unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARAISA GARDINALI GAIAD A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES EM EVA ILLOUZ: o fenômeno da literatura de autoajuda Araraquara – SP 2019 Maraisa Gardinali Gaiad A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES EM EVA ILLOUZ: o fenômeno da literatura de autoajuda Dissertação de Mestrado, apresentada ao Conselho, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara-SP, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientador: Prof. Dr. João Carlos Soares Zuin Bolsa: CAPES - Brasil Araraquara - SP 2019 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Gaiad, Maraisa Gardinali A sociologia das emoções em Eva Illouz: o fenômeno da literatura de autoajuda / Maraisa Gardinali Gaiad — 2019 71 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: João Carlos Soares Zuin 1. Sociologia das Emoções. 2. Illouz, Eva. 3. Literatura. 4. Autoajuda. I. Título. Maraisa Gardinali Gaiad. A Sociologia das Emoções em Eva Illouz: o fenômeno da literatura de autoajuda Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, em 26 de março de 2019. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientador: Prof. Dr. João Carlos Soares Zuin Bolsa: CAPES - Brasil Data da defesa: 26 / 03 / 2019 Membros componentes da Banca Examinadora: Presidente e Orientador: Prof. Dr. João Carlos Soares Zuin - FCLAr/Unesp Membro Titular: Profa. Dra. Maria Aparecida Chaves Jardim - FCLAr/Unesp Membro Titular: Prof. Dr. Ari Fernando Maia - FC/Unesp Bauru Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Universidade Estadual Paulista – Unesp/Araraquara Faculdade de Ciências e Letras AGRADECIMENTOS Aos meus queridos pais, Maria José e Maurício, que de fato tornam possíveis todos os meus sonhos. Obrigada pelo amor incondicional. Ao Felipe, meu companheiro nesta vida, agradeço pelo amor, pela amizade, pela compreensão, pela paciência e pelo incentivo. Obrigada por me mostrar que a “vida é pra valer, a vida é pra levar...” (Samba pra Vinicius, Toquinho e Chico Buarque). À Luma, minha amiga nas Ciências Sociais e na vida, agradeço pelas leituras, apontamentos, discussões e momentos únicos de carinho e descontração. À Mariana e à Ana Laura, presentes que Araraquara me deu, obrigada pelo carinho, pela presença e por me fazerem sentir especial. À Juliana e à Priscila, amigas de uma vida inteira, obrigada pelo amor fraternal, por sempre demonstrarem uma fé absoluta em mim e por compartilharem suas vidas comigo. A meu irmão, sogra, sogro, cunhadas, cunhados e sobrinhas, obrigada pelo carinho e por fazerem a minha vida tão feliz. Ao meu orientador, professor Zuin, agradeço por ter sido a luz no momento de escuridão, pelo carinho e respeito, por ter acreditado e confiado no meu potencial de trabalho. Aos professores Ari Maia e Maria Jardim, obrigada pela contribuição intelectual e pelo respeito com que trataram o meu trabalho. Agradeço também ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP, campus de Araraquara. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001. “Não é ao sol de uma luminosa manhã, mas de noite, entre sombras e fadigas, que se acendem fogos de artifícios...” Fernando de Azevedo RESUMO O trabalho investiga como a condição autônoma dos indivíduos, na sociedade capitalista contemporânea, promove um sentido de liberdade essencialmente utilitarista e privado, que gera a tendência da redução das emoções à forma de mercadoria e de bens de consumo. Pretende-se analisar como a psicologia e os livros de autoajuda voltados para o indivíduo contemporâneo passaram a ter uma importância fundamental na sociedade capitalista atual e como colaboram com o processo de transformação dos afetos e dos sentimentos em produtos notáveis do capitalismo na era global. Em outras palavras, deseja-se discutir, por meio da análise do papel da literatura de autoajuda, como a sociedade capitalista tem transformado paixões e psique ao promover um amplo processo de mercantilização, alienação e reificação das relações amorosas. Nesse sentido, o presente trabalho observa qual subjetividade feminina a literatura de autoajuda voltada para relacionamentos amorosos determina. Metodologicamente, a investigação se deu pela compreensão dos conceitos trabalhados na sociologia das emoções de Eva Illouz, aliados ao emprego da teoria crítica da primeira geração. A teoria crítica foi aplicada tanto na análise de como as “potências formativas” constroem indivíduos, valores e processos sociais que promovem a estabilidade e a reprodução das estruturas sociais das quais necessitam quanto na análise da fragilidade da vida privada, como produto das instituições integrantes do “mercado afetivo”. A pesquisa ainda analisou três livros de autoajuda, best-sellers no Brasil, voltados para a temática de relacionamentos amorosos – Mulheres inteligentes, relações saudáveis; Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? e Casamento blindado –, com o objetivo de apreender o padrão comportamental feminino que esta potência formativa peculiar, a literatura de autoajuda, procura estabelecer. Por sua vez, ela reitera o esforço de seus autores na manutenção do status quo machista e sexista. Palavras-chave: Autoajuda. Eva Illouz. Sociologia. ABSTRACT The work investigates how the autonomous condition of individuals in contemporary capitalist society promotes an essentially utilitarian and private sense of freedom, which generates the tendency to reduce emotions to the form of commodities and consumer goods. It is intended to analyze how psychology and self-help books geared towards the contemporary individual have come to have a fundamental importance in today's capitalist society and how they collaborate with the process of transformation of affections and feelings into remarkable products of capitalism in the global era. In other words, it aims to discuss, through the analysis of the role of self-help literature, how capitalist society has transformed passions and psyche by promoting a broad process of commodification, alienation, and reification of love relationships. In this sense, the present work observes which female subjectivity the literature of self-help focused on amorous relationships determines. Methodologically, the investigation came about by the understanding of the concepts worked in the sociology of the emotions of Eva Illouz allied to the use of the critical theory of the first generation. Critical theory was applied not only in the analysis of how the "formative powers" construct individuals, social values and processes that promote the stability and reproduction of social structures they need, but also in the analysis of the fragility of private life as a product of institutions of the "affective market". Besides, the survey reviewed three best-seller self-help books in Brazil, focused on romantic relationships – Mulheres inteligentes, relações saudáveis; Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? and Casamento blindado – with the purpose of apprehending the female behavioral pattern that this peculiar formative power, the self-help literature, seeks to establish. In turn, it reiterates the author’s efforts to maintain the male chauvinism and sexist status quo. Keywords: Self-help. Eva Illouz. Sociology. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 8 2 AS EMOÇÕES NO CAPITALISMO DA ERA GLOBAL ..................................... 10 2.1 A liberdade e a autonomia individual como valores centrais da dinâmica capitalista moderna ........................................................................................................................ 10 2.2 A sociologia das emoções ............................................................................................. 17 2.2.1 A sociologia das emoções em Eva Illouz ..................................................................... 22 2.2.2 Illouz: consumo e amor romântico ............................................................................... 28 3 AUTOAJUDA E VIDA EMOCIONAL .................................................................... 36 3.1 Dominação e sofrimento ............................................................................................... 36 3.2 O discurso terapêutico de autoajuda ............................................................................. 43 3.2.1 A promessa de felicidade na literatura de autoajuda (relacionamentos amorosos) ...... 52 3.2.2 O padrão emocional feminino estabelecido no Brasil pelos best-sellers sobre relacionamentos ............................................................................................................ 59 4 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 64 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 65 8 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho procurou investigar a forma como a condição autônoma dos indivíduos na sociedade capitalista contemporânea promove um sentido de liberdade essencialmente utilitarista e privado, que gera a tendência da redução das emoções à forma da mercadoria e de bens de consumo. A desregulamentação axiológica e ideológica do amor e da estima provocou uma ampliação das possibilidades eletivas para os indivíduos, ao mesmo tempo em que impulsionou o vertiginoso aumento dos sentimentos de incerteza e de insegurança na vontade subjetiva sempre ameaçada pelo fracasso. A condição de vida autônoma teria nos colocado numa nova Erlebnis1 (BENJAMIN, 1994) que nos estimularia a buscar fora de nós mesmos pontos de referência, promessas de felicidade e fórmulas de sucesso. Na nova Erlebnis, o controle emocional realizado pelos produtos ofertados pelo “mercado emotivo” (ILLOUZ, 2011) elaboraria um significado e um estilo de vida que possibilitaria a formação de um repertório cultural compartilhado pelo desempenho de uma função disciplinar, compatibilizando as emoções com a cultura dominante. A autonomia individual, portanto, exposta aos diversos riscos que atormentam o indivíduo na sociedade de alta performance, encontra no mercado emocional uma diversidade de ideais sobre saúde mental e bem-estar psíquico, bem como fórmulas para a construção de um eu “positivo” de elevada autoestima, produtivo e performático. Assim, os afetos e os sentimentos passaram a ser um dos principais produtos do capitalismo na era global e, nessa perspectiva, a “emodity” (ILLOUZ, 2019) literatura de autoajuda – voltada para o indivíduo sempre afetado pelo medo de não estar à altura das exigências para ser feliz na própria vida e nos relacionamentos amorosos – passou a ter uma importância fundamental na sociedade capitalista contemporânea. A Literatura não mais apenas descreve e narra a complexidade da existência, mas exerce agora as difíceis tarefas de significar uma realidade esvaziada do sentido de permanência e de eternidade, e de diferenciar a direção e o significado das ações e dos interesses nas diferentes formas de vida (ZUIN, 2018). Assim, essa “potência formativa” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) realiza a colonização da subjetividade a partir do discurso terapêutico empregado pela “psicologia positiva” (ILLOUZ, 2018), que constrói o indivíduo e os valores e processos sociais que promovem a estabilidade e a reprodução das instituições e estruturas sociais dominantes. Nesse sentido, o trabalho observou qual 1 Forma de vivência pessoal atomizada e privada, descrita por Benjamin (1994), própria do indivíduo na grande cidade, sem vínculos com o passado e com a comunidade, metrificada pelo valor da utilidade e da eficácia. 9 subjetividade feminina determina a literatura de autoajuda voltada para relacionamentos amorosos. Metodologicamente, a pesquisa se orientou pela sociologia das emoções desenvolvida por Eva Illouz, bem como pelos conceitos trabalhados pela autora. Deteve-se ao olhar de Eva Illouz sobre o papel das emoções e dos sentimentos, devido à riqueza e perspicácia da sua análise crítica acerca da cultura do capitalismo tardio. A teoria crítica da primeira geração, por sua vez, se ocupou tanto da análise sobre a formação da subjetividade dos indivíduos pelas “potências culturais formativas” (HORKHEIMER, 1974), ofertadas pela “indústria cultural” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) atual, quanto na investigação da fragilidade da vida privada, principalmente a feminina. O primeiro capítulo, intitulado As emoções no capitalismo da era global, procura, a partir da liberdade e da autonomia, valores institucionalizados pela cultura ocidental, expor os processos de subjetividade desenvolvidos pela cultura do consumo na modernidade tardia. Expõe a gênese da sociologia das emoções e seus propósitos enquanto um campo sociológico de análise, introduzindo a sociologia de Eva Illouz. Nesse ponto, identifica os conceitos trabalhados pela autora na compreensão do “capitalismo emocional” (ILLOUZ; CABANAS, 2018), ou seja, na compreensão da relação cada vez mais estreita entre consumo e sentimento, e, em seguida, trata da relação nada óbvia entre o consumo e o amor romântico. Autoajuda e vida emocional é o título do segundo capítulo que se inicia discorrendo sobre a dominação da vida, por meio da colonização das subjetividades individuais, e também sobre os sofrimentos psíquicos decorrentes desse processo. Em seguida, descreve o discurso terapêutico de autoajuda e o novo “estilo de pensamento” – que é também um “novo estilo emocional” (ILLOUZ, 2011) – que ele organiza tanto no mundo do trabalho quanto na esfera íntima da vida. Depois, apresenta a promessa de felicidade alimentada pela literatura de autoajuda sobre relacionamentos amorosos. Aqui, os livros de autoajuda são “emoditys” (ILLOUZ, 2019) extremamente significativas da “indústria cultural” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) atual. Por último, demonstra qual é o padrão emocional feminino brasileiro estabelecido por esse “apparatus” (MARCUSE, 1998), por meio da análise de três exemplares da categoria best-sellers sobre relacionamentos. 10 2 AS EMOÇÕES NO CAPITALISMO DA ERA GLOBAL 2.1 A liberdade e a autonomia individual como valores centrais da dinâmica capitalista moderna As grandes transformações sociais, iniciadas na Europa no século XVIII, com o início do capitalismo, e desenvolvidas ao longo dos dois séculos seguintes, tiveram como valor fundamental a liberdade: a liberdade social e a liberdade de escolha2. A liberdade política é uma categoria da liberdade social que compreende a relação de liberdade entre os cidadãos, ou grupos de cidadãos, e o governo. No entanto, o mesmo entendimento de liberdade política foi ampliado para atender a outros anseios como o de liberdade econômica, por exemplo (BOBBIO et al., 2010). O liberalismo enquanto espírito da era moderna3 teve seu germe no seio das novas concepções de homem que se constituíram na Europa a partir da metade do século XIV até o final do século XVI. O Renascimento rompeu radicalmente com as estruturas sociais vigentes – até a Idade Média – ao retomar princípios da Antiguidade Clássica como o racionalismo, a ciência e a natureza, estabelecendo um novo papel para o homem: o homem como potência central e criadora do universo e não unicamente submetido aos dogmas e ao misticismo religioso – antropocentrismo. Na segunda década do século XVI, [...] a Reforma protestante – principalmente o calvinismo – traz a doutrina do livre exame, derruba o princípio de uma hierarquia eclesiástica como órgão de mediação entre o homem e Deus, emancipando assim a consciência do indivíduo, ministro do Deus verdadeiro, que pela ascese no mundo (e não fora dele) pode disciplinar racionalmente toda a própria vida (BOBBIO et al., 2010, p. 695). A motivação inicial da Reforma foi a crítica aos abusos da Igreja Católica – como o pagamento de indulgências –, mas o movimento cristão se transformou em reforma religiosa e em revolução cultural. Rejeitando a tradição e exaltando o pensamento racional e científico, a Reforma desgastou consideravelmente o pensamento dogmático, revolucionando os modos e os costumes. O apogeu, principalmente o político, dessa reforma cultural se deu ao longo 2 Entendemos liberdade social (ou interpessoal) como as interações entre atores, pessoas ou grupos, que se deixam livres para agir de acordo com a vontade de cada um. Sendo assim, o ator se torna socialmente não- livre quando é impedido por outro de realizar suas ações. Já a liberdade de escolha designa a relação entre o ator e um determinado número de ações possíveis para sua escolha (BOBBIO et al., 2010). 3 Modernidade é aqui definida pelo período de tempo compreendido entre meados do século XVIII – Iluminismo – e, aproximadamente, 1985 (GIDDENS; SUTTON, 2016). 11 dos dois séculos seguintes com o Iluminismo, que, rejeitando radicalmente a tirania habitual das instituições tradicionais e promovendo o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, reestruturou a sociedade. Podemos afirmar, finalmente, que “[...] a liberdade religiosa é o berço da liberdade moderna” (BOBBIO et al., 2010, p. 697). O ideário moderno de liberdade modificou também a dinâmica das relações econômicas. Entre o século XV e o início do XVIII, vigorou o sistema econômico mercantil4 que manteve os princípios tradicionais de autossuficiência e de valorização da produção interna, além de regulamentar o inédito caráter competitivo do mercado nacional. No período seguinte, o liberalismo econômico – sustentando a desregulamentação estatal para as atividades econômicas nacionais e internacionais, com base no princípio da livre busca pela felicidade por cada indivíduo – promoveu uma transformação substantiva na estrutura social. Para que sua ideia de mercado autorregulável5 fosse exequível, uma nova ordem lógica era necessária: tudo o que fosse produzido deveria ser comercializado, vendido, transformado em mercadorias6. Foi dessa maneira que o trabalho, a terra e o dinheiro se tornaram mercadorias, “[...] destruindo totalmente o tecido tradicional da sociedade” (POLANYI, 1980, p. 89), e afirmaram o credo liberal como salvador dos homens por meio do mercado. Contudo, ao longo do século XIX e XX, a regulamentação do sistema de mercado7 apresentou falhas graves que produziram tensões e crises nas instituições políticas e econômicas. No plano nacional trouxe desemprego e tensão entre as classes, enquanto no plano internacional provocou a pressão sobre o câmbio e as hostilidades imperialistas. Nos anos de 1920, diante do desastre internacional do capitalismo liberal, os países industrializados se dividiram entre dois caminhos distintos: pela persistência na manutenção do sistema liberal com tentativa de restauração do padrão-ouro, e pela organização política e econômica em termos socialistas. O restabelecimento do padrão-ouro exigiu o sacrifício dos 4 Inserido no contexto do Estado nacional, o mercantilismo compreendia um conjunto de práticas econômicas que buscavam unificar os mercados interno (nacional) e externo (internacional), porém, eliminando seu caráter complementar de funcionamento e os transformando em mercados concorrentes dentro do mercado nacional (POLANYI, 1980). O Estado intervencionista orientava a atividade metalista, a fim de garantir a balança comercial favorável, por meio do pacto colonial e do protecionismo. 5 O mercado auto regulável significa uma economia regulada apenas pelos preços do mercado, ou seja, uma ideia que nunca se concretizou verdadeiramente (POLANYI, 1980). 6 O mercado auto regulável cria, portanto, a ideia de mercadoria como “valor de troca” (MARX, 1994). 7 O sistema de mercado estava fundamentado sobre três pilares: o mercado de trabalho, o padrão-ouro (sistema monetário) e o livre comércio, os quais entraram em crise com a evolução desregulada do mercado. 12 mercados e dos governos livres, o que enfraqueceu a democracia e possibilitou a ascensão de regimes fascistas8. A fim de evitar catástrofes como a crise de 1929, foram implementadas, nos anos de 1970, modificações nos princípios da economia liberal clássica9: o neoliberalismo se opôs ao preceito do laissez-faire, submetendo novamente a economia de mercado ao controle do Estado. No entanto, a partir dos anos de 1980, o termo neoliberalismo adquiriu uma nova substância10 com a implementação de medidas como a privatização de empresas estatais e a supressão de direitos dos trabalhadores, sob o princípio da livre concorrência como condutor do progresso. A liberdade enquanto valor moral máximo da modernidade e também da pós- modernidade conduziu ao desenvolvimento arrebatador do modo de produção capitalista. O novo mundo se conjecturou tendo como princípios norteadores a “estrutura uniformizadora da tecnoeconomia” e o “comércio global”, que provocaram a radicalização da modernização econômica e política com o advento das redes globais de produção, distribuição, consumo e troca. No entanto, a complexidade do mundo globalizado, que é espacialmente comprimido, temporalmente acelerado e constituído pela multiplicidade e diversidade de valores e experiências sociais, torna a sua própria compreensão impossível de ser construída na chave de uma lógica única. Encontramo-nos numa existência cujo tempo histórico não é mais o da modernidade edificada e ordenada pelos atores políticos tradicionais dos Estados nacionais, mas que também não é ainda o de uma ordem mundial construída por uma sociedade civil global. O término da Guerra Fria proporcionou uma radical remodelação do capitalismo: “[...] o propósito foi abrir o terreno global para modos novos ou fortemente expandidos de extração de lucro, mesmo em domínios improváveis [...]” (SASSEN, 2014, p. 18). Nas décadas de 1970 e 1980, empresas americanas e europeias deram início à prática do deslocamento geográfico de unidades produtivas em busca da maximização dos lucros, e foram criadas as empresas transnacionais. O deslocamento das empresas para os países em desenvolvimento com a finalidade de conquistar novos mercados, produzindo nesses países a 8 Países como Inglaterra e EUA não insistiram no objetivo de recuperação do padrão-ouro e, consequentemente, se distanciaram da ameaça fascista. Logo, tanto as crises enfrentadas pela economia liberal, a tentativa de restauração do padrão-ouro e suas consequências trágicas quanto a concretização de projetos socialistas revelaram as deficiências e as fragilidades do sistema internacional proposto pelo capitalismo liberal e produziram seu declínio (POLANYI, 1980). 9 Os novos princípios econômicos caracterizaram o que foi chamado de economia social de mercado. 10 Nos anos de 1980 o termo neoliberalismo deixou de significar uma forma moderada de liberalismo quando passou a ser associado às reformas político econômicas implementadas por Augusto Pinochet no Chile, por Margaret Thatcher no Reino Unido e por Ronald Reagan nos EUA. Nas décadas seguintes o novo significado ganhou força, se consolidando no século XXI. 13 demanda gerada pelos seus países de origem, só foi possível graças à ação dos Estados na garantia de conveniências. Os agentes políticos dos países receptores de unidades fabris passaram a favorecer os interesses econômicos das empresas transnacionais, facilitando sua instalação com regalias, como a redução do custo do trabalho, e com a garantia de manter sob controle os interesses da classe trabalhadora organizada. Em uma década de desindustrialização dos locais de origem das fábricas e industrialização dos países em desenvolvimento, 2/3 da produção global passou a ser realizada em países emergentes (GALLINO, 2012). Dessa forma, é possível observar que tanto os Estados nacionais quanto os agentes privados transnacionais foram os responsáveis pelo fenômeno da “mobilização global” (GALLI, 2010)11. Inclusive, foram os agentes privados transnacionais os principais responsáveis pela realização da abertura efetiva de todos os espaços claramente delimitados na primeira modernidade: fronteiras e territórios; instituições econômicas, sociais e políticas nacionais; constituição nacional; associações e grupos sociais; mercado nacional; o corpo e a mente das pessoas. Esse fenômeno não respeita fronteiras geográficas e torna o mundo um imenso mercado, deformando a geometria política da modernidade e alterando a noção de espaço social e tempo histórico. A dinâmica transnacional provocou a desregulamentação de acordos e compromissos da democracia moderna e do Estado de Proteção Social, a generalização do livre mercado, o acirramento da competitividade e a ascensão dos espaços regionais e das cidades globais12. Também modificou o formato da luta de classes: se, no Estado de Bem- Estar Social, ela era conduzida de baixo e com a finalidade de melhorar as condições de vida dos trabalhadores e cidadãos, por meio do reconhecimento social do trabalho, após o declínio histórico do comunismo, a nova luta de classes passou a ser dirigida pelo alto, pelas forças econômicas e políticas das empresas nacionais e transnacionais que buscavam recuperar os privilégios, os lucros e, sobretudo, o poder que foram substancialmente diminuídos durante o Estado de Bem-Estar Social. A reorganização e a concentração do poder econômico, por meio da racionalidade neoliberal, contribuíram para que as forças sociais vencedoras da Guerra Fria constituíssem 11 Para o filósofo político italiano, Carlo Galli, a essência da globalização está na compreensão do espaço absoluto, no fenômeno econômico, político e tecnológico que provocou a “mobilização total”: a possibilidade jurídica e política objetiva e a capacidade de ação subjetiva da utilização de recursos naturais e culturais, físicos e humanos na busca pela extração e apropriação da maior quantidade de valor e concentração de poder material e imaterial. 12 Os espaços regionais e as cidades globais constituem importantes espaços do mundo de produção industrial e extração de lucros que estão se tornando zonas de profundas desigualdades não mais determinadas politicamente, mas pelas estratégias e interesses dos agentes que atuam na lógica neoliberal. 14 uma classe global, uma elite capitalista transnacional que detém a capacidade técnica de inserção de valores e desejos no imaginário e na consciência das pessoas, produzindo a estrutura social e o tipo de indivíduo que necessita para a conservação do seu status quo. O poder global dessa elite manipula simultaneamente o corpo e a mente humana, exercendo violência simbólica por meio da criação de modelos que colonizam o imaginário e a consciência (MARRAMAO, 2009). Portanto, a elite transnacional – que é capaz de acionar e articular um processo de produção em qualquer região do mundo e de transportar mercadorias para mercados mais rentáveis – também é capaz de gerar uma demanda global de novos produtos por meio da força de convencimento e sedução das propagandas globais. Nos últimos trinta anos, aproximadamente, o desenvolvimento extraordinário do sistema financeiro caracterizou a mais nova fase do capitalismo global, cuja força mais potente é o próprio capitalismo financeiro que trouxe consigo impactantes mudanças nas relações sociais. As alterações no processo de produção e de reprodução do valor, a criação das empresas transnacionais, o vertiginoso declínio do Estado Social e a formação do atual sistema financeiro são partes articuladas de um processo ideológico de conquista de poder que é eminentemente político. Logo, o capitalismo financeiro pode ser compreendido como uma “mega-máquina”13 de valorização e extração máxima de valor a qualquer preço que não considera as consequências ambientais como a devastação, a contaminação e a poluição do meio ambiente, e os custos individuais e coletivos: o trabalho precário, o desemprego, a perda de dignidade, a exclusão social e a marginalização (GALLINO, 2011). A condição de trabalho precária e a posição social dos indivíduos diante das mega-máquinas do capitalismo industrial e financeiro produzem, entre outros, o fenômeno imediato das “vidas adiadas” (GALLINO, 2014). “Vidas adiadas” são aquelas incapazes de guiar a si mesmas e de idealizar e concretizar planos pessoais com autonomia devido à posição social sempre mais frágil, pois desprovida de segurança e direitos. Isso implica na diminuição de renda, no aumento dos índices de acidentes no trabalho, nos sofrimentos e nas doenças psicossociais vinculadas à competitividade, à produtividade, ao excesso de trabalho e à ameaça constante da rescisão de contrato e demissão que culmina em morte. “Vidas adiadas” são, portanto, vidas que postergam decisões importantes no cotidiano devido à precariedade da condição social e humana gerada pelas condições também 13 Luciano Gallino, sociólogo italiano, classifica como “mega-máquinas” potências que superaram a capacidade de extração de valor no capitalismo industrial e que, por meio da lógica do dinheiro que gera mais dinheiro, do capitalismo financeiro, desvaloriza o trabalho e acumula riquezas como nunca antes, impondo mudanças em todos os estratos sociais. 15 precárias de trabalho e pela dinâmica social que essa conjuntura impõe: são vidas que precisam lidar com o aumento da insegurança e incertezas em relação ao futuro, com a fragilidade dos vínculos sociais, com a perda da autoestima, com a exposição às variações inesperadas que impossibilitam a projeção de quadros pessoais, com o medo permanente e próprio da vida que se desenvolve sem destino pessoal e coletivo. As causas do medo contemporâneo encontram-se justamente no fato de que a origem dos problemas enfrentados no cotidiano provém dos espaços globais e por isso não estão ao alcance da ação política local. Inicialmente, os esforços dos modernos eram dirigidos às fontes de insegurança humana, e solicitavam em troca a aceitação do controle e do autocontrole, a domesticação e o freio dos desejos e paixões: em outras palavras, a modernidade oferecia uma maior segurança em troca da liberdade individual. [...] Nos últimos quarenta anos, a obsessão modernizante se movimentou em direção oposta àquela originária: cada vez mais as áreas da vida privada foram libertas de uma regulamentação normativa e transferidas ao reino da “política da vida” conduzida individualmente ao custo da segurança da vida e das condições sociais, sustentadas pelo governo e garantidas coletivamente. Em outras palavras: maior liberdade individual, mas menor segurança salvaguardada socialmente (BAUMAN, 2008, p. 40). Dado que liberdade e segurança são dois valores fundamentais para a vida humana, pois sem eles ela se torna indigna e indecente, prejudicada e esvaziada de sentido, a conciliação entre um e outro é sempre uma ação complexa já que ambos podem se limitar reciprocamente. Se há mais liberdade do que segurança, a vida pode se transformar em uma vida breve, pois estará exposta à violência cometida por outrem. Se a liberdade é inexistente, a segurança da vida é próxima da forma escrava: protegida por um senhor, mas desprovida de dignidade e de decência (BAUMAN, 2008). Nos últimos quarenta anos, o medo passou a refletir a ausência de segurança e o excesso de liberdade. A vida social se tornou frágil, exposta à violência e ao sofrimento causado pela racionalidade neoliberal, que espera que cada um possua a capacidade de empregar recursos e de solucionar individualmente problemas que não foram produzidos diretamente por suas ações. Portanto, todos são assombrados por eventuais incapacidades pessoais e falta de recursos perante as circunstâncias (BAUMAN, 2008). A sociedade capitalista, definida, no final do século XX, pelo êxito da economia de mercado, pela hegemonia do discurso político e econômico neoliberal e pela mundialização, produziu uma nova ordem social, política e cultural. A nova dinâmica, aliada às revoluções de gênero e sexual, acarretou profundas mudanças na individualidade: desfizeram os vínculos do indivíduo com preceitos e normas do passado, com a sociedade 16 tradicionalista, disciplinadora e punitiva, fazendo com que ele experimentasse a sensação de liberdade total. Os “filhos da liberdade” (BECK; BECK-GERNSHEIM, 2002) representam, ao mesmo tempo, a interiorização e a institucionalização da liberdade. São aqueles que cresceram educados pela ideia do livre agir, do mundo livre, da independência e da autonomia do eu, são os responsáveis pela “institucionalização do individualismo”. São também os que produzem uma aceleração nas experiências pessoais, gerando novos estilos e formas de vida. A consequência está nas novas formas de experiências pessoais que conjugam com os novos estilos de vida elementos paradoxais como interesse pessoal e altruísmo, competição e atividade voluntária, narcisismo e compaixão com os mais frágeis, egoísmo e solidariedade, tornando caótica a compreensão racional e sobretudo sentimental da vida. Portanto, se filosoficamente a liberdade é um valor moral, sociologicamente ela é uma prática organizada e institucionalizada14. A nova noção de individualidade, ao mesmo tempo em que instituiu o eu como uma unidade de decisão e de ação independente, totalmente responsável por si mesmo, provocou rupturas com os vínculos valorativos comuns: destruiu os elos de proteção com o Estado e também desatou os laços de solidariedade com grupos secundários (mundo do trabalho, sindicato, classe e partido). A mesma individualidade estendeu a concepção de autonomia para todo o conjunto da vida social, fazendo com que a prática comum de atribuição de valor social passasse a ser realizada por meio da avaliação de performances individuais. Do mesmo modo, a questão da igualdade também passou a ser pensada nos termos de igualdade de autonomia, na necessidade de possibilitar aos sujeitos competir profissionalmente com base unicamente no seu recurso pessoal15. Essa configuração social gerou uma sobrecarga emocional considerável ao indivíduo que, além do esforço solitário e permanente na construção de si mesmo, do eu competitivo e produtivo, encontra-se desamparado institucionalmente. A profunda mudança efetuada na psique individual pelos processos de transformação cultural localizados nas últimas décadas do século XX fez com que o pavor do 14 Foucault (1999) identificou não terem existido, no processo de transição da sociedade tradicional para a moderna, constrangimentos para a liberdade, mas uma reorganização da relação entre repressão e liberdade: a liberdade foi transformada em um dispositivo social. 15 A racionalidade neoliberal, acabou estabelecendo uma dinâmica de vida que se define pela eterna construção e desenvolvimento do que Foucault (2008) chamou de “capital humano”. 17 fracasso e da baixa produtividade, aliados ao cansaço16, produzissem novas formas de sofrimento: as neuroses de caráter. Até mesmo a depressão adquire, a partir de então, novos fatores desencadeadores: ela passa do sentimento de culpa e do sofrimento moral para a tristeza e o medo decorrente da ansiedade provocada pelo sentimento de inadequação e de incapacidade de iniciativa e de ação objetiva (EHRENBERG, 2010a). A depressão de caráter motiva outros distúrbios psíquicos como a síndrome do pânico, os transtornos alimentares (bulimia e anorexia), a síndrome de burn out17, a apatia e o isolamento social, a dependência, a hiperatividade, etc., patologias tão correntes no nosso cotidiano e que denunciam o mal- estar do nosso tempo. As novas formas de sofrimento social estão, portanto, vinculadas às profundas mudanças provocadas pela autonomia na figura do indivíduo e na individualidade, bem como pelas transformações nas normas, valores, nas relações familiares, nas relações práticas no trabalho, e nos vínculos sociais e políticos da sociedade contemporânea. Não são mais produtos do conflito neurótico entre desejo-norma-transgressão como outrora, mas sim da percepção de insuficiência e incapacidade do indivíduo para realizar suas tarefas, satisfazer seus próprios desejos e atender às expectativas alheias. 2.2 A sociologia das emoções A cultura racionalista que sempre avaliou o pensamento lógico como nobre, superior e fáustico, desprezando os sentimentos, julgando-os inferiores e perturbadores do curso da razão do mundo, efetuou a separação entre o eu racional e o eu sentimental. Isso reduziu de maneira significativa a importância dos sentimentos na vida pessoal e social, 16 A condição autônoma, alimentada pelo individualismo institucionalizado, pelo contexto do hiperindividualismo, da hipercompetitividade e do hiperconsumismo na construção de si por si mesmo, impôs ao eu o cansaço permanente, “la fatigue d’être soi” (o cansaço de ser si mesmo) – expressão cunhada pelo sociólogo francês Alain Ehrenberg (2008) no seu estudo sobre a depressão como um fenômeno sociológico revelador das mudanças na individualidade contemporânea. 17 Consiste no distúrbio psíquico de caráter depressivo, caracterizado por esgotamento físico e mental intenso em decorrência do stress no trabalho. 18 produzindo a desvalorização deles enquanto dimensão fundamental da experiência que pode gerar um eu consciente de si mesmo e um nós consciente do mundo18. Tradicionalmente, os sociólogos buscam compreender a modernidade por meio da exploração de três direções históricas: surgimento do capitalismo, das instituições democráticas, e da ideia de individualismo. No entanto, a transformação do papel dos sentimentos e do lugar ocupado por eles na sociedade também é um fato histórico que acompanha a modernidade. Frequentemente negligenciada, esta dimensão atuou como pano de fundo das principais análises sobre a modernidade e assim é vista em Marx no seu apontamento sobre o lado insensível da “alienação”; em Durkheim e as nascentes da “solidariedade social”; e em Weber com o papel dos sentimentos na “ação econômica”. Assim, a partir dos anos de 1980, alguns autores concebem um olhar crítico sobre o tema, e dão início a estudos que irão compor o campo sociológico das emoções, colocando em primeiro plano a elaboração de uma perspectiva teórica acerca dos sentimentos que pudesse compreender, interpretar e explicar o agir social, as relações intersubjetivas, as instituições e as estruturas sociais. A análise sociológica da dimensão emocional, portanto, possui como objetivo mostrar como ela “[...] modifica sensivelmente as análises que fazemos habitualmente sobre os indivíduos e a identidade moderna, da divisão entre o privado e o público, e sua articulação com a divisão de gênero” (PEUDENIER, 2008 p. 7, tradução nossa)19, a fim de contribuir com a criação de novas formas de sociabilidade. As emoções e os sentimentos revelam energias contidas no corpo humano que podem se manifestar socialmente e adquirir objetivações sensíveis na forma de imagens (símbolos, significados visuais), pensamentos (palavras, valores, gramáticas morais, normas) e recordações (sentimentos profundos que se transformam em pontos de referência e formas de orientação da ação emotiva e racional na realidade) (HOCHSCHILD, 1979). Neste campo sociológico, as emoções são o resultado da apreensão consciente de imposições sociais (valores, ideias, pensamentos, comportamentos) e a interpretação que essa 18 Essa experiência está, como descrito por Espinosa, nas relações entre os constituintes internos de um corpo e suas relações exteriores com outros corpos, o que produz afecções que são a capacidade de afetar os outros e ser por eles afetado, regenerando-se, transformando-se e conservando-se por meio das relações interpessoais. A mente, por sua vez, é resultado das afecções corporais, quer dizer, ela é consciente dos movimentos, das mudanças nas ações e reações do seu corpo em relação aos outros corpos, das alterações no equilíbrio interno como resultado da ação de causas externas e internas. Afirmar que a mente é consciente do seu corpo significa dizer que ela possui consciência da vida que seu corpo leva, do que ele sente (CHAUI, 2011). 19 “[...] modifie sensiblement les analyses qu’on fait habituellement de l’individu et de l’identité modernes, de la division entre le privé et le public, et de son articulation avec la division em genre” (PEUDENIER, 2008, p. 7). 19 consciência realiza, determinando sentimentos que se cristalizam em hábitos. Desse modo, a apreensão, por exemplo, do sentido subjetivo das palavras usadas para exprimir as emoções e os sentimentos, e as definições que o sujeito fornece sobre seus estados emotivos acabam constituindo um “vocabulário das emoções” que revela quais regras sociais são acionadas e quais são suprimidas mediante as emoções e os sentimentos desenvolvidos. Essa linguagem emocional funciona, portanto, como uma etiqueta social que metrifica, avalia, julga, classifica e ordena a vida das pessoas segundo valores sociais. Objetivamente, a análise das palavras usadas para a expressão das emoções e dos sentimentos revela a regularidade do uso de determinados termos e etiquetas, bem como, os pontos de referência avaliativos, o sentido e o significado dos valores emotivos e sentimentais em voga no interior de um determinado grupo (HOCHSCHILD, 1979). Logo, a observação sociológica do eu dotado de sentidos e de sensibilidades20 procura atribuir significado à correspondência entre emoções, sentimentos e o mundo da cultura – forças sociais e políticas, ou seja, estruturas sociais –, que é composto por regras que ordenam as formas de emoção e de comportamento sentimental em cada sociabilidade. Busca também apontar o modo como os valores sociais mudam e alteram histórica e socialmente as emoções e os sentimentos21, e quais os efeitos e consequências sociais da utilização das emoções e dos sentimentos nas esferas econômica, política, artística, religiosa e cultural. Para tanto é necessária, aos sociólogos, uma lente de aumento que evidencie as particularidades dos incontáveis vínculos entre o que dá forma e atribui sentido aos sentimentos de cada um e as pessoas que experimentam esses sentimentos e os ressignificam, ou seja, trata-se de analisar e relacionar as dimensões macro e micro sociológicas (HOCHSCHILD, 1979). A “experiência emotiva” constitui um dos aspectos centrais da observação dessa sociologia, porque traduz o embate entre o movimento desordenado dos sentimentos e as “regras de sentimento”, ou seja, o choque entre as formas de vida emotiva, oriundas das experiências sensíveis e sentimentais, e a força normativa das “regras de sentimento”, daquilo 20 Para a socióloga norte-americana Arlie Russell Hochschild, o eu possui três grandes dimensões: o eu cognitivo, o eu inconsciente e o eu dotado de sentidos e sensibilidades. O primeiro é aquele que age através da ação racional e que, portanto, calcula e avalia os meios e os fins, as vantagens e desvantagens em seu agir social e que procura, na relação com os demais, mostrar-se e ao mesmo tempo ocultar-se, buscando construir um personagem que possa lhe assegurar benefícios e vantagens. O segundo eu é aquele, guiado pelas pulsões e pelos instintos, que age sem compreender a força das motivações que se objetivam nas palavras e nos gestos, nos comportamentos e nas atitudes. O último, o eu dotado de sentidos e sensibilidades, é aquele capaz de provar sentimentos com consciência sobre eles (HOCHSCHILD, 1979). 21 A ira, por exemplo, é um sentimento definido negativamente pelo cristianismo – compõe a lista dos sete pecados capitais. No entanto, nos anos de 1970, o mesmo sentimento de ira, que mobilizou as mulheres na luta pela emancipação, foi positivo, porque justo, naquele momento histórico. 20 que se espera que os sujeitos sintam e expressem nas relações sociais. As regras de sentimento, embora potentes forças normativas e coercitivas, podem ser modificadas pelas pessoas por meio de novas experiências emotivas. Estas produzem outras formas de avaliação das manifestações sensíveis e sentimentais: as “convenções que regulam os sentimentos”, como os valores, os princípios e as normas que ordenam as manifestações emotivas e sentimentais. A investigações acerca das emoções e dos sentimentos pode ser dividida em dois grupos de abordagem metodológica. Primeiro, aquele que enfatiza o estudo da situação que determina as ações emotivas e racionais das pessoas, portanto, a forma de compreensão da experiência emotiva que privilegia a influência dos fatores sociais sobre os sentimentos das pessoas. Segundo, aquele que destaca o estudo das operações de segunda ordem, realizadas sobre o fluxo emocional primário e não reflexivo que mascaram aquilo que realmente a pessoa sente; é a forma de compreensão da experiência emotiva que privilegia a investigação do peso de fatores sociais sobre o modo no qual o indivíduo reflete e age em seus próprios sentimentos, avaliando-os e controlando-os nas relações sociais. Contudo, apenas o uso em conjunto dos dois métodos de compreensão da ação social produzirá a lente de aumento capaz de especificar os muitos vínculos entre o mundo que dá forma aos sentimentos das pessoas e as pessoas que experimentam esses sentimentos (HOCHSCHILD, 1979). Esta interpretação do processo no qual o sujeito efetua de maneira solitária o esforço da introspecção e da compreensão de suas emoções para então modificá-las quantitativa e qualitativamente, na lógica do movimento dialético22, significa apreender o que Hochschild (1979) chama de “trabalho emotivo”: a articulação entre a ação do sujeito, dotado de sentidos e emoções e que tem consciência dos mesmos, e a pressão coercitiva e reguladora das normas que ordenam as elaborações sociais das emoções e dos sentimentos. Trabalhar sobre uma emoção ou sentimento corresponde a controlar e fazer recitação profunda sobre determinada emoção. Deste modo, ao mesmo tempo que possibilita que o sujeito produza autonomamente novas manifestações do corpo e novas formas de avaliação das regras de sentimento e das estruturas sociais, o trabalho emotivo, que está sempre ligado a uma narrativa com códigos de comportamento e ação social pré-determinados, envolve dois tipos de elaboração da produção de emoções: a pessoa que deseja experimentar novas emoções – logo, como sujeito ativo, a experiência é autônoma, pois a própria pessoa elabora o seu 22 As emoções deixam de ser o que são e são construídas novas formas de manifestação emotiva, uma espécie de aufhebung emotiva: as emoções são negadas, conservadas, sublimadas e expandidas em novas possibilidades de existência objetiva. 21 sentido e significado – e a pessoa que é forçada a experimentar emoções determinadas por outrem. O processo de elaboração de produção das emoções no qual a pessoa é forçada a experimentar emoções determinadas por outrem aponta a submissão do sujeito às regras de sentimento. Elas detêm a propriedade da manifestação das emoções e dos sentimentos de um grupo social e, no limite, dos padrões hegemônicos de manifestações emotivas dentro de um determinado espaço e situação social. Determinam padrões de intensidade, direção e duração das manifestações sensíveis e sentimentais, como a necessidade de autocontrole e de seguir padrões de emoções e comportamentos exigidos nas atividades profissionais, nos relacionamentos afetivos e amorosos e em todas as áreas da vida. Em toda manifestação ideológica há um sistema particular de regras de sentimento e de enquadramento social que significam as emoções e os sentimentos nas diversas situações sociais, seja determinando juízos de valor específicos, positivos e negativos, seja determinando formas próprias de adquirir direitos e exercer deveres, assimilando emoções e as manifestando corporalmente. Desse modo, as lutas sociais e políticas também ordenam a construção social das regras de sentimento e de enquadramento das manifestações sensíveis e sentimentais. A importância da investigação sociológica das emoções e dos sentimentos foi posta em destaque pelo filósofo italiano Domenico Losurdo na obra La sinistra assente. Crisi, società dello spettacolo, guerra (2014). Analisando a produção das ideias e das emoções no curso da modernidade, o filósofo italiano afirmou: [...] genial revelou ser Marx quando no seu tempo histórico observou o monopólio da produção material e também o monopólio da produção intelectual. Contudo, na atualidade a grande burguesia capitalista funda a sua potência sobre o monopólio da produção das ideias, mas também e, sobretudo, das emoções. (LOSURDO, 2014, tradução nossa)23. O progresso das forças produtivas, especialmente a ampliação da capacidade da publicidade em atingir as dimensões profundas da consciência e do inconsciente, produziu no final do século XX uma dimensão social qualitativamente nova: uma possibilidade objetiva de manipulação contínua das emoções e dos sentimentos, mentalidades e comportamentos, que submete os indivíduos aos interesses das forças econômicas e políticas hegemônicas. Se a 23 Il genio si rivelò essere Marx quando nel suo tempo storico osservò il monopolio della produzione materiale e anche il monopolio della produzione intellettuale. Tuttavia, attualmente la grande borghesia capitalista basa il suo potere sul monopolio della produzione di idee, ma anche, e soprattutto, sulle emozioni (LOSURDO, 2014). 22 política do medo produzida atualmente pelos partidos de extrema direita gera, no curso das eleições, a “indignação moral” (LOSURDO, 2014), no cotidiano, a ampliação do mercado emocional e da publicidade comercial desenvolvem um papel essencial em estimular o indivíduo a ser outro: ter outro corpo, ser outra pessoa, imaginar ter outras vidas, possuir tudo, experimentar novas identidades e emoções, em outras palavras, a não ter limites em suas escolhas e ações emotivas e racionais. Logo, na nova ordem mundial, erguida após o fim da URSS e da vitória colossal do neoliberalismo, a investigação sociológica das emoções e dos sentimentos passou a ser um problema decisivo na tentativa de dotar de sentido e significado tanto o indivíduo quanto a sociedade capitalista contemporânea. 2.2.1 A sociologia das emoções em Eva Illouz Eva Illouz é uma prestigiosa socióloga franco-marroquina que se destaca internacionalmente, no campo intelectual contemporâneo, devido à riqueza de suas análises acerca da cultura no capitalismo tardio. Desenvolve pesquisas nas áreas da sociologia das emoções e da cultura, além de atuar como professora na Universidade Hebraica de Jerusalém. Illouz investiga há mais de duas décadas os efeitos do modelo capitalista em nossas formas de sentir e de amar, utilizando elementos da cultura popular como objeto de estudo. Sua análise crítica se volta para o encadeamento de causas subjetivas: busca compreender o indivíduo contemporâneo e a sua relação com o amor, com a sua autonomia e seu desenvolvimento pessoal, e com suas patologias psicossociais. Para Illouz (2011), o desenvolvimento do capitalismo se deu em conjunto com o desenvolvimento de uma cultura afetiva especializada e, por isso, as emoções e os sentimentos estão no centro dos seus estudos. No início do caminho pela apreensão da sociedade pós-moderna em sua totalidade, a autora expôs detalhadamente o processo de produção e consumo social das emoções, localizando as emoções dentro de determinadas formas de figuração (valores, ideias, subjetividades) e configuração social (relações de produção e trabalho, relações de troca, normas e leis), bem como, procurou desmistificar o peso dado ao desejo e ao inconsciente como seu único agente. O consumo é parte de um mecanismo econômico extraordinário e austero, principalmente com a psique, pois é desconexo e paradoxal. Ao mesmo tempo em que congrega vários grupos socioeconômicos numa mesma estrutura homogênea de mercado, cultiva diferenças individuais. Ele também incentiva o acesso a uma enorme variedade de objetos materiais, enquanto encoraja a busca por valores pós-materiais e espiritualidade. Sua principal filosofia é o hedonismo utilitário, a busca do prazer, mas de 23 maneira racional e limitada que exige do eu um árduo trabalho de gerenciamento de si e disciplina. Bauman (2001) identifica os antagonismos e a instabilidade presentes na atividade do consumo como resultados de uma insegurança que seria perpétua nos atores e que tem sido alimentada para a manutenção da própria atividade. Portanto, o paradoxo mor estabelecido pelo consumo está no fato de que o exercício do seu poder colossal depende do perpetuamento da instabilidade dos desejos e da insegurança dos consumidores. No entanto, Illouz (2009) afirma que o que Bauman (2001) coloca como paradoxo mor, na verdade, deve ser entendido como uma ruptura entre ação e estrutura24, isto é, o que existe é uma ruptura entre o aparato implantado pelo capitalismo do consumo e a instabilidade mecânica dos desejos, vontades e necessidades desses consumidores. Assim, a autora busca compreender como a instabilidade dos desejos dos consumidores está perfeitamente entrelaçada com a cultura do consumo. Quanto dessa instabilidade é cultural e socialmente produzida? Qual é o mecanismo que ajuda a explicar como as micro motivações dos atores traduzem a estrutura cultural do consumo e vice-versa? Como a estrutura cultural do consumo se traduz nos comportamentos e fantasias dos consumidores? As respostas estão na análise da dimensão emocional do consumo. A publicidade já vem há algum tempo demonstrando a centralidade das emoções no consumo. É a cultura da publicidade que concede significado cultural, legitimidade e aura espiritual para os bens de consumo. Ela é responsável por transformar a aquisição material em experiência cultural impregnada de ícones, imagens e sentimentos. A abordagem semiótica do consumo indica que na publicidade objetos materiais estão cheios de códigos de comunicação que, por sua vez, carregam significados emocionais. O consumo é, portanto, menos sobre o valor utilitário dos objetos do que seu significado simbólico. Desse modo fica fácil entender porque as emoções possuem um papel crucial no consumo: se as commodities devem promover significados e experiências, então, elas se tornam por definição experiência emocional cheia de emotividade. Commodities são significados culturais que promovem o acesso às categorias emocionais e experiências (ILLOUZ, 2009). Mas como o significado emocional das commodities faz do ato de consumo desses objetos uma experiência emocional? Se os objetos que usamos estão cheios de emotividade, como ela é transbordada e sobreposta ao sentido emocional do ato de consumir? 24 Remetendo a justaposição feita por Weber sobre a ansiedade que estava no centro da fé calvinista e o poderoso motor cultural do capitalismo: a ansiedade acerca do destino perante uma divindade distante e incompreensível que produziu um sistema cultural baseado na racionalidade, no controle e na previsibilidade. 24 De acordo com Illouz (2009), o desejo enquanto estrutura motivacional do consumo veio substituir as ideias utilitaristas e racionalistas acerca dele mesmo e promover uma melhor compreensão sobre outros dos seus componentes: a libido e o inconsciente. Mesmo Lacan (1988) afirmou que o coração da cultura do consumo era basicamente a “falta”, um anseio flutuante e difuso por mercadorias, que nunca poderia ser realmente satisfeito. Essa noção de desejo, contudo, não faz distinção entre as diferentes maneiras pelas quais as mercadorias são desejadas e incorporadas pelo sujeito e como ele irá se relacionar socialmente no seu meio a partir das mercadorias. A mesma noção ainda implica para a autora na ideia de pouca ou muita agência do indivíduo: pouca, porque se crê que o desejo é inconsciente, tanto individual quanto coletivamente e, nesse sentido, o desejo teria garantido uma suave introdução coletiva ao sistema capitalista – com os atores vistos como “máquinas de desejo”25 – e atuaria para as forças sociais capitalistas determinando vontades e prazeres e estabelecendo a ilusão de subjetividade autônoma e de liberdade. A sociologia do consumo tem defendido também os impulsos libidinais contidos na noção de desejo, e aqui a agência é muita, porque o desejo representa algo livre, que não faz agir por motivações ideológicas nem racionais, mas pela simples busca por prazer e sensações. Como a maioria dos sociólogos do consumo afirmam que o desejo é socialmente formatado, mas não especificam como ele é formatado, o resultado é uma noção de desejo que coloca o consumo como uma excitação desorganizada de desejos, que não especifica empiricamente o meio como o desejo, as representações culturais e as relações sociais se conectam umas às outras. São as emoções as responsáveis por explicar como, por um lado, o consumo está ancorado nos processos de cognição e cultura e, por outro, na motivação estrutural das pulsões e do corpo. Por meio das emoções, afirmamos definições culturais da nossa personalidade, como elas são expressas nas relações concretas e imediatas com os outros. Emoção, portanto, é sobre onde estar na teia das relações com os outros no interior de um sistema cultural caracterizado pelo desenvolvimento simultâneo de imagens, figuras e conceitos, na implacável criação de afetos e na mobilização massiva do corpo. O comportamento do consumidor tem sido recrutado pelo mercado por meio da lógica estabelecida entre cognição-afeto-corpo. Olhando para a cognição, a publicidade e a cultura do consumo organizam um sistema de sentido coerente sobre o que é a vida boa, estabelecendo uma fonte ampla de crenças e cognições. Este sistema de sentidos pode ser resumido nas seguintes proposições: a vida boa é aquela na qual todas as necessidades podem 25 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Anti-Oedipus, Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977. 25 ser satisfeitas; liberdade de escolha é um direito fundamental de todo ser humano; juventude e corpo em forma são preferíveis à velhice; bens promovem respeito; felicidade é uma questão de se ter tudo o que se necessita; etc. Os afetos realizam a principal atividade da cultura do consumo: eles significam os produtos que são vendidos na forma de experiências. Desse modo, a publicidade ocupa um papel de destaque nessa cultura já que ela faz exatamente isso: atribui significados e símbolos aos produtos, associando e desconectando significantes e significados, e rompendo e recombinando infinitamente essas associações (ILLOUZ, 2009); como sugeriu Benjamin (1972), o consumo simula a existência de mundos que oferecem ao indivíduo moderno uma variedade de identidades, experiências e emoções. O corpo, por sua vez, é recrutado pelo mercado de inúmeras maneiras, pois a cultura do consumo se baseia no pressuposto da plasticidade do corpo e no desejo intrínseco ao eu, que está relacionado àquele em voga coletivamente. O desenvolvimento das forças produtivas possibilitou a ação de capturar e criar imagens e aparências estéticas em maior quantidade e qualidade, impactando profundamente as emoções e os sentimentos das pessoas. A força da estética social foi desenvolvida pelos principais atores da modernidade – o Estado- nação, as fábricas e as classes sociais – que produziram o fenômeno da “estetização da política”26. Assim, ao passo que as “manifestações sensíveis” (CARNEVALI, 2012) públicas dos atores tornam o corpo repositório do habitus, ele também passa a ser a superfície na qual objetos de consumo são exibidos e adquirem seus respectivos significados sociais. Ao adquirirem significados sociais, os corpos também passam a fazer parte da dinâmica do “prestígio" (CARNEVALI, 2012), ou seja, de como o valor social determina o modo de consumo de bens, expressando uma condição de vida particular e o gosto peculiar de cada um. Ser consumidor, portanto, significa acima de tudo participar de um sistema cognitivo que nos leva a avaliar positivamente ou negativamente determinadas formas de vida, experimentar uma variedade de sensações e sentimentos, e a usarmos nossos corpos também de maneiras variadas. Para as emoções, o gosto possui um papel decisivo na regulação mecânica do consumo diferenciado. É o mecanismo central regulador da adesão ao estilo de vida de grupos. De fato, a noção de gosto já possui papel central na literatura da sociologia do consumo, inspirado pelos trabalhos de Bourdieu. Para o autor, o gosto é uma forma de 26 De acordo com a teoria da estética social defendida por Carnevali (2012), a estetização da política implicou na criação de uma série de aparências estéticas a partir de slogans e símbolos criados para manipular, na esfera íntima, o gosto e a identidade dos indivíduos em suas organizações e partidos e, na esfera pública, a identidade nacional e a comunidade nacional de destino. 26 “julgamento social”, promovido pelas classificações simbólicas, que estabelece um forte viés cognitivo (BOURDIEU, 2011). Illouz (2009), por sua vez, sugere que o gosto não é ativado apenas por esquemas de classificação – eles mesmos produtos da posição social – mas também por operadores emocionais que podem variar de “sentimentos intensos e primitivos para complexas avaliações intelectuais”. Se o gosto é adquirido por meio do longo processo de socialização do corpo, o melhor jeito de compreendermos este processo de aquisição é vendo como ele é operado através das emoções, como os objetos são inconscientemente, ainda que intencionalmente, incorporados ao longo do processo de formação de identidade e de reivindicação da mesma. Na medida em que objetos e experiências de consumo sempre carregam traços dos relacionamentos sociais, para Illouz (2009) eles devem ser vistos como pontos nodais em torno dos quais convergem uma multiplicidade de relações entre o eu e os outros. Desse modo, como os relacionamentos sociais demandam “trabalho emocional” (HOCHSCHILD, 1979) e as mercadorias ajudam a organizar e a negociar estes relacionamentos sociais, parece óbvio argumentar que mercadorias e emoções estão, portanto, entrelaçadas. No processo de “desmercantilização”27, o consumo faz com que os objetos adquiram diferentes valores em diferentes esferas de troca e, consequentemente, circulem de maneira diferente nelas. O modo de circulação, no entanto, não pode ser separado da lógica emocional trabalhada em determinada esfera. Quando os objetos circulam em esferas de sentidos que são também esferas emocionais, eles podem deixar a esfera de consumo e o mercado e serem incorporados aos relacionamentos interpessoais. Finalmente, o consumo é estruturado pelas emoções de duas maneiras de acordo com Illouz (2009): pelas emoções de fundo28 e pelas emoções situacionais. Estas últimas estão obrigatoriamente ligadas a um contexto ou situação particular, porque são provocadas pelo meio externo ao sujeito, enquanto as emoções de fundo são perenes e independentes do contexto no qual o indivíduo está inserido. Na cultura do consumo, emoções de fundo, como a frustração, o tédio, a inveja, a ansiedade e a insubordinação, são constantemente estimuladas, produzindo a dinâmica do consumo. A frustração é a principal emoção trabalhada no consumo devido ao fato de nela estarem contidas duas unidades psicológicas importantes: a excitação e o conforto. O encontro com novos objetos ou novas experiências gera excitação. 27 De acordo com a proposta de Appadurai (1996), Illouz (2009) entende como desmercantilização o processo no qual a retirada de bens de consumo do circuito de trocas faz com que a prática de consumir objetos adquira um sentido pessoal na rede de relações sociais. 28 Traduzimos para “emoção de fundo” o que a autora chama de “background emotion”. 27 Já o conforto é sentido à medida que a novidade é substituída pela familiaridade com o artigo adquirido. Entretanto, nem a excitação e nem o conforto podem ser regularmente mantidos, pois um nível contínuo de excitação leva ao desconforto, do mesmo modo que o conforto continuado leva ao tédio. Assim, para que o processo do consumo se mantenha vivo e em desenvolvimento, o conforto deve ser regularmente interrompido por um novo desejo que trará consigo uma nova experiência de excitação. Fica claro, portanto, que, na prática do consumo, a excitação que a acompanha necessariamente se transforma em tédio, e é esse desapontamento que vai buscar desejar um novo objeto. O desapontamento e o tédio são as emoções que regulam o consumo de modo imperceptível. No contexto do que Illouz (2009) chama de consumo competitivo29, é a inveja e a ansiedade que organizam as ações. A inveja está presente na vontade de supressão da desigualdade que separa o sujeito do seu objeto de desejo. Na cultura do consumo a inveja é dominante. Nestas sociedades capitalistas existe um forte ethos democrático, sua dinâmica se sustenta por meio das desigualdades econômicas e sociais que, por sua vez, exigem um intenso trabalho de distinção social. A inveja é mais intensa quando a distância que separa o sujeito do seu objeto de desejo é menor, como na relação entre a classe média e a classe alta. Ela produz consumo não apenas pela comparação negativa de si com os outros, mas também pela antecipação das emoções alheias: ela é imaginativamente projetada sobre os outros e é desse modo conectada com o sentimento de autoestima. No cenário de competição social, a inveja se mistura com a ansiedade no esforço pelo respeito e admiração do outro. A ansiedade gerada pelo consumo competitivo possui uma segunda forma que é o estado de ansiedade. Ele é constituído pela incerteza do indivíduo sobre o status social do outro a quem o mesmo admira, e pelo esforço para compensá-la por meio do consumo de mercadorias. O consumo produz por consequência um processo de moldagem do indivíduo pelas mercadorias: o exercício da liberdade individual de escolher quem se deseja ser é o ponto utilizado pelos mercados para atraírem os consumidores, estabelecendo a construção da identidade pelo consumo. A produção de mercadorias é um esforço coletivo, mas o consumo é uma prática individual, solitária, baseada na livre escolha que traz consigo a pressão da responsabilidade sobre a gestão da própria vida, e por isso é carregada de ansiedade. 29 A constante busca por honra, reputação e pela estima dos outros é o motivo do comportamento competitivo que valoriza a capacidade de superação de todos sobre todos. Essa vontade, simbolicamente se transforma em consumo prestigiado e desperdício (ILLOUZ, 2009). 28 A cultura do consumo consiste na excitação e na produção de emoções que geram novas práticas de consumo. O consumidor se torna um agente do sistema capitalista devido ao desenvolvimento de necessidades especializadas às quais o capitalismo de mercado é pronto para atender. Illouz (2009) afirma que, na verdade, o consumidor é colocado em uma posição da qual deve ser libertado. No entanto, tal libertação assume a forma de “desublimation” (MARCUSE, 1964), ou seja, a libertação não está fora, ao contrário, está no interior da cultura do consumo, sendo definida pelo próprio consumo. Assim, a cultura do consumo nutre até mesmo os sentimentos de rebeldia, pois estes também passam a ser veículos de consumo. As emoções explicam, portanto, como o consumo está ligado ao processo cultural de cognição e, ao mesmo tempo, aos estímulos de unidades externas e do corpo do outro. É por meio das emoções que organizamos e definimos particularidades culturais e como elas se manifestam numa relação concreta e imediata entre si. Por isso, a emoção é mais uma entidade cultural e social do que psicológica. Assim, as emoções são ativadas por um estado indiferenciado de excitação que se torna uma determinada emoção devido aos estímulos ambientais. A cultura, portanto, possui papel considerável na construção, interpretação e funcionamento das emoções. Quadros culturais nomeiam e definem tanto as emoções, quanto os limites da sua intensidade, normas e valores, além de fornecer símbolos e cenários culturais que as tornam socialmente comunicativas. Como uma prática cultural, o amor romântico está sujeito também à influência das esferas política e econômica. O capitalismo tornou possível a participação de todos na esfera simbólica do consumo, mas se sustenta e se reproduz por meio da concentração de riquezas e da legitimação de divisões sociais. Para Illouz (2009) as definições e práticas modernas de romance estão interligadas com esta dualidade do consumo: o amor romântico se tornou uma parte íntima indispensável do ideal democrático de riqueza que acompanhou a emergência do mercado de massa, ofertando a utopia coletiva, atravessando e transcendendo as divisões sociais. Simultaneamente, o amor romântico foi adotado como um mecanismo de dominação econômica e simbólica no trabalho dentro da estrutura social. O amor romântico é uma arena coletiva dentro da qual as divisões sociais e as contradições culturais do capitalismo se desenvolvem. 2.2.2 Illouz: consumo e amor romântico O capitalismo atual é caracterizado por uma mentalidade cultural permeada pelas relações de troca, de compra e venda, de qualquer tipo de mercadoria. As bases dessa 29 racionalidade são o interesse próprio e o benefício econômico mútuo. Dessa forma, o amor romântico parece escapar das categorias convencionais nas quais o capitalismo é concebido. Tradicionalmente, o amor romântico está localizado acima do âmbito das trocas de bens e posicionado contra a ordem social legitimada. As Ciências Sociais partilhavam desta ideia, ainda que de maneira implícita, entendendo a cultura como uma prática coletiva e pública e as emoções como experiências particulares (subjetivas, fisiológicas e psicológicas), descartando- as, portanto, dos estudos acerca do coletivo e da vida simbólica. Fatalmente, o amor romântico foi entregue à esfera da vida privada ao invés de ser discutido em termos de rituais públicos, conflitos sociais, ou conflitos de classes. Nos anos de 1980, a antropologia, a sociologia e a psicologia inauguraram a visão de que as emoções seriam influenciadas e até mesmo moldadas pela oscilação das categorias culturais (normas, língua, estereótipos, símbolos). Mas, apesar das disciplinas das ciências sociais hoje garantirem a ligação entre cultura e emoção, elas ainda resistem em reconhecer a conexão entre amor e economia – categorias consagradas como opostas e incompatíveis. Combinando doutrinas marxistas e freudianas, a Escola de Frankfurt se debruçou sobre o debate entre amor e mercado logo na “primeira geração”30, mas são os estudos culturais realizados pela “terceira geração” da Teoria Crítica que estão revolucionando-o. Nesse contexto Illouz desenvolve seus trabalhos a respeito da relação entre amor romântico e mercado na modernidade tardia. Para a primeira e a segunda gerações e sua crítica cultural, o crescimento frequente da oferta e do consumo em massa de rituais românticos acarretaria em patologias sociais. Por isso a ênfase na necessidade de manter as relações amorosas protegidas da lógica econômico-utilitarista. Já Illouz (2009) recupera as muitas conexões entre mercado capitalista e amor romântico, revelando a inexistência de qualquer incompatibilidade entre eles. Ao contrário, o que existe é uma interação perfeita entre ambos. Illouz (2009) apresenta o amor romântico como a última fonte geradora das utopias de transformação e ruptura da ordem cotidiana necessária à reprodução simbólica e material do capitalismo. No amor romântico os amantes são invadidos por uma energia criativa eletrizante e transformadora que faz com que eles se sintam como revolucionários. Buscam violar as regras com a finalidade de experimentar com seu par experiências situadas fora da ordem estabelecida. Todavia, do ponto de vista político, a revolução realizada pelos 30 A Escola de Frankfurt é uma vertente filosófica de teoria social ligada ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, Alemanha, que foi fundado nos anos de 1920. A primeira geração de pensadores da Escola de Frankfurt foi composta principalmente por Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Friedrich Pollock, Franz Neumann, Erich Fromm e Walter Benjamin. Já a segunda geração é identificada pelos teóricos Jürgen Habermas, Axel Honneth, entre outros. 30 amantes é ordinária, uma vez que a suposta ruptura com a normalidade projeta os amantes para dentro do universo de ofertas e possibilidades do consumo romântico. Dessa forma a pretendida ruptura com a ordem, vivenciada pelos amantes, significa uma simples migração entre esferas de sociabilidade: eles desprezam o regular para adentrar no domínio do consumo romântico (COSTA, 2009). E é devido ao fato de o amor ser uma esfera de ação privilegiada para a experiência da utopia que ele continua sendo a mitologia mais importante do nosso tempo. Nas sociedades capitalistas a dimensão utópica do amor romântico não pode ser facilmente reduzida ao status de “falsa consciência” ou de “ideologia” para exprimir o que suscitaria os desejos nas pessoas. Illouz (2009) explica que, no amor romântico, a utopia funciona como a experiência com o sagrado. Como sugeriu Durkheim (1996), a experiência religiosa não desapareceu das sociedades ao longo dos séculos, mas migrou da religião para outros domínios da cultura; no caso, essa experiência teria migrado para o âmbito do amor romântico. No entanto, na virada do século XX, o amor romântico abandonou quase que por completo os atributos religiosos; deixou de ser o “altar” no qual os amantes se “consagravam”, como em um culto de devoção cristã. O amor secularizado se manteve sacro. O romance, ao longo de sua secularização, também manteve características ritualísticas, projetando a utopia coletiva da abundância. Para isso, no entanto, congregou temas e imagens pré-concebidas com a noção de individualismo e de auto realização. Dessa maneira, essa utopia pôde ser experimentada por meio da performance cíclica dos rituais de consumo. Illouz (2009) e outros autores atestam que os temas que produziram a utopia romântica já estavam presentes em muitas sociedades pré-modernas, nas quais o amor romântico era visto como uma força revolucionária e ameaçadora da ordem moral e legal. A cultura ocidental mergulhou o amor romântico em uma aura de transgressão, enquanto o elevava ao status de valor supremo. Por isso as figuras que compõem nossa imaginação romântica afirmam os inalienáveis direitos da paixão, desafiam a ordem e as divisões por gênero, classes ou nacionalidades. A subversão do amor romântico perturba o mecanismo regulatório fundamental a qualquer grupo social. Quando ele estabelece a liberdade de escolha do companheiro pelo indivíduo, por exemplo, faz com que este possa atrever-se a contrariar as regras da endogamia, forçando os limites que mantêm a unidade do grupo31. É por essa razão que a autora afirma que o amor romântico já celebrava moralmente o individualismo, 31 Lévi-Strauss (1982) explica a origem social das regras de endogamia. Elas estão ligadas à proibição do incesto e ao processo de trocas de mulheres pelo grupo e entre grupos que compartilham da mesma concepção em relação ao incesto. 31 um valor de importância primordial para o capitalismo industrial, antes mesmo da consolidação do capitalismo comercial. Até o início do século XX, o casamento consistia em uma operação financeira e em uma negociação equitativa de extrema importância social, o que identificava o amor romântico como contrário as estratégias de reprodução social difundidas pelo casamento. Representante de valores como o desinteresse, a irracionalidade, e a indiferença às riquezas, o amor romântico articulou dois elementos que viriam a se encaixar no cerne da ideologia capitalista moderna: a valorização do indivíduo em detrimento do grupo; e a ideologia burguesa na qual o amor romântico sobrepôs os sentimentos em relação aos interesses sociais e econômicos. Dessa maneira, afirmando a soberania dos relacionamentos interpessoais guiados pelo eu desinteressado, o amor celebrou o encontro de almas e corpos, possibilitando uma ordem social alternativa. Foi assim que, para Illouz (2009), o amor romântico projetou a aura de transgressão, cujas promessas e demandas reclamam um mundo melhor, e a conservou, articulando-a com as categorias de experiência existentes. O campo emocional estabelecido pelo amor romântico poderia revelar-se contraditório, uma vez que os valores românticos se opõem à violação da ordem social e ao utilitarismo capitalista, por exemplo. Contudo, para a autora, é por meio da ação dos símbolos, valores e das relações de classes na cultura contemporânea que o mercado passa a orientar os valores românticos. A cultura capitalista pós-moderna combinou a poderosa utopia da transgressão do amor com o consumo de lazer e da natureza. Essa prática de consumo específica foi a responsável pela incorporação de fato do amor romântico pelo mercado devido ao fato das práticas românticas compreenderem rituais que opõem valores da esfera produtiva à liberdade individual, sendo ambos parte da mesma racionalidade de mercado. As contradições culturais do capitalismo tardio são condensadas pelo amor romântico: a oposição entre a esfera do consumo e a da produção é o núcleo do sentido moderno de amor romântico, pois são as práticas românticas que equilibram o conflito entre a cultura hedonista e a intensa disciplina exigida pelo mundo do trabalho. Mas a qual ponto o amor e suas práticas românticas são hoje uma experiência fruto de uma moldagem social? A autora explica que, ao longo do século XX, o processo que orientou as famílias32 a priorizarem suas vidas afetivas, seus relacionamentos, tornou público o eu privado e o expôs ao julgo das esferas política e econômica. Este processo resultou no que 32 A autora se refere mais especificamente às famílias norte-americanas, foco da sua pesquisa. 32 Illouz (2011) chama de “capitalismo emotivo”33, que compreende justamente a cultura na qual as práticas econômicas e afetivas se determinam reciprocamente e produzem os fenômenos sociais que resultam da apropriação do afeto pelo comportamento econômico. A dinâmica das relações afetivas foi redefinida pelo sentido econômico da troca, transformando as emoções em bens de consumo. A influência do sistema capitalista moderno nas formas de sentir e de amar transformou principalmente as relações afetivas entre casais. As tensões culturais e sociais da modernidade realizaram a ruptura com os códigos de comportamento, mentalidade e escolha contidos nos ideais tradicionais que organizavam as emoções e o amor na pré-modernidade. O ideal de amor romântico e tradicional concentrava homens e mulheres no mesmo universo emocional e moral e definia sua união com base em imperativos econômicos, éticos ou religiosos. No entanto, o amor é uma potência extraordinária que promove conquistas históricas, pois contém em si as noções de liberdade, de igualdade, de autoafirmação, de realização de si mesmo e de felicidade. Sendo assim, na modernidade ele passa, junto com a pulsão sexual, a determinar livremente a escolha subjetiva do parceiro, invertendo o sentido do casamento: se na tradição o amor estava em segundo plano na união do casal, devendo ser construído ao longo do tempo pela intimidade, na modernidade é ele o motivo desta união e o responsável pelo seu sucesso. De acordo com Illouz (2012), a força da vontade eletiva promoveu a “desincrustação e a desregulamentação” dos valores presentes nas antigas “potências de formação cultural”34 e, com o despontar da figura do indivíduo, transformou o amor romântico em livre escolha emotiva. Contudo, a transformação do amor romântico em escolha emotiva, ao mesmo tempo em que liberou o homem e a mulher dos vínculos estreitos da tradição patriarcal, também desregulou o sentido comum dos afetos e das emoções, provocando nas pessoas uma forte sensação de vulnerabilidade e de irresponsabilidade35. A queda das regras possibilitou ao indivíduo uma maior liberdade de ação emotiva que, na nova forma de subjetividade, trouxe consigo paradoxos e ambivalências: de um lado, o eu, livre do peso moral das castas, da família patriarcal e da tradição, pode experimentar novas formas de 33 Para Illouz (2009) o capitalismo emotivo é a grande peculiaridade do capitalismo moderno, pois desenvolve produtos que realizam conjuntamente a produção e o controle das emoções, elaborando um estilo de vida e uma semântica que possibilitam um repertório cultural compartilhado. Este desempenha uma função disciplinar de compatibilidade das emoções com a cultura dominante. 34 Representadas pela família patriarcal e pela tradição religiosa fundamentada sobre a ideia de cosmo e de lugar natural – castas, nobreza, senhores e servos. 35 A queda de valores tradicionalmente fundamentais para o relacionamento amoroso também leva consigo antigas virtudes como a constância, a lealdade e o sacrifício. A ausência dessas virtudes faz com que a noção de comprometimento seja, cada vez mais, esvaziada de sentido. 33 enlace amoroso e vivências emotivas; do outro lado, a ruptura dos códigos emotivos tradicionais ampliou o raio da liberdade privada, mas não produziu novos códigos amorosos. Assim, a liberdade de escolha emotiva tornou o amor um campo desordenado no qual a incerteza, o risco e a insegurança – insegurança de não saber o que se sente, o que o outro está sentindo e muito menos quais são os sinais do amor e do compromisso para ambos (ILLOUZ, 2012) – definem atualmente as relações amorosas36. Illouz (2012) afirma que a grande transformação dos encontros amorosos é, portanto, resultado da desregulamentação dos códigos emotivos, empreendida pelos movimentos feministas e minoritários. Bem como a desregulamentação dos códigos emotivos proposta pelo movimento feminista, também a revolução sexual dos anos de 1970 alterou a dinâmica do relacionamento entre homens e mulheres. A liberdade sexual possibilitou um livre acesso à sexualidade, sem a necessidade do engajamento emocional, próprio do casamento. No entanto, o desenvolvimento capitalista permitiu ao homem ganhar sua vida fora da família, uma vez que o casamento deixou de significar a garantia de uma vida economicamente confortável, tornando-o menos dependente da esfera privada. Simultaneamente, a livre escolha do parceiro consentiu também o poder de decidir quando efetuar o enlace matrimonial, estimulando-o a adotar uma “sexualidade serial”. A autora aponta, no entanto, que essas transformações concebem desigualdades entre homens e mulheres, pois, para as mulheres que continuam desejando filhos e uma família estável, a margem de escolha é limitada, devido à necessidade de considerar o relógio biológico. Os homens, por sua vez, não possuem limitadores orgânicos para se reproduzirem, o que favorece a prática da sexualidade serial e lhes consente mais poder – visto que o poder na modernidade tardia está ligado à maior capacidade de escolha. A autonomia individual, a liberdade e a escolha instauram uma espécie de “relativismo emocional”, ou seja, é a liberdade sexual que direciona a escolha emotiva e o faz para o prazer particular, seja por meio da instrumentalização do outro – o outro se torna um meio para o prazer – seja ampliando o capital emotivo-erótico da pessoa. Este comportamento estabelece uma desigual e intensa competição em relação a tudo o que envolve o encontro amoroso37. A exigência da performance sexual que passa a avaliar o casal permanentemente – 36 As relações amorosas se tornam caóticas, pois sem regras não há o que exigir do outro. 37 A liberdade sexual modificou o que a autora chama de “ecologia de escolha”, pois multiplicou consideravelmente as amostras de escolha amorosa. A ecologia de uma escolha corresponde às restrições objetivas (estrutura espacial e sociológica do ambiente) que fazem com que se escolha determinado objeto ou cônjuge no lugar de outro. A liberdade sexual, portanto, organiza, enquadra e legitima as desigualdades, bem como faz a liberdade econômica (ILLOUZ, 2012). 34 do mesmo modo que o trabalhador deve sempre vencer os infinitos testes de competência – gera no casal a necessidade de comprovar a todo momento sua qualidade sexual e não emocional. Para sobreviver às expectativas sempre elevadas em relação ao desempenho sexual, os indivíduos se voltam espontaneamente para o “mercado do amor” ou são seduzidos pelas suas promessas de garantia de um melhor desempenho sexual (ILLOUZ, 2016). A busca pela realização da “obsessão cultural da sexualidade” (ILLOUZ, 2016) e o eterno estado de avaliação de desempenho produzem tensões e situações sociais paradoxais. As promessas do mercado do amor alimentam a ação sexual arrebatadora e narcísica que visa elevar o número de conquistas para potencializar, em primeiro lugar, o capital erótico e depois os demais capitais – status, prestígio, poder. O fenômeno da metrificação dos relacionamentos amorosos pela sexualidade existente no seu interior, que submete e torna o indivíduo dependente das promessas e produtos ofertados pelo mercado do amor, leva-o à alienação da sua libido e do seu próprio corpo. A primeira alienação é resultado da própria erotização dos relacionamentos amorosos, enquanto a segunda, diz respeito à pressão por uma determinada aparência social: belo(a), jovial, esbelto(a), sedutor(a) e, sobretudo, sexy. Logo, ambas estão interligadas e estimulam a instabilidade nas relações sentimentais, amorosas e sexuais. No capitalismo, toda mercadoria é produzida para ser trocada enquanto valor de troca (MARX, 1994), porém, como afirma Lukács (2012), seu caráter fetichista é um fenômeno específico do capitalismo moderno. O mercado do amor funciona produzindo internamente, a partir das próprias mercadorias, a ideia e a sensação de dependência das mesmas, traduzidas em uma espécie de amparo para a performance de sucesso. Dessa maneira, o mercado do amor, ao tomar para si a hegemonia ideológica e visual do que é o amor, faz com que esse sentimento seja capaz de acumular riquezas e de concentrar poder. Nesse sentido, ele desenvolve o que Illouz (2011) chama de “ecologia do amor” e também faz com que a potência contida no amor perca a sua capacidade de realização, reduzindo-o a um bem de consumo como outro qualquer. Esse mercado possui como motor a vulnerabilidade emocional causada pelo sofrimento amoroso, fragilidades que ele mesmo cultiva para a sua própria sobrevivência. Isso posto, faz-se necessário observar que o sofrimento amoroso esteve presente ao longo de todo o processo civilizatório ocidental. Contudo, a singularidade deste sentimento na modernidade contemporânea está na avaliação que atinge a integridade do sujeito. O estado de sofrimento evidencia a “aparência social” (CARNEVALI, 2012) desta sociedade que está completamente voltada para a construção de indivíduos autônomos que devem ser capazes de controlar suas emoções, de vencer todos os obstáculos e todas as adversidades, de 35 ser “performáticos” (EHRENBERG, 2010b) e de manter elevada a imagem de sucesso, de autoestima e de estima social. Nesta cultura, portanto, o sofrimento emotivo remete de maneira negativa à ideia de fraqueza espiritual, o que prejudica o prestígio social do “capital humano” (FOUCAULT, 2008) que sofre. Pois, se a pessoa sofre de amor, demonstra que não é capaz por si só de expandir seu capital amoroso e erótico e, sendo assim, necessitaria de ajuda. Essa ajuda pode ser facilmente alcançada com a aquisição dos produtos oferecidos pelo mercado do amor, já que eles asseguram, ainda que promissoramente, uma melhor performance nos relacionamentos íntimos e, assim, a recuperação da autoestima e da estima social. 36 3 AUTOAJUDA E VIDA EMOCIONAL 3.1 Dominação e sofrimento Para o filósofo italiano Remo Bodei (2009), o desmoronamento das barreiras metafísicas e religiosas que separavam o eu da realidade natural (do próprio corpo) e da realidade social (dos outros e dos ambientes físico e político) produziu como efeito o esvaziamento de sentido da esfera particular de cada um, introduzindo-nos em um mundo imanente, desprovido da força emotiva e cognitiva de sólidos pontos de referência e orientação, relativizado e multicultural, composto pelas múltiplas formas de vida e de valores. Na primeira modernidade, o eu, livre dos limites tradicionais, foi obrigado a desenvolver o senso de vida imanente, passando a orientar-se no contato direto com a realidade física e cultural, exposto às constantes e incessantes transformações históricas da sociedade industrial e nacional, experimentando uma vulnerabilidade física e espiritual. O declínio das antigas autoridades tradicionais sacras e políticas impôs aos indivíduos a dura experiência do desenraizamento e da desorientação no espaço e no tempo histórico, bem como, a tendência de ser parte das novas forças sociais detentoras de prestígio e poder como a fábrica e o Estado-nação. A necessidade das forças sociais e políticas em adequar as estruturas psíquicas dos indivíduos às exigências dos contínuos processos de modernização exigidos pela industrialização e urbanização foi realizada por meio de uma capacidade objetiva de construir novas formas de identificação e introjeção de valores, de agir no nível da subconsciência, de manipular as pulsões primárias e as paixões dos indivíduos e dos cidadãos, colonizando-os e reduzindo-os às pequenas partes de um novo todo absoluto: a sociedade capitalista e, nos momentos de maior crise social e política, nos regimes totalitários. Assim, o indivíduo orientado pelo sentido imanente da vida, integrante da sociedade de massa, que era disputado continuamente pelas forças políticas, foi “sempre mais” inclinado a imitar e a idolatrar as figuras que denotam prestígio e poder; “sempre mais” sensível às adulações e aos perigos do poder; “sempre mais” disposto a deixar-se guiar pelas ideologias contingentes; “sempre mais” resignado em se transformar inconscientemente em mais uma peça dessa engrenagem social de poder e política (BODEI, 2009, p. 251). Na primeira modernidade, a força de adaptação dos indivíduos aos imperativos valorativos e morais, econômicos e políticos gerava conflitos e contradições, tensões e lutas sociais e políticas pela conquista da autonomia e da liberdade individual, além disso, dirigia- 37 se “[...] contra os limites impostos à liberdade pessoal e contra os poderes públicos que ameaçavam invadir e colonizar a esfera da privacy humana [...]” (BAUMAN, 2008, p. 40). Contudo, na segunda modernidade (seguimos a denominação efetuada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck), com a dominação das demais esferas da vida pelo campo econômico, cada vez mais áreas da vida privada são liberadas da normatividade e conduzidas individualmente. Ulrich Beck (2002) procurou compreender a passagem de época do ser indivíduo (que, desde as revoluções burguesas até o final da primeira modernidade, significava poder existir como um eu, mas subordinado, controlado e disciplinado pela família, sindicato, partido e Estado) para o tempo histórico de fazer-se indivíduo: estar desincrustado, viver livre do peso constritor dos sistemas sociais fechados (desde a questão valorativa até a questão das fronteiras, passando pelas forças sociais e políticas que normatizavam o senso da vida pessoal e coletiva). Na segunda modernidade, a liberdade do indivíduo é profundamente ampliada, podendo se manifestar em sistemas sociais abertos e produzindo uma existência indeterminada e incerta, arriscada e precária. A individualização gera uma expansão não apenas das formas de vida e de relacionamento (que se tornaram múltiplas e diferenciadas, desvinculadas e autônomas), mas também potencializa a desestabilização dos sistemas sociais em todos os campos: econômico, político, cultural e social. O indivíduo na era do individualismo institucionalizado elege, opta, escolhe não mais seguindo valores cristalizados em normas e padrões coletivos. A existência livre de condicionamentos rígidos torna o indivíduo um ser social que elege e opta segundo sua própria vontade no fluxo de possibilidades existentes nos sistemas sociais abertos. Ulrich Beck e Elizabeth Beck-Gernsheim, em A individualização. O individualismo institucionalizado e suas consequências sociais e políticas, listam as características do indivíduo contemporâneo: 1) O desenraizamento dos condicionamentos coletivos da família, da classe e do Estado-nação: a acelerada perda de prestígio e de poder das figuras do pai, do líder do sindicato, do padre, da liderança política e do chefe de Estado. É um fenômeno que se manifesta desde o fim da democracia moderna; 2) A atomização da existência: a perda de prestígio das figuras que orientavam e estabeleciam os valores hegemônicos e os pontos de referência para a ação do indivíduo na primeira modernidade foi transferida para novas figuras, tais como os especialistas, os âncoras dos talk shows, os managers, os profissionais de alto rendimento que se comunicam diretamente com o indivíduo; 38 3) A vida pessoal desincrustada do espaço social de origem e do tempo histórico da primeira modernidade: a vivência dentro da autonomia de jure (não necessariamente de fato) que possibilita ao indivíduo sentir, pensar, agir e julgar por si mesmo através dos valores que elegeu e das experiências que se identificou; 4) A ampliação de possibilidades de ser outro, de existir diversamente: os fenômenos sociais do desenraizamento, da atomização e da desincrustação são potencializados pelas revoluções tecnológicas e científicas que ampliam a vontade e o desejo de existir e de agir diversamente. As profundas transformações ocorridas na política (o fim do mundo polarizado, o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o esvaziamento do Estado Social), na economia (os processos de desregulamentação das movimentações dos capitais, o capitalismo móvel e global, o fim do pleno emprego, o trabalho flexível e precário), na tecnologia (as revoluções nos transportes, na microeletrônica, na robótica; o advento da internet e os novos meios de comunicação digital) estimulam o indivíduo a ir além dos limites da vida que vigoravam na primeira modernidade: 1) os limites naturais do corpo; 2) os limites religiosos; 3) os limites culturais e 4) os limites políticos. A vida, sem limites religiosos e morais e sem contenção política, vaga errática na nova ordem mundial. A soberania do eu, estimulada e potencializada pelas forças econômicas, não se submente à linearidade do natural e do político. O triunfo do capitalismo e, sobretudo, a força cultural, econômica e política do neoliberalismo produziram novas geometrias políticas para a ação e relação social, imputando ao indivíduo novas tarefas e obrigações: 1) A necessidade de se fazer escolhas e tomar decisões em um período cada vez mais curto: na nova ordem mundial, o acirramento da competição gera a brevidade do tempo e a necessidade de efetuar decisões sem ter plena consciência do que pode acontecer. 2) A existência não-linear: exposta ao risco, à contingência, à incerteza, ao imprevisto, ao fluxo de possibilidades e opo