unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP RAFAEL GALLINA BIN DEFINIÇÕES FUGIDIAS: o processo metalinguístico como base do universo criativo de Milan Kundera ARARAQUARA – SP 2021 RAFAEL GALLINA BIN DEFINIÇÕES FUGIDIAS: o processo metalinguístico como base do universo criativo de Milan Kundera Dissertação de mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Pós-Graduação de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da narrativa Orientadora: Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite Bolsa: CAPES – PROEX ARARAQUARA – SP 2021 B612d Bin, Rafael Gallina Definições fugidias : o processo metalinguístico como base do universo criativo de Milan Kundera / Rafael Gallina Bin. -Araraquara, 2021 224 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Guacira Marcondes Machado Leite 1. Teoria do romance. 2. Teoria da narrativa. 3. Metalinguagem. 4. Milan Kundera. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. RAFAEL GALLINA BIN DEFINIÇÕES FUGIDIAS: o processo metalinguístico como base do universo criativo de Milan Kundera Dissertação de mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Pós-Graduação de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da narrativa Orientadora: Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite Bolsa: CAPES – PROEX Data da defesa: 04/05/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________________________________ Presidente e orientadora: Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite (UNESP/Araraquara) __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Maria Veralice Barroso (SEE-DF) __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Márcio Scheel (UNESP/Rio Preto) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara muitas vezes a linguagem verbal não comunica tanto quanto o exemplo vivo, então, dedico este trabalho àquele que está sempre aberto às interações sensíveis, àquele que, por vezes, deixa a peteca cair, mas nunca perde a pose. Este trabalho é dedicado a Sucrilhos Kepirupi, felino que me assenhora. AGRADECIMENTOS A minha mãe, Sandra, pela profunda doçura e pela carinhosa companhia. Mãe, você é um reduto de descanso em meio ao extenuante desafio do real; e ao meu pai, Paulo César, que, nesse processo, trouxe a palavra ausente e fez os movimentos para que esse trabalho fosse mais tranquilo, e mais, quando não sabia o que fazer, fazia batatas fritas que a tudo melhora. À professora Guacira Marcondes Machado, orientadora preciosa, que a cada conversa me estimula a aumentar meus horizontes e adensar o meu olhar, por ser o modelo de pesquisador que um dia eu gostaria de vir a ser. Acima de tudo, pela liberdade e confiança em mim depositadas durante o processo de pesquisa. Muitíssimo obrigado! Ao professor Marcio Scheel, cujos apontamentos, desde o seminário da pós até a qualificação foram de valor extremo para que este estudo atingisse a presente forma. Acima de tudo, por me mostrar que os horizontes da arte são sempre mais amplos do que supõe a vã filosofia. À professora Marisa Gianecchini por seu gênio inventivo e poético que me ascende ao andar da beleza sem nunca perder o rigor da teoria. Marisa me apresentou aos charmes das Letras quando eu era meninote e cá estou hoje devido à sua semente. Obrigado pelo seu talento, pela sua poesia e pela sua luz. Às amigas Dani Ugenfehr, Isa Cucolicchio, Jéssica Sartori e Clara Molinari. Vocês são luz no meio da escuridão. Sem o apoio de vocês eu estaria engasgado com o texto até agora. À Julia Caldana, nome esquisito para a minha querida Batom! Quero agradecer pela eterna disponibilidade em me ouvir, por dividir comigo o melhor e o pior dessa jornada, mas acima de tudo pela presença tão querida no meu coração e na minha vida. Meu muitíssimo obrigado! À Barbara Carvalho, meu duplo das Letras! Eternamente agradecido pela chance que você deu a este sujeito de gola polo que tanto quis sua amizade e tanto quer estar sempre junto de você. Agradeço à leitura amorosa deste trabalho, ao encorajamento de que eu estava fazendo bem e meu mais que obrigado por trazer sempre clareza de visão a mim! À Emanuelle Altieri, esse troll de um metro e meio, que criou o método Manu AltieriTM de análise literária. Sou muito grato pela camaradagem e incentivo que você tem comigo, sempre dando o impulso e colocando prazos maravilhosamente tóxicos para que tudo saísse dentro dos conformes! Meu muito obrigado! À garota caramelo, Ingrid Mattiolli, que sempre esteve junto derramando doçura e me motivando a nunca cair numa análise fria e racional. Obrigado pela sensibilidade e acolhimento! E, por último e mais importante, à pessoa-chave do meu código existencial, minha irmã Juliana, Juju, Maurie, fundadora do único fã-clube que leva meu nome. Eu tenho mais que gratidão, tenho um amor enorme e infindável pela sorte que a loteria natural me deu em tê-la como irmã. Obrigado por sempre estar comigo, me ajudar a maneirar o drama e me dar o afago de quem me conhece desde o berço. Sou muito abençoado pela alegria que você e Paesano trazem à minha vida. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO No século XX, a linguagem encontra um gênero para enunciar a sua própria complexidade. O discurso metalinguístico faz sua ascensão com a virada linguística promovida pelo Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, e chega ao campo literário como uma das principais características da literatura contemporânea. O presente trabalho toma por objeto a reflexão metalinguística aplicada à literatura de Milan Kundera (1929-), escritor nascido na Tchecoslováquia que, dada a ocupação russa de seu país, exilou-se em Paris em 1975 e regressou à pátria em 2019, ano em que reconquistou sua nacionalidade tcheca. Romancista e ensaísta, Kundera enquadra-se na categoria dos críticos-criadores, de sorte que a seleção do corpus acolhe os apontamentos feitos nos quatro volumes de ensaio – A arte do romance; Os testamentos traídos; A cortina ; e Um encontro, a fim de localizar em seu discurso sua maneira própria de pensar o romance, assim como visa a estabelecer o lugar que a metalinguagem ocupa em sua concepção da arte narrativa. Acompanhando o fio de suas ideias, o presente estudo fundamenta-as na teoria literária, a fim de construir, a partir dos apontamentos do escritor, um operador de leitura: o processo de metalinguagem como busca por definições fugidias que constituem o alicerce de toda construção romanesca. Em seguida, toma-se a obra A ignorância, escrita por Kundera e publicada em 2003 para demonstrar como sua concepção romanesca se converte na sua prática ficcional e como a metalinguagem se desdobra em operações que estruturam a obra analisada. Nesse sentido, a fundamentação teórica sobre metalinguagem conta com expoentes do estruturalismo e semiótica, tais como Roman Jakobson (2007); Roland Barhtes (1987; 2001; 2011) e Algirdas Julien Greimas (2008). Paga-se um tributo à teoria dos códigos de Umberto Eco (2012; 1991). No que tange à fortuna crítica de Milan Kundera, os referenciais teóricos foram, sobretudo, François Ricard (2003; 2016), Martine Boyer-Weinmann (2009) e Kvetoslav Chvatik (1995). RÉSUMÉ Au XXe siècle, le langage trouve un genre pour énoncer sa propre complexité. Le discours métalinguistique avance grâce à la reprise linguistique promue par le Cours de Linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, et arrive au domaine littéraire comme l’une des principales caractéristiques de la littérature contemporaine. Cette étude se concentre sur la réflexion métalinguistique appliquée à la littérature de Milan Kundera (1929-), écrivain né en Tchécoslovaquie qui, dû à l'occupation russe de son pays, s’est exilé à Paris en 1975 et est rentré dans son pays en 2019. Romancier et essayiste, Kundera participe de la catégorie des critiques créateurs, de sorte que la sélection du corpus accueille ses quatre volumes d'essais — L'art du roman; Les testaments trahis; Le rideau ; et Une rencontre, afin de situer dans son discours sa propre façon de penser le roman, ainsi que d’ établir la place qu’occupe le métalangage dans sa conception de l’art romanesque. Suivant le fil de ses idées, cette étude les fonde sur la théorie littéraire, afin de construire, à partir des réflexion de l’écrivain, un opérateur de lecture : le procédé du métalangage comme la recherche de définitions fuyantes qui constituent la fondation de toute sa construction romanesque. Ensuite, l'œuvre L’ignorance, de Kundera, publiée en 2003, est prise pour démontrer comment son conception se convertit en pratique fictionnelle et comment le métalangage se déploie dans les opérations qui structurent l'œuvre analysée. En ce sens, le fondement théorique du métalangage a des exposants du structuralisme et de la sémiotique, tels que Roman Jakobson (2007) ; Roland Barhtes (1987; 2001; 2011) et Algirdas Julien Greimas (2008). On paye un tribut à la théorie du code de Umberto Eco (2012 ; 1991). En ce qui concerne la fortune critique de Milan Kundera, les références théoriques sont surtout François Ricard (2003; 2016) et Martine Boyer-Weinmann (2009), aussi comme Kvetoslav Chvatik (1995). SUMÁRIO Considerações introdutórias ..................................................................................................... 10 Capítulo 1 – A teorização kunderiana do romance .................................................................. 22 1.1 O arquirromance: estratégia de sobrevivência de uma arte em crise ............................ 23 1.2 Metalinguagem como alicerce da definição de romance............................................... 25 1.2.1 A concepção da personagem pela via metalinguística ........................................... 27 1.2.2 Metalinguagem: diálogo entre estética e existência ............................................... 31 1.2.3 Tema: apontamentos sobre o alvo fugidio do romance .......................................... 35 1.3 A paixão pela forma ...................................................................................................... 39 1.3.1 O despojamento radical: a técnica da elipse ........................................................... 41 1.3.2 O despojamento radical: a estratégia de Chopin .................................................... 45 1.3.3 A composição do romance kunderiano e o paradigma musical ............................. 49 1.4 A descoberta do mundo da prosa ................................................................................... 51 1.4.1 A prosa em sua feição existencial.......................................................................... 51 1.4.2 O mundo da prosa como superação da atitude lírica .............................................. 54 1.4.3 Quando a fronteira do verossímil não é mais vigiada ............................................ 58 1.4.4 A sabedoria da incerteza ......................................................................................... 61 1.5 O romance que pensa ..................................................................................................... 64 1.5.1 O despotismo da story ............................................................................................ 67 1.5.2 O romance que pensa a existência descobre o essencial ........................................ 69 1.6 O humor e o Kitsch ........................................................................................................ 71 1.6.1 O beijo da fada do humor ....................................................................................... 72 1.6.2 O kitsch e seus efeitos deletérios ............................................................................ 75 Primeiro arremate ................................................................................................................. 77 Capítulo 2 – Metalinguagem e procedimentos metalinguísticos como expedientes para a perseguição de definições fugidias ........................................................................................... 81 2.1 Metalinguagem: um percurso pela teoria do código ...................................................... 82 2.2 Mapeamentos metalinguísticos: ensaios e romances de Kundera .................................. 88 a) Digressão ...................................................................................................................... 89 B) Descrição fenomenológica .......................................................................................... 92 c) Intertextualidade ........................................................................................................... 98 d) Metáfora ..................................................................................................................... 101 e) Repetição .................................................................................................................... 106 f) Distorção ..................................................................................................................... 110 g) Ironia e correlações irônicas ....................................................................................... 115 Segundo arremate ........................................................................................................... 121 Capítulo 3 – Processo persecutório: as definições fugidias de A ignorância, de Milan Kundera ................................................................................................................................................ 122 3.1 Sondagens preliminares ................................................................................................ 122 Super sumária síntese seca da recepção de A Ignorância .............................................. 122 Apreciação ampla de aspectos formais de A Ignorância ................................................ 125 Apreciação ampla de aspectos temáticos e figurativos de A ignorância ........................ 129 3.2 Reconstrução de A ignorância à luz de seu fio metalinguístico ................................... 132 3.2.1 Expositio – apresentação das personagens e fixação temática .............................. 133 3.2.2 Seção central: os divertimentos e metalinguagem ................................................. 169 3.3.3 Solução: fios diegéticos e metalinguísticos se entrelaçam .................................... 199 Considerações finais ........................................................................................................... 211 BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................. 221 10 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS O domínio da linguagem permite ao ser humano o exercício da alteridade. A troca intersubjetiva de significantes faz com que chegue ao outro o universo íntimo que habita, conforma e representa a verdade de uma pessoa. Essa manifestação não necessariamente implica uma verbalização, apesar de a palavra ser um instrumento privilegiado para isso, mas tantas vezes um olhar, um gesto ou um simples toque são capazes de conter uma carga comunicativa que não cabe em palavra alguma. Há campos de estudo para as diversas manifestações da linguagem. Este trabalho valorizará, em primeiro plano, a linguagem verbal. Não só porque transita pelo campo dos estudos literários, mas também porque toma por objeto uma função da linguagem a qual é trabalhada em chave menor, contendo em si um potencial consideravelmente maior do que lhe é correntemente atribuído: a metalinguagem. Ao tomar consciência de que a palavra dita ou escrita é capaz de levar para o outro uma infinidade de informações, também se percebeu que, muitas vezes, para que o interlocutor compreendesse a mensagem, era preciso explicitar o significado de determinada palavra, tornando o item lexical uma moeda de troca com valor claro para os envolvidos. Ao uso da linguagem para explicar a si mesma, deu-se o nome de metalinguagem. Esse conceito foi e continua sendo satisfatório para dar conta das organizações lexicográficas, do discurso gramatical, da filosofia da linguagem etc. Contudo, a partir do século XX, com a virada da linguística estrutural promovida por Ferdinand de Saussure e o posterior desenvolvimento da antropologia estrutural, a metalinguagem passou a ser mobilizada como instrumento para o estudo de culturas — trabalhos como As estruturas elementares do parentesco, de Claude Levi-Strauss, e Mitologias, de Roland Barthes, ilustram suficientemente como, desde as indígenas até as europeias, as culturas constroem sua significação segundo processos passíveis de descrição metalinguística. Estudos dessa natureza revelam como há um profundo mecanismo de codificação acontecendo a todo instante para que cada cultura produza sentidos, organize valores e construa seu simulacro de mundo. Barthes, certa vez, afirmou que o texto faz sentido, e o sentido faz a vida. Uma compreensão mais abrangente da metalinguagem permite-nos compreender de modo mais completo — ainda que nunca pleno — um texto e, assim, munir- nos de aparatos para buscar dar mais sentido às experiências vividas. 11 O presente estudo é proposto em virtude de um espanto causado pelo fenômeno da linguagem: como é possível que uma articulação entre significantes e significados seja capaz de tocar tão fundo e agir tão rápido sobre o ser humano? Tal inquietação nos conduz aos corredores da metalinguagem, a fim de propor uma visão sobre esse fenômeno que revele não só que usamos as palavras na comunicação diária, como somos nós próprios palavras encarnadas. Pleiteia-se, nos fundamentos profundos deste trabalho, que a metalinguagem é a função da linguagem que mais se aproxima do nosso processo de humanização, uma vez que, assim como a metalinguagem coloca em cena uma forma de expressão que toma consciência de sua complexidade e a enuncia ao mundo, o ser humano, no curso de seu processo vivencial, descobre sua subjetividade, conhece a si mesmo e aos outros, para ser capaz de se colocar mais consciente no mundo-da-vida. No entanto, um trabalho de mestrado que se propusesse a demonstrar essa ideia seria prontamente rechaçado por não ter delineado um objeto específico e feito um recorte metodológico do campo de estudo mais preciso. Dessa forma, essa visão de metalinguagem, menos do que o objeto de estudo do presente trabalho é o combustível que alimenta o desejo de fazer esta pesquisa. Freios e contrapesos, argumentaria Montesquieu. Então, com as devidas modulações, este trabalho toma por objeto a obra ensaística e ficcional de Milan Kundera, autor tcheco nascido em Brno no ano de 1929 — e ainda vivo, com 92 anos a serem celebrados no primeiro de abril deste ano —, a fim de investigar o lugar que a metalinguagem ocupa em sua concepção de romance, e como ela é revertida em procedimento criativo a ser trabalhado na produção romanesca do autor. Antes de apresentarmos a obra kuderiana, ressalta-se que a metalinguagem aplicada ao campo literário passa a exigir uma fundamentação teórica de bases mais abrangentes; nesse sentido, tomam-se da semiótica os conceitos operacionais para se pensar o código e a codificação envolvidos na escritura estético-literária. É oportuno, portanto, neste momento, apresentar a fundamentação teórica que alicerçará as reflexões desenvolvidas sobre metalinguagem, código e codificação, tendo sempre em vista os desafios propostos pelo fato de o pensamento metalinguístico ser direcionado a um texto literário, cuja composição convida a um gesto interpretativo que jamais esgotará o potencial comunicativo da obra. 12 Nesse sentido, evocamos dois grandes expoentes desse campo de estudos como norte para esta pesquisa: um francês e um italiano. Começando pela França, Roland Barthes, ao definir a metalinguagem, explica que não há como examinar um objeto cultural — texto ensaístico e narrativo, no nosso caso — sem valer-se de processos metalinguísticos. Isso porque todo artefato cultural é fruto de um sistema semiótico; assim como todo discurso que explica um sistema semiótico é metalinguístico. Em outras palavras, a metalinguagem marca presença em toda parte em nosso estudo. Buscamos da Itália o Tratado Geral de Semiótica, do eruditíssimo Umberto Eco, pois nele encontramos uma teoria do código capaz de explicar o que é isso que a função metalinguística toma por objeto. Dessa forma, com uma compreensão mais profunda do que é o código, podemos alargar as possibilidades de concepção da metalinguagem, tornando-a mais manipulável para guiar nossa análise da obra de Kundera. Além disso, na segunda parte de seu Tratado, Eco propõe o texto estético sob a luz da teoria da produção sígnica. Essa visão possibilita-nos pensar o texto literário como resultado de um hipersistema de codificação, cuja análise envolve reconhecer uma base denotativa. A essa base denotativa, por sua vez, aplicam-se mecanismos de hipocodificação, a fim de que a captação da obra como seja permeada pela abertura hermenêutica de sua mensagem. Eco considera que a abertura da obra só é alcançada devido a expedientes de hipercodificação, os quais investem o texto dos predicados jakobsonianos de ambiguidade e autorreferencialidade. Fixadas nossas balizas teóricas para pensar a metalinguagem, sublinha-se que este trabalho pertence à área de teoria e crítica da narrativa, de modo que as questões linguísticas, por mais fascinantes que sejam, servirão de instrumento para analisar o pensamento crítico e a produção ficcional de Milan Kundera. Assim sendo, julga-se oportuno e necessário legar algum espaço para apresentar a obra desse autor. Contudo, antes, devemos pagar tributo à sua fortuna crítica, cuja produção conseguimos consultar, e que também serviu de norte para este estudo. A esse respeito, destacamos o trabalho de Maria Veralice Barroso (2015), grande estudiosa da obra de Kundera no Brasil, cujas contribuições abriram a trilha que nos conduziu às vozes de relevo internacional, como Ricard (2005; 2016), Boyer-Weinmann (2009), Chvatik (1995) e outros estudiosos cujos ecos reverberam no nosso texto. Adota-se de François Ricard (2003) um modelo para apresentar a obra de Milan Kundera. O intelectual defende que o trabalho do escritor tcheco se oferece ao leitor como a 13 paisagem dos Alpes se revela a Agnès, protagonista de A Imortalidade. Em outros termos, é necessário assinalar, de início, que o conjunto da obra compõe uma unidade. Tanto é assim que a editora Gallimard publicou sob o título de Œuvre (no singular) o conjunto dos escritos de Kundera, diferentemente do que fez com outros autores, em que utilizou a forma plural, Œuvres complètes. Isso sinaliza uma preocupação unificadora em torno de um mesmo projeto estético. Contudo, não é porque há uma única paisagem, que ela não possa ser decomposta e analisada, então, em um segundo momento, Ricard identifica, no maciço kunderiano, dois montes, que representam dois ciclos de produção do autor. Antes da explanação, é preciso definir, ainda, a extensão desse maciço. Em seus ensaios, Kundera aborda o problema da consolidação da obra de um autor e identifica duas posturas distintas. Uma, mais em voga atualmente, consiste em considerar a obra o conjunto de escritos que foram produzidos pelo autor, mesmo aqueles que, em vida, foram rechaçados por ele em virtude da imaturidade ou outras motivações. A outra, por sua vez, investe o autor de autoridade para decidir quais escritos incluirá e quais deverão ser excluídos daquilo que ele entende como sua própria obra. Ricard respeita a vontade de Kundera, conferindo-lhe soberania para determinar a extensão de seu próprio maciço criativo. Já estudos como os de Rizek (2001) e Barroso (2013), ao contrário, apresentam a obra de Kundera considerando toda a sua extensão — lírica, romanesca, ensaística e dramatúrgica — sob o argumento de que há traços do romancista que já estavam no poeta. Trata-se de uma questão espinhosa; no entanto, o argumento de Rizek e Barroso não deixa de ser válido, uma vez que é ratificado pelo próprio Kundera quando afirma, em A cortina, que um romancista constrói seus romances sobre as ruínas de seu mundo lírico. Sendo assim, a compreensão do Kundera-lírico é pertinente para ter uma compreensão mais profunda de sua proposta narrativa. Apesar de reconhecer o mérito dessa abordagem, o presente estudo não a adota, optando por seguir o caminho proposto por Ricard (2003) e Chvatik (1995). Cabe, nesse mister, uma breve justificativa: embora haja uma rica produção crítica sobre a lírica de Kundera, ela não é de fácil acesso no Brasil — Maria Veralice Barroso, comenta esse aspecto em sua tese de doutorado —, de modo que não tivemos acesso a essa produção do autor. Além disso, o presente estudo propõe um modelo de leitura construído com base nas reflexões ensaísticas do tcheco; sendo assim, parece mais coerente respeitar a sua vontade. 14 Dados os motivos, passa-se à apreciação da paisagem ficcional de Kundera. Ricard (2003) discerne dois grandes ciclos na produção ficcional de Kundera, conforme a língua em que o romance foi escrito: assim, teríamos um ciclo tcheco e um ciclo francês. O ciclo tcheco é composto por A brincadeira; Risíveis amores; A vida está em outro lugar; A valsa dos adeuses; O livro do riso e do esquecimento; A insustentável leveza do ser e A imortalidade. Já o ciclo francês é composto por A lentidão; A identidade; A ignorância; e A festa da insignificância, bem como seus quatro livros de ensaio A arte do romance; Os testamentos traídos; A cortina; e Um encontro. O primeiro aspecto que deve ser frisado sobre essa distinção é que ela não se pauta na ideia hegeliana de progressão, caracterizada por mudanças de direção e rupturas, pois, defende Ricard, entre as obras de Kundera, existe uma variação e acentuação sobre aspectos diferentes de um mesmo projeto estético. Dessa forma, um bom paradigma para pensar a produção kunderiana é aquele das fases de Picasso (fase azul, fase rosa, fase africana, fase do cubismo analítico...), visto que não há mudanças de trajetória, renúncias ou destruições; o que há é um depuramento no bojo de uma mesma proposta, uma sofisticação da voz autoral. O segundo aspecto que deve ser comentado diz respeito ao ciclo tcheco, pois não se deve pressupor que a continuidade linguística entre esses romances os investe de maior coerência; ao contrário, pois Ricard identifica, no seio do ciclo tcheco, dois grupos — razão pela qual sustenta que sim, há uma continuidade, mas também há diferenças significativas entre eles. O aspecto de continuidade, com efeito, é de natureza composicional e manifesta-se pela obsessão com o número sete: Kundera escreveu sete romances em tcheco, cada qual dividido em sete partes; salvo por A valsa dos adeuses que replica a organização do conto “O simpósio”, de Risíveis amores. No entanto, assim como o conto, o romance é organizado em cinco partes (o conto, em cinco atos), além de ocupar o lugar do meio — há três contos antes de “O simpósio” e três depois; há três romances antes de A valsa dos adeuses e três depois — entre as obras do ciclo tcheco. Os aspectos de descontinuidade entre os romances do ciclo tcheco, por sua vez, são de caráter mais temático e figurativo. De um lado temos os quatro primeiros romances que: (i) foram escritos por Kundera em Praga; (ii) trabalham a trama sobre o mesmo quadro geopolítico; (iii) trazem o cômico de natureza burlesca; (iv) dão o protagonismo para personagens masculinas joviais, cuja ação é para inscrever seus valores em um mundo 15 caótico, caracterizando o que Lukacs denominou (v) romances de luta, nos quais (vi) as convenções romanescas são mormente observadas, pois o princípio de figurativização narrativa está afinado aos preceitos de composição épica. Do outro lado, temos os três últimos romances escritos em tcheco por Kundera, que, a essa altura, (i) já havia se exilado na França. Eles se caracterizam por: (ii) ampliar a discussão para os valores do mundo contemporâneo; (iii) diminuir a presença do cômico burlesco em favor de uma sofisticação do cômico proveniente da ironia; (iv) as narrativas trazem protagonistas femininas que compreendem o caos do mundo e, em vez de lutarem para inscrever nele seus valores, preferem se afastar, caracterizando o que Ricard denominou (v) romances de exílio, cuja matriz composicional não nega o princípio épico, mas dá primazia ao princípio musical, ou seja, prima mais pelo desenvolvimento temático do que acional da narrativa. O ciclo francês de Kundera é resultado de uma escrita madura. Ele considerava encerrado seu percurso como romancista depois de A imortalidade, pois julgava ter explorado todas as possiblidades da forma narrativa que havia adotado, pautada pelo padrão paradigmático da sonata. No entanto, a partir de A lentidão, Kundera passa a explorar a construção de romances tendo por modelo de composição o paradigma musical da fuga. Isso implica o encurtamento do romance, concentrando a atenção narrativa sobre poucas personagens, as quais desenvolvem, sob a forma de variações, um único tema — o que, por si só, sinaliza um adensamento fruto da concentração de aspectos diluídos em suas obras anteriores pertencentes ao ciclo tcheco. Nesse ciclo Kundera busca ainda mais do que antes adentrar as questões existenciais, atingindo o que Ricard, utilizando a terminologia de Herman Broch, intitula de estilo de maturidade. Como o presente estudo proporá um modelo de leitura baseado na teorização romanesca estabelecida por Milan Kundera em livros de ensaio, julga-se plausível, neste momento, apresentar as principais linhas de força diagnosticadas após a leitura de cada volume. Auxilia-nos, nessa tarefa, a seção “Biografia da obra”, escrita por François Ricard como acompanhamento da Œuvre, de Milan Kundera, lançada pela editora Gallimard na coleção Bibliothèque de la Pléiade em 2015. A arte do romance, publicada por Kundera em 1986, marca não só o primeiro volume de ensaios do autor, mas também a primeira obra que publica escrita em francês, o que na época gerou um grande frenesi, fazendo com que o autor — já residente na França havia onze anos — fosse saudado pelo Le Nouvel Observateur como “novo escritor francês”. 16 O livro, organizado sob o signo obsessivo do número sete, é organizado em sete partes, as quais podem ser divididas em dois eixos: o primeiro (ensaios de número ímpar) trata da história e teoria do romance, subdividindo-se em uma abordagem mais ampla (partes 1 e 7) e em ensaios críticos (partes 3 e 5), que tomam por objeto autores que Kundera considera exemplares do modernismo romanesco, a saber: Franz Kafka e Herman Broch. O segundo eixo, composto pelas partes de número par, traz o que François Ricard denominou “textos de ateliê”, nos quais Kundera comenta seu modo de pensar e fazer a prática ficcional — as partes 2 e 4 são fruto de uma entrevista que deu a Christian Salmon, e a parte 6 consiste em um dicionário pessoal de 73 palavras, cujas definições foram escritas pelo próprio Kundera. É pertinente pontuar que A arte do romance serve como uma espécie de matriz a partir da qual os demais livros de ensaio de Kundera vão se reportar, seja para retomar e aprofundar as reflexões que lá estão, seja para tomá-las como base e levá-las além, demonstrando seus desdobramentos e suas implicações no modo como o romancista-ensaísta pensa a sua arte e o contexto estético de que participa. Isso faz com que a obra ensaística de Kundera tenha também certa unidade, que lhe é conferida pela constância de algumas preocupações e pela coerência de um olhar que não deixa de se perguntar sempre sobre a mesma coisa: o romance. Com isso em mente, é possível dizer que o segundo livro de ensaios de Kundera, Os testamentos traídos, publicado em 1993, continua alguns temas caros ao autor, como a relação entre a composição da arte do romance e a da música, além de um aprofundamento na kafkologia — que ocupa dois grandes ensaios. Porém, aqui encontramos uma distinção fundamental: o discurso ensaístico é mais homogêneo. Nele, Kundera não traz discursos que proferiu antes, nem entrevistas que concedeu, tampouco notas esparsas sobre uma obra, menos ainda compõe um dicionário pessoal. Ao contrário, escreve ensaios adotando um tom duro contra os misomusas: pessoas que visam a diminuir o valor da arte subjugando-a a um plano secundário em relação a outro (biografia, história, sociedade, ideologia etc.). Nesse sentido, o escritor tcheco é bastante duro contra a kafkologia, argumentando que Kafka foi transformado em mito, matando toda a inovação formal que havia trazido para a história do romance moderno. Deixando o tom mais combativo de lado, no terceiro volume de ensaios, intitulado A cortina, Kundera se mostra mais contido. Trata-se do primeiro livro de ensaios desde A 17 lentidão, ou seja, desde quando assumiu o francês como língua de sua escrita literária. Nesse volume, os ensaios voltam a se organizar em torno do número sete: sete ensaios de extensão aproximada, apenas as partes 4 e 5 são mais enxutas, as demais orbitam em torno de trinta páginas, nas quais ele se aprofunda em temas familiares para quem já havia lido A arte do romance e Os testamentos traídos. O tom de A cortina é profundamente meditativo e sereno. Nela encontramos reflexões acerca do valor estético de uma obra, que, segundo Kundera deve emergir da consciência da continuidade daquela arte, que faz com que a história do romance sirva de baliza e de critério para a criação estética (parte 1). Em seguida, de acordo com o autor, é preciso entender a obra no contexto em que ela é criada, porém, ao mesmo tempo, ele triparte esse contexto de sua recepção: o pequeno contexto, mais pitoresco, em que a obra não terá seu brilho todo, pois está cerceada pelas fronteiras nacionais; o contexto mediano, no qual a obra é posta em diálogo com a região do mundo em que foi produzida; e o grande contexto, quando acontece a abertura da obra para o vasto horizonte da Weltliteratur (parte 2). A cortina também explicita o modo kunderiano de associar conceitos estéticos a dimensões existenciais, mostrando que as categorias estéticas não devem ser lacradas para falar de obras, mas reengajadas como perspectivas de possibilidade de ser no mundo-da-vida (parte 5). No momento em que A cortina se aproxima de seu fim, percebe-se que Kundera manifesta um olhar contemplativo e preocupado com a fragilidade da memória, que ameaça não só eventos históricos, mas a própria arte em si, pressentindo a decadência do romance europeu. Todavia, ele deixa uma fresta de luz passar pela cortina ao trazer a possibilidade de que autores da América Latina e do Caribe saberão manter próspera a herança depreciada de Cervantes. Por fim, em Um encontro, o último livro da tetralogia de ensaios de Kundera, lemos as reflexões do autor que, à época, habitava a casa dos oitenta anos. Nessa idade, ele próprio o dissera, em Os testamentos traídos, é o momento de fazer o balanço de suas reflexões, de sua produção estética e extrair a soma final. Dessa forma, uma boa chave de compreensão para esse livro é como um prolongamento das “confissões de um prático” feitas em A arte do romance, Os testamentos traídos e A cortina, bem como uma síntese que comunica o essencial. 18 Um encontro organiza-se em nove partes. As partes ímpares trazem ensaios de maior fôlego, nos quais Kundera toma por objeto um único tema ou figura: o pintor Francis Bacon (parte 1); a crítica surrealista a Anatole France (parte 3); a herança surrealista em Solibo, le magnifique, de Patrick Chamoiseau (parte 5); as composições de Janacek (parte 7); e o arquirromance A pele, de Curzio Malaparte (parte 9). Já as partes pares do livro são divididas em capítulos curtos, nos quais Kundera tece comentários sobre pontos que foram cruciais, servindo como pequenos marcos acerca das principais categorias em que se deve pensar o romance sob o prisma kunderiano. Assim, na segunda parte, “Romances, indagações existenciais”, encontramos o riso sem humor com O idiota, de Dostoiévski; a beleza de uma morte sem pompa em O castelo, de Céline; o modo como a velocidade modificou o modo de viver os afetos, com O professor do desejo, de Philip Roth etc. A quarta parte do livro retoma o tema da periodização da história da literatura tomando como modelo a história da música. Aqui encontramos quatro pequenos ensaios sobre nomes como François Rabelais, Ludwig van Beethoven, Carlos Fuentes e Iannis Xenakis. A sexta parte tem um tom bastante pessoal, talvez por tratar de um tema tão caro a Kundera e tão mal compreendido pela grande maioria ao redor do mundo: o exílio. Na parte 8, Kundera volta a ter um tom contemplativo, dessa vez preocupado com o destino do mundo, uma vez que todos sabem quem foi Hitler, mas poucos sabem quem foi Schönberg. A questão que fecha essa seção é: o que esperar de um mundo em que as atrocidades são sabidas e recontadas em toda parte, e em que os grandes achados estéticos são desconhecidos ou, quando sabidos, mal interpretados? Como Um encontro é o último volume de ensaios escritos por Kundera, é apropriado relembrar o comentário do crítico Alain Finkielkraut a propósito desse livro no Nouvel Observateur: « Kundera conjugue le scepticisme métaphysique avec une intransigeante défense de l’art en tant que tel. Double raison de préférer au vocable cinglant de rupture celui, tout à la fois modeste et poétique, de rencontre. Rencontre de la tradition et de la nouveauté esthétiques autour d’un même désir d’éclaircissement du monde »1 (FINKIELKRAUD apud RICARD, 2016, p. 1360). 1 “Kundera combina o ceticismo metafísico com uma defesa intransigente da arte como tal. Dupla razão para preferir ao termo mordaz de ruptura aquele, ao mesmo tempo modesto e poético, de encontro. Encontro de tradição e novidade estética em torno do mesmo desejo de esclarecimento do mundo.” 19 Ainda deve-se observar um aspecto sobre a escrita ensaística de Kundera, pois suas análises são eivadas por um sabor particular: o gosto daquele que está desagrilhoado dos rigores acadêmicos e, pode, portanto, revelar com total liberdade sua percepção sobre as coisas. Isso deixa em suas leituras um quê de irreverência o qual age como um convite a adotar um olhar libertino para o mundo estético, encontrando na ficção o brilho para se olhar o mundo-da-vida. Feita essa sumária apresentação do autor, deve-se promover um recorte metodológico. Com efeito, examinaremos com bastante rigor os quatro volumes ensaísticos de Kundera (A arte do romance, Os testamentos traídos, A cortina e Um encontro), a fim de propor um quadro do que ele considera essencial na arte que pratica: o romance. É pertinente registrar que o quadro proposto não se pretende exaustivo, mas suficiente para configurar o fundamental da teoria kunderiana do romance e demonstrar que a metalinguagem ocupa um lugar privilegiado no modo de o autor pensar sua prosa. Além da obra ensaística, o presente estudo selecionou o romance A ignorância como objeto da análise e interpretação literária, que terá por finalidade demonstrar como as reflexões metalinguísticas do Kundera-ensaísta se convertem em procedimentos criativos pelo Kundera-romancista. Esse tipo de trabalho foi estabelecido por José Luís Jobim (2012), ao defender a reversibilidade de posições entre crítico-criador e o criador-crítico, de sorte que o mister criativo é contaminado pelo olhar crítico que o autor lança ao campo estético, e o olhar crítico é modulado pelo influxo criativo quando o autor se dedica à criação literária. A leitura do ciclo francês da obra de Kundera estabelece um diálogo muito claro com as ideias que estão presentes em seus ensaios, e seus ensaios também retomam aspectos que são motivos em sua escrita romanesca. Fixadas essas premissas, deve-se declarar que o presente estudo tem por objetivo responder às seguintes questões: (1) quais são as linhas fundamentais para delinear a teoria kunderiana do romance?; (2) qual é o lugar que a metalinguagem ocupa nessa teorização?; (3) que efeitos o pensamento metalinguístico irradia nas demais categorias da teoria kunderiana do romance?; (4) como a metalinguagem pode ser concebida a fim de servir como procedimento criativo?; (5) quais são os procedimentos criativos de base metalinguística que Kundera comenta em seus ensaios?; (6) como Kundera mobiliza esses procedimentos na 20 criação literária?; (7) A ignorância, penúltimo romance de Kundera, mobiliza quais procedimentos metalinguísticos em sua composição? O método para perseguir esses objetivos também é, por excelência, metalinguístico: de acordo com a semiótica, tudo o que a semiose produz é o enunciado, porém, todo enunciado pressupõe um ato de enunciação, envolvendo um enunciador e um enunciatário. Neste estudo, encontramos pressuposto um Kundera-enunciatário, que recebe enunciados estéticos de vários autores, os quais alimentam sua reflexão e formam sua sensibilidade crítica. Então, esse Kundera-enunciatário seleciona os enunciados que mais o tocaram e, quando escreve seus ensaios, converte-se em Kundera-enunciador. O Kundera- enunciador, por sua vez, expõe de maneira difusa o resultado da reflexão desenvolvida na condição de enunciatário, ventilando seu modo de ler e reconhecer os valores estéticos de obras alheias. Contudo, há um segundo Kundera-enunciador: aquele que escreve romances e veicula sua história e seus valores em seus enunciados literários, uma vez que está na condição de chefe de criação. Some-se a essa dança de posições enunciativas o presente trabalho, que é, em um primeiro momento, enunciatário-leitor de Kundera, captando duas ordens de enunciado: uma, em que ele se revela um enunciatário-crítico das obras alheias, construindo seu enunciado na condição de enunciador-ensaísta; e outra na qual ele se coloca como enunciador-criativo, apresentando-se como romancista que concretiza os valores estéticos identificados na tradição e acrescentando o que é de seu próprio talento. No segundo momento, este trabalho assume a condição de enunciador, tentando recuperar as posições kunderianas com o objetivo de mostrar que a metalinguagem é, para o autor tcheco, basilar em sua condição de crítico-criador. Esse jogo é metalinguístico por natureza, uma vez que o processo de seleção e construção de enunciados não é gratuito. Nada é neutro. Nada é imparcial. Há um jogo retórico que faz com que, recuperadas essas camadas, voltemos à obra — seja ensaística, seja romanesca — e encontremos as matrizes do que é o estético kunderiano, à luz de uma rede de possibilidades e de reversibilidades metalinguísticas, que é a força motriz desta dissertação. Este trabalho será organizado em três capítulos. O primeiro trata da teorização kunderiana do romance, construída em torno da noção de arquirromance, conceito criado por Kundera para comunicar uma resposta plausível à crise que a arte romanesca enfrentava no 21 começo do século XX. O intuito é marcar a presença da metalinguagem no núcleo do que se caracteriza como arquirromance e apresentar as principais marcas desse conceito. O segundo capítulo está organizado em dois movimentos: o primeiro visa a transmitir uma conceituação de metalinguagem que supere o entendimento simplista de que essa função da linguagem se presta à definição de itens lexicais. Nesse sentido, construir-se-á uma noção de metalinguagem ancorada na teoria dos códigos e da produção sígnica, com o propósito de manipulá-la como operador interpretativo do segundo movimento deste capítulo, o qual se constitui de um mapeamento dos ensaios de Kundera, em busca dos procedimentos metalinguísticos que ele emprega em sua leitura do campo estético, e que podem ser mobilizados em sua criação romanesca. Os procedimentos encontrados serão explanados com base na teoria que compõe a primeira parte e ilustrados a partir de exemplos extraídos da obra ficcional de Kundera. O terceiro capítulo é a demonstração de como Kundera converte sua concepção crítica em prática criativa. Tomaremos o romance A ignorância, a fim de demonstrar como a composição do escritor se propõe a perseguir definições fugidias e a evidenciar de que modo os procedimentos metalinguísticos são transvestidos discursivamente em matéria romanesca, com o objetivo de fazer avançar a estética do romance rumo ao que denominou arquirromance. 22 CAPÍTULO 1 – A TEORIZAÇÃO KUNDERIANA DO ROMANCE Uma teoria pode se caracterizar como uma proposta de natureza ideativa, segundo a qual o observação de determinadas regras e processos, seja total seja parcialmente, torna possível a caracterização de determinado objeto ou fenômeno no plano real. Sendo assim, neste capítulo nos ocuparemos de tentar elencar os traços essenciais do romance segundo a concepção de Milan Kundera, tendo por objetivo demonstrar como o processo metalinguístico está na base do universo criativo desse autor. Nesse sentido, delinear o romance na condição de objeto teórico, representa um esforço preliminar a fim de tornar mais claros os desdobramentos metalinguísticos das categorias de composição manipuladas por ele. Neste capítulo, portanto, tomaremos como objeto de análise os ensaios de Milan Kundera com o intuito de extrair deles as principais linhas de força evocadas para definir o que é um romance. Evidentemente, a teorização que será proposta não pretende ter validade universal, pois, sendo extraída de ensaios, é qualificada pela marca desse gênero, ou seja, trata-se de uma proposta preocupada com sua coerência e clareza, naturalmente; mas sua veracidade é sempre pessoal, singular e, por vezes, parcial, já que condiciona e é condicionada pela prática do autor como romancista. Assim sendo, também é preciso considerar que conforme Kundera amadurece seus procedimentos criativos e analíticos, suas considerações ensaísticas se aprofundam, de modo que uma mesma noção é revisitada, revisionada e refinada ao longo do tempo, o que, a um só tempo, revela sua pertinência no quadro ontológico do romance kunderiano, bem como sua elasticidade para avaliar diferentes fenômenos estéticos. A hipótese que norteia esta parte do estudo é de que a definição de romance oferecida em A arte do romance evidencia a importância central da metalinguagem para Kundera. No amadurecer de suas reflexões, a noção de romance é redimensionada, porém, a metalinguagem continua no cerne de suas preocupações, ainda que disfarçada de novos procedimentos. Dessa forma, será nossa tarefa evidenciar como a metalinguagem participa de cada um dos traços que compõem a concepção kunderiana do romance. Deve ser legada uma última nota preambular concernente ao modo como os ensaios serão abordados. Tendo em vista o exposto, não será feita uma abordagem cronológica dos ensaios, trabalhando a evolução e o adensamento das formulações kunderianas na progressão do tempo; antes, se opta por fazer uma abordagem temática. Isso porque pela abordagem 23 temática é possível propor um rearranjo dos conceitos mobilizados nos ensaios, organizando- os dentro de uma sistematização mais econômica e densa. Por fim, cabe ressaltar que a sistematização não se pretende exaustiva, mas suficiente para caracterizar o que é o romance para Kundera. 1.1 O ARQUIRROMANCE: ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA DE UMA ARTE EM CRISE A crise do romance já é anunciada desde o começo do século XX com certa veemência, associada muitas vezes à exaustão do paradigma realista de narração e à consolidação de uma estrutura narrativa resultante da adesão reiterada a esse modelo. Os defensores dessa ideia sustentam que não há mais possibilidade inovadora no gênero romanesco e que seu destino é tornar-se uma fábrica de remakes da tradição, de sorte que é necessário pensar numa nova forma do romance (CF. MAGRIS, 2009, p. 15). Kundera endereça essa questão em seus ensaios, no entanto, sendo ele uma pessoa que construiu sua identidade em função de ser romancista, enxerga a crise do romance como mera aparência, uma vez que, para ele, o gênero é prenhe de possibilidades. Desde Os testamentos traídos, Kundera já assinala que as vanguardas históricas, sobretudo o surrealismo, tratavam o romance com desprezo, pois viam nas convenções realistas, que exigiam elevado nível de detalhamento descritivo sobre os níveis físico e psicológico, a morte do encanto estético. Kundera chega a afirmar que “aos olhos de Breton, o romance é uma não poesia por excelência” (KUNDERA, 2017, p. 160). “Poesia”, nesse contexto, não deve ser entendida como um gênero literário, mas sim como uma atitude perante a vida, que envolve a percepção do olhar aberto à irrupção do maravilhoso, do sublime, da concentração emotiva, da surpresa e da originalidade individual. Somente nessa linha o romance encarna a negação da poesia do modo como os surrealistas a encaravam; e, de fato, há mérito na crítica feita, o que suscitou uma reação por parte de um grupo de romancistas: o nouveau roman. Segundo Kundera, em Um encontro — especificamente no ensaio “O sonho de uma herança integral” — a crítica dos surrealistas reverberou na obra dos romancistas do nouveau roman, os quais propuseram uma concepção do gênero romanesco sob o prisma da negatividade, ou seja, negando as principais categorias narrativas e produzindo obras que Kundera qualifica como antirromance: “um romance sem personagem, sem intriga, sem 24 história, se possível sem pontuação, romance que então se deixou chamar antirromance” (KUNDERA, 2013, p. 76). A argumentação kunderiana é no sentido de que, se o romance pretende sobreviver à crise que enfrenta, não será por meio da negação de suas categorias, mas pela afirmação de seus predicados essenciais. Ele constrói uma antítese ao antirromance, exaltando o propósito e o traço primordial do romance: sua forma aberta às diversas possibilidades expressivas e discursivas. Kundera opõe o antirromance à noção por ele criada de arquirromance: Curioso: aqueles que criaram a poesia moderna não pretendiam fazer a antipoesia. Ao contrário, a partir de Baudelaire, o modernismo poético aspirava aproximar-se radicalmente da essência da poesia, sua mais profunda especificidade. Nesse sentido, imaginei o romance moderno não como antirromance, mas como arquirromance (KUNDERA, 2013, p. 76). De imediato, percebe-se que, para o romancista-ensaísta, a crise do romance não será superada senão pela afirmação enfática da especificidade do discurso romanesco. Inspirado pelo que aconteceu com a poesia pós-Baudelaire, em que se desenvolveram procedimentos que libertaram o gênero de suas convenções mais rigorosas, afirmando que não é nelas que está o essencial do discurso poético, Kundera oferece uma noção para a arte do romance que pretende conduzir a uma busca pela especificidade da linguagem romanesca: o arquirromance. É pertinente observar que a concepção da noção de arquirromance acontece na produção ensaística mais tardia de Kundera. No entanto, tamanho é o valor que ele atribui ao romance enquanto categoria existencial que, no presente estudo, sustenta-se que o arquirromance, como formulação conceitual, serve de núcleo para toda a teorização kunderiana. Isso porque, em seus ensaios anteriores, o autor de A insustentável leveza do ser elabora suas reflexões de maneira difusa, afinal, não é sua intenção construir um sistema; porém, à medida que percebe que seu opus se aproxima de uma consolidação final, ele próprio faz o saldo de sua contribuição como ensaísta, condensando na noção de arquirromance os principais pontos de suas reflexões sobre o gênero. Quando Kundera apresenta a noção de arquirromance, ele não pormenoriza quais são suas potencialidades e seus predicados constitutivos; ao contrário, ele investe sua criação conceitual de uma vagueza proposital, afirmando apenas duas marcas do arquirromance: (i) ele focaliza o que só o romance pode dizer — traduzindo, à moda do que aconteceu com a poesia, a busca pela especificidade da arte romanesca; e (ii) o arquirromance restaura caminhos negligenciados e esquecidos da tradição romanesca (KUNDERA, 2013, p. 76). 25 Com efeito, o arquirromance adquire a função de significante ou receptáculo, no qual poder- se-ão depositar os significados e particularidades da teoria kunderiana do romance. Sendo assim, é possível extrair duas consequências preliminares: a primeira reconhece que a concepção de arquirromance possui efeitos retroativos, alcançando ideias anteriores e atualizando-as como elementos constitutivos dessa nova noção; a segunda, por sua vez, revela que a generalidade do conceito é proposital, pois permite que novos significados participem do arquirromance, tornando o gênero romanesco sempre atual. Nesse sentido, pode-se perceber por que a concepção de arquirromance serve como estratégia de resistência do romancista-ensaísta para que sua arte não sucumba à crise de que tantos críticos a acusavam, e encontre vias que tragam sempre a possibilidade de uma história. Cabe a este estudo, a partir de agora, elencar os elementos que podem nortear a compreensão do conteúdo desse significante, para, ao final do capítulo, verificarmos se é possível um arremate que delineie melhor esse núcleo ontológico da concepção kunderiana de romance. 1.2 METALINGUAGEM COMO ALICERCE DA DEFINIÇÃO DE ROMANCE O presente estudo toma a metalinguagem como um conceito central para pensar o universo romanesco de Milan Kundera, mas isso não se deve a uma fixação obsessiva no processo de codificação; absolutamente não. Essa opção justifica-se em virtude de o próprio romancista inserir o processo metalinguístico no bojo de sua definição de romance, assim como pelo fato de a fortuna crítica do autor não ter investigado os desdobramentos dessa declaração. Considerando isso, é importante destacar que esta pesquisa está fundamentada na leitura dos ensaios de Kundera, do modo como ele próprio sugere que se leia o romance: em vez de procurar uma mensagem cifrada, tomam-se suas declarações a sério, tentando acompanhar seus desdobramentos em suas unidades de composição (cf. KUNDERA, 2017, p. 216-217). Nessa esteira, evoca-se o dicionário pessoal de Kundera, que compõe a sexta parte do livro A arte do romance, pois nele o autor oferece a definição de sessenta e três palavras que encerram algumas de suas grandes preocupações, de seus grandes amores e de seus grandes temas. Neste momento, interessam-nos duas entradas: a de “definição” e “romance”: DEFINIÇÃO. A trama meditativa do romance é sustentada pela armadura de algumas palavras abstratas. Se eu não quiser cair na imprecisão em que todo mundo pensa 26 compreender sem nada compreender, é necessário não apenas que eu escolha essas palavras com extrema precisão, mas que as defina e torne a definir (Ver: DESTINO, FRONTEIRA, LEVEZA, LIRISMO, TRAIR.) Frequentemente, um romance não é, parece- me, senão uma longa perseguição de algumas definições fugidias (KUNDERA, 2016, p. 126). ROMANCE. A grande forma de prosa em que o autor, através dos egos experimentais (personagens), examina até o fim alguns grandes temas da existência (KUNDERA, 2016, p. 146). De início, observa-se que Kundera investe o romance de uma dimensão existencial e de uma dimensão exploratória, o que permite que essa “grande forma de prosa” extrapole os limites da realidade puramente física, pois há outros planos existenciais mais sutis que a arte do romance pode explorar: o plano do sonho, da imaginação, das ideias e ideologias, e até mesmo, no concreto do mundo, há uma dimensão existencial oculta que o romance se propõe a explorar e a descobrir. O caráter exploratório de “alguns grandes temas da existência” estabelece uma ponte entre a entrada “romance” e “definição”, uma vez que se pode defender que esses grandes temas devam ser, para o romancista, o sustentáculo da “trama meditativa do romance”, a qual é traduzida pela investigação de “algumas palavras abstratas”, cuja abstração impõe que, em seu mister criativo, ele se coloque a definir, redefinir, revisar e refinar, a fim de apreender com maior consistência sua carga semântica. A entrada “definição”, in fine, torna indubitável que a preocupação metalinguística motiva o fazer romanesco de Milan Kundera ao afirmar que “o romance não é senão a longa perseguição de algumas definições fugidias”. Essa declaração deve ser analisada com cautela, visto que ela fundamenta o presente estudo. Em primeiro plano, focaliza-se o fato de a metalinguagem ser mobilizada como processo, não como finalidade, pois aquilo que se oferece como perseguição não necessariamente resulta na captura. Em outras palavras, há na existência humana aspectos de natureza tão fluida que, pretender cristalizá-los em uma definição soa ingênuo e limitador, de sorte que o romance se caracteriza mais pelo “estar em busca” do que pela “obtenção do objeto de desejo” — e disso o romance tira a dignidade que legitima sua escrita. O autor de um romance está em perseguição de suas definições fugidias, as quais podem ser entendidas como as palavras abstratas que fundamentam o arcabouço temático do romance. Nesse sentido, há na definição kunderiana de tema mais uma evidência de que o processo e esforço metalinguístico está na base de seu universo criativo. Vejamos: 27 Um tema é uma interrogação existencial. E cada vez mais me dou conta de que tal interrogação é, afinal, o exame de palavras particulares, de palavras-tema. O que me leva a insistir: o romance é baseado primeiramente em algumas palavras fundamentais (KUNDERA, 2016, p. 90). “Palavras fundamentais” que serão exploradas em sua dimensão existencial, portanto, vinculadas a experiências de seres-no-mundo — as personagens —, que servem como egos experimentais (leia-se: instrumentos) para o romancista descobrir um sentido mais profundo, quiçá desconhecido, inscrito em um item do código linguístico, cuja descoberta será capaz de tornar mais rico o olhar com que se percebe a realidade. Ante essa linha de ideias, percebe-se como Kundera concebe o romance, colocando no cerne de suas preocupações um impasse que pode ser dirimido por meio de um esforço metalinguístico: o romance explora temas existenciais; o tema pode se traduzir no exame de algumas palavras fundamentais, as quais, por sua vez, são investidas de uma abstração tal que suas definições acabam refratárias ao fechamento — isso as torna fugidias. Mais do que isso, não se deve perder de vista que a definição que Kundera oferece para “romance” destaca duas unidades de composição: egos experimentais (personagens) e temas da existência. Em outras palavras, após a percepção sobre como a função metalinguística permeia a definição de tema trabalhada por Kundera, torna-se fundamental a demonstração sobre como a preocupação com o código participa da composição de personagens no universo kunderiano. 1.2.1 A CONCEPÇÃO DA PERSONAGEM PELA VIA METALINGUÍSTICA Na segunda parte de A arte do romance, Kundera apresenta trecho de uma conversa que travou com Christian Salmon, na qual discute alguns pontos de sua visão acerca do romance. Logo no começo da entrevista, é feita uma generalização que mostra a importância do modo como se pensa a categoria narrativa da personagem, pois ela servirá de instrumento privilegiado para perseguir as definições fugidias do romance. Nesse sentido, vejamos a consideração do romancista-ensaísta: Sejamos mais precisos: todos os romances de todos os tempos se voltam para o enigma do eu. Desde que você cria um ser imaginário, um personagem, fica automaticamente confrontado com a questão: o que é o eu? Como o eu pode ser apreendido? (KUNDERA, 2016, p. 31) 28 A resposta a essa pergunta conheceu diversas versões ao longo da história do romance, então, a título de exemplo, Kundera eleva importantes nomes da arte romanesca, evidenciando como cada qual apreende um “eu”. Assim, Cervantes mostra que um eu pode ser apreendido com base nas aventuras que vive. Richardson traz para o cerne do eu o mundo secreto de suas emoções e sentimentos. Balzac sustenta que um eu se revela em seu enraizamento na história. Flaubert descobre o eu pelo seu comportamento cotidiano. Tolstói sustenta que o eu se mostra no irracional de suas escolhas. Proust busca o eu na forma como o tempo passado o moldou. Joyce, por sua vez, o descobre no instante presente. Por fim, Thomas Mann apreende um eu fundamentado na revitalização dos mitos esquecidos no poço do passado (cf. KUNDERA, 2016, p. 13). A universalidade da questão proposta por Kundera justifica-se na medida em que até o narrador é um eu, portanto, uma personagem. Definir a forma como ele pode ser apreendido é do interesse de todo escritor que pretenda desenvolver um projeto estético. Sendo assim, entender o modo como Kundera tenta apreender um “eu” é crucial para compreender sua proposta estética. Nesse sentido, toma-se sua seguinte consideração: Apreender um eu, quer dizer, em meus romances, apreender a essência de sua problemática existencial. Apreender seu código existencial. Ao escrever A insustentável leveza do ser me dei conta de que o código desse ou daquele personagem é composto por algumas palavras-chave (KUNDERA, 2016, p. 37). Esse modo de apreensão se dá em três etapas: (1ª) a ideia de que cada eu tem sua essência, o que significa que, ao criar um eu, o romancista não precisa dar conta de todas as circunstâncias que envolvam a personagem, mas tão somente aquelas que revelem qual é o ponto de convergência que informa seu núcleo existencial. (2ª) a ideia de que cada personagem tem seu código existencial, o qual será expresso por algumas palavras-chave, o que faz sentido, pois o ser humano existe em função de uma programação do código genético que oferece as condições para que haja sistemas complexos organizados e, por conseguinte, haja vida; da mesma forma, as personagens, na condição de egos-experimentais, precisam de um código para que existam segundo um sistema complexo. Como a literatura é uma arte verbal, o código existencial de uma personagem será expresso por itens lexicais, os quais entregarão a chave para compreendê-la. Por fim, (3ª) fechar uma combinatória entre o código existencial e o código lexical, pois, se uma personagem encarna determinadas palavras-chave, sua vivência está condicionada ao horizonte semântico que aquela palavra permite observar. Ao estabelecer a relação entre essas duas formas de código, Kundera evoca para a 29 compreensão de suas personagens a ideia de metalinguagem, pois é ela que organiza e informa como se estabelece essa relação entre sistemas semióticos distintos. A fim de demonstrar esse modelo de apreensão de um eu, tomemos um exemplo analítico exposto pelo próprio romancista ao longo de sua entrevista com Christian Salmon. No trecho a seguir, ele expõe uma das palavras-chave para entender o código existencial de Tereza, uma das protagonistas do romance A insustentável leveza do ser: Em A insustentável leveza do ser, Tereza vive com Tomas, mas seu amor exige dela uma mobilização de todas suas forças e, de repente, ela não aguenta mais, quer voltar para trás, “para baixo”, de onde veio. E eu me pergunto: o que acontece com ela? E encontro a resposta: ela é tomada por uma vertigem. Mas o que é vertigem? Procuro definição e digo: “um atordoamento, um insuportável desejo de cair”. Mas logo depois me corrijo, faço mais precisa a definição: “[...] a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência da nossa própria fraqueza, mas não queremos resistir a ela, e sim nos abandonar. Embriagamo-nos com nossa própria fraqueza, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em plena rua à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão”. A vertigem é uma das chaves para compreender Tereza. Não é a chave para compreender você ou eu. No entanto, você e eu conhecemos essa espécie de vertigem pelo menos como nossa possibilidade, uma das possibilidades da existência. Tive que inventar Tereza, um “ego experimental”, para compreender essa possibilidade, para compreender a vertigem (KUNDERA, 2016, p. 39). A vertigem aparece como palavra-chave para compreender o código existencial de Tereza, no entanto, essa palavra não se limita à denotação dicionarizada2; antes, a vivência da personagem enriquece o conteúdo semântico do vocábulo enfocado, modalizando-o sob o prisma do desejo e da embriaguez. A vertigem, sob o prisma do desejo, pressupõe a modalização do sujeito pelo querer e constrói-se pela diferença entre o objeto desejado e a impossibilidade de consegui-lo. O objeto desejado, nesse caso, é estar de pé, sustentar o próprio peso não só físico, mas também existencial. É o peso existencial que faz Tereza render-se à vertigem, desejar cair. Sob o prisma da embriaguez, a vertigem alcança estatuto de conceito estético, afinal, quando se retoma a tradição ditirâmbica, o êxtase dionisíaco era uma forma de embriaguez coletiva causada pela música e pela poesia que conduziam a um estado elevado de consciência. A vertigem como resultado da embriaguez intensifica a fraqueza, que deixa de ser manifestação fisiológica e passa a se enraizar na consciência identitária de Tereza, uma mulher fraca, cuja existência fica exposta “abaixo do nível do chão”. Tanto é assim que, no romance, após seu exílio em Zurique, ela decide voltar para Praga, cidade humilhada pela dominação russa, porque identifica-se com aquela nação que ela predica como o país dos fracos. 2 ver.ti.gem s.f.1 med sensação de que o corpo ou as coisas ao seu entorno giram; tonteira; tontura 2 p.ext. qualquer sensação de desmaio ou fraqueza 3 fig. perda momentânea do autocontrole; loucura. 30 Não se deve perder de vista o fato de que as personagens são, na teoria kunderiana do romance, instrumentos para se explorar os grandes temas da existência humana, de modo que o código existencial de uma personagem é construído em função da exploração do tema, ou seja, há uma sintaxe de subordinação entre o tema (elemento regente) e as personagens (elemento regido), já que os egos experimentais criados são postos no mundo para descobrir o sentido desses grandes temas, que compõem “a trama meditativa do romance”. Sendo assim, Kundera não concebe seu universo literário de modo a competir com o “mundo real”, pois enquanto o mundo em que vivemos responde aos ditames da realidade, o mundo literário responde a outra lógica: O romance não examina a realidade mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das possiblidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo que o homem é capaz. Os romancistas desenham o mapa da existência descobrindo esta ou aquela possibilidade humana. Mas uma vez mais: existir, isso quer dizer “ser-no-mundo”. É preciso portanto compreender o personagem e seu mundo como possibilidades (KUNDERA, 2016, p. 50). Por isso, quando constrói Tereza, Kundera quer mostrar a vertigem não como uma resposta fisiológica, mas sim como uma possibilidade existencial. Essa maneira de conceber a existência como campo de possibilidades, faz com que a problemática existencial de uma personagem adquira uma dimensão extraliterária e alcance a experiência de vida do leitor, na medida em que qualifica um item lexical que pode iluminar uma compreensão mais profunda do cotidiano no qual se vive. Nessa esteira, o processo metalinguístico que informa o código existencial de uma personagem só está bem encaminhado quando Kundera procura aproximar-se “passo a passo, do âmago de sua atitude para compreendê-la, denominá-la, segurá-la” (KUNDERA, 2016, p. 39). Esse modelo de concepção das personagens deixa entrever implicitamente como a metalinguagem conquista um novo colorido ao participar do universo literário, já que estabelece uma ponte entre as categorias estéticas e narratológicas usadas para explicar o mundo da arte e as experiências vivenciais que informam valores existenciais perceptíveis no mundo extraliterário. É curioso que Kundera pretenda segurar, ou seja, ter em suas mãos o âmago da atitude existencial de suas personagens, porque se elas exploram o tema, e ele é configurado por significantes abstratos, ter em mãos uma abstração parece um esforço impossível, porém não o é. O próprio romancista tcheco afirma que “o código não é estudado in abstracto, ele se revela progressivamente na ação, nas situações” (KUNDERA, 2016, p. 38). Assim, ideias e 31 noções abstratas o seduzem, no entanto, como romancista, sua arte exige que ele crie situações nas quais o leitor possa perceber a concretude dessas abstrações. O trabalho com esse tipo de noção no campo puramente ideativo configura mais o discurso filosófico que o literário; por isso Kundera insiste que compreender o âmago de uma personagem, apreender seu código existencial é o mesmo que ser capaz de segurá-lo. Para o autor, nomear é ter algo nas mãos. O desafio da escrita literária é não deixar escapar das mãos essas noções fugidias, é atribuir um percurso figurativo às abstrações temáticas, a fim de que sua textura seja percebida pela leitura. Em suma, a categoria das personagens também é contaminada pelo processo metalinguístico, na medida em que seu código existencial é informado por algumas palavras- chave cujo sentido o romancista tenta delinear com base nas vivências que seus egos experimentais têm no mundo do romance. Esse modelo de pensar as personagens coloca em relação os sistemas semióticos da linguagem e da vida, mostrando que há uma forma de associar metalinguagem, estética e existência. 1.2.2 METALINGUAGEM: DIÁLOGO ENTRE ESTÉTICA E EXISTÊNCIA Há uma frase do senso comum bastante corrente: a arte imita a vida e a vida imita a arte. A repetição desse ditado enfraquece a potência do que ele pode comunicar, ou dos efeitos que ele pode produzir caso se opte por examiná-lo com seriedade. Na quinta parte de A cortina, no ensaio “Estética e existência”, Kundera demonstra como pensar a arte e os conceitos estéticos contribui para um olhar mais profundo sobre a vida e o mundo da existência, real. Ele começa por declarar: Os conceitos estéticos só começaram a me interessar no momento em que percebi suas raízes existenciais, quando os compreendi como conceitos existenciais; pois, no decorrer da vida, as pessoas – sejam simples ou sofisticadas, inteligentes ou tolas – são constantemente confrontadas com o belo, o feio, o sublime, o cômico, o trágico, o lírico, o dramático, a ação, as peripécias, a catarse, ou, para falar de conceitos menos filosóficos, com a agelastia, o kitsch ou o vulgar; todos esses conceitos são pistas que conduzem a diversos aspectos da existência inacessíveis por qualquer outro meio (KUNDERA, 2006, p. 98). Do ponto de vista metalinguístico, o que Kundera pontua é a associação entre conceitos estéticos e experiências vivenciais. No entanto, deve-se considerar que os conceitos estéticos, por serem formulados a partir do contato com obras de arte, possuem um estatuto que depende da sensibilização do olhar — movimento que nem todas as pessoas tiveram a 32 chance de realizar. Nesse sentido, o trágico e o grotesco da existência, por exemplo, são mais perceptíveis porque foram mais debatidos no âmbito da estética, de modo que mesmo uma pessoa sem educação estética é capaz de predicar um acontecimento como trágico. O mesmo não se pode dizer de conceitos estéticos como a agelastia, o kitsch, ou até mesmo a ação. Kundera pretende demonstrar como pensar esses conceitos em meio à arte constrói um código que pode se relacionar com aquele que usamos para viver a vida. Tome-se como exemplo o conceito estético de ação. Kundera argumenta que a noção de ação acompanha as reflexões sobre arte desde a Poética de Aristóteles, tornando-se unidade de composição fundamental para o gênero dramático e epopeico. Por meio da ação, o herói revela seu caráter, então o escritor deve sempre escolher muito bem qual será a grande ação de seu protagonista — Édipo salva Tebas da peste; Aquiles desafia os deuses; e Ulisses retorna a Ítaca. Todos os heróis, cujo arco foi construído tendo em vista a poética clássica, têm total liberdade de ação. Romancistas modernos tomam a herança clássica relacionada à ação e, sustenta Kundera, mostram como a noção foi corrompida no mundo moderno, pois, por exemplo, os protagonistas de Kafka, em O processo e O castelo, agem compelidos por um sistema já instaurado que os força a estar em movimento. Com isso, quando associada à existência no mundo moderno, essa noção estética associada ao fazer do herói pode ser problematizada. Como outrora a epopeia, ele [o romance] também foi fundado na ação. Mas no romance a ação se problematiza, aparece como uma questão múltipla: se a ação não é mais que o resultado da obediência, é ainda ação? E como distinguir a ação dos gestos repetitivos da rotina? O que quer dizer in concreto a palavra “liberdade” no mundo moderno, burocratizado, em que as possibilidades de ação são mínimas? (KUNDERA, 2006, p. 99) Kundera mostra como o conceito estético de ação dramática imbrica-se diretamente com o conceito existencial de liberdade. Embora as perguntas que ele faça permaneçam em aberto, são questionamentos que indicam o quanto as situações concretas do mundo ficcional podem modificar as categorias que temos para tratar da arte. Há ação sem liberdade de agir? Ou melhor, há ação sem liberdade para decidir agir? Construir uma codificação estética que acione elementos existenciais exige um processo metalinguístico capaz de equacionar essas duas dimensões. A metalinguagem, nesse caso, se revela no modo de ler de Kundera. Outro exemplo das implicações dos conceitos estéticos diz respeito à agelastia, que, além de fazer com que Kundera reflita sobre o lugar do cômico, evidencia a tensão com relação ao lugar do cômico na sociedade. A agelastia é a marca das pessoas sérias, pois refere- 33 se àqueles que não riem, ou seja, que não são sensíveis ao cômico da existência. Isso significa que por trás desse conceito há uma rixa entre os valores da seriedade e do risível. Kundera apresenta a discussão nos seguintes termos: Cada conceito estético [...] abre uma problemática sem fim. [...] se os agelastos tendem a ver em cada brincadeira um sacrilégio, é porque, na verdade, toda brincadeira é um sortilégio. Existe uma incompatibilidade sem apelação entre o cômico e o sagrado, e só podemos nos perguntar onde começa e termina o sagrado. Está confinado apenas ao templo? Ou seu domínio se estende um pouco mais adiante, abrangendo também aquilo a que chamamos os grandes valores laicos: a maternidade, o amor, o patriotismo, a dignidade humana? Aqueles para quem a vida é sagrada, inteiramente, sem restrição, reagem a qualquer brincadeira com irritação clara ou velada, pois em qualquer brincadeira se revela o cômico, que em si mesmo é um ultraje ao caráter sagrado da vida (KUNDERA, 2006, p. 101). Refletir sobre a tensão entre o sagrado e o profano é encontrar-se diante do cômico e tentar lhe estabelecer um limite. Em um mundo onde Deus está morto e os valores laicos estão galgando lugares tão altos nos discursos, o espaço para o riso parece estar diminuindo — a agelastia parece estar condicionando o olhar de muitas pessoas. Mais adiante trataremos do humor na teorização de Kundera, de modo que por ora é importante reconhecer que a agelastia, palavra criada por Rabelais, saiu de um romance e ganhou lugar no léxico mundial, que foi enriquecido com a novidade linguística. Em Risíveis amores, primeira obra narrativa de Kundera, o título já ilustra a questão do humor, na medida em que parte do princípio de que mesmo um tema sério como o amor pode receber o influxo cômico, então questiona: o que acontece com o amor modulado pelo risível? Ele continua sendo amor quando não é sério? Ou talvez essa fronteira possa ser atenuada, uma vez que a existência no mundo não comporta categorizações binárias, mas acontece na faixa contínua dos gradientes nos quais subjetividades fixam posições abertas ao reposicionamento? A tensão existente entre o cômico e a agelastia tem uma natureza dramática, pois estabelece um conflito que se manifesta na realidade. O primeiro, marcado pela provocação e relatividade, instabiliza a construção do templo, mostra o que nele há de incongruente, convidando à reflexão das certezas dogmáticas que caracterizam o agelasto. Kundera demonstra como as certezas do agelasto são desorganizadas pela ambiguidade do cômico com base em um episódio de Dom Quixote, em que o cavaleiro é convidado para jantar na casa de um nobre de campanha cujo filho é poeta. Após escutar algumas poesias, dom Quixote elogia o jovem que, envaidecido, esquece da loucura do convidado. O humor da cena resulta de uma ambiguidade primordial: quem é mais louco? O 34 louco que elogia o lúcido? Ou o lúcido que se envaidece do elogio de um louco? Essa ambiguidade é crucial para caracterizar a concepção kunderiana do romance. Há também o conceito de trágico. Kundera o investiga e traça sua relação com a existência humana. É significativa a contribuição do olhar do autor sobre o tema, pois, visto que o cômico trouxe leveza, seria de se esperar que o trágico fizesse o contraponto e trouxesse a noção de peso, seriedade; porém, Kundera vê no trágico uma importância muito maior. Ele argumenta que, como não há certeza última e categórica em razão da relatividade com que o cômico reveste o mundo, o trágico aparece como uma lição de respeito à verdade do outro. Nesse sentido, ele evoca Antígona, de Sófocles, cuja heroína está vinculada à verdade do sagrado, bem como o personagem Creonte, que está vinculado à verdade do Estado — ambos são fiéis a sua verdade, o que os investe de honra e dignidade. Liberar grandes conflitos humanos da interpretação ingênua do combate entre o bem e o mal, compreendê-los sob a luz da tragédia, foi uma imensa realização do espírito humano; fez aparecer a relatividade fatal das verdades humanas; tornou evidente a necessidade de fazer justiça ao inimigo. (KUNDERA, 2006, p.103) O trágico aparece, no raciocínio do ensaísta como um desdobramento da potência do cômico e do humorístico. A tragédia sensibiliza a existência ao investir de dignidade os diferentes pontos de vista. O perigo de hoje é abordar o trágico sob uma perspectiva maniqueísta, neutralizar seu potencial de respeito e organizar a realidade segundo a polaridade positiva e negativa dos aspectos existenciais. A tragédia ensina que, mais do que mocinhos e vilões, o que há antes de tudo são pessoas limitadas pelo nevoeiro de seu tempo e pela sua possibilidade de visão. “Fazer justiça ao inimigo” é reconhecer que dentro de si vive o outro, de sorte que se na tragédia, para haver o sucesso de uma personagem, outra deve ser arruinada, esse processo, em verdade, leva à anulação do outro que vive em si e, por conseguinte, é uma forma de mutilar a si próprio. Respeitar a verdade do outro é ampliar a própria contingência humana e enriquecer a vida com a pluralidade de olhares. Esses três casos — ação/liberdade; agelastos/cômico; tragédia/respeito — serviram para mostrar outro aspecto do modo como Kundera concebe o processo metalinguístico, visto que ilustram o modo de ler do ensaísta: ele parte da concretude do romance — a diegese, as personagens, os eventos —, na sequência, investiga as categorias estéticas e formais que são mobilizadas na construção dos artefatos estéticos em exame para, em um último momento, identificar quais possibilidades existenciais novas foram descobertas por meio desses 35 expedientes. Isso exprime que não são sentenças puramente equacionais que são perseguidas pela metalinguagem kunderiana, mas a experimentação de uma nova possibilidade existencial construída a partir da palavra tramada pela escritura ficcional. 1.2.3 TEMA: APONTAMENTOS SOBRE O ALVO FUGIDIO DO ROMANCE Kundera escreve seus romances para tentar compreender qual o sentido de alguns dos grandes temas que permeiam a existência humana. O tema, consoante demonstrado, possui uma dimensão metalinguística, visto que é informado pelo sentido de algumas palavras abstratas, as quais tornam-se as verdadeiras definições fugidias perseguidas pelo romancista em seu processo criativo. Nesta seção, o tema será abordado em dois sentidos: de início, o tema como unidade de composição, servindo como princípio unificador da estrutura romanesca; em seguida, veremos como alguns temas são evocados pela crítica como eixos que percorrem o conjunto da obra kunderiana, informando quais palavras-tema dão unidade à sua obra. De início, devemos reconhecer que Kundera localiza o tema no cerne de suas preocupações romanescas, uma vez que, segundo ele, é possível que o narrador abandone a narração da trama para engajar em um discurso meditativo sobre o tema. Isso porque na sua concepção, o romance é uma trama meditativa sobre os grandes temas da existência humana. Nesse sentido, retomemos a lição de Boris Tomachevski em seu ensaio “Temática”, de 1925: [...] quanto mais o tema for importante e de um interesse durável, mais a vitalidade da obra será assegurada. Repudiando assim os limites da atualidade, podemos chegar aos problemas universais [...]. Entretanto, estes temas universais devem ser nutridos por uma matéria concreta e se esta matéria não está ligada à atualidade, colocar estes problemas não é um trabalho destituído de interesse (TOMACHEVSKI In: TOLEDO, 1973, p. 171). O mestre formalista defende a importância do tema como garantia da universalidade do interesse pela obra, de modo que assuntos dotados de maior universalidade serão mais eficientes em garantir o interesse pela obra. Ora, Kundera defende que o romance é uma trama meditativa, isso indica que dado o nível de abstração do tema, ele pode se tornar o aspecto da narrativa mais interessante a ser trabalhado. Nesse sentido, vejamos: Sempre os construí [os romances] em dois níveis: no primeiro nível, componho a história romanesca; acima, desenvolvo temas. Os temas são trabalhados sem interrupção na e pela história romanesca. Quando o romance abandona seus temas e se contenta em contar a história, ele se torna sem densidade. Em contrapartida, um 36 tema pode ser desenvolvido sozinho, fora da história. Essa maneira de abordar o tema eu chamo de digressão (KUNDERA, 2016, p. 89). Percebe-se, com efeito, que o desenvolvimento temático ganha primeiro plano no modelo de composição romanesca de Milan Kundera, o que faz com que o crítico François Ricard defenda que o modelo kunderiano de abordar a unidade temática propõe uma nova maneira de compor o romance, pois não é mais o princípio narrativo que rege a escritura da obra, mas sim a perseguição temática. Em outras palavras, de acordo com Ricard, Kundera não pensa suas narrativas como o desenvolvimento de uma intriga unificada pela presença do protagonista e desenvolvida contínua e logicamente através de crises sucessivas que devem ser resolvidas para que a trama chegue ao fim. Contudo, isso não significa que Kundera negue a importância do princípio de composição épica, fundado na ação. Ao contrário, o que Kundera pretende com sua obstinada perseguição ao tema, é uma inversão nas leis de composição, como bem sinaliza Ricard: [...] la loi kunderiénne de l’unité thématique renverse complètement cet ordre [a ordem de que a unidade temática não deve ter o protagonismo na narrativa, que deve ser das unidades narrativas – voz, perspectiva, personagem, ambiente...]. Non seulement elle fait paraître le thème au grand jour, mais elle le délivre de sa position subalterne en lui accordant le tout premier rôle dans l’inspiration et l’écriture de l’œuvre et en en faisant l’élément le plus visible, le plus immédiat et le plus « contraignant » de la structure romanesque. Um roman, dès lors, ce n’est plus aussi l’exploration d’un thème ; c’est d’abord et avant tout, à la limite ce n’est plus rien d’autre que cette exploration même. (RICARD, 2003, p.145)3 O princípio de composição fundado sobre a perseguição temática revela que a estrutura narrativa tradicional, fundada sobre o encadeamento lógico-temporal de eventos e sua hierarquização conforme sua importância em uma sequência de efeitos é substituída, na narração kunderiana, por um modo de narrar que valoriza a presença das falhas e interrupções da causalidade narrativa. Isso porque, em verdade, Kundera não valoriza a ação dramática por ela mesma, mas sim pela sua capacidade de ser como um telescópio que mostra a dimensão do tema encerrado naquela ação. Essa concepção da unidade temática como foco da composição romanesca reverbera nas fontes temáticas em que Kundera busca a inspiração para trabalhar seus temas. Kvetoslav Chvatik, em seu estudo sobre o mundo romanesco de Milan Kundera, acentua o fato de o 3 [...] a lei kunderiana da unidade temática inverte completamente essa ordem [a ordem de que a unidade temática não deve ter o protagonismo na narrativa, que deve ser das unidades narrativas – voz, perspectiva, personagem, ambiente...]. Ela não apenas coloca o tema sob os holofotes, mas o liberta de sua posição subordinada, atribuindo-lhe o papel principal na inspiração e na escritura da obra e tornando-o o elemento mais visível, o mais imediato e o mais “vinculativo” da estrutura romanesca. Um romance, então, não é mais que a exploração de um tema; é, de início, antes de mais nada e no limite, nada mais do que essa própria exploração. 37 autor tcheco buscar temas que frequentemente valorizam o mal-entendido, pautando-se pela forma rocambolesca das anedotas: De la même manière, dans ses romans suivants, il part souvent de conflits et de motivations anecdotiques (fausse dénonciation, querelle au sujet d’une paternité évitable, lettres perdues, etc.) qu’il transforme en grands thèmes anthropologiques. L’intrigue et les personnages deviennent les signes d’un certain problème intellectuel ou existentiel. L’intrigue du roman, le plus souvent simple et d’ordre quotidien, est constamment exposée à une salve de réflexions percutantes du narrateur, qui dégage ainsi des interprétations inattendues et un sens plus profond, transformant le récit en métaphore de l’être (CHVATIK, 1995, p. 15)4. O próprio Kundera, em uma entrevista concedida ao site France culture5, declarou que, de fato, seus romances têm por base uma fábula bastante simples, por exemplo, A identidade é a história de uma mulher de meia-idade que descobre que já não está com a mesma beleza que tinha quando mais jovem, no entanto, devido a essa simplicidade do enredo, o romancista deve submetê-lo a um interrogatório rigoroso, que faz com que os acontecimentos mais simples escondam as motivações mais enigmáticas. O trabalho com o romance envolve desvendar esses enigmas. Em A identidade, a protagonista, depois de perceber que os homens não se viram mais para olhá-la quando passa, recebe uma carta de um admirador secreto, que lhe elogia a beleza. Movida pela curiosidade, ela passa a tentar descobrir a identidade dele. Tempo depois a personagem recebe outro bilhete: neste, por sua vez, há os dizeres de que ela fica maravilhosa de vermelho. Na sequência, a personagem, que sempre se trajara com cores discretas, passa a desfilar pelas ruas de vermelho. Por que essa súbita mudança? Seria só para agradar seu admirador secreto? Ou há algo além? Talvez ela quisesse descobrir quem lhe mandava aquelas cartas elogiosas; talvez ela quisesse sentir o olhar de estranhos desejando-a; talvez ela precisasse resistir ao tempo e sentir-se bela; talvez... as motivações de Chantal são um enigma, e é tarefa do narrador investigar esse tema. É imperioso registrar que cada romance é construído a partir de sua própria unidade temática, cada obra quer descobrir um aspecto existencial humano desconhecido. No entanto, devemos considerar que, dado os temas kunderianos serem anunciados por meio de palavras 4 Da mesma maneiras, em seus romances subsequentes, ele frequentemente parte de conflitos e motivações anedóticas (falsa denúncia, disputa sobre paternidade evitável, cartas perdidas, etc.) que ele transforma em grandes temas antropológicos. A trama e os personagens tornam-se signos de algum problema intelectual ou existencial. A trama do romance, em sua maioria simples e de ordem cotidiana, é constantemente exposta a uma série de reflexões contundentes do narrador, que resulta assim em interpretações inesperadas e um significado mais profundo, transformando a narrativa em uma metáfora do ser. 5 Disponível em https://www.franceculture.fr/emissions/series/milan-kundera, acessado dia 15/02/2021 https://www.franceculture.fr/emissions/series/milan-kundera 38 abstratas, é uma tarefa hercúlea encontrar, em uma única peça, maneira de figurativizar as múltiplas facetas de uma abstração. É por esse motivo que François Ricard defende que alguns temas kunderianos podem ser estudados sob o prisma da potamologia, ciência que se ocupa do curso das águas, uma vez que algumas questões fluem da nascente existencial e banham as margens de várias obras de Milan Kundera. Polyssemique, voire ambigu, le thème kundérien est le contraire d’un « signe » ; il n’a pas de réfèrent stable par lequel il pourrait être remplacé, et donc effacé. Au contraire, sa nature est de ne se prêter toujours qu’à des déchiffrements approximatifs et provisoires. Il n’est pas fait pour être « décodé », c’est-à-dire dépassé, mais pour être exploré et interrogé sans fin. Car ses connotations, ses « valences » sémantiques, comme celles d’un poème, sont proprement illimitées, et leur « compréhension, comme le dit le romancier du Livre du rire et de l’oubli, se perd […] dans l’immensité » (RICARD, 2003, p. 65)6. Há muitas camadas de compreensão para a citação acima. Deve-se começar destacando que o fato de o tema não ser um signo, não nega sua dimensão linguística, mas sim enfatiza como a apreensão metalinguística, no sentido atribuído por Jakobson, isto é, sentenças equacionais que focalizam um item do código linguístico, não é suficiente para pensar o tema kunderiano, de sorte que a metalinguagem capaz de apreendê-lo deverá ser aquela proposta por Eco, pois resiste ao equacionamento e abre-se para o caráter interativo existente entre diferentes sistemas semióticos. Em síntese, o tema não é um signo linguístico, mas um signo existencial, cuja apreensão tentará ser feita por meio da linguagem verbal e da figuração narrativa. A segunda consideração que deve ser pontuada diz respeito ao processo de decodificação do tema, pois, além de permear todo o romance, o tema parece resistir a uma apreensão estável, quiçá por isso Kundera sustente que as definições perseguidas são fugidias. Mas o que será que esse atributo significa? O tema nutre as raízes de toda a sua prosa romanesca, sustentando o universo de vivências das personagens, que são mobilizadas para perseguir possibilidades existenciais humanas. Como a presença do possível qualifica a vivência, o romancista, ao pensar ter alcançado uma definição fugidia, a vê escapar ante uma nova vivência possível. Por isso, Ricard sustenta que as valências semânticas do tema kunderiano são refratárias à 6 Polissêmico, por vezes ambíguo, o tema kunderiano é o contrário de um “signo”; ele não tem referente estável pelo qual ele poderia ser substituído, e, então, apagado. Ao contrário, sua natureza é de prestar-se apenas a decifrações aproximativas e provisórias. Ele não é feito para ser decodificado, isto é, superado, mas para ser explorado e interrogado sem fim. Pois suas conotações, suas “valências” semânticas, como as de um poema, são propriamente ilimitadas e sua “compreensão, como o diz o romancista d’O livro do riso e do esquecimento, se perde [...] em sua imensidão. 39 compreensão fixa e imutável. Pode-se sustentar, pois, que ao fim do romance, a perseguição é interrompida, mas nunca é concluída. O tema mantém a metalinguagem sempre no nível do processo. 1.3 A PAIXÃO PELA FORMA O arquirromance carrega em si um mister de natureza formal, porque, ante o dito esgotamento da forma romanesca, o arquirromance deve demonstrar que, em verdade, esse esgotamento é apenas propaganda dos detratores de uma arte ainda rica em possibilidades expressivas. Dessa forma, é preciso atentar para os dois predicados que Kundera atribui ao arquirromance quando concebe essa noção: “o arquirromance: primo, ele se concentra sobre aquilo que só o romance pode dizer; secundo, ele faz reviver todas as possibilidades negligenciadas e esquecidas que a arte do romance acumulou durante os quatro séculos de sua história” (KUNDERA, 2013, p. 76). Interessa a esta seção a segunda característica, pois, para aqueles que defendem a crise do romance, a resposta kunderiana é no sentido de que a crise assola apenas o modelo narrativo realista, que foi a rota escolhida e a mais trilhada pelos romancistas, sobretudo ao longo do século XIX. No entanto, a arte do romance possui trilhas que ainda não foram exploradas, mas apenas sugeridas pelos romancistas do passado. Sendo assim, aqui desdobrar- se-ão aspectos formais da arte do romance que enriquecem a noção de arquirromance e, na medida do possível, tentaremos ilustrar como participam da perseguição de definições fugidias — a grande tarefa do romance kunderiano. Há dois pontos de partida possíveis para as reflexões a respeito da paixão pela forma nos ensaios de Kundera. O primeiro consta em suas “Anotações inspiradas por Os sonâmbulos”, ensaio de A arte do romance, em que o ensaísta comenta a construção da tetralogia de Broch naquilo que ela tem de exemplar e de potencial. No movimento final do ensaio, Kundera afirma: Todas as grandes obras (e justamente porque elas são grandes) contêm alguma coisa inacabada. Broch nos inspira não só por tudo o que ele levou a bom termo mas também por tudo o que visou sem atingir. O inacabado de sua obra pode nos fazer compreender a necessidade: 1. de uma nova arte do despojamento radical (que permita abranger a complexidade da existência no mundo moderno sem perder a clareza arquitetônica); 2. de uma nova arte do contraponto romanesco (suscetível de unir em uma só composição a filosofia, a narrativa e o sonho); 3. de uma arte do ensaio especificamente romanesco (isto é, que não pretenda trazer uma mensagem 40 apodítica, mas que permaneça hipotética, lúdica ou irônica) (KUNDERA, 2016, p. 72- 73). Embora as três necessidades mapeadas por Kundera tenham um apelo formal bastante claro, examinaremos a primeira: o desenvolvimento de uma arte do despojamento radical. No entanto, é oportuno mencionar que tanto a arte do contraponto romanesco quanto a do ensaio especificamente romanesco serão tratadas com mais detalhes na seção do romance que pensa. O segundo ponto de partida está nas reflexões desenvolvidas no nono ensaio de Os testamentos traídos, “Nisso, meu caro, você não manda”. Nele, Kundera defende a soberania do autor sobre sua própria obra, tendo o direito de definir quais peças quer colocar como representativas de sua obra e quais deixar de fora. Durante a argumentação, Kundera afirma que, ao tentar se fixar o valor estético de uma obra, os intérpretes, críticos ou tradutores, podem ter dificuldade com determinada técnica empregada pelo autor, de sorte que tendem a tentar adaptá-la para melhor adequá-la ao todo. No entanto, Kundera traz sua própria experiência para defender a ideia de que é justamente no ponto incômodo que está o cerne do valor inovador da obra. Vejamos: Minha velha experiência com os tradutores: se eles deformam você, nunca é nos detalhes insignificantes mas sempre no essencial. O que não é sem lógica: é na novidade (nova forma, novo estilo, nova maneira de ver as coisas) que se encontra o essencial de uma obra de arte; e é certamente o novo que, de um modo inteiramente natural e inocente se choca com a incompreensão (KUNDERA, 2017, p. 257). Se é na nova forma, novo estilo e nova perspectiva que está a originalidade do autor, é preciso identificar nos ensaios de Kundera as ponderações de natureza formal que ele traz a fim de compreender qual é a especificidade formal do romance kunderiano. Nesse sentido, compreender as balizas que norteiam a composição formal dos romances de Kundera é fundamental para compreender a novidade que ele quer trazer na noção de arquirromance. P