Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP Instituto de Artes - Campus de São Paulo – SP Processos criativos e a colagem como forma de perceber o mundo Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Artes Visuais Thiago Bueno Gomes São Paulo 2022 Thiago Bueno Gomes Projeto para uma oficina chamada “Processos criativos e a colagem como forma de perceber o mundo” Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré-requisito para a obtenção do grau de Licenciatura em Artes Visuais, sob orientação do Profª. Dra. Rejane Galvão Coutinho e coorientação de Auana Lameiras Diniz São Paulo 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. G633p Gomes, Thiago Bueno, 1988- Processos criativos e a colagem como forma de perceber o mundo / Thiago Bueno Gomes. - São Paulo, 2022. 52 f. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rejane Galvão Coutinho Coorientadora: Esp. Auana Lameiras Diniz Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte. 2. Criatividade. 3. Colagem (Arte). 4. Criação (Literária, artística, etc.). I. Coutinho, Rejane Galvão. II. Diniz, Auana (Auana Lameiras Diniz). III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 751.493 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 O subjetivo, a vida interior, a vida emocional devem navegar, mas não ao acaso. Se a arte não é tratada como forma de conhecimento, mas como “um grito da alma”, não estamos fazendo nem educação cognitiva nem educação emocional. Ana Mae Barbosa Agradecimentos À minha mãe, Kerli Leite Bueno. À minha orientadora, Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho À Auana Lameiras Diniz, coorientadora e integrante da banca de avaliação. À Luah Souza, pela amizade e companheirismo durante esses anos. À Vera Cozani, servidora técnica-administrativa dos ateliês de artes visuais, pela disposição em compartilhar seu conhecimento e ajuda. A todos os professores - servidores e substitutos - do curso de bacharelado e licenciatura em artes visuais. A todos os servidores, em especial os da seção da graduação, e terceirizados do Instituto de Artes. À Ivy Costa, do escritório de Pesquisa e Internacionalização do Instituto de Artes da UNESP. À Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, em especial ao Instituto de Artes. RESUMO O trabalho busca entender do que são compostos o processo criativo e a criatividade. Ele propõe uma construção/introdução teórica partindo de conceitos sobre criatividade e processos criativos pela visão de Fayga Ostrower no livro Criatividade e processos de criação para pensar os modos como a criatividade é constituída, desenvolvida, e como ela é expressada. São abordados tópicos a respeito do que compõe os processos criativos e o ato de criar, de como é natural do ser humano dar significado às coisas do mundo e como estas configurações e significados são resultados de movimentos internos e externos deste ser humano. O trabalho é concluído com ideias de Cecília Almeida Sales em O gesto inacabado sobre o que acontece durante e depois da criação, como ela pode continuar sendo um processo contínuo que se abre para outras possibilidades de criação. Ao final, a pesquisa apresenta um plano de atividades de uma oficina de criatividade onde a colagem é utilizada como ferramenta para colocar o participante em contato com o ambiente ao seu redor e com os demais participantes, encaminhar seu olhar em busca de novas visualidades estéticas e desafiá-los a encontrar soluções para desafios técnicos e estéticos que a colagem resolver como ferramenta. A base teórica para os objetivos e métodos da oficina é baseada nos trabalhos Teoria e prática de Educação Artística e A imagem na no ensino da arte de Ana Mae Barbosa. Palavra-chave: colagem; processos criativos; criatividade; abordagem triangular; Fayga Ostrower; Ana Mae Barbosa ABSTRACT The work seeks to understand what the creative process and creativity are composed of. It proposes a theoretical construction/introduction starting from concepts about creativity and creative processes through the vision of Fayga Ostrower in the book Criatividade e processos de criação to think about the ways in which creativity is constituted, developed, and how it is expressed. Topics are discussed about what makes up the creative processes and the act of creating, how it is natural for human beings to give meaning to things in the world and how these configurations and meanings are the result of internal and external movements of this human being. The work concludes with ideas from Cecília Almeida Sales in O gesto inacabado about what happens during and after creation, how it can continue to be a continuous process that opens up to other possibilities of creation. At the end, the research presents an activity plan of a creativity workshop where collage is used as a tool to put the participant in contact with the environment around him and with the other participants, direct his gaze in search of new aesthetic visualities and challenge them to find solutions to technical and aesthetic challenges that collage solves as a tool The theoretical basis for the objectives and methods of the workshop is based on the works Teoria e prática da educação artística and A imagem no ensino da arte by Ana Mae Barbosa. Keyword: collage; creative processes; creativity; triangular approach; Fayga Ostrower; Ana Mae Barbosa Sumário 1. Introdução ............................................................................................................... 7 1.1. A Colagem como estética .................................................................................... 7 1.2. Criatividade, educação e arte-educação .............................................................. 8 1.3. A escolha do tema colagem, processos criativos e ensino não formal .............. 10 2. A Colagem como processo e modo de operar o mundo ....................................... 13 2.1. Colagem como ato criador ................................................................................. 14 2.2. Selecionar, Relacionar, Configurar e Significar .................................................. 15 3. Sobre os constituintes da criatividade e dos processos de criação ...................... 18 3.1. Ser sensível ........................................................................................................ 19 3.2. Ser cultural ......................................................................................................... 20 3.3. Ser consciente .................................................................................................... 20 3.4. Memórias e Associações ................................................................................... 21 3.5. Falar, colar, pintar: simbolizar ............................................................................ 22 3.6. Durante e depois do processo de criação .......................................................... 24 5. Um convite à criação ............................................................................................. 26 5.1. Por quê discutir criatividade e processos criativos através da colagem ............ 26 5.2. As práticas criativas na arte-educação. ............................................................. 29 6. Plano de Atividades da oficina “Processos criativos e a colagem como forma de perceber o mundo” .................................................................................................... 33 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 48 7 1. Introdução 1.1. A Colagem como estética Papel, tesoura e cola é a referência direta quando se pensa em colagem, que remete tanto ao procedimento utilizado por artistas modernos no século XX quanto aos usos na educação escolar. De fato, muito antes da incorporação desta técnica na arte moderna, a colagem era baseada primordialmente nesses elementos: “calígrafos japoneses realizaram os primeiros trabalhos preparando as superfícies de seus poemas, colando pedaços de papel e tecido para criar fundo para suas pinceladas” (VARGAS e DE SOUZA, 2011, p. 53). A “colagem” também apareceu de diversos outros modos: poetas japoneses no século 12 d.c. escreviam em pedaços de papel rasgados e coloridos e depois colados; no século 13 d.c., encadernadores Persas incluíam em seus trabalhos de couro imagens cortadas e delicadas faixas de pele de bode; em mosaicos de palha e grãos de milho feitos por prisioneiros europeus do século XVII; em colagens religiosas com asas de borboleta feitas por freiras europeias do século XVIII; nos primeiros cartões de São Valentim feitos também no século XVIII (CRAN, 2014, p. 11). A colagem era um procedimento prático para um determinado fim. A partir da descoberta das suas propriedades conceituais por Braque e Picasso e da pesquisa e uso sistemático no cubismo analítico na França, a colagem se aproximou cada vez mais de uma linguagem. Um fim nela mesma. A colagem passou a ser então utilizada como ferramenta, processo, projeto, tanto para uma obra de arte de colagem quanto para uma obra em outra linguagem. Nas vanguardas históricas Europeias entre 1910 e 1945 é possível reconhecê-la na poesia dadaísta, nos contra-relevos de Tatlin, nas imagens maravilhosas dos surrealistas, nos recortes de cor pura de Matisse. Nas vanguardas artísticas após os anos 1950, nos Estados Unidos, mas também na Europa e na arte dos países latino americanos, a colagem retorna nas assemblagens de Joseph Cornell, nos grandes painéis de James Rosenquist concebidos a partir de estudos prévios com colagem, 8 nas combine-paintings de Robert Rauschenberg, na acumulação de objetos ready- made de Nelson Leiner. A colagem é uma técnica versátil, apresenta um enorme potencial criativo pela sua própria natureza e cabe em diversos contextos que precisam de uma solução estética criativa – criação publicitária, capa de um álbum de música, coleção de memórias. 1.2. Criatividade, educação e arte-educação O projeto “Escolinha de Arte do Brasil” em 1948 marca o início da arte educação no Brasil. A partir da sua atuação no ensino de arte, o fundamento mais difundido da arte-educação no Brasil passou a ser o desenvolvimento da capacidade criadora. Nos EUA, criatividade foi confundida com imaginação. O professor deveria desenvolver projetos e atividades que estimulassem a imaginação da criança e provessem a realização material para a “rica imagética infantil” ser expressada. (BARBOSA, 1978, p. 46). Mas esta situação é mais complexa, porque os processos intelectuais e emocionais- afetivos não se mobilizam automaticamente pelo ato de projetar e construir uma forma. Mais do que isso, “é necessário ver, analisar, especular, investigar”. A preocupação de educadora Ana Mae Barbosa é que surgiram novos objetivos na Arte Educação, mas os métodos para alcança-los permaneceram os mesmos ou não acompanharam este desenvolvimento (BARBOSA, 1978, p. 46; p. 71). Nas escolas primárias, os objetivos mais difundidos na Arte Educação giram em torno de: • liberdade emocional • desenvolvimento da coordenação motora • ocupar as crianças quando não se têm nada para fazer • auxiliar pedagógico às outras disciplinas 9 • desenvolvimento criativo, algo muito vago que permite que o professor continue a adotar métodos já ultrapassados no ensino de arte, tais quais o mero deixar fazer, o emprego de uma sequência de técnicas ou a proposição de tema. (BARBOSA, 1978, p.47) Nesta introdução vale a pena definir para diferenciar alguns termos que serão abordados no trabalho: Criatividade1: 1. Capacidade de criar, de inventar. 2. Qualidade de quem tem ideias originais, de quem é criativo. Criação2: 1. Ato ou efeito de criar. 2. Coisa criada. Potencial de criação: Em física, energia potencial é a forma de energia mantida por um objeto devido a sua posição em relação a outro objeto. É a energia armazenada por um objeto que pode se manifestar a qualquer momento,3 sob a forma de outro tipo de energia, como a cinética, por exemplo. Baseado neste conceito, o potencial de criação pode ser definido, no nosso caso, como a criatividade armazenada por uma pessoa que é capaz de manifestá-la através de uma criação ou do ato de criar, trazendo à realidade algo novo. Processos de criação Processos de criação são as etapas, os mecanismos, os modos pelos quais a criatividade é trabalhada a partir do momento de concepção até a formação de algo inédito, um texto, objeto ou um conceito abstrato. Os processos podem se 1 "criatividade" em https://dicionario.priberam.org/criatividade [consultado em 12-04-2022]. 2 "criação" em https://dicionario.priberam.org/cria%C3%A7%C3%A3o [consultado em 12-04-2022]. 3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Energia_potencial 10 desenvolver através de exercícios, experimentações, atividades, desafios, proposições, perguntas, entre outros. 1.3. A escolha do tema colagem, processos criativos e ensino não formal A minha relação com a colagem é de extrema proximidade. Após descobrir a técnica durante um curso livre, a colagem se tornou para mim um modo de realizar pintura sem o uso de tintas e pincéis. Se tornou um modo de exploração e produção visual. Ela é a linguagem que eu mais utilizo nos meus processos artísticos e a principal ferramenta na minha pesquisa artística. Durante a graduação aprofundei minha investigação sobre a técnica da colagem. Isso me levou a uma compulsão pelas possibilidades visuais que ela proporciona e como ela pode se aliar à outras técnicas artísticas, além de desenvolver o pensamento visual. Naquele momento, conforme me envolvia com as disciplinas também ficou claro como o pensamento visual da colagem está presente em outros campos da arte sem que se use necessariamente o recortar e colar. Nestes anos de formação também percebi que muitas coisas do cotidiano se organizam e se criam da mesma maneira como a colagem funciona: aproximando e justapondo diferentes elementos. Outra descoberta naquele momento foi de como o pensamento visual proporcionado pela colagem pode ser uma ferramenta para explorar e conhecer o mundo, uma maneira de se envolver com o ambiente ao redor e perceber as possibilidades de materiais e texturas que podem ser incorporadas no trabalho artístico. Por tudo isso, a colagem pareceu uma boa ferramenta para a investigação dos processos criativos e ampliação da criatividade. Problemática Minha experiência como monitor das disciplinas práticas na graduação e co- mo educador em oficinas de colagem na recepção dos calouros me levou a escolher o ensino não formal para desenvolver o trabalho de conclusão do curso de licencia- tura em artes visuais. 11 O ensino não formal não tem o compromisso que ensino formal possui, além de não estar legislado como deve acontecer. O modo como o ensino formal se estru- tura na educação brasileira continua sendo conteudista e segmentado, sem que as disciplinas conversem entre elas. Neste, atualmente, os alunos são induzidos a pen- sar que o erro não faz parte do processo de aprendizagem e que deveria ser evitado no caminho para encontrarem a resposta “correta” para uma questão. Este tipo de comportamento é problemático no ensino de arte, engessa o aluno na exploração criativa pois não é possível haver certo ou errado na criação artística. Formalizar o ensino de criatividade num currículo de ensino formal levaria ao mesmo lugar de atribuir notas e ranquear os alunos que as demais disciplinas do ensino básico. A necessidade de pensar os “processos criativos e criatividade” nasceu da observação como monitor das disciplinas de pintura e processos fotográficos de como os alunos pesquisavam as possibilidades criativas destas linguagens. Durante as aulas práticas, observei que os alunos não se sentiam à vontade ou confiantes para explorar novos caminhos sem a certeza do resultado que eles obteriam. Era comum eu ser procurado para esclarecer uma dúvida de como seria o resultado final de uma ideia que o aluno teve, o que indicava que eles somente conduziriam o processo até o final caso o resultado que eles queriam desse certo ou pelo menos que não resultasse em um erro. Ficou evidente para mim então que os alunos não tinham ousadia ou desapego para ir até o final do que eles se propuseram, com receio da possibilidade de aquilo dar “errado” – ou até mesmo dar “certo” de uma maneira que eles não imaginavam. Portanto, a ideia de o tema central da oficina ser criatividade e processos criativos pareceu adequada por eles comportam uma série de possibilidades de investigação. A ideia de criar uma oficina estava há muito tempo no meu horizonte e eu começava a pensar sobre seu formato, exercícios, materiais e dinâmica dos encontros antes mesmo de escrever este trabalho. Entretanto, uma preocupação constante era fugir do lugar de criar uma oficina que servisse somente como um ambiente de livre expressão, onde se produziriam trabalhos pelo puro prazer estético. Uma outra questão a ser evitada era criar atividades onde somente as questões técnicas estivessem envolvidas nos exercícios, onde o desafio ou a novidade seria o uso de um material artístico diferente ou a apresentação de uma 12 nova técnica para os participantes criarem seus trabalhos. Algo semelhante foi evitar criar exercícios baseados no modo como algum um(a) artista usa a colagem para realizar seus trabalhos e propor aos participantes criassem seus trabalhos reproduzindo a linguagem desenvolvida por estes artistas. Objetivos O objetivo deste trabalho é buscar entender do que são compostos o processo criativo e a criatividade. Ele propõe uma construção teórica a respeito da criatividade e dos processos de criação para pensar os modos como a criatividade ocorre, como ela pode ser desenvolvida, e por onde ela pode ser expressada. Além disso, esta pesquisa apresenta um plano de atividades de como se daria uma oficina de criatividade onde a colagem é utilizada como ferramenta para os participantes desenvolverem seus processos de criação expressando seus movimentos internos e externos. As atividades propostas para a oficina têm o objetivo de colocar o participante em contato com o ambiente ao seu redor e com os demais participantes, encaminhar seu olhar em busca de novas visualidades estéticas e desafiá-los a encontrar soluções para desafios técnicos e estéticos que a colagem pode proporcionar. Em alguns dos encontros há o incentivo para promover a troca de materiais e a troca de contato entre os participantes na forma de trabalhos criados coletivamente, um modo de trabalho que foi incentivado durante a graduação. 13 2. A Colagem como processo e modo de operar o mundo A colagem está presente como ferramenta, processo ou produto final em diversos campos da campos da cultura, nas artes e na comunicação. (VARGAS e SOUZA, 2011 p. 3; IWASSO, 2010 p. 39). Apesar disto, a impressão é de que os agentes desses campos de produção parecem não ter consciência que de colagem, talvez por ser uma ação corriqueira, quase intuitiva, funciona como um procedimento para operar o e no mundo ao nosso redor. Talvez também, o que faz aproximar a colagem de diversos campos de atuação e pessoas seja a facilidade com que é possível expressar a criatividade através dela. Uma contribuição do potencial criativo da colagem pode ser descrita pela noção que Rosalind Krauss (1981, p. 20) chamou de “origem ausente”. Por esta ideia é possível interpretar que um material que participa de uma colagem carrega o espírito de sua origem, embora não se tenha o conhecimento dela - revista, catálogo, papel de presente – e influencia esta composição, mesmo que ausente, “como um parente ausente ainda causa influência sobre o seu filho” (CRAN, 2014, p. 8). Além disto, por não representar diretamente um assunto, objeto ou ideia, a origem ausente destes materiais abre muitas possibilidades de criação (CRAN, 2014, p.8). Ela abarca a possibilidade de representar/discursar/narrar por via indireta um assunto que não necessariamente está ali (KRAUSS, 1981, p. 7). Até o século XX as artes visuais no Ocidente eram fundamentadas na representação naturalista de objetos, paisagens e figuras humanas, e o surgimento da colagem pôs em xeque esta tradição, pois a abstração poderia surgir de maneira quase não intencional. Com esta combinação de distanciamento da representação figurativa e abstração surge a um novo modo de contar histórias, de resolver conflitos onde às vezes as palavras não dão conta, o que parece ser mais confortável para a espécie animal que começou a produzir imagens antes de ter a capacidade de falar ou de criar a escrita. 14 2.1. Colagem como ato criador A criação é descrita como um percurso do caos ao cosmos. “Um acúmulo de ideias, planos e possibilidades que vão sendo selecionados e combinados” (SALLES 1998, p.32-33), que são testadas pelo anseio de uma organização que dá origem ao objeto artístico. A possibilidade de aproximar elementos distintos faz da colagem uma potente força poética. Este procedimento é um facilitador para o florescimento da criatividade e produção de novas ideias – mesmo fora do campo das artes visuais. A seleção dos materiais pelo artista e uso no trabalho de colagem não é guiado por uma referência externa, como se ele fosse pintar uma paisagem ou fazer um autorretrato. É comum as imagens deste tipo de trabalho passarem por uma escolha afetiva e se relacionar com suas vivências, ambientes, cultura visual e desejos, como foi expressada na definição do crítico Daniel Belgrad: colagem é “a combinação intelectual, emocional e física de engajamento do corpo-mente com o seu ambiente”. (BELGRAD, 1998 apud CRAN, 2014, p. 3). Para o artista futurista Carlos Carrà há “uma autodefinição intuitiva do artista” (CRAN, 2014, p. 3). O artista define os materiais de sua preferência e estes materiais vão construindo, influenciando quem ele é. A colagem no século XX está além de produzir algo “bonito ou interessante, ou útil para olhar ou interagir”. Ela manifesta “encontros e justaposições significativas” e expressa “deslocamento, disrupção e desconstruções enquanto representa simultaneamente a possibilidade de diálogo e síntese” entre “elementos estranhos uns aos outros” (CRAN, 2014, p.13-14). 15 2.2. Selecionar, Relacionar, Configurar e Significar Criar é formar algo novo, possibilitando que fenômenos se relacionem e sejam compreendidos em termos novos. De acordo com a artista Fayga Ostrower (2017), o ato criador envolve compreender o que se está fazendo e é composto por: a) relacionar; b) ordenar; c) configurar; d) significar. Mais do que um fazedor, o ser humano é um formador. A partir dos múltiplos eventos que acontece dentro e fora dele, ele os relaciona, ordena na sua experiência de viver, configura e lhes dá um significado. O ser humano está sempre relacionando e formando (OSTROWER, 2017, p. 9). Nos orientamos de acordo com uma ordenação interior composta de desejos, medos, ambições, vontades, e em cada ato nosso transparece essa ordem interior. É ela que constitui como vamos focalizar, interpretar e dar significado aos fenômenos (OSTROWER, 2017, p.9). Daniel Kane (1998) apud Cran (2014, p. 9) sugere uma relação interior-exterior similar com relação à colagem. Para ele, ela é uma experiência que alguém tem com seu mundo exterior, assim como uma escolha interior que “determina e molda sua relação com o mundo”. As associações construídas na colagem condizem com o comportamento individual que teríamos frente a uma ocorrência em nossas vidas. São construções baseadas em agitações internas, experiências vividas anteriormente e um “sentimento de vida”. “Apesar de espontânea, há mais do que certa coincidência em associar, há coerência”. Estas associações nos levam para o mundo da fantasia – o qual é diferente de devaneio e do fantástico (OSTROWER, 2017 p. 20). 16 Vivemos em um mundo de formas e estímulos que se apresentam para nós sem interrupção. Nós “relacionamos alguns e os percebemos em relacionamentos que se tornam ordenações”, ou seja, das formas e estímulos que recebemos nós selecionamos alguns e traçamos relações com as nossas vivências anteriores, ordenando desta forma o mundo. Essas relações não são por acaso ou gratuitas, mas, embora não saibamos dizer qual é a lógica, sentimos que há um nexo. Elas ocorrem quando relacionamos dois ou mais eventos baseados no nosso conhecimento e assim deixamos instantaneamente a marca da nossa interpretação na relação que fazemos entre eles (OSTROWER, 2017, p.9). Para OSTROWER, o ser humano é impelido compreender a vida e faz isso criando/formando. Para orientar-se na vida, ele ordena os fenômenos e avalia o sentido dessas “formas ordenadas”. O ser humano também precisa se comunicar com outros seres humanos e faz isso da mesma forma: ordenando formas – o alfabeto pode ser uma evidência desta necessidade. Para a autora, essas potencialidades do ser humanos se convertem em “necessidades existenciais”, pois ele precisa delas para crescer e faz isso “ordenando, dando forma, criando” (OSTROWER, 2017 p.10). As colagens de jornal de Picasso em seus trabalhos da década de 1910 não eram aleatórias e sem propósito. Não eram somente material impresso, ou signos que representavam eles mesmo. Picasso encontrou nas notícias dos jornais, através do texto impresso, um modo de expressar o incômodo com os eventos que antecipavam a Primeira Guerra Mundial que a pintura não conseguia (LEIGHTEN, 1989 apud CRAN, 2014, p. 6). Para os artistas estudados por Rona Cran (2014) - Joseph Cornell (artista plástico), William Burroughs (escritor), Frank O’Hara (poeta), e Bob Dylan (músico) – a colagem era importante por suas qualidades práticas e permissividade conceitual. Nenhum deles se declarava artista da colagem, mas esta prática foi crucial para o desenvolvimento criativo e funcionou como catalisador para permitir que o melhor trabalho deles surgissem. O trabalho desses artistas é fortemente biográfico, mas raramente confessional, e empregar a colagem foi fundamental para conseguir isso. Assim como para seus antecessores, a colagem os permitiu ver as coisas 17 claramente, apresenta-las de maneira diferente, e falar sobre algo sem ter que mencioná-lo diretamente (CRAN, 2014, p.9-10). Os processos de criação são em parte intuitivos e em parte englobam o conhecimento consciente e a racionalidade. As decisões e opções que surgem durante a produção criativa não se reduzem aos processos conscientes. Sendo também intuitivos, esses processos se tornam conscientes a medida em que tomam forma e vão sendo expressados no trabalho. Mas também, do outro lado desta moeda, o processo criativo deve se referir à consciência do ser humano, pois de nenhuma outra forma ele poderia indagar, refletir, pensar criticamente a respeitos dos possíveis significados que existem no ato criador que acabou de ocorrer. (…) “Entende-se que a própria consciência nunca é algo acabado ou definitivo. Ela vai se formando no exercício de si mesma. Num desenvolvimento dinâmico em que o [ser humano], procurando sobreviver e agindo, ao transformar a natureza se transforma também. E o homem não somente percebe as transformações como sobretudo nelas se percebe" (OSTROWER, 2014, p. 10) 18 3. Sobre os constituintes da criatividade e dos processos de criação Educação e criatividade A criatividade foi vista com desconfiança por pais, professores e educadores tradicionais. Eles pensavam o processo criativo como uma ameaça ao objetivo de produzir um jovem “convencional, bem ajustado e bem sucedido”. Embora concordem que é importante desenvolver a criatividade, é comum justificarem a sua dispensa alegando que é um gasto de tempo inútil quando há muita coisa para aprender, mesmo já comprovado o conteúdo cognitivo do processo de criação (BARBOSA, 1978, p. 54-56) A artista e autora Fayga Ostrower (2017, p. 11) diz que, de acordo com evidências, muito antes do surgimento do homo sapiens já existia um percursor do ser humano de certo modo consciente, sensível e cultural. Sem a intenção de saber como ele adquiriu estas características, ela constata que já há muito tempo eles demonstravam estas características, e é justamente na integração do consciente, do sensível e do cultural é que se baseiam os “comportamentos criativos do homem”. Se nos tempos mais primitivos da espécie humana nós já criávamos ferramentas que nos auxiliava na sobrevivência, podemos deduzir que já existia um certo tipo de consciência, pois a ação em criar algo é um ato intencional (OSTROWER, 2017, p. 11), com exceção de um acidente ou um desastre – onde ainda é discutível analisar se em algum momento houve um ato consciente ou não. Sem a consciência, não é possível ter a imaginação do que eu quero na ação que realizo. Sobre a integração consciente-sensibilidade com a cultura, Fayga Ostrower diz: “O homem será um ser consciente e sensível em qualquer contexto cultural. Quer dizer, a consciência e a sensibilidade das pessoas fazem parte de sua herança biológica, são qualidades comportamentais inatas, ao passo que a cultura representa o desenvolvimento social do [ser humano]” (OSTROWER, 2014, p. 11) 19 Para fins de análise é possível separar o domínio cognitivo e criativo do pensamento. Mas crer que um tem prevalência sobre o outro na ação educativa e que o cognitivo deve ser mais desenvolvido que o criativo, ou ainda que o criativo atrapalha o desenvolvimento cognitivo, pode levar a um desequilíbrio do desenvolvimento interno, com um potencial perigo para a saúde mental (BARBOSA, 1978, p. 59). “No processo de encorajamento à criatividade há profunda necessidade de se atender aos conteúdos afetivos, do mesmo modo que aos conteúdos cognitivos”. O ensino criativo não consiste somente em treinar novas habilidades. Tampouco ajudará propor uma situação que atenda ao aspecto cognitivo da mente, tornando o processo de criação meramente operacional (BARBOSA, 1978, p. 59-60). 3.1. Ser sensível Os processos de criação são intuitivos e se articulam principalmente através da nossa sensibilidade, e ela não é exclusiva aos artistas e alguns privilegiados. A sensibilidade é um estado permanente de interação com o mundo e por isso é a “porta de entrada das sensações”, que nos coloca em contato direto com o que acontece ao nosso redor. A maior parte dela é inconsciente, porém uma outra parte opera de modo consciente. Assim, as sensações nos ocorrem de modo organizado e a elaboração intelectual delas é o que compõe a nossa percepção. A percepção é o que delimita o que podemos sentir e compreender porque elabora estas sensações em uma “ordenação seletiva dos estímulos” (OSTROWER, 2017, p. 12-13). O esquema a seguir foi desenvolvido por este autor para sistematizar a forma que o fenômeno acontece. MUNDO → estímulo → sensibilidade [interface com o mundo] → sensações [ocorrendo de modo organizado] + elaboração intelectual [compõem a] → percepção [sentir e compreender] 20 3.2. Ser cultural Para OSTROWER, cultura diz respeito às “formas materiais e espirituais com que os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e cuja experiência coletiva pode ser transmitida através de vias simbólicas para a geração seguinte” (OSTROWER, 2017, p. 13). Existe uma diferença fundamental entre usar e manufaturar uma ferramenta. Fazer algo, mesmo nos tempos mais primitivos do primata, exige um conhecimento preciso da matéria-prima com que se trabalha e de como manuseá-la de maneira mais eficiente. Assim, os seres humanos parecem ter uma noção sobre o tempo que outros animais não têm, e, fazendo uso das tradições orais e simbólicas, são capazes de transmitir para as próximas gerações o conhecimento sobre a matéria- prima e seu manuseio, como um “capital cultural” (OSTROWER, 2017, p. 14). Isso só poderia ocorrer se o homem tivesse um modo de “expressão simbólico” que expressasse este objeto presente, qual era o seu uso e qual era a finalidade da ação. Isto constitui um fato cultural no e para o ser humano, e Fayga diz que isso constituiu uma vantagem biológica – e evolutiva – para o homem. Citando Carleton Coon, “no homem, a biologia tornou-se inseparável da cultural, uma vez que nossos ancestrais começaram a usar ferramentas” (OSTROWER, 2017, p. 16). “Os valores culturais vigentes constituem o clima mental para o seu agir. Criam referências, discriminam as propostas, pois, [ainda que] os objetivos possam ser de caráter estritamente pessoal, neles se elaboram possibilidades culturais. Representando a individualidade subjetiva de cada um, a consciência representa a sua cultura” (OSTROWER, 2017, p. 16). 3.3. Ser consciente O Sol, por exemplo, é um fenômeno constante na vida dos humanos na terra. No Egito antigo, na Idade Média, ou na modernidade houve diversas formas de expressar este fenômeno natural. Cada uma delas é o modo expressivo pelo qual este fenômeno chega ao consciente dos indivíduos e cada uma dessas “formas não ocorrem independentes ou desvinculadas de colocações culturais” (OSTROWER, 2017, p. 17). 21 Culturalmente seletiva, a sensibilidade guia o indivíduo nas considerações do que para ele seria importante ou necessário para alcançar certas metas de vida. A sensibilidade se associa ao fazer intencional e cultural de um ser consciente. Este ser é criador e cria buscando conteúdos significativos. A própria sensibilidade passa a ser uma faculdade criadora, pois é através dela que o ser consciente começa seu processo de criação, selecionando e configurando formas em busca de um resultado/conteúdo significativo para este ser. A criatividade do ser humano, para Fayga Ostrower, não é senão a própria sensibilidade, em última análise, uma vez que é ela a interface com o mundo, tanto interno quanto externo (OSTROWER, 2017, p. 17). Esta dinâmica da sensibilidade pode ser expressada na fórmula a seguir, criada por este autor como forma de simplificar e visualizar. [sensibilidade] + [princípio configurador seletivo] = [a faculdade criadora], ou [sensibilidade] + [selecionar] + [formar/ configurar] = [capacidade de criação] 3.4. Memórias e Associações Por meio da consciência, o ser humano tem a capacidade de compreender o instante do passado, seu momento no presente e a direção que toma até o futuro, tornando-se então passado. Como seres humanos, somos capazes de sentir a passagem do tempo. Esta capacidade nos torna aptos a recolher experiências anteriores, resultados obtidos, adotar critérios para repetir ou reformular comportamentos ou experiências no futuro, orientando para isso as ações do dia a dia. (OSTROWER, 2017, p. 18). Diferente dos outros animais que só podem se orientar pelo presente e por aquilo que eles têm na sua frente no momento, o ser humano é capaz de juntar memórias e elas são importantes para a criação. Enquanto outras formas de vida precisam estar fisicamente frente às condições ambientais para agirem, o ser 22 humano tem a capacidade de sondar e explorar a vida em circunstâncias e tempos que estão ausentes dos seus sentidos. “O espaço vivencial da memória representa, portanto, uma ampliação extraordinária, multidirecional, do espaço físico natural”. Mas esta capacidade não abarca tudo, pois muitas vezes “descobrimos nossas intenções só depois de realizar a ação” (OSTROWER, 2017, p. 18). Muitas vezes é somente após a criação de um trabalho de arte que esta capacidade torna possível para o artista conjecturar o que ele poderia ter feito diferente, pensar em ajustes e substituições no que foi feito, como também planejar visualizar outras versões do mesmo trabalho a serem realizadas no futuro. As associações compõem a essência de nosso mundo imaginativo, são construções baseadas em agitações internas, experiências de vividas anteriormente e num “sentimento de vida”. Parece que memória é uma condição essencial para realizar associações, e ambas são funções do cérebro humano que estão interligadas, por isso que “de pronto reconhecemos [as associações] como nossas, de ordem pessoal”. Elas condizem com um comportamento individual que teríamos frente a uma ocorrência em nossa vida. Este mundo imaginativo é povoado por uma série de sentimentos pessoais, expectativas, desejos, medos, e “prioridades interiores”, e estas prioridades influenciam nosso fazer e o que “queremos” criar, do mesmo modo que encaminham as associações por certos caminhos e renovam determinados vínculos com o passado (OSTROWER, 2017, p. 20). São as memórias e as associações que são capazes de gerar um mundo experimental e pensar em hipóteses, principalmente a memória, pois não seria possível alguém fazer uma associação entre dois elementos que ele nunca chegou a conhecer para guardar na memória. Somente após conhecermos algo e termos na memória é que podemos “associar objetos e eventos, [que podemos] manipulá-los, tudo mentalmente, sem precisar de sua presença física” (OSTROWER, 2017, p. 20). 3.5. Falar, colar, pintar: simbolizar Fayga Ostrower (2017) diz que “pensamos através da fala silenciosa”. Comum a toda cultura é a necessidade da existência de um código para falar e pensar, e só podemos fazer isto através de uma língua, que é composta por 23 “relacionamentos afetivos e intelectuais de uma cultura”. É deste acervo intelectual e cultural que selecionamos as vivências e experiências particulares que desejamos transmitir através do código-língua, mais ainda, o que podemos transmitir (OSTROWER, 2017, p. 20-21), pois é um uso sempre parcial por não darmos conta de tudo, de todos os detalhes que desejamos. Algo sempre escapa de tudo aquilo que percebemos. Se a “fala se articula, portanto, no uso concreto da língua”; se a língua, escrita ou falada, é a concretização do pensamento (OSTROWER, 2017, p. 20-21), então ela é a ferramenta capaz de simbolizar em escrita e fala o que estamos pensando. A ideia de que a colagem é uma linguagem cria a hipótese dela também ser uma ferramenta capaz de concretizar o pensamento e simbolizar o que estamos pensando (GIANOTTI, 2009, p. 42-43). Num exercício de imaginação, se trocarmos os termos relacionados à fala/escrita por criar, colar ou pintar no texto de Fayga, é possível então que tenhamos o mesmo efeito de “concretização do pensamento” que a língua falada possui. Por exemplo: Quando são ditas [as palavras], as coisas se tornam presentes para nós. Não os próprios fenômenos físicos que, naturalmente, continuam pertencendo ao domínio físico; torna-se presente a noção dos fenômenos (OSTROWER, 2017, p.21) Quando são criadas [a colagem ou a pintura], as coisas se tornam presentes para nós. Não os próprios fenômenos físicos que, naturalmente, continuam pertencendo ao domínio físico; torna-se presente a noção dos fenômenos. Ao invés das palavras, é através dos signos plásticos/pictóricos que o fenômeno de simbolização se torna presente na colagem. Ela faz uma dupla função: ela materializa um pensamento ao mesmo tempo em que usa um objeto físico real do mundo para representar este fenômeno. Esta mediação entre nosso consciente e o mundo realizada seja pela palavra, pela colagem, pintura ou outra linguagem artística, faz a representação daquilo que queremos evocar. Em todos os processos de imaginação há um deslocamento do “real físico do objeto” para a “ideia do objeto”. Um desenho ou uma pintura invocam o objeto por intermédio de sua noção. 24 “O homem usa palavras para representar as coisas. Ele destitui os objetos das matérias e do caráter sensorial que os distingue, e os converte em pensamentos e sonhos, matéria-prima da consciência. Representa ainda as representações. Simboliza não só objetos, mas também ideias e correlações. Forma do mundo de símbolos uma realidade nova, novo ambiente tão real e tão natural quanto o do mundo físico” (OSTROWER, 2017, p. 21). 3.6. Durante e depois do processo de criação Cecília Salles (1998) põe em questão o conceito de obra acabada, como forma final e definitiva. Ela considera que os momentos anteriores à apresentação pelo artista da obra ao público levam em consideração também as “formas provisórias, enfrentamento de erros, correções e ajustes”. A criação acontece e está presente também em todos os momentos encadeados durante a sua produção (SALLES, 1998, p. 26). Salles considera que a arte não é o produto acabado pelo artista e por isso considera que o “movimento criador” é uma “cadeia infinita de agregação”, de concatenação de ideias, uma série infindável de estudos e ensaios onde não é possível determinar o ponto de início de uma obra. Por isso ela chama de “estética em criação”, “poética dos rascunhos”, ou mesmo uma “estética do movimento criador”, em uma oposição entre o “objeto estático” e a uma “estética da continuidade” (SALLES, 1998, p. 25-26). “Arte não é só o produto considerado acabado pelo artista” (SALLES, 1998 p. 25). Este processo se opõe à ideia romântica de uma linearidade crescente durante o processo criativo, da menor à maior complexidade formal de uma obra, em que num momento de inspiração inicial o artista se coloca a trabalhar em direção a um ponto final de conclusão (SALLES, 1998 p. 26). Ao contrário, SALLES admite que não é possível determinar o primeiro instante do processo, nem o ponto final, tomando-o como um processo contínuo entre idas e vindas, “regressão e progressão”. Isso relativiza a noção de conclusão da obra. O 25 processo criativo sob este olhar se apresenta como uma dialética: cada versão contém potencialmente um objeto acabado e o objeto final representa apenas uma versão de outras que potencialmente podem existir. Desta forma, “cai por terra a ideia da obra entregue ao público como a sacralização da perfeição” (SALLES, 1998, p. 26). 26 5. Um convite à criação Por tudo que foi pesquisado até aqui, pelo anseio deste autor em criar e pela experiência durante a graduação de ser monitor das disciplinas de pintura e fotografia presente no ateliê auxiliando o processo criativo e poético dos alunos, a ideia de desenvolver uma oficina com este tema pretende duas coisa: a primeira é pôr em prática este ato natural, antigo e prazeroso de trazer à realidade um objeto que nunca existiu antes; e em segundo lugar, propor desafios e situações incomuns onde o processo de criação é tensionado e a dificuldade aparece para provocar nos participantes momentos de engenhosidade e criatividade. A ideia de uma oficina sobre uma linguagem artística com a qual tenho grande envolvimento apareceu no último ano do curso de licenciatura. Nos últimos anos, a colagem tem tido uma considerável circulação na cultura de massa (https://vejario.abril.com.br/cidade/colagem-tecnica/). A matéria na revista Veja publicada no primeiro ano da pandemia de Covid-19 é sintomática de como a colagem tem um apelo popular, é criativamente democrática e serviu como forma para aliviar a tensão, a ansiedade e as emoções daquele momento conturbado. Entretanto, para a oficina proposta neste trabalho, era de suma importância que não se criasse um momento educacional onde se ensinaria uma técnica que em sua base quase não tem o que se ensinar, e com isto este momento se resumisse em produzir imagens esteticamente agradáveis. 5.1. Por quê discutir criatividade e processos criativos através da colagem A cultura da arte renascentista e da arte moderna criaram o mito do mestre gênio, do talento natural para as artes, e isso se reflete atualmente numa barreira contra o acesso das pessoas ao desenho e à pintura, dificultando para quem não tem um envolvimento prévio com arte ficar à vontade para descobrir e explorar estas linguagens. 27 Todos nós em algum momento da vida escolar realizamos alguma atividade ligada à colagem, de maneira que ninguém se sente intimidado por ela. No processo da colagem existem atividades que as pessoas de algum modo e grau realizam na sociedade moderna, mas que tem origem nos seus primórdios como caçador- coletor: a pesquisa, observação, busca e coleta de qualquer material ou recurso que seja de seu interesse, ou que caiba no projeto ou atividade que este ser humano irá realizar. A colagem é uma técnica e um procedimento que responde muito bem às necessidades de criação do ser humano. Ela possibilita facilmente a criação de algo novo devido à fisicalidade de selecionar, ordenar, configurar novas formas a partir de objetos do mundo real. As operações da colagem de relacionar e formar também estão implantadas na nossa cultura genética, logo são de fácil acesso para o ser humano. Transpor isto para o plano estético fica mais fácil e torna acessível às pessoas que não tem experiência em arte. Para artistas, arquitetos, publicitários, fotógrafos e outras profissões em que a inteligência estética e visual é exigida, a colagem pode ser uma ferramenta para compor um projeto, um modo de apresentar um conteúdo ou mesmo um produto final. Eu escolhi a colagem para discutir processos de criação primeiro por ser a linguagem com a qual eu tenho mais afinidade e trabalhei nos últimos anos. Desde modo, ficou fácil pensar e propor atividades que trabalhassem os processos de criação e desafiassem os participantes a terem um pensamento divergente dentro do campo da criação. Talvez mais importante do que isso, ela é uma linguagem artística simples e acessível ao público que não tem relação com as artes visuais. Entre as linguagens modernas das artes visuais, a colagem pode ser considerada a mais democrática. Ela não exige que o autor tenha conhecimento prático de desenho, pintura, modelagem; tampouco ele precisa do conhecimento sobre conceitos de arte, história da arte ou teoria e crítica da arte; ela não necessita de um espaçoso ateliê e uma longa lista materiais normalmente custosos. Tudo nela é acessível, de baixo custo, ou até mesmo gratuito Em uma oficina com alunos iniciantes, discutir processos de criação e criatividade com desenho e pintura ainda pode ficar centrado na figuração, na cópia de algum aspecto do mundo real. Os alunos dificilmente se sentiriam “livres” ou com 28 a autonomia para explorar estas técnicas de maneira não-tradicional/convencional. A colagem tem uma potência estética que sequestra do participante a missão/necessidade de reproduzir o mundo visível. Mesmo querendo construir imagens figurativas, logo de saída o ele sabe intuitivamente que o resultado não será nem terá proximidade com a realidade. Ao final da execução de um desenho ou pintura, pelo contrário, é quase sempre possível perguntar ou ouvir que ficou (ou não) parecido com o tema ou objeto que foi modelo. Mas com a colagem não é. No desenho/pintura, o instinto é quase sempre copiar, imitar, refazer, ler de uma nova maneira um aspecto do mundo real. Fora isso, as possibilidades de exercícios com estas técnicas podem girar em torno da exploração de um material diferente – lápis, carvão, sangria, aquarela, etc, – mas sempre observando como ele se comporta copiando um modelo. Isto não significa que o desenho e a pintura são inadequados para pensar processos de criação e criatividade, mas penso que uma linguagem pode ser mais adequada para atingir um objetivo artístico-pedagógico, enquanto outra pode ser mais adequada para desenvolver outros aspectos da arte-educação. Além da questão de ser acessível a quem não é da área de artes e intensificar as possibilidades estéticas para quem trabalha na área, as atividades propostas nesta oficina colocam o participante em situações que o desafie a reordenar o mundo em uma nova configuração, a explorar materiais incomuns ao mundo da arte, e a dar novos usos para materiais sem mais utilidade. Com o intensão de desafiar os participantes a explorarem soluções para uma situação inusitada, o desenho e a pintura talvez não fossem as melhores ferramentas para isso. Talvez o desenho possa servir com meio para formar um projeto a ser executado com as operações que envolvem a colagem, mas não poderia haver trocas com outros participantes de uma embalagem com textura atraente, por exemplo - como propõe uma das atividades desta oficina -, ou de um papel com uma imagem que remete à uma lembrança sobre a qual você esteja trabalhando. 29 5.2. As práticas criativas na arte-educação. Conforme apresentado na introdução deste trabalho, existem algumas propostas que são mais difundidas na Arte-Educação no Brasil, entre eles o método de livre expressão (laissez-faire) e método de sugestão de tema ou assunto. (BARBOSA, 1978, p. 71) A proposição de um tema está entre as propostas mais recorrentes. Ao propor um tema, espera-se que o aluno tenha um estoque para consultar e que irá saber como escolher. Quando o professor propõe um tema-estímulo, ele supõe que este seja apropriado para todos os alunos do grupo. Porém cada um pode ver, sentir, absorver este tema de uma maneira diferente e este estímulo pode ter um efeito diferente para cada pessoa (FIELD p. 31 apud BARBOSA, 1978, p. 52). "A verdadeira educação não deverá meramente capacitar a criança para pensar em direção a um tema dado" (FIELD p. 21 apud BARBOSA, 1978, p. 49-50). A proposição temática por si só não dá conta de estimular o pensamento criativo pois o objeto não está presente, excluindo assim a “percepção corpórea, que é a primeira articulação da fisionomia sensível do mundo”. Desta maneira o aluno é induzido a contar somente com a sua memória, o que faz com que ele produza uma imagem baseada em termos puramente conceituais. Assim, portanto, o intelecto tende a prevalecer sobre a sensibilidade (BARBOSA, 1978, p.47). A sugestão de tema sem que o objeto esteja na frente do aluno faz com que ele dependa simplesmente da sua memória visual e das suas percepções sobre o tema, gerando uma imagem predominantemente conceitual. Entretanto, Ana Mae enfatiza que isso não é uma argumentação contra o intelecto, mas uma oposição à produção de imagens baseadas principalmente num processo intelectual. O caminho deve ser o contrário: “a imagem deve ser introjetada e produzir um processo intelectual, e não ser produzida por ele” (BARBOSA, 1978, p.72). 30 Desde pequena, nos primeiros anos de contato com a sua produção de arte, ressaltam para a criança que um desenho ou pintura devem representar um tema, ou descrever alguma coisa da vida. Mas a criança não está representando algo. Isso não é importante para ela, pois a arte que faz é utilizada como as outras diversas atividades com as quais ela tem contato: como uma ferramenta para explorar o mundo ao seu redor e estabelecer relações dentro dele" (KELLOG e ARNHEIM apud BARBOSA, 1978, p. 73). Bases teóricas para uma oficina de ensino não formal A “Teoria e prática de artes plásticas” de Ana Mae Barbosa (1978) foi um texto fundamental para a oficina não se tornar um mero emprego de uma técnica para criar imagens esteticamente agradáveis, ou um mero fazer, uma liberação emocional, um espaço de recreação. É sabido que apenas o fazer em artes plásticas não garante um alto desenvolvimento criativo. A ideia de livre expressão é uma concepção modernista do início do século XX, originada no expressionismo, apoiada por teorias psicológicas da época, e traz a ideia de que Arte não é ensinada, mas é uma liberação das emoções através da arte. Esse conceito fez com que a Arte na Educação tivesse como missão por muitos anos “promover experiências terapêuticas” (BARBOSA, 1978, p. 45-47; p. 70-71). “Entendemos que Arte é um modo de organizar experiências, e nosso objetivo, ao integrar a Arte no processo educativo, é principalmente desenvolver os processos mentais.” (BARBOSA, 1978, p. 69) Para mobilizar os domínios cognitivos e afetivos é necessário criar um ambiente de experiências ricas que permita o aluno entrar em contato com a fantasia, ser imaginativo, fazer perguntas, maravilhar-se, investigar e testar suas próprias ideias e sentimentos contra os fatos. “Todos esses ingredientes atingem tanto o domínio afetivo como o domínio cognitivo” (BARBOSA, 1978, p. 60). Estes dois domínios podem se integrar combinando a abordagem da resolução de problema com a expressão criativa. Torrance e Torrance (1972) propuseram a “combinação de jogos de solução de problema com a expressão através das artes visuais, música, dança, teatro”. A resposta de criação artística na resolução de 31 problema é um produto poderoso porque amplia as sensações que ela introjeta na pessoa, tornando a experiência mais afetiva (BARBOSA, 1978, p. 60; TORRANCE e TORRANCE, 1972, p. 1-2). Entretanto, Ana Mae crê que a abordagem com uma situação problema é mais efetiva do que a resolução de problemas. Para ela, o termo “situação” é mais abrangente e “operacional” e leva à combinação dos domínios cognitivo e afetivo (BARBOSA, 1978, p. 61). Na minha análise, ela vê mais efetividade nesta abordagem porque na resolução de problemas fica implícito que existe um caminho correto para o desfecho do problema colocado, mobilizando mais a cognição, ao contrário da situação problema. O termo “situação” tira o peso de haver uma solução “correta” para o problema e deixa em aberto o que o aluno pode fazer, dando espaço para nascer mais de um caminho para resolver o problema proposto. O método dos processos mentais Robert Saunders no livro Art and Humanities in the classroom mostra que os processos de pensamento usados pelas crianças das atividades artísticas resultam dos métodos usados pelos professores. O professor, através do método que usa, é o agente provocador deste ou daquele componente mental (BARBOSA, 1978, p. 64). Ana Mae Barbosa propõe que a sugestão de tema ou a livre expressão sejam substituídas por uma "situação estímulo aberto" que dê amplas possibilidades de seleção, que seja capaz de organizar o que se apresenta aos sentidos, de envolver a criança em novas vívidas experiências. A integração entre os aspectos afetivos e cognitivos é fundamental para o desenvolvimento da criatividade. Mas é considerada como apenas um dos componentes desse desenvolvimento que apresenta maior complexidade. Através de Saunders, Ana Mae afirma que a arte só poderá atingir e desenvolver todos os componentes criativos através do “método de processos mentais”, que é como ela passa a chamar a “a situação-estímulo aberto”. Este método abrange o que há de específico e geral dos “processos estimuladores do desenvolvimento criativo”. Neste método, o professor deverá selecionar uma atividade artística que exercitará um processo mental específico, como análise ou abstração, redefinir ou rearranjar 32 uma situação, flexibilidade, fluência, coerência de organização, originalidade e síntese (BARBOSA, 1978, p. 64). A proposta de Ana Mae é baseada no livro Obra Arte, de Umberto Eco, livro muito comentado na época, com o qual eu tive contato no começo da graduação, mas que de forma alguma pensei que poderia ter uma leitura pelo campo da Arte Educação. Ela acredita que a Arte Educação pode recorrer às ciências afins para dar novas proposições que sejam adequadas ao momento contemporâneo do Arte-Educador (BARBOSA, 1978, p. 53-53): “Ser contemporâneo de sim mesmo é o mínimo que se pode exigir de um Arte-Educador” No planejamento da oficina, por indicação da minha coorientadora, eu inseri perguntas-disparadoras, que se aproximam da “situação-estímulo aberta”, com o objetivo de estimular memórias, organizar os sentidos e associações, trazer experiências e vivências passadas que conduzam o participante em direção à novas percepções, processos mentais e novas experiências. Cada encontro gira em torno de uma situação, e os exercícios propostos em cada um deles também foram pensados como situação-estímulo aberta, sem que haja um lugar específico para onde chegar ao fim daquele encontro. Contato com novos materiais O contato com novos materiais também pode apresentar um verdadeiro valor educacional devido à excitação que provoca pela curiosidade sobre o que é possível fazer com ele. Os alunos então são estimulados a pesquisar o que este material pode fazer. Os professores entendem que é “possível recriar essa situação e estendê-la, provendo materiais novos para a classe e dizendo: ‘Aqui está um novo material; o que pode você pode fazer com ele? – ou: pesquise o que ele pode fazer’ (FIELD p. 17 apud BARBOSA, 1978, p. 50). 33 6. Plano de Atividades da oficina “Processos criativos e a colagem como forma de perceber o mundo” O Plano de Atividades desta oficina foi baseado no Plano de Aula de Luciana Martins Tavares de Lima e Natália Francine Costa apresentado em disciplina do Departamento de Educação, Informação e Comunicação da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto em 2012, que estrutura uma aula do ensino formal sobre as influências imigrantes na cidade de Ribeirão Preto. A estratégia de ensino é fundamentada na Abordagem Triangular proposta por Ana Mae Barbosa (2010), composta pelos vértices de leitura da obra de arte, fazer artístico, e contextualização. Na origem desta metodologia de ensino de arte estão “as quatro mais importantes coisas que as pessoas fazem com a arte”: produzem, veem, “procuram entender seu lugar na cultura através do tempo” e fazem julgamento sobre sua qualidade (EISNER, 1988, p. 189). Envolve o trabalho prático, a crítica de arte e a história da arte. Por ser uma atividade de ensino não formal, o nome “Encontro” pareceu mais adequado para a proposta geral de oficina. Cada encontro possui uma estrutura básica e aberta, servindo como um fio condutor das atividades e podendo ser alterada tanto seus quanto sua ordem. A estrutura básica se dá da seguinte forma: a) apresentação da atividade; b) referências da história da arte e/ou artistas; c) proposta de exercícios criativos e exposição das perguntas disparadoras; d) discussão dos produções plástico-expressivas. A colagem pôs em dúvida uma série de ideias românticas a cerca da prática artística, como dom, autoria, talento, expressão interna do artista. (CRAN, 2014 p. 11). Esta oficina se destina ao público em geral, pessoas com interesse em arte, 34 criatividade e trabalhos manuais. O único critério é que os participantes tenham mais 16 anos. Isto em razão da necessidade de utilizar instrumentos perfuro-cortantes e também em razão da natureza das atividades nos encontros. O número de participantes é no mínimo 5 com o máximo sendo 12 pessoas. Pelo menos em três as atividades são propostas para serem trabalhadas em coletivos ou com trocas diretas de indivíduo para indivíduo, então seria bom ter um mínimo de participantes para ativarmos as atividades de forma que as tornem valorosas. Depois de pensar sobre qual seria sua finalidade, foram determinados objetivos para a oficina, para então analisar se os métodos utilizados seriam adequados para alcançar os objetivos (BARBOSA, 2010, p.69-70). Após este processo, os objetivos da oficina estão voltados para: 1. Criar desafios que ajude os participantes a ampliarem o senso de criatividade e engenhosidade. 2. Reforçar a ideia de que dom e talento são um mito, e não têm um papel fundamental para produzir bons trabalhos estéticos. 3. Reforçar a ideia de que não é necessário materiais nobres para se produzir bons trabalhos estéticos. 4. Colocar o participante em contato com o ambiente ao seu redor e com os demais participantes. 5. Estimular o olhar do participante em busca de novas visualidades. 6. Desafiar os participantes a encontrarem com a colagem soluções técnicas e estéticas para as situações propostas. Os objetivos do plano de atividades desta oficina se aproximam de alguma maneira, ou pelo menos andam pelo mesmo caminho, dos que foram propostos para o programa da Escolinha de Arte de São Paulo que foi desenvolvido entre 1970 e 1971 (BARBOSA, 1978, p. 69-70). Ana Mae relata que os objetivos analisados foram: 35 o Desenvolver a percepção e a imaginação capaz de captar a realidade circundante. o Desenvolver a capacidade crítica, para analisar a realidade percebida o Encorajar o processo criativo, o qual permite novas respostas a esta realidade, até mesmo mudando-a ou transformando-a. Uma etapa que é comum em todos os encontros é a pesquisa e busca por imagens nos materiais disponibilizados para os participantes. A partir do primeiro encontro até o quarto, os participantes serão instruídos/instigados a selecionar e separar as imagens para dois propósitos: 1. Utilizar o material para a atividade do dia; 2. Guardar a imagens para serem utilizadas no último encontro, quando será o fechamento com a composição de um caderno afetivo. Para fazer esta distinção, eles serão impelidos a fazerem escolhas e tomarem decisões sobre o que guardar para o último encontro. Isso leva o participante e o Arte Educador a pensarem que o que for selecionado para depois tem mais valor afetivo e estético para o participante. Portanto, um procedimento comum a todas atividades é a pesquisa, busca e seleção de imagens, recortes, embalagens e qualquer material gráfico – ou não necessariamente. Para ilustrar os conteúdos a serem abordados e as atividades propostas dos encontros, serão apresentados diversos artistas como referência tanto da história da arte como da técnica e conceito de colagem na prática artística deles. Este material didático pode ser apresentando de acordo com a infraestrutura que a instituição oferecer. Se ela contar com um computador ligado à uma televisão ou a um projetor, a oficina poderá ter acesso ao infinito acervo da internet. Caso isto não esteja disponível, o educador poderá juntar livros, catálogos, impressões ou outros que possam servir para mostrar o que lhe interessa. 36 Encontro 1 Como colar sem cola e a lógica da colagem além da cola 1. Conteúdos a serem abordados Introdução à colagem e sua história nas artes visuais. A perspectiva da colagem além da abordagem através da tesoura e cola. Pequena apresentação sobre o que pode ser considerado uma imagem: figurações, letras, formas geométricas, campos de cores, texturas. Artistas que trabalham com “colagem”, mas sem cola. Artistas de interesse: Tunga, Rauschenberg, Tatlin, Picasso (cabeça de touro-banco de bicicleta), Salvador Dalí (telefone-lagosta, mulher-gaveta), Rosana Paulino, Scheila Leirner, Nelson Leirner. 2. Objetivo específico No primeiro encontro será apresentada a história da colagem na arte moderna, com o foco no processo e procedimento que ela possibilitou, e na perspectiva da colagem além da abordagem através da tesoura e cola. O objetivo específico deste encontro é desafiar os participantes a pensar como a colagem se apresenta de outras formas nos fazeres do mundo. 3. Perguntas disparadoras: • Primeiro contato com a arte? A partir da pergunta você vai construir uma linha do tempo de eventos artísticos que marcaram sua memória como relevantes (música, moda, filmes, gibis, revistas, novela, propaganda, capa de discos, mídias que estão além de exposições e museus – e estes também contam). • Quando vocês tiveram o primeiro contato com a arte? Qual é a recordação mais antiga que vocês se lembram em que perceberam que existe uma parte 37 da cultura que é denominada Arte? A partir de então quais foram os contatos com aquilo que VOCÊ denomina como arte? • Como você agrega as coisas à sua vida? Como você carrega aquilo que você gosta contigo? 4. Atividades propostas: 4.1. Pesquisa de imagens Como aquecimento das atividades, será proposta uma pesquisa e seleção inicial de materiais gráficos em revistas, catálogos, jornais, folhetos, livros e outros que eles utilizarão nos trabalhos deste primeiro encontro. A ideia aqui é que eles selecionem tudo o que lhes atrai, gostem e lhes chame a atenção. Quando mais melhor: não há limite para o quanto de material eles selecionam, e o excedente será guardado como arquivo onde eles podem “consultar” em outras atividades. 4.2. Colagem sem cola Individual: como forma de se aproximarem da linguagem da colagem, propor o momento de pesquisa e seleção de imagens em revistas, catálogos, jornais, folhetos, livros e outros, para em seguida os participantes realizarem um trabalho que não utilize cola para colar. Serão disponibilizados outros materiais que os desafiem a pensar num modo de “colar” sem cola: fitas, barbante, clipes, alfinete… Cada participante com uma folha (tríplex, Canson, craft) tamanho A5 que será o suporte do trabalho. Escrever o seu nome no verso da folha. Usando as imagens selecionadas a atividade acontece da seguinte forma 38 4.3. Colagem circular coletiva Coletiva: propor um momento de pesquisa e seleção de imagens em revistas, catálogo, jornais, folhetos, livros e outros com as quais os participantes tenham interesse/afinidade. Esta coleção formada servira para dois propósitos: 1. A atividade de cadernos afetivos na última aula - separar 2. A atividade de colagem coletiva Cada participante com uma folha tamanho A3 (tríplex, Canson, craft) que será o suporte do trabalho. Escrever o seu nome no verso da folha. Usando as imagens selecionadas a atividade acontece da seguinte forma: - O participante cola uma imagem na folha - Passa para o lado, ao mesmo tempo que ele recebe a folha de outro participante. - O participante cola duas imagens na folha e passa para o lado - O participante cola três imagens na folha e passa para o lado. - Esta rotina acontece até o momento em que… fim da atividade acontece por meio de uma negociação entre os participantes sobre o momento de parar de rodar as folhas. - É importante que cada participante termine a atividade com um trabalho que não seja o seu. Então a atividade deve acontecer no mínimo até o trabalho faça uma volta completa. 5. Técnicas empregadas - Modos alternativos para grudar duas coisas juntas 39 6. Recursos didáticos empregados - Computador, projetor e livros de referência. - Material gráfico: revistas, catálogo, jornais, folhetos, livros. - Material “alternativos” para colagem: cola, fitas, barbante, clipes, alfinete, - Régua, tesoura, estilete. Encontro 2 Letras e palavras “Gestos formadores que se revelam, em sua intimidade, como movimentos transformadores da mais ampla diversidade. Cores transformadas em sons, cotidiano em fatos ficcionais, poemas em coreografias ou imagens plásticas” (SALLES, 1998, p.27). 1. Conteúdos a serem abordados “Uma das principais características do cubismo é a decomposição e deformação da imagem. Entretanto, as letras são resistentes a este tipo de manipulação, provocando o artista/expectador a ver as letras como outra dimensão” (CRAN, 2014, p. 16). A palavra e a letra ao longo da história da arte. O momento na história da arte moderna em a colagem surge durante o cubismo analítico e qual a relação dela com as letras/palavras. A diferença nas artes visuais entre a palavras ser usada como rótulo (identificação de algo) e a palavra como sendo o próprio assunto do artista. 40 Artistas de interesse: artistas ligados ao dada e neodada que trabalharam com palavras e letras. Paulo Brusky, Barbara Kruger, Arnaldo Antunes, Braque, Picasso, Jasper Johns. 2. Objetivo específico Dar novos valores às palavras, tratando-as a partir dos seus valores gráficos. Decompor as palavras em seu conceito e a imagem associada a este conceito e explorar as possibilidades que se pode obter. Pesquisar como as palavras, frases e textos podem ser traduzidas para outro código (língua), como visual, musical, corporal, entre outros. 3. Pergunta disparadora: • Alguém da turma escreve? Poesia, conto, texto? Ou mantém um diário? • Como um autor começa um texto? Onde podemos encontrar exemplos onde a palavra é uma imagem? Qual palavra para vocês carrega instantaneamente um afeto no momento em que você a percebe? (a palavra “MÃE” , por exemplo). 4. Atividades propostas A atividade consiste em a partir de materiais gráficos – revistas, catálogos, jornais, folhetos, livros e outros -, recortar frases e palavras de interesse, e criar frases curtas, frases longas, Haikais, versos a partir dessa seleção, que podem ou não ter um sentido lógico. O ideal é que os participantes começarem formando poucas frases, duas ou três, ou mesmo uma única frase longa. Então eles apresentam as frases ao grupo e podem ser instigados a escolherem ou trocarem suas frases/poemas uns com os outros. A última etapa consiste em traduzi-las – o que é diferente de ilustrá-las – para a linguagem visual utilizando a colagem, podendo integrar ou não palavras à composição pictórica. Os participantes então apresentam suas produções para a turma. 41 5. Técnicas empregadas - Haikai, poemas, colagem de poemas, poemas dada-surrealistas; - A confecção de um poema coletivo aos moldes da atividade 4.3 do Encontro 1. 6. Recursos didáticos empregados - Computador, projetor e livros de referência - Material gráfico: revistas, catálogo, jornais, folhetos, livros. - Material para colagem: cola, fitas, barbante, clipes, alfinete, - Régua, tesoura, estilete. Encontro 3 Colagem e pintura 1. Conteúdos a serem abordados O momento de passagem do dada para o surrealismo e a contribuição de Max Ernst para a estética surrealista a partir da colagem. Outros momentos da arte contemporânea em que colagem e pintura são trabalhadas em conjunto. Artistas de interesse: Giorgio de Chirico, Max Ernst, Wagenchi Mutu, Yayoi Kusama, Leda Catunda, Robert Rauschemberg, James Rosenquist, Picasso, Braque. 42 2. Objetivo específico Max Ernst é conhecido pelas suas colagens que retratam mundos fantásticos e oníricos. Na passagem do dada para o surrealismo, inspirado pelo pintor Giorgio de Chiriro, ele utilizou a pintura para conseguir integrar os elementos da colagem que tinham fronteiras entre si, e assim trazer à realidade imagens “maravilhosas” (no sentido surrealista, não como algo belo). O objetivo neste encontro consiste em utilizar a colagem como base para um trabalho composto por duas ou mais técnicas/ linguagens, desafiando os participantes a usar a pintura, por exemplo, como técnica integradora das imagens e objetos colados. 3. Perguntas disparadoras: - Como a linguagem do desenho e da pintura podem conversar com a colagem? Como elas podem complementar a colagem? Como elas podem ser utilizadas para apagar as fronteiras entre dois objetos que foram colados. 4. Atividades propostas Na aula anterior os participantes serão avisados de que eles podem trazer materiais gráficos/ de pintura com os quais eles têm mais afinidade para utilizar nesta atividade. Novamente, o encontro começa com o momento de pesquisa e seleção de imagens em revistas, catálogos, jornais, folhetos, livros com as quais os participantes tenham interesse/afinidade considerando que estas imagens farão parte de uma composição com pintura. Baseado nos conteúdos abordados neste encontro e nos artistas apresentados, apresentar as seguintes possibilidades de atividade para livre escolha: 1. Integrar as imagens selecionadas utilizando os materiais de pintura para apagar a fronteira entre elas. 43 2. Montar uma composição visual decolagem para que seja “traduzida” para a linguagem pictórica. 5. Técnicas empregadas - Colagem - Linguagens pictóricas: desenho, pintura, aquarela, giz pastel. 6. Recursos didáticos empregados - Computador, projetor e livros de referência - Material gráfico: revistas, catálogo, jornais, folhetos, livros. - Material para colagem: cola, fitas, barbante, clipes, alfinete, - Régua, tesoura, estilete. Encontro 4 Colagem e investigação do ambiente 1. Conteúdos a serem abordados Tópicos e questões sobre ecologia, meio ambiente e descarte. A utilização de materiais prontos (industrializados) e reutilização de materiais descartados, o conceito de ready-made e de objet-trouvé. Neste encontro será dado foco para os participantes prestarem atenção à embalagens comerciais e considerar utilizar suas imagens e grafismos nas composições. 44 Artistas de interesse: Robert Rauschenberg, John Cornell, Emmanuel Nassar, Nuno Ramos, Marcel Duchamp, Beatriz MIlhazes, Leda Catunda 2. Objetivo específico Ampliar a ideia de meio ambiente para além da ideia de florestas e biomas e considerar a cidade também como parte integrante no meio ambiente; observar este meio ambiente urbano; dar nova utilidade a materiais descartados, considerando o princípio do Reuso da Política dos 3R’s. 3. Perguntas disparadoras: • O que vocês consideram que é um material artístico? • Como que um material ordinário, utilizado no cotidiano, pode ser transformado em um material artístico ou um trabalho de arte? • O que vocês observam/procuram quando estão andando na rua/ônibus/carro? Vocês olham para os descartes do seu vizinho? Vocês olham para dentro de uma caçamba quando passam por uma? • Qual a diferença entre um antiquário, um brechó, um sebo, e o descarte na caçamba? 4. Atividades propostas Os participantes serão convidados a caminhar dentro do espaço educativo e ao redor do prédio da instituição procurando, observando, investigando o local em busca de materiais que possam ser utilizados para compor um trabalho. Além de materiais bidimensionais – papéis, plásticos, rótulos – os participantes podem encontrar materiais tridimensionais – peças, embalagens – o que impõe o desafio de um trabalho tridimensional. De volta à classe, os participantes iniciarão o trabalho plástico-expressivo. 45 5. Técnicas empregadas - Ressignificação, valorização do meio ambiente, reuso, interação com a cidade e desabituar o olhar. - Ready-made, objet-trouvé e avistamentos. 6. Recursos didáticos empregados - Computador, projetor e livros de referência - Material gráfico: revistas, catálogo, jornais, folhetos, livros. - Material para colagem: cola, fitas, barbante, clipes, alfinete, - Régua, tesoura, estilete. Encontro 5 Caderno afetivos 1. Conteúdos a serem abordados O que é um livro de artista? O que é scrapbooking? O que é um caderno afetivo? O que é um caderno de referências? Desde o primeiro encontro os participantes serão avisados, relembrados e incentivados a guardarem qualquer tipo de material que lhes interessem ou despertem algum tipo de afetividade. Materiais que eles podem ter encontrado na 46 oficina ou no seu cotidiano fora dela. O interesse por estes materiais pode ser puramente estético, sentimental, ou a lembrança de algo que ganhado de alguém. Artistas de interesse: Sônia Gomes, Luah Souza, Hudnilson Jr. 2. Objetivo específico - Criar ao longo dos encontros um arquivo de materiais que eles foram encontrando, recolhendo, trocando com os outros participantes da oficina. - Construir um caderno com encadernação artesanal, feito a mão, que servirá como arquivo/base para tudo aquilo que os participantes quiserem guardar. - Criar um caderno afetivo baseado nos conceitos de cadernos apresentados: livro de artista, scrapbook, caderno de afetividades e caderno de referências. 3. Perguntas disparadoras: Atualmente, nossa memória está ligada em grande parte com os dispositivos digitais, fazendo deles o portador das lembranças que vivemos: sendo assim, como vocês guardam as memórias que desejam levar para o resto da vida? Como materializar uma memória? Quando foi a última vez que você revelou uma foto; recebeu ou enviou uma carta ou bilhete? Se você perdesse o seu celular hoje, quais memórias/lembranças você perderia também? Se sua casa estivesse com risco de desabamento e você tivesse que sair de lá rapidamente, o que seria mais importante retirar de lá - pensando em memórias e lembranças - ? 47 4. Atividades propostas Estes cadernos serão trabalhados como um arquivo para quaisquer materiais que eles tenham separado, colecionado, juntado durante a oficina, mesmo algum material que eles tenham em casa e que esteja solto, e com os quais tenham alguma relação de memória ou afetividade. Será incentivada a troca materiais/imagens com outros participantes da oficina, assim como será incentivada a produção da capa do caderno. 5. Técnicas empregadas - Os participantes serão incentivados a usar todas as técnicas, conceitos e ideias que foram abortadas nos encontros anteriores ou quaisquer outras que eles tenham interesse sintam e se sintam à vontade. 6. Recursos didáticos empregados - Computador, projetor e livros de referência - Material gráfico: revistas, catálogo, jornais, folhetos, livros. - Material para colagem: cola, fitas, barbante, clipes, alfinete, - Régua, tesoura, estilete. 48 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. BARBOSA, A. M. T. B. A imagem no ensino da arte. 8ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2010. BARBOSA, A. M. T. B. Teoria e prática da educação artística. São Paulo: Cultrix, 1978. CRAN, R., Collage in Twentieth-Century Art, Literature, and Culture. Joseph Cornell, William Burroughs, Frank O’Hara, and Bob Dylan, Farnham : Ashgate, 2014. ECO, U. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 10ª ed. 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