DIEGO DAMACENO LIMA
O lugar dos pretos e caboclos na linha branca de umbanda:
uma análise das relações entre religião e ideários de branqueamento no Brasil
Marília
2022
Câmpus de Marília
DIEGO DAMACENO LIMA
O lugar dos pretos e caboclos na linha branca de umbanda:
uma análise das relações entre religião e ideários de branqueamento no Brasil
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais como parte das
exigências para a obtenção do título de Mestre em
Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e
Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Campus de Marília.
Área de Concentração: Antropologia (Ciências Sociais)
Orientador (a): Prof. Dr. Andreas Hofbauer
MARÍLIA
2022
DIEGO DAMACENO LIMA
O lugar dos pretos e caboclos na linha branca de umbanda:
uma análise das relações entre religião e ideários de branqueamento no Brasil.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp-Marília),
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Área de concentração: Antropologia
(Ciências Sociais)
Linha de pesquisa: Cultura, Identidade e
Memória
Banca Examinadora
Prof. Dr. Andreas Hofbauer - andreas.hofbauer@uol.com.br
Departamento de Sociologia e Antropologia / UNESP/FFC-Marília
Orientador
Prof. Dr. José Henrique Motta De Oliveira - josehmoliveira@gmail.com
Departamento Regional Metropolitana I / Secretaria do Estado do Rio de Janeiro
Prof(a). Dr(a). Antonio Mendes da Costa Braga
Departamento de Sociologia e Antropologia / UNESP/FFC-Marília
Marília, 11 de Novembro de 2022.
mailto:andreas.hofbauer@uol.com.br
mailto:josehmoliveira@gmail.com
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Edna e Carlos, por todo apoio e carinho desde sempre.
Agradeço à minha companheira Amanda pelas conversas e trocas ao longo desta
pesquisa, por todo auxílio e companheirismo no processo de elaboração e
conclusão deste trabalho.
Agradeço especialmente ao meu orientador Andreas Hofbauer por me auxiliar a
enxergar realidade social brasileira através da profundidade de seus estudos
sobre a questão racial. Também o agradeço por toda compreensão, carinho e
orientação que me permitiram chegar até aqui.
Por fim agradeço aos meus irmãos de fé que tanto contribuíram para a realização
deste trabalho.
RESUMO
Esse trabalho buscará a analisar as narrativas dos representantes da Linha
Branca de Umbanda e Demanda da primeira metade do século XX, de modo a
investigar as relações entre tais discursos e o contexto social e racial brasileiro.
Aprofundaremos a discussão sobre o conceito de ideário de branqueamento,
analisando em que medida este influenciou a concepção destes representantes
sobre os espíritos dos pretos-velhos e caboclos. Para tanto analisaremos o mito
de origem da anunciação do Caboclo Sete Encruzilhadas em 1908, os escritos do
jornalista e dirigente Leal de Souza nas décadas de 1920 e 1930 e por fim o
Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda realizado em 1941.
Palavras-chave: umbanda; branqueamento; racismo.
ABSTRACT
This work will seek to analyze the narratives of the representatives of the "White
Line of Umbanda and Demanda" from the first half of the 20th century, in order to
investigate the relationships between such discourses and the Brazilian social and
racial context. We will deepen the discussion on the concept of whitening ideas,
analyzing to what extent it influenced the conception of these representatives
about the spirits of pretos-velhos and caboclos. In order to do so, we will analyze
the myth of origin of the annunciation of Caboclo Sete Encruzilhadas in 1908, the
writings of the journalist and leader Leal de Souza in the 1920s and 1930s and
finally the First Brazilian Congress of Umbanda Spiritism held in 1941.
Keywords: umbanda; whitening; racism.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CONDU Conselho Deliberativo Nacional de Umbanda
DIP Departamento de Imprensa e Propaganda
FEB Federação Espírita Brasileira
FEU Federação Espírita de Umbanda
FNB Frente Negra Brasileira
TENSP Tenda Nossa Senhora da Piedade
UEUB União Espiritista de Umbanda do Brasil
www World Wide Web
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
2. ZÉLIO DE MORAES E O CABOCLO DAS SETE ENCRUZILHADAS:
ANALISANDO DIFERENTES PONTOS DE VISTA ................................................. 14
2.1 Um brado pela igualdade entre todos os irmãos: encarnados e
desencarnados! .............................................................................................................. 26
2.1.2 A história do Caboclo das Sete Encruzilhadas ............................................... 32
3. IDEÁRIOS DE BRANQUEAMENTO E OS CONTEXTOS SOCIAIS
BRASILEIROS ................................................................................................................ 39
3.1 Diferentes utilizações da categoria negro no contexto colonial brasileiro...... 39
3.1.2 O ideário de branqueamento no contexto colonial e imperial brasileiro: as
origens do preto de alma branca. ................................................................................ 44
3.1.3 Branqueamento e Abolicionismo ....................................................................... 49
3.1.4 O Ideário de Branqueamento na Perspectiva das Teorias Deterministas do
século XIX. ...................................................................................................................... 52
3.1.5 A Teoria do Branqueamento de João Baptista Lacerda e o Congresso
Universal das Raças em Londres em 1911 ............................................................... 56
3.1.6 O Ideário de Branqueamento na chave da Democracia Racial: Uma análise
da obra de Gilberto Freyre............................................................................................ 62
3.1.7 Refletindo sobre a Utilização da Categoria Preto de Alma Branca em
Diferentes Contextos da Sociedade Brasileira. ......................................................... 68
4. QUEM FOI ANTÔNIO ELIEZER LEAL DE SOUZA?........................................... 86
4.1 Primeiros contatos de Leal de Souza com o Espiritismo .................................. 87
4.1.2 No Mundo dos Espíritos: O inquérito do jornal A Noite. ................................ 90
4.1.3 A Revista Careta e o Artigo Henriette ............................................................... 95
4.1.4 Primeiro Contato de Leal de Souza com Zélio de Mores e a Tenda Nossa
Senhora da Piedade. ................................................................................................... 102
4.1.5 Leal de Souza: uma importante voz pública em defesa da Linha Branca de
Umbanda e Demanda. ................................................................................................ 105
4.1.6 O parecer da Federação Espírita Brasileira de 1926 sobre os espíritos de
caboclos e pretos ......................................................................................................... 108
4.1.7 A Linha Argumentativa de Leal de Souza ...................................................... 113
4.1.8 Superior Vestido de Inferior, Preto Vestido de Branco. ............................... 116
5. O PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DO ESPIRITISMO DE UMBANDA
......................................................................................................................................... 120
5.1 O Contexto Político e a Repressão Policial ...................................................... 121
a originalidade do regime estará em opor-se ao discurso da superioridade
racial e de heterogeneidade étnica como fator de desagregação nacional. Com
a nova ordem, realizar-se-á uma reinvenção na argumentação: é na
diversidade que se realiza a unidade e a originalidade. (VELLOSO 2003 p.166
apud OLIVEIRA 2007 p. 82 grifo nosso) .............................................................. 123
5.1.2 Breves Apontamentos sobre o Conceito de Evolução no Kardecismo e na
Linha Branca de Umbanda. ........................................................................................ 125
5.1.3 Os Debates do Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda
......................................................................................................................................... 130
5.1.4 Origem nos Vedas Indianos ............................................................................. 131
5.1.5 Origem nas Escolas Iniciáticas Egípcias ........................................................ 133
5.1.7 Algumas considerações finais sobre o Primeiro Congresso Brasileiro do
Espiritismo de Umbanda (1941) ................................................................................ 134
6. CONCLUSÃO ........................................................................................................... 141
7. REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 144
11
1. INTRODUÇÃO
“Preto-Velho de Alma Branca”: O Ponto de Partida
O ponto de partida desta pesquisa se deu pelo estranhamento de ter ouvido
médiuns em diferentes terreiros de Umbanda se referirem às entidades dos
pretos-velhos como preto velho de alma branca. Apesar desta caracterização
sobre a figura dos pretos-velhos não ser um consenso e nem algum tipo de
princípio doutrinário dentro destes terreiros - um deles localizado na cidade de
Marília no interior de São Paulo e o outro em São Bernardo do Campo - me
chamou atenção a naturalidade com a qual estes diferentes médiuns utilizaram
este termo. Em ambos os terreiros a intenção dos médiuns pareceu ser a mesma:
legitimar e comprovar o caráter “bom”, “puro” e de “luz”1 das entidades através de
suas almas brancas.
Enquanto cientista social, negro e umbandista posso afirmar que foi a
inquietação e o estranhamento de ter ouvido este termo - em diferentes terreiros
e contextos – que geraram os questionamentos iniciais da seguinte pesquisa de
mestrado intitulada “O lugar dos pretos e caboclos na linha branca de Umbanda:
uma análise das relações entre religião e ideários de branqueamento no Brasil”.
Para compreender a historicidade e os significados mais profundos do
termo preto-velho de alma branca fui levado a um duplo movimento analítico: por
um lado uma reflexão sobre a história de formação e desenvolvimento da religião,
com foco específico em um de seus seguimentos, chamado na primeira metade
do século XX de Linha Branca de Umbanda – corrente que teve Zélio Fernandino
de Moraes e intelectuais-umbandistas como Leal de Souza entre os seus
principais expoentes; por outro uma reflexão sobre os ideários de branqueamento
que estão nas entranhas do racismo no Brasil e que constituíram o contexto social
dentro do qual a religião se desenvolveu.
1 Os termos “bom”, “puro” e “de luz” são categorias ouvidas nos terreiros.
12
Para a realização desta empreitada busquei dividir analiticamente as
narrativas dos representantes da Linha Branca de Umbanda em três períodos: de
1908 a meados de 1920, no qual analiso principalmente a história do mito de
fundação da religião pela manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas
através do médium Zélio de Moraes - amplamente divulgada e tornada
hegemônica no meio umbandista principalmente a partir de 1970; de 1920 a
meados de 1930, período no qual o foco se tornam os livros e artigos de jornal
publicados por Leal de Souza 2 - que foi um dos principais dirigentes e
representantes da Linha Branca de Umbanda – tendo inclusive publicado dois
livros pioneiros da literatura umbandista e dirigido a Tenda Nossa Senhora da
Conceição3; e de meados de 1930 a 1941, no qual analiso principalmente o livro
das teses e as discussões que ocorreram no contexto do Primeiro Congresso
Brasileiro do Espiritismo de Umbanda em 1941 – organizado principalmente pelos
representantes da Linha Branca de Umbanda.
Sendo assim no Capítulo 2 “Zélio de Moraes e o Caboclo das Sete
Encruzilhadas: analisando diferentes pontos de vista” iniciaremos o diálogo com
a narrativa de Zélio como o pioneiro da religião a partir da manifestação do
Caboclo das Sete Encruzilhadas em 15 de novembro de 1908. Para tanto
revisitaremos esta história buscando analisar seus elementos chaves: o brado do
caboclo pela igualdade, humildade e contra preconceitos. Em seguida
buscaremos problematizar os limites desta ideia de igualdade através da análise
dos discursos dos integrantes da Linha Branca de Umbanda particularmente
quando se referem os pretos e caboclos. Neste capítulo também analisaremos
diferentes perspectivas de autores acadêmicos sobre a questão do mito de origem
da Umbanda.
No capítulo 3 nosso foco será compreender particularmente em que medida
os ideários de branqueamento enraizados na sociedade brasileira influenciaram
2 O livro No Mundo dos Espíritos de 1925 é considerado o primeiro livro a trazer relatos sobre a Tenda Nossa
Senhora da Piedade de Zélio de Moraes - apesar de não ser um livro especificamente sobre a Umbanda, mas
sim um dossiê extenso sobre diversas manifestações e vertentes do espiritismo que existiam no Rio de Janeiro
na década de 20; já o livro O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas da Umbanda de 1933 é considerado o
primeiro livro escrito especificamente sobre a religião de Umbanda, num contexto em que o autor já havia se
convertido à corrente de Zélio e se tornando um dos seus principais dirigentes e representantes.
Particularmente nesta obra o autor realiza uma série de debates com os kardecistas em defesa dos “pretos” e
“caboclos” da Linha Branca de Umbanda, de modo que suas argumentações são pontos importantes para a
análise que realizo em minha pesquisa.
3 Tenda que foi fundada diretamente pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas.
13
as concepções dos representantes e intelectuais da Linha Branca de Umbanda
na primeira metade do século XX. Para tanto, realizaremos um breve histórico
desse conceito -branqueamento - uma vez que o seu entendimento depende
fundamentalmente da compreensão dos diferentes contextos econômicos e
sociais em que foi utilizado. Para tanto também buscaremos refletir sobre a
história de categorias como negro, branco e raça, realizando o mesmo exercício
analítico de buscar compreendê-las em suas relações com os diferentes contextos
em que também foram utilizadas.
Por fim, analisaremos a construção histórica da ideia de preto de alma
branca, que nos parece ser um ponto crucial para compreendermos a
complexidade das relações entre os discursos dos intelectuais da Linha Branca
de Umbanda e os ideários de branqueamento presentes no contexto social
brasileiro.
No Capítulo 4 buscaremos analisar os discursos dos representantes da
Linha Branca de Umbanda nas décadas de 1920 e 1930, nos focando
particularmente na complexidade da argumentação utilizada para a defesa dos
espíritos dos pretos 4 e caboclos perante a sociedade carioca das primeiras
décadas do século XX. Para tanto resgataremos a biografia e os escritos do
principal divulgador e defensor público da Linha Branca de Umbanda nesse
período: o jornalista e dirigente espiritual da Tenda Nossa Senhora da Conceição,
Antônio Eliezer Leal de Souza. Por fim buscaremos analisar o contexto social e
racial brasileiro no qual tais discursos estavam inseridos, refletindo de que
maneira as narrativas da Linha Branca de Umbanda se relacionavam com os
ideários raciais do período. Dessa maneira buscaremos desenvolver a hipótese
de que a partir da fórmula superior vestido de inferior, Leal de Souza continuou a
reproduzir uma noção de inferioridade atribuída à população preta e indígena em
relação aos brancos europeus, de modo a não romper totalmente com a
concepção kardecista que foi combatida pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas de
1908 através da narrativa do mito de origem da religião.
No capítulo 5 buscaremos analisar as ideias defendidas pelos
representantes da Linha Branca de Umbanda no Primeiro Congresso Brasileiro
do Espiritismo de Umbanda ocorrido em 1941 no Rio de Janeiro. Nosso intuito
4 Na Linha Branca de Umbanda o termo “pretos” se refere às entidades dos pretos-velhos.
14
será analisar em que medida as concepções expressas neste evento foram
influenciadas pelo contexto social e racial desse período histórico. Também
buscaremos refletir a influência do conceito kardecista de evolução sobre as
produções expressas no Congresso, bem como analisaremos as estratégias de
institucionalização adotadas pelos intelectuais umbandistas na busca pela
legitimação da religião perante a sociedade.
2. ZÉLIO DE MORAES E O CABOCLO DAS SETE ENCRUZILHADAS:
ANALISANDO DIFERENTES PONTOS DE VISTA
Parece correto afirmar que no meio umbandista, ainda que não seja
consenso, existe uma certa hegemonia da história de Zélio de Moraes e da
anunciação realizada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas em 15 de novembro
de 1908 como o marco fundador da Umbanda no Brasil. Vejamos alguns
exemplos.
O III Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda (1973) instituiu o
dia 15 de novembro como Dia Nacional da Umbanda – como uma referência à
data da primeira manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Desde então
o dia 15 de novembro passou a fazer parte do calendário umbandista chegando
até mesmo a ser comemorado em parte dos terreiros. Podemos também citar o
Primeiro Congresso Brasileiro de Umbanda do Século XXI, um grande evento o
realizado em São Paulo entre os dias 14 e 16 de novembro de 2008, no qual se
tinha por objetivo comemorar o aniversário de 100 anos de existência da
Umbanda. Ou seja: cem anos contados a partir da manifestação do caboclo em
1908.
Ainda no ano de 2008 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça
e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 5687/05 que
visava instituir o Dia Nacional da Umbanda, a ser comemorado anualmente em
15 de novembro.5 Por fim, no ano de 2012 vimos a então presidenta do país, Dilma
5 Disponível em: Acesso em: 22 de ago. de 2022 .
https://www.camara.leg.br/noticias/115041-dia-nacional-da-umbanda-e-aprovado-pela-camara/
https://www.camara.leg.br/noticias/115041-dia-nacional-da-umbanda-e-aprovado-pela-camara/
15
Rousseff, sancionar a Lei Nº 12.644 na qual: “Art. 1º Fica instituído o Dia Nacional
da Umbanda, que será comemorado, anualmente, em 15 de novembro.”6
Um fato que presenciei no meio acadêmico, num GT (grupo de trabalho)
sobre o tema de religiões afro-indígenas na XIII Reunião De Antropologia Do
Mercosul (RAM), ocorrida em 2019 na cidade de Porto Alegre, também,
particularmente, me demonstrou a força desta narrativa. Duas estudantes da
Universidade Federal do Pará que apresentavam - assim como eu - um trabalho
sobre a temática da Umbanda, desenvolviam suas análises a partir da afirmação
de que a religião teria sido fundada por Zélio de Moraes e pelo Caboclo das Sete
Encruzilhadas em 1908. Ou seja, podemos perceber o alcance e a naturalização
de tal narrativa mesmo em contextos geograficamente e culturalmente distintos
do sudeste brasileiro (eixo Rio-São Paulo) no qual esta foi gerada.
Durante muitos anos em minha própria experiência umbandista também
naturalizei esta narrativa como o marco fundante da Umbanda. Nas falas, nas
apostilas formuladas pelos terreiros, nos livros de escritores umbandistas que
chegavam até mim, havia sempre um ponto em comum: o Caboclo das Sete
Encruzilhadas incorporado no jovem Zélio Fernandino de Moraes fundou a
Umbanda em 1908. Inclusive esta narrativa sempre me causou um grande
impacto pelos fundamentos que carrega em si: um brado pela igualdade, pela
humildade, contra preconceitos, pela manifestação do espírito para a realização
da caridade sintetizada na ideia de fazer o bem sem olhar a quem.
No entanto, ao iniciar a busca por compreender o termo preto velho de alma
branca ouvido por mim em diferentes terreiros de Umbanda, fui levado a
aprofundar-me na história de um seguimento chamado Linha Branca de Umbanda
e Demanda, no qual redescobri Zélio de Moraes como um de seus representantes.
Enquanto cientista social que sempre se interessou pelas questões raciais no
Brasil, bem como pela luta antirracista, os termos “preto velho de alma branca” e
“Linha Branca de Umbanda” de início já me despertaram um sinal de alerta
(considerando o histórico racial da sociedade brasileira, um alerta de racismo) e
uma curiosidade investigativa. Dessa maneira, ao debruçar-me, por um lado sobre
a história e os discursos dos principais representantes da Linha Branca de
Umbanda, e por outro sobre o contexto social e racial do país no qual estes
6 Disponível em: Acesso em:
22 de ago. de 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12644.htm
16
estavam inseridos, também passei a reconstruir meu olhar sobre a narrativa de
Zélio e do Caboclo das Sete Encruzilhadas de uma maneira que acredito ser mais
contextualizada e menos idealizada.
Sobre esta questão, vamos iniciar nossa reflexão apontando para
diferentes pontos de vista encontrados no debate acadêmico e no meio
umbandista sobre este tema. De acordo com a antropóloga Diana Brown, a
história de Zélio de Moraes – relato de sua doença, posterior cura e revelação de
sua missão especial – se caracteriza como um conjunto de elementos que geram
um “mito de origem da Umbanda”. Segundo a autora não é possível afirmar com
certeza de que Zélio tenha sido de fato o fundador da Umbanda e nem que a
religião tenha tido um único fundador, ainda que faça a ressalva de que a Tenda
Nossa Senhora da Piedade – e aquelas fundadas pelos companheiros de Zélio –
tenham sido as primeiras que encontrou no Brasil a se identificarem de maneira
consciente como praticantes de Umbanda durante sua pesquisa (BROWN, 1985).
Para ela muitos integrantes deste grupo de fundadores eram, como Zélio,
kardecistas insatisfeitos que provinham de uma classe média carioca:
trabalhavam no comércio, na burocracia governamental, eram oficiais militares,
profissionais liberais, jornalistas, professores, advogados etc. Em sua maioria
homens brancos. Estes kardecistas teriam entrado em contato com as macumbas
dos subúrbios do Rio de Janeiro e de Niterói, de modo que:
passaram a preferir os espíritos e divindades africanas e indígenas
presentes na “macumba”, considerando-os mais competentes do que os
altamente evoluídos espíritos kardecistas na cura e no tratamento de uma
gama muito ampla de doenças e outros problemas. (BROWN 1985 p. 11)
Em contrapartida, a apropriação de elementos das macumbas realizado por
este grupo de kardecistas insatisfeitos também passou pela negação de alguns
aspectos que a autora atribui a estes rituais, como por exemplo, o sacrifício de
animais, a presença de espíritos considerados diabólicos (exus), o ambiente que
por vezes incluía a bebedeira e a exploração econômica dos clientes.
Já em Ortiz (1999), a compreensão do surgimento da Umbanda no Brasil
está diretamente ligada às transformações sociais ocorridas no país entre o final
do século XIX e início do século XX. Nesse período tivemos a abolição da
escravatura, a Proclamação da República, o auge de um projeto imigracionista e
17
uma sociedade que caminhava no sentido da urbanização e industrialização. Para
o autor a religião seria fruto e expressão justamente dessas transformações. Ou
seja, o autor opta por adotar uma perspectiva multicêntrica e difusa para a
compreensão das origens da Umbanda7.
Já para o antropólogo Emerson Giumbelli houve um processo de invenção
da figura de Zélio de Moraes como “o pioneiro” da Umbanda, que ocorre
particularmente no início da década de 1970. Em suas palavras “o lugar de
fundador ou pioneiro principal da Umbanda atribuído a Zélio de Moraes parece,
portanto, uma construção tardia” (GIUMBELLI, 2002). Para comprovar sua
argumentação o autor faz um levantamento bibliográfico de autores acadêmicos
que citam de alguma forma a umbanda na primeira metade do séc. XX - Arthur
Ramos (1940), Nicolau Rodrigues (1936), Jacy Rego Barros (1939), Gonçalves
Fernandes (1941), Roger Bastide (1960) - demonstrando que estes não se
referiram a Zélio e ao Caboclo das Sete Encruzilhadas como os proeminentes
fundadores da religião.
Segundo Giumbelli, Zélio teria de esperar as obras de Diana Brown (1985)
e de Renato Ortiz (1978) para passar a ser reconhecido de maneira mais
significativa na literatura acadêmica. Em relação a Ortiz, apesar de ter optado por
uma perspectiva multicêntrica e difusa sobre as origens da Umbanda, este
também considerou a relevância de Zélio em sua análise, tanto por reproduzir a
versão de que a Tenda Nossa Senhora da Piedade teria sido a base para a criação
de sete novas tendas8, quanto por considerar que seu centro teria se convertido
do kardecismo para a umbanda durante a década de 1930. O fato de que tanto
Brown quanto Ortiz terem atribuído em suas análises certa relevância ao
pioneirismo de Zélio de Moraes, se explicaria pelo fato de ambos terem se
baseado numa fonte em comum para obter informações sobre a Umbanda na
elaboração de suas pesquisas: a interlocução do historiador umbandista
Cavalcanti Bandeira.
7 Em sua obra Ortiz também “chama a atenção para iniciativas paralelas no Rio Grande do Sul (1920) e
aponta para presença de outra personagem importante no contexto carioca” (GIUMBELLI, 2002, p. 187).
8 Tanto Cavalcanti Bandeira quanto Alves de Oliveira concordam sobre os nomes das sete tendas, divergindo
apenas na ordem de sua criação: Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição, Tenda Espírita Nossa Senhora
da Guia, Tenda Espírita Santa Barbara, Tenda Espírita São Pedro, Tenda Espírita Oxalá, Tenda Espírita São
Jorge e Tenda Espírita São Jerônimo.
18
Ainda apontando para a hipótese de construção tardia, Giumbelli também
se aprofunda nas referências feitas a Zélio de Moraes na própria literatura
umbandista, particularmente analisando os documentos produzidos pela União
Espiritista de Umbanda do Brasil (UEUB) 9 e seu principal instrumento de
divulgação chamado Jornal de Umbanda. Apesar de encontrar algumas poucas
referências à Zélio de Moraes e à Tenda Nossa Senhora da Piedade nesta
documentação histórica, a conclusão do autor é de que:
Seu reconhecimento como uma figura seminal da constituição da
umbanda encerra uma dupla ironia: a maioria das referências é
contemporânea ou posterior à morte de Zélio, que ocorreu em 1975, aos
84 anos de idade; e aponta para um interesse pela “fundação” e pela
“origem” de uma “religião” exatamente quando a dispersão doutrinária e
ritual e a divisão institucional parecem se impor de modo inexorável
(GIUMBELLI, 2002, p. 189)
E ainda:
O fato é que Zélio de Moraes só parece ganhar destaque em relação à
história da umbanda, sejas nas versões acadêmicas, seja nas versões
nativas, a partir do final da década de 1960. (GIUMBELLI, 2002, p.195)
Vejamos alguns exemplos das menções feitas a Zélio de Moraes que foram
encontradas na farta documentação analisada pelo autor. Algumas delas apontam
para a antiguidade deste na umbanda: termos como “vovô dos médiuns de
Umbanda”, “um dos mais antigos, senão o mais antigo dos trabalhadores em
terreiros”, “decano dos Babalaôs da União” são atribuídas ao médium. Em 1954,
por exemplo, é noticiado no Jornal de Umbanda uma festa na qual a Tenda Nossa
Senhora da Piedade recebeu o diploma de “tenda filiada número um”. Neste
mesmo ano, Zélio passa a ocupar a posição de inspetor da federação, cargo que
teria a função de supervisionar as entidades ligadas à UEUB em outros Estados.
No entanto, Giumbelli é categórico em afirmar que tais menções “jamais vão a
ponto de alçá-lo à posição de fundador da religião” (GIUMBELLI, 2002, p. 194).
9 A Federação Espírita de Umbanda foi fundada em 1939 e organizou o Primeiro Congresso de Espiritismo
do Brasil em 1941. Na década de 1940 a FEU se desarticulou e foi reestruturada em 1947 numa nova
federação: A União Espiritualista Umbanda de Jesus. Esta federação, por sua vez, assume a designação de
União Espiritista de Umbanda, passando a veicular o Jornal de Umbanda. Em 1954 tem seu nome mudado
para União Espiritista de Umbanda do Brasil (UEUB). GIUMBELLI (2002, p.191)
19
Nos próprios escritos de Cavalcanti Bandeira em relação às origens da
Umbanda podemos observar alguns fatos que corroboram para a hipótese de
Giumbelli. Em 1961, Bandeira foi designado como integrante da Comissão
Nacional de Codificação do Culto da Umbanda, que estava vinculada ao Segundo
Congresso de Umbanda que foi realizado neste mesmo ano. Nesse período o
autor publica um livro no qual reflete sobre o momento em que a umbanda de fato
aparece no Rio de Janeiro: após procurar pistas na obra de João do Rio e não
encontrar respostas, o autor menciona a “fundação da FEU em 1939 e uma tenda
surgida em 1947”, de modo que se lamenta ao concluir que: “Não conseguimos
apurar com segurança os terreiros que iniciaram no Brasil a prática da Umbanda”
(Bandeira, 1961, p. 109 apud Giumbelli, 202, p. 194).
Por outro lado, em sua publicação de 1970 vemos o autor atribuir uma
“marcante influência da Tenda Espírita N. Senhora da Piedade” que fora “fundada
em 16 de novembro de 1908” por Zélio de Moraes, dirigente que também teria
recebido a incumbência do Caboclo das Sete Encruzilhadas de fundar mais “sete
centros” na cidade do Rio de Janeiro entre 1930 e 1937 (Bandeira 1973 p. 81-82).
Ou seja, aqui já encontramos uma referência mais sólida a Zélio de Moraes, ainda
que este não seja apontado como o fundador da Umbanda. Vale citarmos ainda,
o texto de Alves Oliveira (1977) preparado para o Conselho Deliberativo Nacional
de Umbanda (CONDU) que foi um órgão confederativo criado na década de 1970:
a partir de contribuições como a de Alves Oliveira, o CONDU decide consagrar o
dia 15 de novembro como data nacional da umbanda, numa referência à data em
que teria ocorrido a primeira manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas em
1908.
Para Giumbelli o reconhecimento da figura de Zélio como pioneiro da
Umbanda apontaria para “um projeto federativo específico” que procurava
generalizar uma narrativa que tenderia “a permanecer restrita a certo seguimento
do universo umbandista” (GIUMBELLI, 2002, p. 195). Por fim, de acordo com o
autor, a problemática sobre a origem da umbanda não pode ser reduzida à busca
de um fundador:
Em parte, porque nos faltam dados históricos suficientes; em parte
porque não faz muito sentido em procurar por prioridades e fundadores
em um processo que em boa medida ocorreu, por assim dizer,
rizomaticamente, sem direção única e sem controle centralizado, uma
20
bricolage, para usar a expressão de Ortiz (1986) (GIUMBELLI, 2002,
p.208)
Para Rohde (2011), a questão da origem “é o campo de batalha onde se
define o começo de um fenômeno”, ou seja, o momento em que ele passa a existir
e tornar-se socialmente visível. O autor considera que a narrativa de Zélio seria
apenas uma das partes constitutivas do todo complexo umbandista – parte que
se referia a um grupo específico, a umbanda branca. No entanto o autor
problematiza quando esta parte é generalizada, perdendo sua característica de
ser a narrativa de um seguimento específico, passando a ser tratada como a
narrativa do todo complexo umbandista:
ao ser considerado como fundador, acaba por condicionar, limitar as
interpretações que são feitas sobre a religião por adeptos e estudiosos
e o modo de vivenciar o universo das práticas e crenças umbandistas
(ROHDE, 2011, p.36).
Mesmo partido pressuposto de que o processo de constituição da
Umbanda seria relativamente longo – acompanharia toda a história do Brasil – ele
considera que é a partir do fim do século XIX e início do século XX que emerge
gradualmente um grupo religioso relativamente coeso autodenominado
umbandista, de modo que é nesse contexto que se torna possível destacar o papel
fundamental dos discursos identitários. Ou seja, neste período delimitou-se o que
é e o que não é Umbanda, estabeleceu-se fronteiras fixas entre o nós e os outros.
Nos termos do autor, apesar de ter um longo processo de constituição – que inclui,
por exemplo, a história dos calundus do séc. XVIII – a umbanda é bastante recente
enquanto uma religião representada institucionalmente, reconhecida social e
politicamente.
Já Engler conclui que “a evidência histórica das raízes da Umbanda é
simplesmente incerta” e considera não ter muita utilidade a tentativa de encontrar
“uma fonte única e clara que revelaria a essência da religião”10 (ENGLER, 2020,
p. 16, tradução nossa). Dessa maneira seu interesse está primeiramente em
mapear as diversas perspectivas teóricas que já foram defendidas sobre a origem
10 No original: “the historical evidence of Umbanda's roots is simply uncertain” […] “a single, clear source
that would reveal the essence of the religion”.
21
da Umbanda: visões que enxergam sua origem nas raízes africanas; uma visão
que defende a origem da Umbanda na ruptura com o kardecismo através da
história de Zélio de Moraes; visões que atribuem a origem da religião a um
esoterismo de sentido mais amplo (africano, kardecista, indígena “guarani”,
védico, egípcio, lemuriano, extraterrestre e assim por diante); visões que vão
atribuir as origens da religião às transformações ocorridas no contexto social e
econômico do país na primeira metade do século XX e etc.
Ao realizar este mapeamento o autor tira as seguintes conclusões: primeiro
que a Umbanda é uma tradição plural, fragmentada e hibridizante desde os seus
primórdios; segundo e mais importante - pois consiste no cerne de sua
argumentação – que o kardecismo seria mais proeminente no contexto
umbandista do que as tradições africanas. De acordo com ele:
Uma revisão da doutrina e das práticas mostra que as ideias e práticas
kardecistas são encontradas em toda a gama das muitas variantes da
Umbanda, e que os elementos africanos são mais limitados, embora
presentes na maioria dos grupos. 11 (ENGLER, 2020, p.26, tradução
nossa)
Nesse sentido defende a perspectiva de que os elementos kardecistas
seriam universais na Umbanda, ao passo que os elementos africanos não.
Embora faça a ressalva de que em se tratando de Umbanda nunca seja prudente
generalizar, o autor argumenta, por exemplo, que não existe nenhum elemento
ritual africano que possa ser encontrado em todas as casas de Umbanda
enquanto o passe12 seria um elemento universal ou quase universal nas práticas
ritualísticas umbandistas (ENGLER, 2020, p. 23). Aqui cabe ressaltar o que Engler
compreende como kardecismo: “uma tradição esotérica ocidental e um fator chave
no surgimento de uma ampla variedade de espiritismos latino-americanos,
incluindo a Umbanda” (ENGLER, 2020, p. 24). De acordo com ele:
[...] se ficarmos de olho em todo o espectro das Umbandas, os elementos
kardecistas parecem ser mais centrais. Como o Kardecismo é uma
tradição esotérica ocidental, isso sugere que a Umbanda é mais
esotérica que a africana. A Umbanda é melhor classificada como um
Espiritismo brasileiro hibridizante, se definirmos os Espiritismos como
11 No original: “A review of doctrine and practices shows that Kardecist ideas and practices are found across
the range of Umbanda's many variants, and that African elements are more limited, although present in most
groups.”
12 O passe consiste na transmissão de fluidos energéticos canalizados por um médium -normalmente através
da imposição das mãos - para outra pessoa que procure assistência espiritual.
22
tendo elementos esotéricos ocidentais, por exemplo, Kardecista,
Espírita, Nova Era, etc. (ENGLER, 2020, p.2, tradução nossa).
Por fim, vale lembrar que o autor também defende a narrativa da
manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas através de Zélio de Moraes
como um mito de origem, inclusive considerando que as evidências históricas para
a comprovação desse mito seriam escassas (ENGLER, 2020, p. 12).
Já Oliveira (2008, p.91) também considera a anunciação do Caboclo como
um “misto de lenda e de realidade” - e apesar de reconhecer a sua importância
enquanto um marco e divisor de águas para o movimento umbandista – concorda
com Brown na afirmação de que não se pode ter certeza de que Zélio de Morais
tenha fundado a Umbanda. Segundo ele, alguns dados históricos referentes
àquele evento não puderam ser confirmados, havendo inclusive várias
divergências entre as informações contidas em diferentes versões do mito da
“anunciação”.
Por exemplo, a narrativa faz referência à participação de Zélio na mesa
kardecista atendendo ao convite do presidente da Federação Espírita de Niterói,
José de Souza. Entretanto, de acordo com Oliveira (2008), consultando o Livro de
Atas nº. 1 desta instituição, constata-se que o cargo era ocupado por Eugênio
Olímpio de Souza, não constando o nome de nenhum José de Souza entre os
membros da diretoria e nem na relação dos associados. Tampouco consta no
referido livro de atas a realização de uma reunião naquela data. Segundo
informações prestadas pela Diretora de Divulgação da Federação Espírita de
Niterói (atual Instituto Espírita Bezerra de Menezes), em 1908 a Federação ainda
não dispunha de sede própria, ocupando uma sala no centro de Niterói. De acordo
com Oliveira: “[...] somos levados a pensar que, se realmente o fato ocorreu, pode
não ter ocorrido na Federação, mas talvez em algum centro espírita filiado a esta,
cujo nome se perdeu ao longo da repetição desta tradição oral.” (OLIVEIRA, 2008,
p.94).
Sobre esta questão da localidade, o historiador umbandista Trindade
(2014) reproduz em seu livro um artigo intitulado de O local da primeira
manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Nele é relatada uma pesquisa
sobre os registros históricos deste episódio realizada pelo médium Márcio
Petersen, na qual este levanta a hipótese de que o nome do centro visitado por
23
Zélio de Moraes em 15 de novembro de 1908 seria Grupo Espírita Santo
Agostinho. Tal hipótese é aventada pelo fato da Federação Espírita do Estado do
Rio de Janeiro em 1908 não possuir sede própria, de modo que na mesma sala
em que ocorriam as reuniões da federação também ocorriam as reuniões do grupo
citado acima. Apesar dessa perspectiva considerar inclusive que existiriam sinais
misteriosos da influência de Santo Agostinho com a fundação da Umbanda – que
serviriam para reforçar a hipótese de Zélio ter participado de uma sessão do grupo
espírita citado acima - o fato é que ainda não existem documentos históricos que
comprovem definitivamente essa hipótese.
Oliveira (2008) ainda discorda de Brown sobre a afirmação de que a
fundação da Umbanda teria acontecido “em meados da década de 1920, por
iniciativa de um grupo de kardecistas”, pois cita um artigo publicado por Leal de
Souza em 1933, no qual o jornalista afirma que o Caboclo das Sete Encruzilhadas
já trabalhava há 23 anos na casa de Zélio nos arredores de Niterói. Ou seja, pelo
menos, desde 1910. Assim, o autor diz acreditar que Brown tenha sido levada a
se enganar, pois a década de 1920 coincide com a instalação da Tenda Nossa
Senhora da Piedade em outro endereço - ainda em São Gonçalo (OLIVEIRA,
2008, p.109). De acordo com Oliveira:
Mesmo que seja somente um “mito de origem”, como propõe Diana
Brown, a manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas não pode ser
relativizada, uma vez que para os umbandistas a data tem o mesmo
valor simbólico do Natal para os católicos, do Rosh Hashanará para os
judeus e da Hégira para os muçulmanos. (OLIVEIRA, 2008, p. 98).
Nesse sentido o autor diz não concordar com a análise de Giumbelli sobre
a importância de Zélio de Moraes para o movimento umbandista. Como vimos
anteriormente, em síntese, a argumentação de Giumbelli é de que o mito fundador
centrado na figura de Zélio teria sido uma construção tardia que se iniciou
contemporaneamente à morte do médium (1975) e que teria sido criado como
resposta à um período de dispersão doutrinária e de divisão institucional. Oliveira
aponta não ver, a princípio, consistência na afirmação de que a busca pela origem
da umbanda - na figura de Zélio - seria um grande elemento aglutinador para o
movimento umbandista. Para o autor historicamente a união dos movimentos
umbandistas sempre foi circunstancial “haja vista o excessivo número de
24
Federações, Confederações, Uniões e Conselhos existentes” (OLIVEIRA, 2008,
p.98).
Como vimos anteriormente, Giumbelli também argumenta que nas obras
umbandistas e nas publicações do Jornal de Umbanda13 encontram-se apenas
discretas citações sobre Zélio de Moraes e que mesmo aquelas que reconhecem
a antiguidade dos vínculos do médium com a Umbanda, jamais chegam ao ponto
de considerá-lo como o fundador da religião.
Sobre este argumento, Oliveira nos lembra que existe pelo menos uma
edição do Jornal de Umbanda de outubro de 1952, em que foi publicado um relato
de Leal de Souza afirmando que foi o Caboclo das Sete Encruzilhadas quem
organizou a Linha Branca de Umbanda e ainda que teria iniciado a sua missão
em 15 de novembro de 1908. Constatamos que Leal de Souza já havia publicado
um artigo em 1932 intitulado O Caboclo das Sete Encruzilhadas com este mesmo
conteúdo que observamos na publicação do Jornal de Umbanda. Apesar de
evidenciar a existência de pelo menos um registro no Jornal de Umbanda, na
década de 1950, que aponta Zélio de Moraes como o fundador da Linha Branca
de Umbanda, Oliveira diz concordar com Giumbelli que este registro “é pouco,
quase nada” (OLIVEIRA, 2008, p. 100).
No entanto, o autor irá propor uma interpretação diferente da realizada por
Giumbelli, para compreender a ausência de Zélio de Moraes nas obras de seus
contemporâneos e nos materiais publicados no meio umbandista. Para explicar
esta ausência, Oliveira (2008) recorrerá à teoria de Bourdieu sobre o
funcionamento do campo religioso para compreender o ostracismo vivido por Zélio
de Moraes. O autor compara a Federação Espírita de Umbanda (FEU) com a
hierarquia eclesiástica e Zélio de Moraes com a figura do profeta, partindo do
princípio de que as publicações umbandistas estudadas por Giumbelli foram
produzidas num período em que a Umbanda já desfrutava de alguma legitimidade
institucional.
A primeira parte de sua explicação envolve a noção de que Zélio de
Moraes – enquanto o médium que incorporava a entidade fundadora da Umbanda
13 Veículo oficial da União Espiritista Umbanda do Brasil (UEUB) que se formou a partir da Federação
Umbandista do Brasil (FEU).
25
– se fosse amplamente reconhecido nesta posição (equivalente à figura do
profeta) poderia competir no campo religioso com o monopólio doutrinário
difundido pela própria umbanda institucionalizada, pondo em risco a legitimidade
da nova religião.
A segunda parte da explicação, envolve uma constatação sobre uma
característica particular de Zélio: segundo depoimentos de pessoas que
conviveram com ele, este possuía uma personalidade tímida e modesta. Neste
ponto Oliveira (2008) cita um comentário do jornalista Ronaldo Linares:
“era uma pessoa que não gostava dos holofotes da ostentação pública”,
comenta o jornalista Ronaldo Linares, autor de uma curta biografia do
médium [...] Não era da personalidade de Zélio arvorar-se em líder da
Umbanda, ou “não era este o desejo do plano espiritual”, ponderou Lygia
Cunha, neta do médium em conversa informal com o autor desta
dissertação (OLIVEIRA, 2008, p.115).
Após a exposição destes diferentes pontos de vista acadêmicos sobre o
tema, penso ser importante expressar a maneira como propomos nos relacionar
com esta questão no presente trabalho.
Compartilhamos a visão de diferentes autores acadêmicos - que em suas
diversas perspectivas e interpretações - compreendem a narrativa do Caboclo das
Sete Encruzilhadas como um “mito” de origem ou de fundação da religião - Rohde
(2011), Giumbelli (2002), Oliveira (2008), Engler (2020)14 etc. Assim como Oliveira
2008, também consideramos que a anunciação do Caboclo seja marcada por um
misto de lenda e realidade.
Dito isto, ressaltamos que em nosso trabalho não teremos a intenção de
adentrar na questão da origem ou das origens da Umbanda e nem de buscar
validar ou contestar a narrativa fundadora de Zélio de Moraes. Nosso objetivo
principal será dialogar com o mito de origem do Caboclo das Sete Encruzilhadas,
bem como dialogar com as narrativas dos representantes da Linha Branca de
Umbanda da primeira metade do século XX. Nesse diálogo nosso foco será
analisar as relações entre as narrativas do mito de origem e o contexto racial
brasileiro no qual este está inserido.
14 Ressaltamos outros autores que também enxergam na narrativa do Caboclo das Sete Encruzilhadas um
“mito de origem ou de fundação”, como por exemplo, Isaia (s.d. [a] e s.d. [b]), Ligiério e Dandara (1998) e
Júnior (2004).
26
Também queremos ressaltar que nosso trabalho estará delimitado às
narrativas dos representantes-intelectuais da Linha Branca de Umbanda na
primeira metade do século XX. Logo nossas conclusões e apontamentos não
serão sobre a Umbanda de modo geral e muito menos terão a pretensão de
abarcar a totalidade do diverso universo umbandista: aqui nos propomos a tratar
de uma parte constitutiva específica deste universo dentro de uma delimitação
temporal. E apesar desta parte - a Linha Branca de Umbanda - sem dúvidas ter
tido um papel importante durante o processo de institucionalização da religião nas
primeiras décadas do século XX, não queremos incorrer no erro de tratar a história
deste seguimento como se fosse a história do todo complexo umbandista.
Ao considerarmos a narrativa de Zélio como um mito de origem
buscaremos tanto contextualizá-la histórica e racialmente quanto apontar para o
papel que esta pode assumir no contexto da prática umbandista. Por fim,
ressaltamos que realizar esta reflexão não significa minimizar a importância da
narrativa de Zélio de Moraes e do Caboclo das Sete Encruzilhadas no meio
umbandista. Pelo contrário mantenho um profundo respeito por ela e
particularmente enquanto umbandista considero que esta carrega em si
fundamentos importantes da religião. Tão pouco significa desmerecer a história
dos representantes da Linha Branca de Umbanda, que sem dúvidas, tiveram um
papel importante no processo de institucionalização e legitimação da religião
perante a sociedade. Dito isto, passemos a análise do mito de origem
protagonizado por Zélio de Moraes e pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas.
2.1 Um brado pela igualdade entre todos os irmãos: encarnados e
desencarnados!
Inicio este tópico com as palavras de Zélio de Moares na entrevista
concedida à Lilia Ribeiro – na época jornalista e dirigente da TULEF – que foi
publicada na revista Gira de Umbanda em 1972 com o título de “A Umbanda existe
há 64 anos!”. Trataremos de redigir a narrativa de Zélio com a maior riqueza de
detalhes possível – utilizando um conjunto de citações que nos permita ouvi-la na
voz e perspectiva dos próprios integrantes da Linha Branca – pois será
exatamente em suas nuances e entrelinhas que encontraremos um rico material
para nossa análise.
27
Nesta entrevista Zélio relata que se encontrava paralítico e desenganado
pelos médicos, até que em 14/11/1908 surpreendeu sua família ao sentar-se na
cama e dizer que no dia seguinte estaria curado. De fato, no dia 15/11/1908
amanheceu saudável, de modo que seus pais diante dessa cura inexplicável –
mesmo sendo católicos – decidiram levá-lo à Federação Espírita de Niterói. Ao
chegar no local, Zélio foi convidado pelo presidente da Federação Espírita - sr.
José de Souza - a sentar-se na mesa junto aos demais médiuns. Em seguida teria
causado um pequeno tumulto: sem saber o porquê de suas próprias palavras,
guiado por uma “força estranha”, disse que naquela mesa faltava uma flor. Por
fim, ignorando a advertência dos dirigentes do trabalho de que não poderia
levantar, este foi até o jardim buscar uma flor que colocou no centro da mesa.
Após o episódio da flor, seguiu-se o seguinte diálogo:
Serenado o ambiente e iniciados os trabalhos, verifiquei que os espíritos
que se apresentavam, aos videntes, como índios e pretos, eram
convidados a se afastar. Foi então que impelido por uma força estranha,
levantei-me outra vez e perguntei por que não podiam se manifestar
esses espíritos que, embora de aspecto humilde, eram trabalhadores
(Revista Gira de Umbanda n° 1, apud TRINDADE, p.209).
Nesse momento ficava claro que as palavras involuntárias e a “força
estranha” que guiava o jovem de 17 anos eram a manifestação de um espírito que
havia incorporado em Zélio. Em seguida se estabeleceu o seguinte debate entre
o espírito que o jovem incorporava e os kardecistas, de modo que um dos médiuns
que era vidente questionou:
“O irmão é um padre jesuíta. Por que fala dessa maneira e qual o seu
nome?
- Respondi, sem querer:
- Amanhã estarei em casa deste aparelho, simbolizando a humildade e
a igualdade que devem existir entre todos os irmãos, encarnados e
desencarnados. E se querem um nome, que seja este: sou o Caboclo
das Sete Encruzilhadas”. (Revista Gira de Umbanda n° 1, apud
TRINDADE, p.209, grifo nosso).
Observando a fala do Caboclo das Sete Encruzilhadas destacamos um
primeiro ponto que aprofundaremos mais adiante em nossa reflexão: sua ruptura
com os kardecistas mediante a crítica destes não aceitarem a incorporação de
28
espíritos de “pretos”15 e “caboclos”. Os autores Ronaldo Linares16 e Diamantino
Trindade - grandes responsáveis pela ampla divulgação e hegemonização da
narrativa de Zélio através da publicação de diversas obras - ao reconstituírem o
diálogo fundante atribuem ainda outras falas ao Caboclo da Sete Encruzilhadas
que realçam mais a ruptura e a delimitação com o espiritismo kardecista. Em
História da Umbanda no Brasil, Diamantino Trindade, por exemplo, relata a
seguinte fala do Caboclo:
“Por que repelem a presença dos citados espíritos, se nem sequer se
dignaram a escutar suas mensagens. Seria por causa de suas origens e
de sua cor? (grifo nosso) [...] amanhã estarei na casa deste aparelho
para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão
dar a sua mensagem, e assim, cumprir a missão que o Plano Espiritual
lhes confiou”. (TRINDADE, 2014, p. 121).
Em Orixás na Umbanda e no Candomblé, Ronaldo Linares e Diamantino
Trindade trazem essa outra fala, na qual o Caboclo afirmaria que Deus em sua
infinita bondade teria estabelecido na morte um grande nivelador universal. Sendo
ricos ou pobres, poderosos ou humildes, de acordo com a entidade, na morte
todos se tornariam iguais. Na citação abaixo vemos ainda outros aspectos da fala
do caboclo neste dia emblemático:
“[...] vocês homens preconceituosos, não contentes em estabelecer
diferenças entre os vivos, procuram levar essas mesmas diferenças até
mesmo além da barreira da morte. Por que não podem nos visitar esses
humildes trabalhadores do espaço, se apesar de não haverem sido
pessoas importantes na Terra, também trazem importantes mensagens
do além? Por que o não aos Caboclos e Pretos-Velhos? Acaso não
foram eles também filhos do mesmo Deus?" (LINARES; TRINDADE,
2018, p. 31, grifo nosso).
Assim, após o dirigente kardecista ter respondido que não aceitaria a
manifestação de espíritos “claramente atrasados pelo grau de cultura que tiveram
quando encarnados” (TRINDADE, 2014, p. 121) é que o Caboclo das Sete
Encruzilhadas anuncia que em seu novo culto todos seriam ouvidos,
15 As entidades dos pretos-velhos eram chamadas simplesmente de pretos pelos integrantes da Linha Branca
neste período.
16 Ressaltamos o fato de que ao reconstituir a história de Zélio em diversas obras, Pai Ronaldo recorre à
autoridade de ter entrevistado e ouvido essa narrativa diretamente do próprio médium.
29
independentemente da cor, ou do que houvessem sido nas encarnações
anteriores:
Amanhã, na casa onde o meu aparelho mora, haverá uma mesa posta
a toda e qualquer entidade que queira se manifestar,
independentemente daquilo que foi em vida; todos serão ouvidos, e nós
aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos
aqueles que souberem menos, e a nenhum viraremos as costas nem
diremos não, pois esta é a vontade do pai (LINARES; TRINDADE, 2018,
pág. 32).
Contada a narrativa, começarei a análise destacando alguns pontos que
considero chaves. Primeiramente podemos identificar que a justificativa fundante
para a criação da Umbanda se revela, a partir das palavras do Caboclo, num apelo
pela “igualdade” e em sua indignação contra os “homens preconceituosos” (que
além de criar diferenças entre os vivos querem criá-las também entre os mortos).
Vemos essa indignação se apresentar diante da recusa dos kardecistas em
receber e mesmo ouvir espíritos de “pretos” e “caboclos” em sua sessão, ou seja,
a indignação por estes espíritos serem a priori barrados e taxados de “inferiores”
pela sua cor e origem independentemente da mensagem que pudessem trazer.
O apelo pela igualdade se evidencia no anúncio do novo culto, no qual
todos seriam ouvidos independentemente do que foram em vida e no qual a
“humildade e a igualdade” deveriam existir “entre todos os irmãos, encarnados e
desencarnados” (LINARES; TRINDADE, 2014, p. 32). Em poucas palavras
podemos afirmar que os elementos chave desta narrativa são: o combate do
Caboclo à recusa “preconceituosa” dos kardecistas em relação aos espíritos de
“pretos” e “caboclos”, bem como uma forte defesa pela igualdade.
Aqui gostaria de chamar a atenção para dois aspectos: um primeiro sobre
a força que os fundamentos contidos nesta narrativa podem assumir no meio
umbandista. O segundo que a ideia de igualdade defendida pelo Caboclo não
pode observada em sua integralidade quando analisamos os discursos dos
próprios representantes da Linha Branca de Umbanda.
Quando era ainda criança passei a frequentar um terreiro de umbanda em
São Bernardo do Campo – SP, Casa do Pai Thomás de Arruda pelo intermédio
de minha família materna. Guardo boas lembranças das nossas visitas ao terreiro
que eram feitas normalmente na companhia de primos da mesma idade que eu:
30
conversava com as entidades; ganhava bolos e doces; na hora da defumação
achava graça ao imitar os adultos e jogar a fumaça sobre os ombros, no peito e
nas costas; também gostava dos pontos cantados.
Paralelamente às minhas experiencias no terreiro, por volta dos dez anos
de idade também comecei a cursar a primeira comunhão na Igreja Católica. Nesse
período lembro-me de uma situação que me gerou bastante desconforto: no
segundo ano de curso, antes de realizar a primeira comunhão, nós tínhamos de
nos confessar com o padre. Eu definitivamente não sabia o que falaria no
momento da confissão e à medida que a data marcada ia se aproximando comecei
a sentir uma certa ansiedade. Pouco antes desse evento, decidi conversar com
minha professora do catecismo e expor o motivo de minha angústia. Durante a
conversa, contei para ela que também frequentava um terreiro de Umbanda com
familiares e perguntei se este fato seria um motivo para eu me confessar. Diante
de sua resposta afirmativa, tive um sentimento ambíguo: por um lado não via
motivo nenhum para ter de confessar - como um pecado – o fato de ir de vez
quando ao terreiro; por outro, senti um certo alívio por ter enfim encontrado algo
que poderia falar. Na respectiva data, com meus onze anos, lá estava eu diante
do padre.
Considero que neste dia tive um dos primeiros insights de reflexão crítica
da minha vida. Ao falar para o padre que eu frequentava a Umbanda, sua resposta
foi de que isto não era bom: “pra que ir em pequenas vendinhas quando estamos
diante de um grande mercado onde encontramos tudo que precisamos?”. Lembro-
me que discordei profundamente de sua fala - de modo que mesmo sem verbalizar
e nem debater - senti o preconceito em suas palavras e tive a certeza de que ele
estava completamente errado. Do pouco que eu conhecia a Umbanda sabia que
naquele terreiro acontecia algo bom, no qual familiares meus estavam sendo
ajudados e no qual pessoas de minha confiança frequentavam.
Em contrapartida, lembro-me de que neste terreiro sempre ouvia a frase de
que na Umbanda o objetivo era “fazer o bem sem olhar a quem”. As pessoas eram
ali recebidas e atendidas sem jamais serem questionadas ou censuradas por
terem alguma outra religião ou mesmo não terem religião. Todos eram atendidos
e tratados igualmente: fossem pobres, ricos, brancos ou negros. Considero que
neste terreiro estavam muito vivas as premissas do Caboclo, que eu passei a
compreender desde antes de conhecê-las teoricamente: “todos serão ouvidos,
31
nós aprenderemos com aqueles que souberem mais e ensinaremos aqueles que
souberem menos, e a ninguém viraremos as costas nem diremos não, pois esta
é a vontade do pai”. Posso dizer que neste terreiro, no qual parte de minha família
materna passou a trabalhar, sentia que havia verdadeiramente uma entrega ao
outro, um desejo sincero de ajudar o próximo. Enfim, havia muito amor envolvido
em se fazer umbanda.
Para exemplificar, cito aqui um relato registrado no livro A Umbanda de
Todos Nós: Na casa do Pai Thomás de Arruda escrito por minha tia materna, no
qual foram reunidas histórias de experiências individuais e coletivas vividas no
terreiro. No capítulo, O Mendigo, temos o seguinte relato. Em certo dia durante o
trabalho no terreiro, surgiu um mendigo carregando duas sacolas na porta do
centro. Minha tia foi ao seu encontro e ouviu o seguinte pedido: perguntou se
poderia ser atendido e afirmou que gostaria de ser o último a passar, alegando
que não estava bem-vestido. Ela relata que sentiu uma grande comoção pela
situação e que insistiu que por ela e pela casa não haveria problema algum dele
entrar da maneira como estava vestido, mas que se sentisse constrangido ela
também poderia pegar um avental para ele. Ao se afastar por alguns instantes
para pegar o avental e quando retornou, o rapaz havia sumido. Perguntou a
respeito dele para algumas pessoas que disseram não o ter visto, no entanto, uma
moça disse que ele havia ido embora.
Tempos depois, numa outra noite de trabalho, relatou que uma entidade
lhe perguntou se ela se lembrava do mendigo que havia aparecido na porta da
casa tempos atrás. Perguntou também se ela se lembrava que ficou à procura
dele após retornar com o avental nas mãos.
Ele pegou a minha mão direita, apertou-a forte de encontro ao seu
coração [...] nossos olhos conversaram, muito mais do que palavras que
se ouviam. Ele falou do amor. Falou também do preconceito, que
infelizmente muitas pessoas carregam dentro de si. Preconceito que
julga as pessoas pela aparência e que discrimina [...] finalizou com um
misto de solicitação e declaração de que todos que ali entravam eram
recebidos com o mesmo amor que ele fora recebido. (SOUSA, 2011,
p.25)
Dessa maneira a entidade havia lhe revelado que ela própria era o mendigo
daquela noite, pois além de incorporar também possuía a capacidade de se
materializar em situações especificas. Desse modo uma grande lição foi ensinada
32
e reforçada naquela situação: a necessidade de tratar as pessoas com igualdade,
com humildade, enfim, com amor. Considero que certos fundamentos presentes
na narrativa do Caboclo das Sete Encruzilhadas - como por exemplo, a igualdade,
a humildade e a negação dos preconceitos – cumprem um papel muito importante
no contexto religioso e ganham um significado norteador para a prática
umbandista. Nesse sentido, a função prática que cumpre esta narrativa no meio
umbandista transcende a necessidade da comprovação histórica e os debates
sobre a validade ou não de Zélio de Moraes como o pioneiro da umbanda.
Por outro lado, nossa hipótese é de que ao analisarmos os discursos dos
representantes da Linha Branca de Umbanda na primeira metade do século XX,
particularmente no que diz respeito aos espíritos dos pretos-velhos e caboclos,
vemos que este desejo de igualdade não se realiza plenamente. Ao mesmo tempo
em que existe uma fala contra o preconceito, também existe uma grande
quantidade de preconceitos que são naturalizados e reproduzidos. Inclusive em
muitos casos percebemos não haver uma ruptura de fato com as concepções de
“inferioridade” e “superioridade” presentes no kardecismo, mas sim uma
construção ideológica que de maneira mais complexa acaba mantendo as
mesmas hierarquias.
2.1.2 A história do Caboclo das Sete Encruzilhadas
Em seu livro O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda o escritor
e jornalista Leal de Souza - um dos principais dirigentes e representantes da Linha
Branca de Umbanda perante a sociedade da época – relata que na fatídica sessão
de 15/11/1908 o Caboclo das Sete encruzilhadas se apresentou aos médiuns
videntes primeiramente como um “homem de meia-idade, de pele brônzea,
vestindo uma túnica branca atravessada por uma faixa onde brilhava, em letras
de luz, a palavra Caritas” (SOUZA, 2019, p. 119). Após essa primeira aparição a
entidade passou a se mostrar durante muito tempo aos olhos dos médiuns
videntes como um caboclo com “tanga de plumas e mais atributos dos pajés
silvícolas”. O autor relata que tempos depois a entidade voltou a se mostrar em
algumas ocasiões “na alvura de sua túnica primitiva”, para afinal deixar de se
apresentar com forma corpórea – apenas em raras situações – passando a ser
33
sentido como uma vibração azul clara pelos médiuns que percebiam sua presença
mesmo sem vê-lo. (SOUZA, p. 119).
Na gravação da mensagem proferida pelo próprio Caboclo em novembro
de 1971 na ocasião do 63° aniversário da Tenda Nossa Senhora da Piedade –
gravada por Lilia Ribeiro da TULEF e transcrita em História da Umbanda por
Cumino (2010) – vemos inicialmente Zélio afirmar que o Caboclo das Sete
Encruzilhadas foi o frei jesuíta Gabriel Malagrida em uma de suas encarnações
passadas:
“Trazia uma ordem, fora jesuíta até aquele momento, chamava-se
Gabriel Malagrida; daquele instante ele ia criar a Lei de Umbanda, onde
preto e o caboclo pudessem se manifestar. Porque ele não estava de
acordo com a Federação Kardecista, que não recebia pretos nem
caboclos. Pois se o Brasil- o que existia no Brasil eram caboclos, eram
nativos – se no Brasil, quem veio explorar o Brasil, trouxe pra trabalhar,
para engrandecer este país, eram os pretos da costa da África, como é
que uma Federação Espírita não recebia caboclo nem preto?”
(Mensagem de 63° aniversário da Tenda Nossa Senhora da Piedade
apud CUMINO, 2010, p. 322, grifo nosso).
No decorrer da mensagem a própria entidade, incorporada em Zélio, fala
em primeira pessoa sobre algumas características de sua encarnação passada:
“Não vim por acaso, não. Eu trouxe uma ordem, uma missão, porque venho há
muito tempo dizendo aquilo que ia acontecer, desde o terremoto de Lisboa de
1755 até este momento, e tudo aquilo que eu dizia que ia acontecer acontecia”
(idem).
Na reconstituição do diálogo do dia 15/11/1908 realizada por Ronaldo
Linares e Diamantino Fernandes, vemos o Caboclo afirmar que havia sido um
caboclo brasileiro em sua última passagem na terra - “Deus concedeu-me o
privilégio de nascer como um caboclo brasileiro” (LINARES; TRINDADE, 2018, p.
31). No livro História da Umbanda no Brasil, o Caboclo também afirma ter sido um
“padre jesuíta” e com uma ressalva: diferentemente de outras narrativas que
observamos, neste relato a entidade teria revelado a Zélio sua encarnação
enquanto Gabriel Malagrida somente em 16 de novembro de 1919, ou seja, onze
anos após sua primeira incorporação (TRINDADE, 2014, p. 122).
No que diz respeito às encarnações passadas do Caboclo encontramos
muito mais informações sobre sua vida passada europeia do que sobre a sua
34
encarnação enquanto indígena brasileiro. Diamantino Trindade (2014) elabora
uma síntese da história de Gabriel Malagrida que descreveremos a seguir. Aqui
cabe ressaltar que optaremos reproduzir a história de Malagrida pela olhar de um
historiador umbandista justamente por termos a intenção de dialogar com as
narrativa com o mito de origem da Umbanda.
No entanto indicamos o trabalho de Tavares (1995) 17 para uma
compreensão mais profunda sobre a participação da Companhia de Jesus no
processo de colonização da América Portuguesa, bem como sobre os motivos
que gradativamente resultaram na ruptura entre a coroa lusitana com esta
instituição, culminando no triunfo do absolutismo ilustrado do período pombalino.
Nesta obra a autora realiza uma análise da biografia de Gabriel Malagrida que nos
permite ter uma visão mais complexa e contextualizada desta figura histórica.
De acordo com Trindade (2014), Malagrida nasceu em 1689 na Itália e
desde cedo demonstrava tendências místicas, de modo que entrou para
Companhia de Jesus e em 1721 foi para Lisboa. Após algum tempo em Portugal
conseguiu se transferir para o Maranhão no Brasil, local onde realizou muitas
pregações julgando-se “predestinado a cumprir uma missão superior no planeta”,
ou seja, “uma missão de conquistar almas para o céu”. Inclusive o padre
apresentaria “evidentes sintomas mediúnicos ouvindo vozes misteriosas” e
chegando mesmo “a pensar que operava milagres” (TRINDADE, 2014, p.104).
Em 1727 teria começado a “árdua tarefa de catequizar índios”, conseguindo
nessa ocasião “amansar a feroz tribo dos Barbassos”, de modo a ter realizado no
Maranhão uma “missão que teve grande desenvolvimento, sustentando uma
tarefa apostólica” (idem). Neste ponto faço uma pequena pausa, para uma
observação. Parece-nos que a história de Gabriel Malagrida e do Caboclo
possuem uma certa idealização de suas figuras, o que pode significar que alguns
elementos importantes de serem problematizados sejam passados de maneira
desapercebida.
Por exemplo, a seguir em nossa análise, aprofundaremos um pouco mais
sobre o período colonial brasileiro, bem como sobre o papel dos jesuítas neste
contexto específico. No entanto nos chama a atenção a naturalidade e um certo
grau de idealização com os quais Trindade (2014) parece utilizar certos termos ao
17 Entre a Cruz e a Espada: Jesuítas e a América Portuguesa - Célia Cristina da Silva Tavares (1995)
35
tratar da história de Malagrida: “tarefa apostólica” de “catequizar índios” e de
“amansar uma tribo feroz”. O que poderia significar este termo no contexto do
empreendimento colonial brasileiro? Outro exemplo é sobre as revelações que o
Caboclo das Sete Encruzilhadas teria feito no dia de sua primeira manifestação.
Seguindo seu dom de prever o futuro, o qual já era apontado em Gabriel
Malagrida, temos o seguinte prognóstico:
Este mundo de iniquidades, mais uma vez será varrido pela dor, pela
ambição do homem e pelo desrespeito às leis divinas. As mulheres
perderão a honra e a vergonha, a vil moeda comprará caráteres e o próprio
homem se tornará efeminado. (TRINDADE, 2014, p. 122).
Considerando que este prognóstico foi feito no ano de 1908, a sua
continuidade trata sobre a previsão da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. O
que nos chama a atenção é a naturalização e a falta de problematização com a
qual certos trechos são trazidos à tona em pleno séc. XXI: ao dizer que o mundo
será varrido pela dor, pela ambição e pelo desrespeito às leis divinas, por
exemplo, podemos observar que a ideia de “desrespeito às leis divinas” é
associada ao homem se tornar efeminado – o que nós poderíamos ler como uma
menção ao preconceito, que hoje poderíamos caracterizar como LGBTfobia.
Também vemos tais “desrespeitos” serem associados ao fato de as
mulheres perderem a honra e a vergonha. Numa sociedade patriarcal marcada
pelo machismo em que as mulheres nem direito ao voto18 tinham nesse período,
o que seria perder a honra num contexto em que até mesmo o divórcio era
legalmente dificultado19? Enfim estes são apenas alguns questionamentos que
observo em determinados autores do meio umbandistas: recuperam textos do
início do séc. XX e muitas vezes os naturalizam e idealizam – sem levar em
consideração o contexto da época e sobretudo sem problematizar o que
representam tais ideias em nosso contexto atual.
Enfim, retomemos a história da encarnação jesuíta do Caboclo das Sete
Encruzilhadas. A partir de 1730, Malagrida continuou sua pregação pela Bahia e
o Rio de Janeiro “alcançando grande ascendência sobre os índios”, dizendo que
18 O direito ao voto das mulheres vai ser conquistado em 1932 apenas para as mulheres letradas.
19 A Lei do Divórcio, aprovada em 1977, concedeu a possibilidade de um novo casamento, mas somente
por uma vez. O 'desquite' passou a ser chamado de 'separação' e permanecia, até hoje, como um estágio
intermediário até a obtenção do divórcio. Foi com a Constituição de 1988 que passou a ser permitido
divorciar e recasar quantas vezes fosse desejado.
http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/155571402/constitui%C3%A7%C3%A3o-federal-constitui%C3%A7%C3%A3o-da-republica-federativa-do-brasil-1988
36
“conversava com Deus e tinha visões da Virgem Maria”, descrevendo os milagres
que operava (TRINDADE, 2014, p. 105). Em 1749 teria voltado para Lisboa onde
foi “recebido com fama de santo por muitos fiéis” (idem).
Neste período acompanhou os momentos finais da vida do rei Dom João
V, a pedido dele próprio, que se encontrava muito doente. Após uma nova e breve
passagem pelo Brasil (entre 1751-54) foi chamado de volta a Portugal pela Rainha
Dona Mariana da Áustria e se deparou como o governo de Sebastião José - o
Marquês de Pombal - com quem teve grandes divergências, as quais o levariam
para fogueira da inquisição em 1761. É importante ressaltar que num contexto
mais amplo o Marquês de Pombal combateu o poder dos jesuítas, chegando a
expulsá-los do Brasil em 1759.
Uma dessas divergências teria se dado em torno do terremoto que abalou
Lisboa em 1 de novembro de 1755. Corria o boato entre a população de que a
catástrofe havia sido um castigo dos céus, de modo que Pombal mandou publicar
um folheto escrito por um padre no qual rebatia essa ideia e descrevia as causas
naturais da catástrofe. No entanto, Malagrida publicou um livreto no qual afirmava
que o terremoto havia sido de fato um “castigo divino” - se contrapondo a Pombal.
A partir da fúria do Marquês nesta situação - que “mandou queimar o opúsculo”
de Malagrida – e de outros atritos ocorridos posteriormente entre os dois, o padre
foi acusado e preso em 1758 como o responsável por um atentado ocorrido contra
a vida do próprio Marquês de Pombal (idem). Para além do conflito específico
entre Pombal e Malagrida apontado por Trindade, sabemos que num contexto
histórico mais amplo o período de 1758 ficou conhecido como Terror Pombalino:
o atentado à vida do rei José serviu de pretexto para este tirar poderes da nobreza
e expulsar os jesuítas que tinham relações com os conspiradores, de modo que
os envolvidos na conspiração (bem como suas famílias e seus servos) foram
torturados e mortos pelo governo de Pombal.
Após Malagrida ser preso foram encontrados entre seus livros e escritos
“passagens que pareciam pouco ortodoxas” que foram entregues à Inquisição:
logo Malagrida seria acusado de “feitiçaria e de manter um pacto com o diabo que
lhe havia revelado o futuro” (idem). O autor afirma que a comprovação de tais
fatos podem ser encontrados na Biblioteca de Amsterdã, na qual existe uma cópia
traduzida da edição de Lisboa desse famoso processo. Abaixo trazemos um
trecho do próprio processo da inquisição contra Malagrida:
37
“O réu confessou que o demônio, sob a forma da Virgem Maria, lhe tinha
ordenado a escrever a vida do anticristo, que haviam de existir, a bem
dizer, três anticristos sucessivos, e que o último nasceria em Milão, da
sacrílega união entre um frade e uma freira” (idem).
Por ora o que destacamos desta narrativa trazida por Trindade (2014) é de
que Gabriel Malagrida foi um importante padre jesuíta, que possuía acesso direto
ao rei de Portugal e uma posição de destaque na época em que viveu. Este será
um fato importante para nossa análise, quando formos investigar os discursos de
defesa dos pretos e caboclos realizados pelos representantes da Linha Branca
em debate com os kardecistas.
Agora vamos nos debruçar sobre a história do Caboclo no plano espiritual.
Em seu artigo “O Caboclo das Sete Encruzilhadas” publicado no jornal Diário de
Notícias em 1932, Leal de Souza traz um significativo relato desse espírito no
plano espiritual, através do qual explica a origem de seu nome e conta seu
emblemático encontro com Jesus Cristo:
“Estava esse espírito no espaço, no ponto de intersecção de sete
caminhos, chorando sem saber o rumo que tomasse, quando lhe
apareceu, na sua inefável doçura, Jesus, e mostrando-lhe em uma
região da terra, as tragédias da dor e os dramas da paixão humana,
indicou-lhe o caminho a seguir, como missionário do consolo e da
redenção. E em lembrança desse incomparável minuto de sua
eternidade, e para se colocar ao nível dos trabalhadores mais humildes,
o mensageiro de Cristo tirou seu nome do número dos caminhos que o
desorientavam, e ficou sendo o Caboclo das Sete Encruzilhadas”.
(SOUZA, 2019, p. 117).
Leal afirma que foi por conta desse “incomparável minuto de sua
eternidade” – o encontro com Jesus – que esse espírito adotou seu nome em
referência ao número de caminhos que o desorientava tornando-se o Caboclo das
Sete Encruzilhadas, um “mensageiro de Cristo” (SOUZA, 2019, p. 118). Sendo
seu livro O espiritismo, a magia e as sete linhas de Umbanda composto por um
conjunto de artigos de jornal publicados entre 1932e 1933 no Rio de Janeiro,
recorreremos a outros trechos de seus escritos para demonstrar uma série de
relatos que comprovam a erudição e intelectualidade do Caboclo.
Num deles, por exemplo, vemos o autor relatar que o caboclo possuía “um
profundíssimo conhecimento da Bíblia e das obras dos doutores da Igreja” o que
38
de fato autorizaria a suposição de que ele teria sido sacerdote em outra
encarnação (idem). No entanto também afirma que “a medicina não lhe é mais
estranha do que a teologia”, citando o exemplo de que em determinada ocasião o
Caboclo explicou minuciosamente “o processo de renovação das células
cerebrais” e “descreveu os instrumentos que servem para observá-las” para
justificar uma falta por esquecimento de um de seus auxiliares humanos (idem).
Abaixo vemos o autor relatar que em determinada ocasião o Caboclo demonstrou
profundos conhecimentos de economia mundial enquanto realizava um
atendimento:
“De outra feita, respondendo a consulta de um espírita que é capitalista
em São Paulo e representa interesses europeus, produziu um estudo
admirável da situação financeira criada para a França, pela quebra do
padrão ouro na Inglaterra” (SOUZA, 2019, p. 118).
Outro exemplo de erudição que podemos destacar está na própria
afirmação de Zélio de Moraes – em entrevista à J. Alves de Oliveira em 1974 – de
que na primeira sessão realizada pelo Caboclo no dia 16/11/1908 este teria
respondido às perguntas dos sacerdotes que estavam ali presentes em “latim e
em alemão” (TRINDADE, 2014, p. 125).
Aqui remarcamos que tais dados destacados por nós de sua encarnação
enquanto um destacado jesuíta, de seu encontro com Jesus e de seus exemplos
de elevada erudição nos servirão de base para a hipótese sobre as narrativas da
Linha Branca que elaboraremos adiante.
Por fim, vale destacar que Zélio – nesta mesma entrevista – afirma e
descreve as normas do novo culto trazidas pelo Caboclo em 16/11/1908: o
uniforme dos participantes deveria ser a roupa branca; as sessões ocorreriam das
20h às 22hs; não seriam aceitas nenhuma forma de pagamentos ou retribuições
financeiras pelos atendimentos e trabalhos realizados; os cânticos não seriam
acompanhados de atabaques nem de palmas ritmadas; não seriam permitidos
sacrifícios de animais; os médiuns trabalhariam descalços (idem). Além disso, a
sede do culto foi batizada de Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade (TENSP)
pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas.
Seguindo o relato de Zélio, após estabelecer as normas do novo culto, o
Caboclo passou à parte prática da sessão na qual curou uma pessoa paralítica e
39
uma pessoa cega através do trabalho espiritual, recebendo o auxílio de outra
entidade que também incorporou em Zélio naquela ocasião: o preto-velho Pai
Antônio. Sobre esta segunda entidade aprofundaremos a reflexão no próximo
tópico.
De acordo com Zélio, o Caboclo também teria dito que: “A prática da
caridade, no sentido do amor fraterno, seria a característica principal desse culto,
que teria por base o Evangelho de Jesus e como Mestre Supremo o Cristo”
(Entrevista de Zélio à J. Alves de Oliveira 1974 apud TRINDADE, 2014, p.124).
Aqui, podemos destacar outro ponto chave da narrativa do Caboclo: a prática da
caridade como principal característica do novo culto, que teria como base o
Evangelho de Jesus e o Cristo como mestre supremo, elemento que também é
derivado dos ensinos de Kardec.
3. IDEÁRIOS DE BRANQUEAMENTO E OS CONTEXTOS SOCIAIS
BRASILEIROS
3.1 Diferentes utilizações da categoria negro no contexto colonial
brasileiro
Como ponto de partida analisaremos dois aspectos apontados por
Hofbauer (2007, p. 68) em seus estudos sobre a história do branqueamento no
Brasil e no Mundo: em primeiro lugar que as categorias negro e branco eram
utilizadas inicialmente como um discurso ideológico independente da ideia de
raça; em segundo, que a ideia de transformar negro em branco esteve presente
desde o início da sociedade colonial brasileira, podendo, mesmo antes, já ser
observada na Europa medieval.
Em primeiro lugar, é importante destacar que as ideias de “negro” e
“branco” são anteriores ao discurso racial. As duas cores não diziam
respeito “simplesmente” a um mundo natural passível de ser observado
de forma objetiva, mas eram associadas a ideais morais religiosos.
Desde os primórdios das línguas indo-européias, o branco representava
o bem, o bonito, a inocência, o puro, o divino, enquanto o negro era
associado ao moralmente condenável, ao mal, às trevas, ao diabólico, à
culpa. Na Idade Média, o grande paradigma de inclusão e exclusão era
a filiação religiosa, e não ainda a cor de pele. (HOFBAUER, 2007, p. 70).
40
Destacamos o fato de o autor apontar que antes de serem associadas e
naturalizadas ao discurso racial, as categorias branco e negro possuíam um
conteúdo moral-religioso no contexto da Idade Média, ou, em outras palavras, que
nesse período o grande paradigma de inclusão e exclusão era a filiação religiosa
e não ainda a cor de pele. Nesse sentido, é interessante notar dois aspectos: por
um lado registros da Idade Média em que o termo negro foi utilizado pelos cristãos
para desqualificar e designar os mais diferentes “grupos pagãos”, como por
exemplo, húngaros e suecos; por outro que era considerada uma atitude valorosa
para o bom cristão - bem como uma orientação central do catolicismo romano -
transformar o mal em bem, o pagão em crente20 (idem). Esse último aspecto nos
fornece elementos para pensar os primórdios da ideia de branqueamento no
contexto medieval, uma vez que a transformação do mal/pagão em bem/crente
poderia ser entendida, em outras palavras, como a transformação do negro em
branco.
Um ponto de inflexão para a compreensão da história das questões raciais,
bem como das transformações de percepção sobre a categoria negro ao longo da
história, foi a importante operação ideológica realizada por letrados da Igreja que
através de séculos buscaram ligar a categoria negro à condição de escravo. Essa
operação passou pela reinterpretação de um trecho do Velho Testamento
(Genesis cap. IX) que resumidamente conta o seguinte: Noé bebeu vinho,
embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda. Seu filho Cam (Ham), pai de Canaã,
se deparou com a sua nudez e ao invés de ajudá-lo foi contar o que viu aos seus
outros dois irmãos (Sem e Jafé). Quando Noé acordou do efeito do vinho e
descobriu o que seu filho caçula havia feito, disse:
“Maldito seja Canaã! Escravo dos escravos será para seus irmãos [...]
Bendito seja o senhor, o Deus de Sem! E seja Canaã seu escravo [...]
Amplie Deus o território de Jafé; habite ele nas tendas de Sem, e seja
Canaã seu escravo” (Velho Testamento, Genesis cap. IX versículos 25,
26 e 2721).
Alguns autores22 afirmam que as primeiras reinterpretações deste trecho
do Velho Testamento podem ser encontradas no mundo judaico entre os séculos
20 Em outras palavras, podemos pensar na transformação de negros em brancos.
21 Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2022.
22 Segundo Jordan, foi em escritos exegéticos rabínicos (provavelmente do século V ou VI) que, pela primeira
vez, estabeleceu-se uma relação clara e direta entre maldição de Ham/Canaã e a cor de pele escura (JORDAN,
1968:18 apud HOFBAUER, 2003, p.71).
41
V e VI, bem como em escritos árabes-muçulmanos que visavam justificar a
escravização de povos ao sul do Saara no continente africano.
Caminhando em direção à análise da realidade brasileira, vale ressaltar que
no contexto das grandes navegações e do comércio transatlântico de escravos,
este discurso ideológico passa a ser amplamente adotado pelos cristãos ibéricos
ganhando uma nova relevância política. É importante destacar que, a princípio,
esta construção ideológica que tendia a igualar o ser escravo à cor negra23 não
era utilizada exclusivamente para caracterizar as populações do continente
africano. Tomemos como exemplo as posições dos jesuítas em relação aos povos
indígenas nos primórdios do empreendimento colonial brasileiro.
No início da colonização, a coroa portuguesa na figura de D. João III
escolheu os jesuítas para ocuparem as funções religiosas mais importantes na
nova colônia. No espírito da contrarreforma a Companhia de Jesus foi fundada
em 1534 por Ignacio de Loyola e tinha como um de seus principais objetivos reagir
à expansão da reforma luterana. Os primeiros jesuítas chegaram à Terra de Santa
Cruz sob a liderança de Manoel da Nobrega, junto com o primeiro governador-
geral Tomé de Sousa em 1549. Observamos que enquanto o tráfico de escravos
provindos da África não estava consolidado no Brasil, o uso de indígenas como
mão de obra escrava ainda não era combatido pela Igreja e muitas vezes a origem
das supostas imoralidades indígenas era atribuída ao pecado de Ham. De acordo
com Hofbauer:
As já tradicionais associações entre Ham, escravidão e cor negra,
sedimentadas nos imaginários do mundo judaico, muçulmano e cristão
ao longo dos séculos, teriam também seu reflexo no discurso oficial dos
jesuítas no Brasil. (Hofbauer, 2006, p. 156)
Para além de termos como gentios e índios, num primeiro momento muitos
jesuítas também utilizavam o termo negros para se referirem aos povos indígenas.
Lembremos que nesta fase inicial da expansão europeia, a categoria negro trazia
em si fundamentalmente uma conotação moral-religiosa e estava ligada à
condição de escravo. Por exemplo, na obra Cartas dos Primeiros Jesuítas no
Brasil escrita pelo historiador e jesuíta Serafim Leite (1954), encontramos em
diversas cartas escritas pelo jesuíta Manoel da Nobrega a utilização do termo
23 Vale ressaltar que nesta operação ideológica de relacionar a escravidão à cor negra, também tem grande
importância a relação que se estabeleceu entre escravidão e as ideias de imoralidade e culpa.
42
negro para se referir aos indígenas (datadas de 10/04/1549, 15/04/1549,
06/01/1550, 15/09/1551). Posteriormente podemos encontrar documentos que
faziam a distinção entre os escravos indígenas como “negros da terra” e os
africanos como “negros da Guiné”24 (Forbes 1993 apud Hofbauer, 2006). Sob o
governo de Mem de Sá, tanto Nobrega quanto o padre José de Anchieta
chegaram a utilizar o conceito de guerras justas contra grupos indígenas, tendo
como objetivo a escravização dos vencidos. Vale ressaltar que num primeiro
momento a ideia de guerra justa também foi reinterpretada e adaptada à realidade
do tráfico de escravos da África, sendo uma importante base ideológica para a
justificação do chamado “resgate” de africanos (Hofbauer, 2003, p.154).
No entanto, com a consolidação do tráfico de escravos africanos e a política
da coroa real de combater a utilização de indígenas como mão de obra escrava
na colônia, observamos mudanças na percepção dos jesuítas em relação a
atribuir a categoria negro aos povos originários. Podemos apontar alguns fatores
para explicar o porquê a coroa portuguesa optou pela mão de obra escrava
africana ao invés da indígena. Uma primeira desvantagem para escravizar os
nativos25 seria o fato de que diante de uma fuga bem sucedida, estes teriam uma
possibilidade real de voltar para sua comunidade de origem, bem como
possuiriam um maior conhecimento sobre o território. Mas para além desta
questão, também haviam fortes motivos econômicos para esta escolha: se a
escravidão no Brasil fosse baseada na mão de obra indígena a coroa portuguesa
teria de pagar pelas matérias-primas com ouro e prata, resultando por um lado
numa fuga de capitais da metrópole e por outro num demasiado fortalecimento
dos senhores locais que se tornariam mais autônomos em relação às
possibilidades de trocas e à rede de dependência criada pelo tráfico triangular. Ou
seja, era do interesse da coroa portuguesa impor o escravo africano como moeda
desse comércio internacional, bem como combater a utilização de escravos
indígenas na colônia.
24 Analisando as pesquisas de Forbes (1993), Hofbauer ressalta que “durante as primeiras décadas após sua
“descoberta”, o Brasil chegava a exportar escravos indígenas, em pequena escala, para o mercado de escravos
internacional. Existiu uma autorização da Coroa (até 1549) que permitia, e ao mesmo tempo, delimitava o
número de escravos exportados por ano: cerca de 216. (HOFBAUER, 2006, p. 157)
25 O historiador e cronista português Pêro de Magalhães Gândavo (1540-1580) defendeu em 1573 que os
escravos africanos seriam mais seguros pois estes não saberiam para onde fugir e nem teriam para onde.
(Hofbauer, 2006, p.143).
43
É fato que existia um forte entrelaçamento entre os interesses da coroa e
da Igreja que se expressava na instituição do padroado real. O rei de Portugal -
enquanto protetor das missões e instituições católicas na África, na Ásia e no
Brasil – tinha o poder sobre a transferência e a promoção dos membros do clero,
de modo que nenhum dos ministros religiosos podiam exercer suas funções sem
a autorização do rei. Também é fato que a Igreja se beneficiou materialmente do
empreendimento do comércio de escravos africanos, de modo que também os
possuía em suas fazendas, oficinas, sacristias e cozinhas26.
Constatamos que no período entre 1570 e 1688 a coroa portuguesa emitiu
11 decretos que visavam à extinção da escravidão indígena (Hofbauer, 2003, p.
144), de forma que a posição de “protetores dos índios” assumida pelos jesuítas
ao longo do tempo precisa ser compreendida a partir deste contexto político e
econômico do empreendimento colonial. Para aprofundarmos sobre o uso
ideológico da categoria negro neste período, vejamos alguns aspectos de um
alvará real datado de 1755 que proclama a liberdade dos indígenas do Grão-Pará
e do Maranhão.
A cláusula 10 recrimina a “prática escandalosa e injustificável” do uso da
denominação “negro” para “índios”. Presume que tal fato se devia a
tentativas de induzir a ideia de que o destino dos indígenas fosse servir
como escravos. (Hofbauer, 2003, p. 157).
Neste documento ainda vemos a proibição de qualquer pessoa a se referir
aos nativos como negros, bem como dos próprios indígenas se autodenominarem
desta forma. Sabemos também que, em várias partes da Ásia, as populações
locais continuavam a ser chamadas de negros até o século XVIII. Inclusive
encontramos um decreto semelhante editado em Goa (1774) - colônia portuguesa
na Índia – o qual também proibia o uso do termo negro como forma de
denominação dos nativos (Forbes, 1993 apud Hofbauer 2003, p.158).
Com esses exemplos buscamos demonstrar tanto a existência de uma
operação ideológica que através de séculos buscou ligar a categoria negro à
condição de escravo, quanto que nem sempre esta categoria esteve associada
apenas às populações africanas. Por um lado, compreendemos que a sua
26 De acordo com Almeida (1978, p. 255) “A Companhia de Jesus dispôs dos seus próprios barcos para tal
comércio com o Brasil” e segundo Chiavenato (1987, p.104) a Igreja “ganhava 5% de comissões sobre a
venda de negros escravos” (idem)
44
atribuição de forma mais restrita aos povos africanos pode ser considerada como
um desdobramento da operação ideológica citada acima, que visou atender
interesses econômicos e políticos específicos do empreendimento colonial. Por
outro, também percebemos que durante boa parte do período colonial brasileiro a
cor negra não era vista como um dado puramente biológico, mas sim que a sua
percepção também envolvia um conjunto de outros fatores, como por exemplo, a
condição de escravo e o grau de absorção do ideário religioso dominante. Por fim,
podemos dizer que nesta operação ideológica vemos dois movimentos
concomitantes: por um lado a fusão entre cor negra, escravidão e imoralidade; por
outro a fusão entre cor branca, liberdade e ideal religioso.
3.1.2 O ideário de branqueamento no contexto colonial e imperial
brasileiro: as origens do preto de alma branca.
No contexto colonial, encontramos nos discursos de inúmeros jesuítas a
concepção cristã universalista na qual todos os seres humanos seriam filhos de
um único casal – Adão e Eva - que por sua vez seriam brancos. Assim, conclui-
se que a origem da humanidade seria branca. O padre Antônio Vieira (1608-1697),
por exemplo, afirma que durante dois mil anos todos os homens tinham a mesma
cor (branca) e que a aparição da cor negra se devia a uma lenta adaptação dos
descendentes de Ham que foram morar na África (Hofbauer, 2003, p.166). Aqui
observamos que diversos jesuítas atribuem a origem das diferenças humanas -
como a cor da pele preta - às falhas morais e a partir do séc. XVII cada vez mais
à fatores geográficos e climáticos.
A análise das ideias defendidas na obra Sermões do Padre Antônio Vieira
da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Majestade nos parece uma ótima forma
de compreendermos a visão de branqueamento no contexto colonial. Vieira partia
de uma concepção aristotélica sobre a escravidão que foi adaptada ao ideário
cristão por muitos jesuítas da época: a ideia de complementaridade de interesses.
Essa é uma das chaves de seu discurso teológico para fundamentar a escravidão
como um projeto de resgate de almas.
A complementariedade de interesses se daria da seguinte forma: o escravo
forneceria ao senhor a sua força física, seus serviços e sua obediência na forma
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da aceitação de sua condição; já o senhor atuaria como um protetor daqueles
sobre os quais exercia o seu poder senhorial, tendo como tarefa alimentá-los e
principalmente educá-los como bons cristãos. Vale notar que nessa relação
também cabia ao senhor o direito de punir os escravos quando necessário, mas
dentro dos “princípios cristãos” da justeza e da moderação. Dessa maneira, o
padre concebia a escravidão como uma grande oportunidade – uma chance, uma
prova ou um remédio – para os escravos se livrarem da condição negra e
encontrarem o caminho que conduz ao reino de Deus. Através dessa perspectiva
buscava convencer os escravos em suas pregações que estes estariam numa
melhor condição no Brasil – mesmo vivendo sob a escravidão – do que se
estivessem na África numa vida sem deus que era relacionada às ideias de inferno
e escuridão.
Em seu discurso teológico, Vieira compara a situação dos escravos no
Brasil tanto ao cativeiro que os filhos de Israel viveram no Egito quanto ao martírio
de Jesus Cristo. Aqui encontramos um outro ponto chave de sua argumentação:
a ideia da alforria eterna ou da busca pela libertação do espírito em contraposição
à libertação do corpo. Na visão do religioso mais importante que o resgate do
corpo do cativeiro – para o qual bastaria o ouro e a prata – seria a verdadeira
salvação (da alma) que se consolidaria no ato do Cristo retirar das mãos do
demônio a escritura do cativeiro (Vieira, 1940, p. 65 apud Hofbauer, 2003, p. 168).
Vejamos o seguinte trecho de uma de suas pregações aos escravos:
De maneira, irmãos pretos, que o cativeiro que padeceis, por mais duro
e áspero que seja ou vos pareça, não é cativeiro total ou de tudo que
sois, senão meio cativeiro. Sois cativos naquela metade exterior e mais
vil de vós mesmos, que é o corpo; porém na outra metade interior e
nobilíssima, que é a alma, principalmente no que a ela pertence, não
sois cativos, mas livres. (Vieira, 1940, p. 55 apud Hofbauer, 2003, p.
167).
Para salvarem as suas almas os escravos deveriam compreender que a
dureza de seus destinos se assemelharia às dores da Paixão de Cristo, ou seja,
no engenho os escravos seriam imitadores do Cristo crucificado. Assim, o jesuíta
prescreve a receita para a salvação: os negros deveriam imitar a paciência de
Cristo nas provas enfrentadas, sendo bons escravos, servindo com boa vontade
e sendo obedientes não apenas aos bons senhores, mas também aos senhores
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maus e injustos27 (idem). Dessa maneira, a exemplo do Cristo, poderiam vencer
as provas impostas pela escravidão e salvar as suas almas - ou por que não dizer
– torná-las brancas. Para Vieira, o primeiro passo no caminho do branqueamento
se daria no batismo:
E entre cristão e cristão não há diferença de nobreza nem diferença de
côr. Não há diferença de nobreza, porque todos são brancos. Essa é a
virtude da água do baptismo. Um etíope se se lava nas águas do Zaire,
fica limpo, mas não fica branco: porém na água do baptismo sim, uma
coisa e outra [...] (Vieira, 1940, p. 349 apud Hofbauer, 2003, p. 166).
Observamos que a ideia de transformar negro em branco no período
colonial brasileiro em grande medida era influenciada pelas concepções
jesuíticas, de modo que havia uma certa mistura entre julgamentos morais-
religiosos e interpretações geográfico-climáticas. Ao meu ver, podemos concluir
que neste contexto a noção de branqueamento possuía uma forte conotação
moral-religioso-cultural na qual se sustentava a possibilidade dos negros se
tornarem brancos de alma através da conversão ao cristianismo e da aceitação
subserviente à condição escrava. Aliás, tal aceitação era considerada um fator
importante para alimentar a promessa da possibilidade da alforria. Logo, a
integração do negro tanto na comunidade cristã quanto na sociedade colonial
brasileira dependeria da assimilação dos elementos acima mencionados. Me
parece razoável considerar nesses discursos teológicos do período colonial uma
possível origem - dentro do contexto brasileiro – para a ideia do negro de alma
branca.
Este termo nos parece ser uma faceta importante do ideário do
branqueamento que se enraizou na sociedade brasileira ao longo do tempo,
ganhando outros contornos e conteúdos em diferentes contextos sociais, como
veremos a seguir. Minha hipótese é de que entre o negro e o branco, caminhando
no sentido do branqueamento, estaria o negro de alma branca que nesse período
se caracterizava como o negro que branqueava a sua alma através da assimilação
dos princípios morais-religiosos do cristianismo. A promessa ideológica seria a
seguinte: se esse negro de alma branca conseguisse conquistar a liberdade
através da alforria – deixando assim a condição de escravo – caminharia mais um
27 Aqui Viera faz referência e traduz a Primeira Epistola de Pedro, que ordena aos servos serem obedientes
não apenas aos bons e afáveis, mas também aos impertinentes (Hofbauer, 2003, p. 168).
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passo na direção do branqueamento, de modo que, dependendo das
circunstâncias e de sua colocação dentro do jogo de poder das relações
patrimoniais, este poderia até mesmo chegar a ser considerado como branco.
Aqui façamos uma breve pausa para refinarmos um pouco mais nossa
concepção de branqueamento. Percebemos se faz necessário realizarmos
algumas distinções importantes relacionadas aos diferentes significados que já
foram atribuídos a esse conceito. Petrônio Domingues propõe a seguinte divisão
analítica: por um lado analisar o branqueamento enquanto uma menção ao
clareamento concreto e empírico da cor de pele da população; por outro lado
analisar o branqueamento enquanto um discurso ideológico que o autor subdivide
em três aspectos principais - branqueamento de ordem moral e/ou social,
branqueamento estético, branqueamento biológico.
Dessa maneira nos parece razoável pensar que a integração do negro no
período colonial passou pela necessidade da assimilação de modelos culturais e
religiosos bran