasil, em 24 de fevereiro de 1972. “Tortura e glória” aborda os esforços que a narradora, já adulta, empreendeu em criança para ler o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato (1882-1948). Para tanto, precisou driblar a duras penas a antagonista, filha de um proprietário de livraria, “gorda, baixa e sardenta”, que lhe negava o empréstimo do livro: “Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia” (LISPECTOR, 1999, p. 27). O intento sádico4 é interrompido pela mãe da garota, que, finalmente, põe um ponto final à “tortura”, obrigando-a a entregar o livro tão desejado. É Ricardo Iannace quem observa: [...] se antes a protagonista estava sob o domínio da filha do livreiro, agora, na posição de narradora, exerce pleno controle sobre o leitor. Passa de amante a construtora do texto, jogando cautelosamente com os sentidos daquele que está imerso no objeto de ficção. Pois a leitura de ‘Felicidade clandestina’ implica a de Reinações de Narizinho, que por sua vez dialoga com os contos de Perrault, dos Irmãos Grimm, as 3 No período de 19 de agosto de 1967 a 29 de dezembro de 1973, Clarice Lispector colaborou com uma coluna semanal no Jornal do Brasil, a convite do jornalista Alberto Dines. As crônicas publicadas durante este período foram reunidas no volume A descoberta do mundo (1984). 4 Cf. ROSENBAUM, Yudith. Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: EDUSP, 1999. Col. Ensaios de Cultura, 17. Entre espelhos e abismos 24 fábulas de Andersen, de La Fontaine... E nesta confluência de histórias insere-se justamente o conto intertextual de Clarice Lispector. (IANNACE, 2001, p. 49) As observações de Iannace confirmam o cruzamento de vozes e leituras que perpassam a fabulação da autora, evidenciada, sobremaneira, pela presença da obra lobatiana. A modificação do papel de leitora para o de escritora faz permanecer a paixão por Monteiro Lobato, como se nota em “Fidelidade”, pequeno texto publicado no Jornal do Brasil, em 12 de outubro de 1968: “Quanto a mim, continuo a ler Monteiro Lobato. Ele deu iluminação de alegria a muita infância infeliz. Nos momentos difíceis de agora, sinto um desamparo infantil, e Monteiro Lobato me traz luz” (LISPECTOR, 1999, p. 142). Acresce que, ao abordar a história da garota ansiosa por ler Reinações de Narizinho, a autora aborda, em verdade, a significação do ato de leitura e escrita, na medida em que nos mostra um “catálogo aberto em citações” (NOLASCO, 2004, p. 163). Na esteira do que afirma Compagnon (1996), a citação nada mais é do que um vestígio e uma referencialidade, sutilmente capaz de apresentar ao leitor o pensamento e as preferências de cada autor: “E como se confecciona uma bibliografia? Ela é o catálogo dos textos lidos pelo autor enquanto o projeto atual de escrita o conduz, logo, necessariamente limitada e incompleta” (1996, p. 75-76). O estudioso toma como exemplo da exploração de reescritura o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges (1899-1986), inserido no volume Ficções (1944). Nesta narrativa, Borges apresenta as estratégias obsessivas que o personagem Pierre Menard adota a fim de tentar recriar em sua ficção o mesmo procedimento estilístico de Miguel de Cervantes (1547-1616) em Dom Quixote: “Sua admirável ambição era reproduzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes” (BORGES, 1974, p. 67 apud COMPAGNON, 1996, p. 32). Tarefa que resulta impossível, a atitude de Menard corrobora a discussão do papel do leitor e a possibilidade do intertexto no século XX, isto é, numa época já contaminada pela obra de Cervantes. Com isso, o enredo borgiano toca na questão da aderência de um texto dentro de um novo contexto e nas perspectivas de absorção e transformação textuais: “Esse é o ponto limite para o qual tenderia uma escrita que, Entre espelhos e abismos 25 enquanto reescrita, se concebesse até o fim como devir do ato de citação” (COMPAGNON, 1996, p. 32). Os apontamentos de Compagnon acerca da citação nos levam a outro dos contos do volume Ficções, de Jorge Luis Borges. Em “A biblioteca de Babel”, a conhecida metáfora da biblioteca rumo ao universo atua como fonte literária inesgotável, contendo uma infinidade de livros: O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. (BORGES, 1999, p. 38) Nessa “biblioteca interminável”, Borges alude à literatura como uma espécie de manancial de todo autor, em referência à consulta e citação contínuas no que tange à elaboração dos textos. O narrador borgiano refere-se a “noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada” (BORGES, 1999, p. 40) para expor a ideia de que uma obra contém a recriação de todas as outras obras, citadas e referenciadas, em combinação aleatória dos mesmos procedimentos: Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. [...] Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. (BORGES, 1999, p. 40) Sistematiza-se aqui o modelo de toda escritura literária, uma vez que os livros conservam, portanto, infinitas possibilidades, em que colagem e citação se enlaçam, numa espécie de jogo infantil de recortar e colar: “[...] uma forma um pouco mais elaborada que a brincadeira com o carretel [...]. Construo um mundo à minha imagem, um mundo onde me pertenço, e é um mundo de papel” (COMPAGON, 1996, p. 12). Tais aspectos discutidos por Compagnon serão recuperados ao longo deste trabalho, no decorrer da análise do corpus, à proporção que puderem colaborar para o melhor entendimento da construção en abyme presente nas narrativas de Clarice Lispector. O modo lúdico de que nos fala Compagnon, essencialmente babélico na relação com a palavra, é o que caracteriza a escrita de nossa autora. Nela, a recorrência a outros escritores e a si mesma é um traço constante, marcado pela “transmigração autointertextual” que interessa à natureza deste estudo. Entre espelhos e abismos 26 A movência de textos “conscientemente praticada” (NOLASCO, 2004, p. 172) reverbera uma literatura “nômade e clandestina”, já anunciada na infância da escritora, na composição de enredos intermináveis: “[...] quando chegava em um ponto impossível, por exemplo, todos os personagens mortos, eu pegava. E dizia: ‘Não estavam bem mortos’. E continuava” (GOTLIB, 1995, p. 84 apud NOLASCO, 2004, p. 156). A brincadeira infantil da contação de histórias inacabadas pode bem caracterizar a prática clariciana, espécie de ciranda textual infinita, que, semelhante à “tesoura e cola” de Compagnon, inventa, recorta e recria enredos no eterno movimento “[...] de citações sem aspas e de empréstimos textuais de si mesma e do outro” (NOLASCO, 2004, p. 156). A exemplo da prática de reescrita e retomada intratextual estão as obras Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e Água viva (1973), as quais apresentam grande parte das crônicas presentes no volume A descoberta do mundo (1984). Conforme já mencionamos, este livro agrupa os textos publicados no Jornal do Brasil, de 1967 a 1973. Nesta época, a autora “[...] escrevia o livro Uma aprendizagem e recolhia notas para o Água viva e, às vezes, não tendo o que publicar no Jornal, ali publicava ‘pedaços’ dos livros” (NOLASCO, 2004, p. 172). Nessa teia nômade, caracterizada por tecer o inacabado, há a conhecida “cena- fragmento” da “moça e o cavalo”, que transmigra do início do romance A cidade sitiada (1949) (capítulo intitulado“ O morro do pasto”) para as páginas de A paixão segundo G.H. (1964). Do mesmo modo, o conto “Seco estudo de cavalos”, de Onde estivestes de noite (1974), desloca-se para Água viva (1973). É importante salientar que tais procedimentos discursivos estendem-se por repetições e acréscimos5, trazendo, na fatura diversificada, os sentidos anteriores: [...] o gesto repetir-escrever reforça o fato de que a escrita, para se arquivar enquanto escrita, precisa antes se desarquivar, ou seja, tornar públicos seus restos, a prática mesma de o fazer, os traços da mão da escritora, a memória e o esquecimento, as falhas, o que presta e o que não presta, o desejo e a morte. (NOLASCO, 2004, p. 174) No estudo intitulado A escritura nômade em Clarice Lispector (2001), Simone Curi também observa o aspecto de nomadismo presente na obra clariciana, apoiando-se 5 Por repetição, entendemos a retomada de um fragmento, que surge com “[...] uma nova roupagem enquanto texto” (NOLASCO, 2004, p. 174); por acréscimo, tem-se a “escrita colada”, na qual “[...] fragmentos migram aleatoriamente por sua obra” (NOLASCO, 2004, p. 174). Entre espelhos e abismos 27 nas teorias de Gilles Deleuze (1925-2004) e Félix Guattari (1930-1992) desenvolvidas em Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (1997). A pesquisadora reforça a condição de “movimento absoluto” do ser nômade, em oposição a qualquer deslocamento de um ponto de partida ou chegada. Nesse sentido, “nômade é aquele que não se move” (2001, p. 24), é “puro movimento, extático” (2001, p. 34). Diferentemente da condição do ser errante ou do flâneur, o nômade rende-se ao espaço intermediário do “fluxo da viagem” (2001, p. 77). Nesse sentido, o recurso de autocitação opera efeitos de bricolage na obra de Clarice Lispector, num movimento que ocorre em um mesmo lugar: “É a escritura que funda uma territorialidade própria, sem pontos e sem centros, simplesmente conjugada ao movimento” (CURI, 2001, p. 77). A título de ilustração, Curi (2001) recorre a dois dos “signos-temáticos” do itinerário ficcional de Clarice Lispector, o cavalo e o ovo. O movimento de tais signos surge no ponto de vista da forma e da produção, bem como no cruzamento dos textos “Estudo de cavalos” e “O ovo e a galinha”, respectivamente retirados das produções de Onde estivestes de noite (1974) e A legião estrangeira (1964). Em “Estudo de cavalos”6, Curi (2001) aborda o desdobramento da escrita que vai do jornalístico ao literário, observando o filão interno da narrativa, no regresso contínuo do texto ao texto. A pesquisadora lembra que já em Perto do coração selvagem o cavalo surgira em consonância à protagonista Joana, retornando com mais intensidade nas trajetórias de personagens seguintes, como Lucrécia e G.H. As composições de Onde estivestes de noite figuram como uma espécie de colcha de retalhos, costuradas e alinhavadas heterogeneamente, “[...] tornando-se um corpo despessoalizado” (CURI, 2001, p. 146), como se observa com os textos “Silêncio”, publicado anteriormente em 24/08/1968, no Jornal do Brasil com o título de “Noite na montanha”; “Um caso complicado”, publicado no mesmo jornal em 03/02/1973 como “Um caso para Nelson Rodrigues” e também reaproveitado em A via crucis do corpo (1974) com o título “Antes da ponte Rio-Niterói”; “Tanta mansidão”, publicado como “A alegria mansa-trecho” (Jornal do Brasil, 04/05/1968), surgindo depois na narrativa de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, em 1969, entre outros. 6 Em 04/08/1973, Clarice Lispector publica, no Jornal do Brasil, “Estudo de cavalos”. No ano seguinte, 1974, o texto é alocado, com pequenas alterações, na coletânea Onde estivestes de noite, com o título de “Seco estudo de cavalos”. Entre espelhos e abismos 28 Já em “O ovo e a galinha”7 o estudo de Simone Curi (2001) percorre o diálogo intertextual que se estabelece entre o texto de Clarice e o poema “O ovo de galinha”, publicado em 1961 por João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Ambos os autores utilizam o olhar no desvelamento do ovo e são capazes de transcender a materialidade do cotidiano. Na poética cabralina o ovo aparece de forma compacta, nu, empiricamente valorizado, como se nota no seguinte fragmento: Ao olho mostra a integridade de uma coisa num bloco, um ovo Numa só matéria, unitária, maciçamente ovo, num todo. sem mostrar um dentro e um fora, tal como as pedras, sem miolo: e só miolo: o dentro e o fora integralmente no contorno. (NETO, 1995, p. 302 apud CURI, 2001, p. 131) Da mesma maneira, a narrativa clariciana utiliza o olhar como instrumento de conhecimento: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo: mal vejo o ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios” (LISPECTOR, 1992, p. 228 apud CURI, 2001, p. 132). Nesse “tratado poético sobre o olhar”, como chamou José Miguel Wisnik (1988, p. 285), resta-nos o ovo e a escrita clariciana como um devir8: Escrever, para Clarice, é deslocar-se entre a máquina e o animal, encarnando seus processos orgânico-mecânicos simultaneamente, fazendo devir uma máquina de expressão, que por vezes se consome junto ao que produz, outras, como um aparato alucinado, veloz, descarrila sobre seu objeto, arrebatando-o. (CURI, 2001, p. 149) Em linhas gerais, a literatura de Clarice Lispector recorre ao procedimento semelhante a um “enxerto”, espécie de patchwork9 em que fragmentos migram de um texto para outro, ilustrando o processo repetitivo e obsessivo da escritora. A noção de prática textual como “enxerto” é abordada por Laurent Jenny (1949- ) no ensaio “A estratégia da forma” (1979). A partir dos apontamentos de Julia 7 “O ovo e a galinha” foi primeiramente publicado nos Cadernos Brasileiros, em 1963. No ano seguinte reaparece dividido em três partes nas páginas de A legião estrangeira e, finalmente, nos dias 05, 12 e 19 de Julho de 1969, no Jornal do Brasil, com o título de “Atualidade do ovo e a galinha”. Cf. CURI, 2001, p. 126. O texto foi utilizado por Clarice Lispector na participação do I Congresso Mundial de Bruxaria, realizado em Bogotá, Colômbia, no ano de 1975. 8 “A noção de devir nada tem a ver com a fé, com a autoridade, com o sobre-humano, talvez, todo o contrário, sua condição seja a de deixar de crer para poder acreditar. A razão reencontra na matéria o ser, desvirtuando o binarismo corpo/espírito” (CURI, 2001, p. 237). 9 Do inglês, “miscelânea”; trabalho feito com retalhos. Entre espelhos e abismos 29 Kristeva e Roland Barthes, o estudioso retoma o conceito de intertextualidade, observando o trabalho de transformação e assimilação presentes na obra literária. Tal trabalho, segundo Jenny, opera-se por um “texto centralizador” e detentor de sentido. Assim, ampliando as colocações de Kristeva, o crítico afirma: “O termo ‘intertextualidade’ seria, aliás, pouco adequado, uma vez que a relação se estabeleceria entre dois sistemas significantes ‘abertos’, e não entre dois textos” (JENNY, 1979, p. 20). O exercício intertextual fundamentaria-se, portanto, em torno de um “enxerto”, alojado numa “moldura narrativa coerente”, cujo princípio fundamentaria-se em “fazer caber vários textos num só, sem que se destruam mutuamente” (JENNY, 1979, p. 23). Em outras palavras, “Há intertextualidade quando o texto reformula um outro texto e não somente quando ele é portador de uma alusão que ele não modifica” (RABAU, 2002, p. 65, tradução nossa).10 Jenny atenta para o fato de que a escolha de se conservar os intertextos como “totalidade estruturada” depende das épocas e costumes, bem como dos enquadramentos estruturais. O autor lembra que tais exigências podem afrouxar-se “à medida que a noção moderna de texto se distende” (JENNY, 1979, p. 23), corroborando, assim, a renúncia ao enquadramento. Como exemplo, o estudioso recorre a Exercices de style (1947), de Raymond Queneau (1903-1976), obra que expõe variações de escrita, de modo a apresentar noventa e nove versões diferentes para um mesmo tema. Este assunto será abordado no capítulo três deste trabalho, quando desenvolvermos a análise do conto A quinta história, de Clarice Lispector, o qual apresenta semelhanças com a prática utilizada por Queneau. No que tange à obra clariciana, as referências são inseridas na “moldura narrativa”, sem perda ou prejuízo, como bem se observa com as crônicas, as quais se deslocam “do panteão da crônica para construir fragmentos de livros e/ou capítulos inteiros dos mesmos” (NOLASCO, 2001, p. 82). Confirma-se, desse modo, o rearranjo textual da obra, a exigir, consequentemente, uma nova postura do leitor: “[...] essa prática escritural veio a exigir do leitor que também ele rearranjasse, através de sua leitura, esses textos-fragmentos, para alcançar seu desejo (ou sentido) buscado” (NOLASCO, 2001, p. 82). O movimento fundamentado pelos trabalhos de Laurent Jenny torna-se mais preciso e sistematizado com o ponto de vista inaugurado pelo estudo Palimpsestes: la 10 Trecho original: “Il y a intertextualité quand le texte retravaille um autre texte et non pas seulement quand il est porteur d’une allusion qu’il ne modifie pas” (RABAU, 2002, p. 65). Entre espelhos e abismos 30 littérature au second degré (1982), de Gérard Genette (1930- ). Com Genette, o conceito de intertextualidade não é somente extensivo e já não serve para demarcar os limites da literariedade, restituindo-se, portanto, como parte de uma noção mais ampla, que o teórico denomina “transtextualidade”, explicada do seguinte modo: “tudo o que o coloca (o texto) em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE, 1982, p. 7). Na gama de práticas transtextuais expostas por Genette estariam cinco procedimentos: a intertextualidade, marcada pela ligação de co-presença entre dois ou mais textos; a paratextualidade, caracterizada pelo leque de elementos envolvidos com o título, subtítulo, prefácio, posfácio, epígrafe, etc; a metatextualidade, pautada pela relação de comentário de um texto a outro; a hipertextualidade, relação que liga um texto B (hipertexto) a um texto A (hipotexto), surgindo daí o circuito de texto de “segundo grau” ou derivado de outro já preexistente; a arquitextualidade, fixada pelo caráter taxonômico e genérico, que pode determinar o estatuto de um texto presente no título ou subtítulo de uma obra. O estudioso atenta para o caráter não estanque de tais procedimentos e, sobretudo, para a presença de uma certa interatividade entre eles. Para o teórico, as obras literárias caracterizariam-se pela presença massiva da retomada de outras obras, o que justifica a metáfora “palimpsesto” contida no título de seu estudo: “O palimpsesto é um manuscrito do qual se apagou a primeira escrita para poder aí escrever outro texto.” (RABAU, 2002, p. 69, tradução nossa)11. Genette apresenta as possibilidades de transformação textual, colocando em ordem duas operações: a redução e o acréscimo ou amplificação. Esta última será objeto do capítulo seguinte deste trabalho, quando tratarmos das receitas claricianas Meio cômico, mas eficaz e Receita de assassinato (de baratas). Em A intertextualidade (2008), a crítica francesa Tiphaine Samoyault (1968- ) reelabora o conceito, partindo da noção de memória. Para a estudiosa, a memória implica muito mais do que uma simples retomada de textos, mas, sobretudo, a dinâmica de uma escrita permutada entre o jogo do antigo e do novo: A literatura se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo que foi. Ela a exprime, movimentando sua memória e a inscrevendo nos textos por meio de um certo número de procedimentos de retomadas, de lembranças e de reescrituras, cujo trabalho faz aparecer o intertexto. (SAMOYAULT, 2008, p. 47) 11 Trecho original: “Le palimpseste est un manuscrit dont on a effacé la première écriture pour pouvoir y écrire un autre texte” (RABAU, 2002, p. 69). Entre espelhos e abismos 31 Assim, no capítulo “A memória da literatura”, Samoyault expõe os tipos de práticas textuais arroladas por Gérard Genette acerca da intertextualidade e hipertextualidade. Inseridos no primeiro grupo estariam os procedimentos de citação, plágio, alusão e referência pela “relação de co-presença (A está presente no texto B)” (SAMOYAULT, 2008, p. 48); já a paródia e o pastiche ocupariam a esfera da hipertextualidade devido à “relação de derivação (A é retomado e transformado em B [...])” (SAMOYAULT, 2008, p. 48). Por sua vez, as operações de integração/colagem dariam ênfase aos “fatores de heterogeneidade textual”, fundamentados “[...] na análise do liame entre os dois textos co-presentes” (SAMOYAULT, 2008, p. 59). Apostando sempre na ideia da memória da escritura, ponto fundamental da intertextualidade, Samoyault enfatiza as duas propostas presentes na história da literatura, “Tudo está dito” e “Digo-o como meu”, conforme consta na abertura de Caractères (1688), de Jean de La Bruyère (1645-1696): “Tudo está dito, e chegamos demasiado tarde, há mais de sete mil anos que há homens, e que pensam” (apud SAMOYAULT, 2008, p. 68). Assim, escrever significa reescrever, ato que registra a “criação continuada”, espécie de jogo responsável pelo aspecto lúdico da literatura. Nesse jogo, referências e modelos são colocados em cena, dando novo sentido à apropriação. Não é por acaso que a certidão de nascimento do romance moderno remonte à obra Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, novela de cavalaria sustentada pela paródia, inserindo a intertextualidade na origem romanesca. A memória e seu funcionamento no âmbito da intertextualidade é também tema do estudo Voleurs de mots (1985), do psicanalista francês Michel Schneider (1944- ). A psicanálise é o pano de fundo para a abordagem acerca da apropriação, ou seja, das complexas relações evidentes entre o eu e o outro na prática de leitura-escritura. O autor identifica os sistemas de oposição presentes no intertexto, tais como “um texto pelo outro” (plágio), “um texto sob o outro” (palimpsesto) e ainda “um texto como o outro” (pastiche), substituindo, desse modo, o termo intertextualidade. Na esteira de Bakhtin, o conceito de alteridade constitui, na teoria de Schneider, uma das medidas da intertextualidade, uma vez que a apropriação daquilo que vem de outrem pode atuar como constituinte do sujeito: De quê é feito um texto? Fragmentos originais, reuniões singulares, referências, acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários. De quê é feita uma pessoa? Pedaços de identificação, imagens Entre espelhos e abismos 32 incorporadas, traços de caracteres assimilados, o todo (se se pode dizer assim) formando uma ficção chamada eu. (SCHNEIDER, 1985, p. 12 apud SAMOYAULT, 2008, p. 41) O alcance da teoria de Michel Schneider lança luzes que interessam diretamente a esta pesquisa, no que tange aos processos de apropriação presentes na obra clariciana. Grande parte da crítica já procurou registrar a correlação estabelecida entre textos de Clarice Lispector e romances e contos de escritoras como Katherine Mansfield (1888-1923) e Virginia Woolf (1882-1941). Tais leituras contribuíram para a formação intelectual da autora, alterando, por vezes, sua condição pessoal, bem como deixando marcas singulares em sua escrita. É conhecido o fato do quanto a obra de Mansfield impressionou Clarice, levando-a a apresentar reações bem peculiares registradas na crônica “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”12 e na carta ao amigo Lúcio Cardoso: “Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu!” (LISPECTOR, 1999e, p. 453); “Que coisa absolutamente extraordinária que ela é!” (LISPECTOR apud GOTLIB, 1995, p. 190). Frequentemente os críticos discorrem sobre as semelhanças entre os contos “Bliss”, de Katherine Mansfield e “Amor”, de Clarice Lispector, procurando encontrar traços que justifiquem a questão do feminino entre as duas obras: Passagens de explosão de felicidade, quando as personagens não cabem em si mesmas e parecem cintilar podem ser lidas, tanto em Mansfield quanto em Clarice, como extrapolações dos papéis sociais estabelecidos para a mulher. (LIMA, 2007, p. 62) A cumplicidade entre as duas narrativas decorre da caracterização de suas protagonistas, Berta e Ana, mulheres inquietas na rotina problemática do lar e do casamento, bem como da ambientação intimista criada pelas autoras, já que no questionamento do cotidiano, ambas as personagens recolhem-se no jardim e “de repente, sentem que algo de estranho está para acontecer” (GOTLIB, 1995, p. 152). Ricardo Iannace pontua a escolha das duas autoras pela atmosfera passível de estranhamentos, cujos liames surgem a partir da ambiência doméstica presente em cada uma das narrativas, confirmando a presença do intertexto: [...] considerar que ‘Amor’ se constrói num plano paralelo ao conto “Bliss” significa depreendê-lo como um acabado intertexto, isto é, concentrado no núcleo temático e no processo de efeitos estilísticos que Clarice, a seu modo, tem em comum com a escritora neozelandesa. (IANNACE, 2001, p. 63) 12 Escrita ao Jornal do Brasil, em 24 de fevereiro de 1973. Entre espelhos e abismos 33 Como se vê, a identificação de Lispector pela escrita de Mansfield aponta para o processo de alteridade que baliza a literatura de cada sujeito que se faz escritor. Virginia Woolf também eclode nas páginas da produção jornalística de Clarice Lispector, embora no início de sua carreira literária tenha negado qualquer afinidade com a escritora inglesa13. A título de exemplo, observemos o texto A irmã de Shakespeare, publicado em 22 de maio de 1952 na coluna feminina do semanário Comício. Nessa produção, a autora, sob o pseudônimo de Tereza Quadros confabula com as leitoras a respeito de Um teto todo seu, obra publicada em 1928 por Woolf: Uma escritora inglesa – Virginia Woolf – querendo provar que mulher nenhuma, na época de Shakespeare, poderia ter escrito as peças de Shakespeare, inventou, para este último, uma irmã que se chamaria Judith. [...] Judith não seria mandada para a escola. E ninguém lê em latim sem ao menos saber as declinações. Às vezes, como tinha tanto desejo de aprender, pegava nos livros do irmão. Os pais intervinham: mandavam-na cerzir meias ou vigiar o assado. (LISPECTOR, 2006, p. 125) Como se sabe, o ensaio de Virginia Woolf foi o resultado de duas conferências que a escritora realizou na Inglaterra, em estabelecimentos de ensino para as mulheres de sua época. É importante sinalizarmos que a escritora inglesa toca em questões bastante polêmicas do período elizabetano, repensando o lugar da mulher frente ao trabalho, sempre nivelado por papéis sociais atribuídos aos sexos. Clarice, por sua vez, apropria-se das ideias de Woolf, demonstrando estar atenta em relação às leitoras no que tange aos impasses enfrentados por estas no âmbito social e familiar. Conforme sinaliza Compagnon, “apropriar-se seria menos tomar que se retomar, menos tomar posse de outrem que de si” (1996, p. 94). Diante disso, a intertextualidade deve ser compreendida como um procedimento dialógico, no qual outros textos são inseridos ou permutados na obra do autor: “A noção de alteridade é decisiva para estabelecer esse movimento dos textos, esse movimento da linguagem que carrega outras palavras, as palavras dos outros” (SAMOYAULT, 2008, p. 20). Nesse sentido, a alteridade caminha lado a lado ao artefato da escrita clariciana, restando à autora, espécie de Penélope das letras, tecer e destecer os textos, alinhavando-os na proliferação de imagens e motivos errantes, os quais retornam obsessivamente. Conforme afirma Gilberto Figueiredo Martins: “Em Clarice, o desejo- 13 “Não gosto quando dizem que tenho afinidade com Virginia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim” (LISPECTOR, 1999, p. 367 apud MOSER, 2009, p 205). Entre espelhos e abismos 34 de-ser-com-o-outro é às vezes tão radical que se torna desejo-de-ser-o-outro” (2010, p. 19), como se nota nas palavras do narrador Rodrigo S.M, em A hora da estrela: “É paixão minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço esquálido igual a ela” (LISPECTOR, 1998, p. 29)14. A intertextualidade equivale, por certo, a um meio que propicia à narrativa clariciana interagir, reaproveitando outros textos, sejam eles de outrem ou de si mesmo, manifestando-se, dessa forma, como trabalho estético capaz de provocar reflexões sobre o modo de escrita. Como veremos, os jogos textuais empreendidos pela autora inserem sua obra num novo patamar literário, fazendo de sua literatura “um rio que inaugura o seu próprio curso para, como a serpente uróboro, desaguar na nascente” (SANTIAGO, 2004, p. 233). Concluindo, então, essa primeira parte acerca da fundamentação teórica da intertextualidade, acredita-se ter sido possível descrever esse processo como condição recorrente e fundamental da literatura de Clarice Lispector. Na sequência, entraremos na discussão em torno do procedimento da mise en abyme, uma das formas de intertextualidade, talvez a mais presente no corpus deste trabalho, levando-se em conta a possibilidade da especularidade como traço maior da obra clariciana. 1.2 Mise en abyme: definições É curioso quando o procedimento da intertextualidade se pauta no trabalho de resgate de textos de um mesmo autor, reescrevendo-se em outro texto, no movimento de remissão à própria obra, dando origem ao fenômeno da chamada autotextualidade ou intratextualidade, conforme a nomenclatura de Gérard Genette em Palimpsestes (1982). Como exercício de reenvio a outros textos, a autotextualidade ou intratextualidade constitui-se numa forma específica de transtextualidade, apresentando especificidades. Frequentemente os teóricos discriminam “intertextualidade interna” e “externa”, como é o caso de Jean Ricardou (1932- ) em Pour une théorie du nouveau roman (1971). Ao discutir a unidade da obra literária e a noção de autor, Ricardou estabelece 14 O mesmo movimento pode ser visto na crônica “Em busca do outro” (Jornal do Brasil, 20/07/1968): “Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada” (LISPECTOR, 1999, p. 119). Entre espelhos e abismos 35 as diferenças, indicando a “intertextualidade externa” como a relação de um texto com outro texto, distinguindo-a da “intertextualidade interna”, cuja relação é pautada por um texto consigo mesmo15. No colóquio sobre o escritor Claude Simon (1913-2005) ocorrido em Cerisy-la- Salle (1974), o estudioso ainda determina a “intertextualidade geral”, caracterizada como as relações intertextuais entre textos de autores diferentes, e a “intertextualidade restrita”, por sua vez, demarcada pelas relações entre textos de um mesmo autor16. A partir da distinção postulada por Ricardou, o teórico Lucien Dallenbach (1949- ), no ensaio “Intertexto e autotexto” (1979) admite a existência da chamada “intertextualidade autárquica”, designando-a por “autotextualidade”, como o fez Gérard Genette. Em sua especificidade, o fenômeno do autotexto pode ser caracterizado como uma “reduplicação interna” da obra literária, no sistema das “relações possíveis dum texto consigo mesmo” (DALLENBACH, 1979, p. 52), ao desdobrar a narrativa toda ou em parte sob as dimensões “literal” (a do texto, no sentido estrito) ou “referencial” (a da ficção). Em seguida, Dallenbach inicia a discussão a respeito da mise en abyme, procedimento que concebe como “autotexto particular” (DALLENBACH, 1979, p. 53), retomando os apontamentos do escritor André Gide (1869-1951). A imagem en abyme que seduz Gide é oriunda da heráldica e representa um escudo contendo em seu centro uma espécie de miniatura de si mesmo, de modo a indicar um processo de profundidade e infinito, o que parece sugerir, no campo literário, noções de reflexo, espelhamento: Gosto que em uma obra de arte se encontre assim transposto, à escala dos personagens, o pano de fundo desta obra. Nada o esclarece melhor nem estabelece mais seguramente todas as proporções do conjunto. Assim, nos quadros de Memling ou de Quentin Metzys, um pequeno espelho convexo e escuro reflete, por sua vez, o interior de um cômodo onde se representa a cena pintada. Assim, no quadro das Meninas de Velásquez (mas um pouco diferentemente). Enfim, em literatura, em Hamlet, a cena da comédia; e alhures em muitas outras peças. Em Wilhelm Meiste, as cenas de marionetes ou da festa no castelo. Na Queda da casa de Usher, a leitura que se faz à Roderick, etc. Nenhum desses exemplos é justo. O que o seria muito mais, o que diria melhor o que eu quis nos meus Cahiers, no meu Narcisse e em La tentative, é a comparação com esse artifício do brasão que consiste, 15 Cf. Ricardou (1971) apud Dallenbach (1979). 16 Cf. Ricardou (1974) apud Dallenbach (1979). Entre espelhos e abismos 36 no primeiro, em colocar um segundo ‘em abismo’. (GIDE, 1948, p. 41 apud DALLENBACH, 1977, p. 15, tradução nossa)17 De acordo com os heraldistas, o escudo é o elemento central do brasão; é nele que estão contidos os caracteres distintivos18. O termo abyme, por sua vez, alude ao centro do escudo, quando as peças aí inseridas portam dimensões menores, revelando um espaço de miniaturização de figuras, configuração que levou Gide a perfilhar por analogia o procedimento do encaixe narrativo. Figura 1: O brasão Fonte: (DALLENBACH, 1977, p. 143) Não são poucos os estudiosos que se debruçaram sobre o procedimento da mise en abyme e sua especularidade, haja vista a diversidade de expressões utilizadas, conferindo ao termo riqueza simbólica e estrutural advinda de domínios artísticos diversos. Para além da famosa comparação gidiana com o brasão, é possível encontrarmos os termos “réfractions”19, no vocabulário de Michel Butor20; “procédé de 17 Trecho original: “J'aime assez qu'en une œuvre d'art on retrouve ainsi transposé, à l'échelle des personnages, le sujet même de cette œuvre. Rien ne l'éclaire mieux et n'établit plus sûrement toutes les proportions de l'ensemble. Ainsi, dans tels tableaux de Memling ou de Quentin Metzys, un petit miroir convexe et sombre reflète, à son tour, l'intérieur de la pièce où se joue la scène peinte. Ainsi, dans le tableau des Ménines de Velasquez (mais un peu différemment). Enfin, en littérature, dans Hamlet, la scène de la comédie; et ailleurs dans bien d'autres pièces. Dans Wilhelm Meister, les scènes de marionnettes ou de fête au château. Dans La chute de la maison Usher, la lecture que l'on fait à Roderick, etc. Aucun de ces exemples n'est absolument juste. Ce qui le serait beaucoup plus, ce qui dirait mieux ce que j'ai voulu dans mes Cahiers, dans mon Narcisse et dans La tentative, c'est la comparaison avec ce procédé du blason qui consiste, dans le premier, à en mettre un second ‘en abyme’.” (GIDE, 1948, p. 41 apud DALLENBACH, 1977, p. 15). 18 Cf. ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Armorial lusitano: genealogia e heráldica. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1961. 19 Do francês, “refração”. 20 BUTOR, Michel. Répertoire III. Paris: Éd. de Minuit, 1968. Entre espelhos e abismos 37 repli ou de réflexion”21, nos dizeres de Claude-Edmonde Magny22; “composition” e “construction en abyme”23, nos estudos de Pierre Lafille24; “jeux de miroirs parfois byzantins”25, no entendimento de Michel Raimond26; “miroir”27, na abordagem de Jean Ricardou28 e ainda o verbo “réfléchir”29 e a palavra “reflet”30 no que tange aos estudos realizados pelos autores da Rhétorique générale31. Em Sobre os espelhos e outros ensaios (1985), Umberto Eco dedica-se à questão, definindo espelho como “qualquer superfície regular capaz de refletir a radiação luminosa incidente” (1989, p. 13). Tal superfície pode ser plana ou curva, sólida ou líquida, capaz de captar e revelar imagens em sua suprema singularidade. Na esteira da semiótica, Eco estabelece uma espécie de “pragmática do espelho”, atentando para a relação de dependência que o espelho, como um fenômeno físico, mantém com o objeto. Desse modo, conclui que o fenômeno especular não constitui um signo, visto que não se pode universalizá-lo: Se o espelho nomeia (mas, claramente, trata-se de uma metáfora), ele nomeia um só objeto que está na sua frente. Em outras palavras, o que quer que seja uma imagem especular, esta é determinada nas suas origens e na sua subsistência física por um objeto a que chamaremos referente da imagem. (ECO, 1989, p. 21) A metáfora do espelho também esteve presente na esfera da psicanálise nos trabalhos desenvolvidos por Jacques Lacan (1901-1981). O estudo lacaniano foi intitulado “O estágio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” e apresentado pelo autor em julho de 1949, em Zurique, na ocasião do XVI Congresso Internacional de Psicanálise. Para Lacan, o espelho é abordado como um fenômeno demarcador dos limites entre a instância imaginária e simbólica, compreendendo três fases ou estágios na vida da criança, entre os seis e oito meses de idade: num primeiro momento, a criança parece confundir a imagem especular com a realidade; já numa segunda fase ela entende que se trata de 21 Do francês, “procedimento de recuo ou de reflexão”. 22 CE MAGNY. Histoire du roman français depuis 1918. Paris: Éd. du Seuil, 1950. (Pode-se dizer que é Magny quem estabelece definitivamente a expressão mise en abyme na crítica literária. Cf. Dictionnaire des genres et des notions littéraires. Paris: Encyclopédie Universalis et Albin Michel, 1997). 23 Do francês, “composição” e “construção em abismo”. 24 LAFILLE, Pierre. André Gide romancier. Paris: Hachette, 1954. 25 Do francês, “jogos de espelhos às vezes bizantinos”. 26 RAIMOND, Michel. La crise du roman. Paris: Corti, 1966. 27 Do francês, “espelho”. 28 RICARDOU, Jean. Problèmes du nouveau roman. Paris: Éd. du Seuil, 1967. 29 Do francês, “refletir”. 30 Do francês, “reflexo”. 31 DUBOIS, Jacques. et al. Rhétorique génerale. Paris: Librairie Larousse, 1970. Entre espelhos e abismos 38 uma imagem e, posteriormente, absorve e compreende o reflexo como seu. Nesse sentido, a percepção do corpo e a experiência especular revelam-se imbricadas, como partes constituintes da subjetividade32. A fim de explanar e tornar mais clara a especularidade da figura heráldica tomada por Gide, Dallenbach (1972) atenta para as comparações à exaustão com as bonecas russas e as caixas chinesas, as quais se engendram umas às outras, bem como as pirâmides mexicanas, que se encaixam e se refletem mutuamente; os cartazes publicitários, reproduzindo seus motivos ao infinito e em perspectiva e ainda a famosa fita de Moebius, cujas faces interna e externa permutam-se, invertendo sua identidade. A pluralidade de comparações em torno do conceito de mise en abyme e sua especularidade permite acrescentarmos a chamada Geometria dos fractais, teoria elaborada pelo matemático polonês Benoît Mandelbrot (1924-2010) em 1975. Proveniente do latim fractus, o termo “fractal” deriva do verbo frangere, cujas significações abrangem os sentidos de quebrar, fender-se, ou seja, “criar fragmentos irregulares, fragmentar” (BARBOSA, 2002, p. 9). Diante desta noção, Mandelbrot desenvolveu estudos de formas e padrões geométricos que se repetiam infinitamente, ainda que restritos a um espaço finito. Assim, os fractais constituem-se em formas determinadas pela propriedade de autossemelhança, visto que uma parte da figura reflete, de modo exato ou aproximado, sua totalidade. O melhor exemplo é o estudo realizado nas costas da Bretanha, em que cada trecho, com seus cabos e baías, é similar a uma miniatura de todo o litoral. A Geometria dos Fractais estende-se a diferentes áreas do conhecimento, tais como às ciências naturais, no que tange ao formato e dimensões de nuvens, relâmpagos, plantas e árvores, bem como a outros campos, sendo a computação, a engenharia, a biologia, a geografia, a física, a arte, entre outros. Na medida em que postula uma semelhança entre suas formas, o temário proposto pela Geometria dos fractais encontra ressonância no âmbito da teoria literária, especialmente no que tange aos estudos de Dallenbach (1972) a respeito da narrativa Les faux-monnayeurs (1926), de André Gide. Nessa obra, o personagem Edouard é um escritor que tem como projeto redigir um livro que, por sua vez, leva o mesmo título do romance que estamos lendo, caracterizando, portanto, a estratégia narrativa da mise en abyme. A obra gidiana constrói uma hesitação prolongada entre o interior e o exterior, 32 Cf. LACAN, Jacques. O seminário: livro I: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. Entre espelhos e abismos 39 na qual os dois textos não fazem mais que aludir um ao outro, numa intrigante relação de permuta. Nessa estreita conexão, “o romance tornou-se alegoria dele mesmo” (DALLENBACH, 1972, p. 61, tradução nossa)33. Essencialmente metalinguística, a narrativa de Les faux-monnayeurs ofereceu ao autor o ensejo de discutir os procedimentos fundamentais da condução da obra, questionando os limites de sua criação e caracterização: Despojar o romance de todos os elementos que não pertençam especificamente ao romance. [...] Mesmo a descrição dos personagens não me parece pertencer convenientemente ao gênero. Sim, realmente, não me parece que o romance puro (e em arte, como em tudo, só a pureza me interessa) deva se ocupar dela. [...] O romancista, em geral, não dá suficiente crédito à imaginação do leitor. (GIDE, 1983, p. 66) O exercício interpretativo de Gide em torno da mise en abyme é bastante pertinente e nos faz atentar para a relação crítica de especularidade presente no jogo entre o mesmo e o outro. A imagem de um objeto refletida pelo espelho pressupõe o objeto ainda que não seja o objeto, propriamente. Na obra gidiana, a narrativa primeira funciona como o enunciado refletido, espelhado na segunda narrativa, que, por sua vez, reflete criticamente sobre a primeira. Conforme evidencia Dallenbach: O desdobramento, aqui, se opera sob nossos olhos: representação segunda, ele torna-se cópia da cópia, imagem da imagem, de modo que a obra possa, por esse retorno sobre ela mesma, satisfazer suas tendências narcísicas e se mirar no espelho de seu próprio espetáculo. (DALLENBACH, 1972, p. 66, tradução nossa)34 Acresce que, como um de seus intentos, a mise en abyme procura manifestar a ação retroativa sobre seu autor, fazendo com que este seja representado em diversos momentos no enredo, como narrador-personagem ou personagem-escritor ou ainda como autorreflexividade do próprio autor. Haveria, nesse sentido, três níveis de configuração do autor: “Gide, escritor real que escreveu o romance [...], o narrador que conta a história de Edouard e o personagem-escritor que está escrevendo um romance chamado Les faux-monnayeurs” (SOUZA, 2008, p. 11). Nesse jogo especular, o primeiro nível (escritor real) é situado fora da narrativa e os demais repartidos na narrativa principal e secundária, por sua vez, colocada en abyme. 33 Trecho original: “le roman est devenu l’allégorie de lui-même” (DALLENBACH, 1972, p. 61). 34 Trecho original: “Le dédoublement, ici, s’opère sous nos yeux: représentation seconde, Il devient copie de la copie, image de l’image, de sorte que l’oeuvre peut par ce retour sur elle-même, satisfaire ses tendances narcissiques et se mirer dans le miroir de son propre spectacle” (DALLENBACH, 1972, p. 66). Entre espelhos e abismos 40 Vale salientar também a metatextualidade presente em Les faux-monnayeurs como procedimento de autorreflexividade, ou seja, um processo capaz de demarcar os mecanismos de produção textual, constituído pela alusão empreendida por um texto aos instrumentos sistemáticos de sua criação. Parece-nos inevitável, neste ponto, mencionarmos a narrativa de A hora da estrela (1977), em que por meio do narrador Rodrigo S.M, Clarice Lispector manipula estratégias discursivas, comentando a fatura do romance: [...] o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria. [...] limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. [...] Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa? (LISPECTOR, 1993, p. 28-29) De acordo com Benedito Nunes (1998), a narrativa conjuga três histórias, a vida da nordestina Macabéa, a de Rodrigo S.M, narrador interposto, e, finalmente, a da própria narração. Assim, ao narrar as “fracas aventuras” de Macabéa, Rodrigo S.M narra-se a si próprio e espelha-se na nordestina, favorecendo, desse modo, a especularidade, ao mesmo tempo em que corrobora o processo de metatextualidade conjugado na atitude de comentário, no constante questionamento do ato de escrever, “quanto a seu objeto, a sua finalidade e a seus procedimentos” (NUNES, 1998, p. 39). A técnica da mise en abyme utilizada por Gide em Les faux-monnayeurs nos remete a outra de suas narrativas, mais especificamente à novela La porte étroite, publicada em 1909. O enredo gira em torno da história de amor entre dois primos, Jérôme e Alissa, e do decoro desta em relação à infidelidade da mãe, sra. Vautier, que mantinha um romance com um jovem tenente. Em virtude disto, Alissa decide manter- se ao lado do pai abandonado, dedicando-lhe copiosa atenção e fidelidade até a morte. Resta aos primos, Jérôme e Alissa, protagonistas de um amor malogrado, a correspondência do amor por cartas, favorecendo, desse modo, a técnica ficcional da mise en abyme ou construção em abismo, conforme observa Ivan Junqueira: “[...] essas micronarrativas se desenrolam através das cartas trocadas entre Jérôme e Alissa e do diário desta última, informando-nos sobre aspectos que a narrativa nuclear sonegara” (2005, p. 94-95). Pode-se dizer que os procedimentos narrativos de La porte étroite trazem, de modo embrionário, a antecipação da mise en abyme utilizada por Gide anos depois em Entre espelhos e abismos 41 Les faux-monnayeurs, na medida em que engendram a simultaneidade de uma ou mais histórias inseridas dentro da narrativa principal. As reflexões picturais empreendidas por Dallenbach recobrem as especularidades presentes nas telas de Jan van Eyck (1390-1441) e Diego Velásquez (1599-1660). O teórico atenta para as propriedades naturais do espelho e seu poder de revelação, ou seja, mediante o posicionamento dos espelhos é possível a observação de diferentes estratos da realidade, bem como a simultaneidade das imagens, o que normalmente não seria possível sem esse artifício: No entanto, nessa rivalidade da pintura e da literatura com o espelho, não há nada ainda que ofereça algum paralelo com a mise en abyme tal como nós a entendemos. Para que eles nos ajudem a compreender o tipo de reflexão que a caracteriza, será necessário que os pintores e escritores não se contentem em imitar o espelho e em reproduzir sua imagem, mas que eles reproduzam a imagem que ele próprio reproduz. (DALLENBACH, 1972, p. 63, tradução nossa)35 Embora não mencionado nos exemplos de Gide, o célebre quadro O casal Arnolfini (1434), de Van Eyck constitui um dos melhores exemplos no que tange ao uso da especularidade. Com cores intensas e técnica impecável, o pintor registra a cena de celebração de um casamento ou noivado. Porém, o espelho convexo pendurado na parede de trás da alcova, revela, para além do casal, a presença de mais dois indivíduos como testemunhas da cerimônia religiosa, sendo uma delas provavelmente a figura do próprio pintor, dado que se confirma pela seguinte inscrição: “Jan van Eyck esteve aqui em 1434”36. O ambiente de respeito e religiosidade é reforçado pela moldura do espelho, ornamentada com a exibição das “Estações da Cruz”, as quais representam dez dos quatorze passos da paixão de Cristo. Para Lucien Dallenbach, a inserção da figura do próprio pintor na obra revela-se como “instrumento de um encontro e signo da alta consciência que Van Eyck tem de sua arte” (DALLENBACH, 1972, p. 64, tradução nossa)37. Este apontamento é importante para pensarmos a natureza da mise en abyme, cuja concepção se encontra vinculada à tomada de consciência de autores e artistas divididos entre a representação do mundo ficcional e o questionamento da gênese de sua obra. 35 Trecho original: “Pourtant, dans cette rivalité de la peinture et de la littérature avec le miroir, il n’y a rien encore qui offre quelque parallèle avec la mise en abyme telle que nous l’entendons. Pour qu’ils nous aident à comprendre le type de réflexion qui la caractérise, il faudra que peintres et écrivains ne se contentent pas d'imiter le miroir et de reproduire son image, mais qu'ils reproduisent l'image qu'il reproduit lui-même”. (DALLENBACH, 1972, p. 63). 36 “Johannes van Eyck fuit hic 1434”. 37 Trecho original: “instrument d’une rencontre et signe de la haute conscience que Van Eyck a de son art” (DALLENBACH, 1972, p. 64). Entre espelhos e abismos 42 Figura 2: O casal Arnolfini (1434), Jan Van Eyck. 82 x 59,5 cm, National Gallery, Londres. Fonte: (KOSTER, 2003, p. 3) Figura 3: Detalhe do quadro O casal Arnolfini (1434), Jan Van Eyck Fonte: (KOSTER, 2003, p. 4) Entre espelhos e abismos 43 A tela As meninas (1656), de Diego Velásquez, tem como projeto a captação de uma cena palaciana da corte imperial de Filipe IV. Na parte central do quadro, encontram-se a infanta Margarida e suas damas de companhia. Curiosamente, desponta, no canto esquerdo da tela, o autorretrato do pintor espanhol, que se coloca, portanto, como objeto e sujeito de sua própria obra38. Na visão de Michel Foucault (1926-1984), a obra de Velásquez engendra um questionamento acerca da noção clássica de representação, na medida em que estabelece um espaço que parece exterior ao cenário e paradoxalmente lhe pertence, já que poderia configurar-se como o lugar do próprio espectador: “O pintor olha, o rosto ligeiramente virado e a cabeça inclinada para o ombro. Fixa um ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nós: o nosso corpo, o nosso rosto, os nossos olhos” (FOUCAULT, 1999, p. 4). Mais ao fundo, há a figura de um homem que toca uma cortina, conferindo à obra de Velásquez ainda mais movimento e luminosidade. No segundo plano, mais especificamente sobre a parede do fundo da sala, surge a figura de um espelho em que estão refletidos o rei e a sua segunda esposa e sobrinha, Mariana de Áustria. A intervenção do espelho torna a cena ambígua, já que o espectador não tem certeza de quem seria ali retratado. Assim, o espelho reflete o que não é acessível à tela e ao mesmo tempo revela certa incongruência em relação ao todo representado. Na esteira dos estudos foucaultianos, Dallenbach atesta: [...] o espelho realiza uma reciprocidade de olhares que faz oscilar o interior e o exterior, une reflexos refletores e reflexos refletidos e leva a imagem a sair da sua moldura ao mesmo tempo em que convida os visitantes a entrar no quadro. (DALLENBACH, 1972, p. 64, tradução nossa)39 38 Cf. BROWN, Jonathan. Imágenes e ideas en la pintura española del siglo XVII. Madrid: Alianza Editorial, 1980. p. 115-142. 39 Trecho original: “le miroir réalise une réciprocité des regards qui fait osciller l’interieur et l’extérieur, marie reflets reflétants et reflets réfléchis et pousse l’image à sortir de son cadre em même temps qu’il convie les visiteurs à entrer dans le tableau” (DALLENBACH, 1972, p. 64). Entre espelhos e abismos 44 Figura 4: As meninas (1656), Diego Velásquez. 310 x 276 cm, Museu do Prado, Madrid. Fonte: Disponível em: http://www.eeweems.com/goya (acesso em janeiro de 2015) Figura 5: Numeração das personagens de As meninas (1656), Diego Velásquez. (1) A Infanta Margarida (2) D. Isabel de Velasco (3) D. María Agustina Sarmiento de Sotomayor (4) A anã (Maria Bárbola) (5) Nicolas Pertusato (6) D. Marcela de Ulloa (7) O guarda-damas, Diego Ruiz de Azcona (8) Dom José Nieto Velázquez (9) Diego Velázquez (10) Rei Filipe IV (11) Mariana de Áustria Fonte: Disponível em: http://www.eeweems.com/goya (acesso em janeiro de 2015) Entre espelhos e abismos 45 A capacidade reveladora de permitir o alcance de elementos não acessíveis à visão pura torna possível a discussão em torno da intrigante estrutura abismal presente nos espelhos. Nesse contexto, a mise en abyme surge como procedimento narrativo associado à função especular, caracterizando-se como um instrumento de realce à imagem refletida em sua duplicidade. Seu funcionamento reitera os contornos e propriedades do objeto refletido. Após os exemplos picturais, Gide propõe três exemplos literários, alargando as perspectivas e funções da mise en abyme. Trata-se de Hamlet (1603), de William Shakespeare (1564-1616), Wilhelm Meister (1795), de Goethe (1749-1832) e La chute de la maison Usher (1839), de Allan Poe (1809-1849). No que tange à obra de Shakespeare, Gide considera a famosa cena da comédia, capaz de trazer à tona a característica da peça dentro da peça, reproduzindo a cena do assassinato do rei. Quanto a Wilhelm Meister, Gide aponta “as cenas de marionetes ou da festa no castelo” (GIDE, 1948, p. 41 apud DALLENBACH, 1977, p. 15, tradução nossa)40, as quais são marcadas pela interferência do imaginário e da vida: “Os dois mises en abyme são, então, aqui micromodelos em função demonstrativa” (GOULET, 2006, p. 43, tradução nossa)41. Concernente à obra de Poe, Gide destaca “a leitura que se faz à Roderick” (GIDE, 1948, p. 41 apud DALLENBACH, 1977, p. 15, tradução nossa)42, quando o narrador lê para o amigo Roderick Usher a obra Mad trist, espécie de contraponto fantástico, capaz de anunciar o fantasma de Lady Madeline, reproduzindo, assim, os acontecimentos da narrativa principal. Em torno do brasão, as considerações gidianas apontam para a intersecção de encadeamentos significativos diversos, isto é, um interessante jogo especular inserido na narrativa. Tal como os espelhos convexos encontrados nas pinturas flamengas, atribuindo novas dimensões aos espaços frontais e demarcados das telas, na narrativa há, por sua, vez, o desdobramento de histórias encaixadas, as quais alargam o processo de significação textual. No artigo Du blason littéraire ou la mise en abyme en littérature (2004), a pesquisadora Rodica Stanciu-Capotã, da Academia de Estudos Econômicos de 40 Trecho original: “les scènes de marionnettes ou de fête au château” (GIDE, 1948, p. 41 apud DALLENBACH, 1977, p. 15). 41 Trecho original: “Les deux mises en abyme sont donc ici des micro-modèles à fonction démonstrative” (GOULET, 2006, p. 43). 42 Trecho original: “la lecture que l’on fait à Roderick” (GIDE, 1948, p. 41 apud DALLENBACH, 1977, p. 15). Entre espelhos e abismos 46 Bucareste, atualiza os exemplos de Gide ao salientar a tomada de consciência da técnica da mise en abyme por outros escritores, tais como Melville (1819-1891), Hoffmann (1776-1822), Hugo (1802-1885), Flaubert (1821-1880), Zola (1840-1902), Maupassant (1850-1893), Proust (1871-1922), e os romancistas do nouveau roman. Além disso, a estudiosa discute os domínios artísticos da pintura e da literatura, constatando, que, normalmente, somos tentados a confundir as duas técnicas sem atentar para as diferenças entre elas e para a maneira como cada uma reflete seus objetos: Se na pintura os espelhos refletem de uma maneira ‘completiva’, quer dizer, refletem alguma coisa que não se encontra na nossa esfera visual, em literatura essa técnica reflexiva retoma, resplende o assunto em questão, então, alguma coisa que existe na nossa esfera de percepção, em literatura, estando colocado em abismo ou em coração o assunto que nós conhecemos ou que vamos conhecer. (STANCIU- CAPOTÃ, 2004, p. 55, tradução nossa)43 Desse modo, Stanciu-Capotã enfatiza a importância da retomada reflexiva do sujeito em literatura, lembrando as palavras de Gide: “a comparação com esse artifício do brasão que consiste, no primeiro, em colocar um segundo ‘em abismo’” (GIDE, 1948, p. 41 apud STANCIU-CAPOTÃ, 2004, p. 55, tradução nossa)44. O melhor enquadramento de todas as duplicações interiores se dá com “a peça dentro da peça” do episódio de Hamlet, de Shakeaspeare, representando a técnica em seu estado puro. Entre os exemplos arrolados pela pesquisadora está o de Victor Hugo com o drama William Shakeaspeare, de 1864, anunciando, como bem observou Jean Ricardou em Le nouveau roman, a nova orientação da crítica moderna, na esteira das obras shakespearianas: A ideia bifurcada, a ideia fazendo eco a ela mesma, um drama menor que copia e que se acotovela com o drama principal, a ação levando consigo sua lua, uma ação menor que sua semelhante; a unidade cortada em dois [...]. Essas duas ações duplas são puramente shakespearianas. Elas, além disso, são o sinal do século XVI. (RICARDOU, 1973, p. 49 apud STANCIU-CAPOTÃ, 2004, p. 56, tradução nossa)45 43 Trecho original: “Si en peinture les miroirs reflètent d’une manière “complétive”, c’est-à-dire ils reflètent quelque chose qui ne se trouve pas dans notre sphère visuelle, en littérature, cette technique réflexive reprend, miroite le sujet même, donc quelque chose qui existe dans notre sphère de perception, en littérature, étant mis en abyme ou en coeur le sujet que nous connaissons ou que nous allons connaître” (STANCIU-CAPOTÃ, 2004, p. 55). 44 Trecho original: “la comparaison avec ce procédé du blason qui consiste, dans le premier, à en mettre un second en abyme” (GIDE, 1948, p. 41 apud STANCIU-CAPOTÃ, 2004, p. 55). 45 Trecho original: “L’idée bifurquée, l’idée se faisant écho à elle-même, un drame moindre copiant et coudoyant le drame principal, l’action traînant sa lune, une action plus petite que sa pareille; l’unité Entre espelhos e abismos 47 Victor Hugo poderia ser considerado um dos primeiros teóricos da mise en abyme, por efetuar, na obra citada, uma espécie de inventário de itens característicos que ora retornam, tais como desdobramentos, bifurcações, “ação satélite, unidade cortada em duas, espírito dos espelhos” (STANCIU-CAPOTÃ, 2004, p. 56, tradução nossa)46 e tantos outros termos que ganhariam forma na história da literatura. Os exemplos englobam ainda o romance La peau de chagrin (1831), de Balzac, que traz a mise en abyme do sujeito, com uma história dentro da história, valorizando, na segunda parte, a estrutura circular do enredo com a morte do personagem Raphael de Valentin já anunciada nas primeiras páginas da primeira parte. Também Gustave Flaubert ilustra o rol de exemplificações com a narrativa especular de Madame Bovary (1856), na medida em que “[...] fervilham mises en abyme, espelhos refletores, narrativas anunciando narrativas, escudos heráldicos, corações/centros retomando o assunto, os retratos das personagens e seus atos” (STANCIU-CAPOTÃ, 2004, p. 56, tradução nossa)47. É significativa a cena inicial, em que “ é obrigado pelo professor a escrever vinte vezes a expressão ridiculum sum, frase que caracteriza e ao mesmo tempo anuncia, retroprospectivamente, os eventos futuros do romance: “Charles Bovary tinha sido e ia ser um homem ridículo que voltará no mesmo lugar, tal ‘um cavalo de carrossel, os olhos vendados’ ” (STANCIU-CAPOTÃ, 2004, p. 56, tradução nossa)48. Do mesmo modo, sonhos e lembranças acompanham a narração, evocando ou predizendo os fatos em todo o romance de Flaubert, numa dinâmica metatextual. A técnica da mise en abyme, não se relaciona, portanto, somente ao nível do sujeito ou dos personagens, mas também “ao nível da relação escritor-escrita; ela denuncia então o que se chama atualmente, o escritor-escrevente” (STANCIU- CAPOTÃ, 2004. p. 57, tradução nossa)49. Nessa dinâmica, o texto inclina-se sobre si mesmo, reflete acerca de seu funcionamento e de sua imagem, jogando com as