UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS LARISSA RODRIGUES ALVES AS TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES DE AMIZADE DO IMPERADOR JULIANO SEGUNDO SUAS IDEIAS NEOPLATÔNICAS (SÉC. IV D.C.) FRANCA 2022 LARISSA RODRIGUES ALVES AS TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES DE AMIZADE DO IMPERADOR JULIANO SEGUNDO SUAS IDEIAS NEOPLATÔNICAS (SÉC. IV D.C.) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré-requisito para a obtenção do título de Mestra em História e Cultura. Sob a supervisão da Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho (Departamento de História e Pós-graduação em História da UNESP/Franca). FRANCA 2022 A474t Alves, Larissa Rodrigues As transformações nas relações de amizade do imperador Juliano segundo suas ideias neoplatônicas (séc. IV d.C.) / Larissa Rodrigues Alves. -- Franca, 2022 207 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Margarida Maria de Carvalho 1. Antiguidade Tardia. 2. Imperador Juliano. 3. Basileía. 4. Neoplatonismo. 5. Amizade. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. LARISSA RODRIGUES ALVES AS TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES DE AMIZADE DO IMPERADOR JULIANO SEGUNDO SUAS IDEIAS NEOPLATÔNICAS (SÉC. IV D.C.) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré-requisito para a obtenção do título de Mestra em História. Área de concentração: História e Cultura. BANCA EXAMINADORA Presidente: _________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca) 1º Examinador: _____________________________________________________________ Prof. Dr. Renan Frighetto (UFPR/Curitiba) 2º Examinadora: ____________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Helena Amália Papa (UNIMONTES/Montes Claros) AGRADECIMENTOS Ao longo de toda a minha trajetória no Mestrado, contei com uma série de críticas e apontamentos recebidos durante as apresentações de trabalho, participações em eventos, desenvolvimento e publicação de artigos, reuniões de orientação, além de encontros com outros alunos e professores que foram fundamentais para o desenvolvimento desta Dissertação. Obtive apoios financeiros, psicológicos e emocionais sem os quais eu não teria sido capaz de finalizar este trabalho. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer pelos dois meses que recebi a Bolsa de Mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), processo número 88887.511135/2020-00 – Código de Financiamento 001 –, entre os meses de agosto e setembro de 2020. Após este período, fui contemplada com a Bolsa de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo número 2020/05378-5, vigente de outubro de 2020 à julho de 2022. A presença dessas duas instituições em minha vida me possibilitou uma dedicação exclusiva a esta pesquisa durante os meses em que delas desfrutei. Eu não poderia deixar de mencionar o suporte recebido da UNESP/Franca em todos os sentidos possíveis. Em segundo lugar, agradeço à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho, uma exímia profissional e alguém por quem tenho muito carinho. Eu não teria palavras o suficiente para lhe transmitir todo o significado dos últimos sete anos de orientação. Começamos as nossas reuniões no primeiro ano de minha Graduação, obtivemos a Bolsa de Iniciação Científica da FAPESP em 2019, processo número 2018/23790-0, e fomos capazes de continuar o belíssimo estudo levado a cabo anteriormente. Transmito a você, querida Margô, o mais alto grau de respeito em consideração à sua trajetória acadêmica e à pessoa maravilhosa que é. Gratidão por ter tido a oportunidade de compartilhar mais esta conquista contigo. Em especial, sou muito grata ao Prof. Dr. Renan Frighetto e à Prof.ª Dr.ª Helena Amália Papa por suas excelentes colocações na minha Banca de Qualificação de Mestrado. As suas contribuições para a confecção desta análise não poderiam ser descritas em tão poucas linhas. Ademais, reconheço o grande valor dos encontros entre os orientandos e pós-doutorandas partícipes do Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (G. LEIR/UNESP – Franca) e do Laboratório de Arqueologia (Lab.Arque – UNESP/Franca). Portanto, estendo a minha gratidão às meninas e ao menino da Margô: Janira Feliciano Pohlmann, Natália Frazão José, Viviana Lo Monaco, Bárbara Alexandre Aniceto, Letícia Aga Pereira Passos, Isabela Casellato Torres, Monique Cerri, Mariane Cerri, Thaís de Almeida Rodrigues, Júlio César Caetano Costa e Ana Carolina Picoli Sotocorno. Não seria possível deixar de mencionar os membros da minha família, todos extremamente solícitos no percurso dessa jornada: meu pai, Eduardo, minha mãe, Raquel, minha avó materna, Célia, e minha irmã mais velha, Vanessa. Todos os homens sonham, mas não da mesma forma. Os que sonham de noite, nos recessos poeirentos das suas mentes, acordam de manhã para verem que tudo, afinal, não passava de vaidade. Mas os que sonham acordados, esses são homens perigosos, pois realizam os seus sonhos de olhos abertos, tornando-os possíveis. Thomas Edward Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria. RESUMO No século IV d.C., o imperador possuía um papel central no governo do Império e precisava lidar com diferentes pessoas, principalmente com as elites romanas. Por isso, a compreensão da amizade na Antiguidade Tardia é fundamental para pensarmos as relações sociais e de poder deste período. Ao imperador Juliano foram dedicados inúmeros estudos ao longo dos anos. Contudo, até a nossa Iniciação Científica, nenhuma destas pesquisas tinha colocado em discussão a temática da amizade. Nesse sentido, desejamos dar continuidade a esta tarefa durante o Mestrado. Analisando quarenta e oito das setenta e três epístolas de Juliano, durante a Iniciação Científica, fomos capazes de observar dois tipos de amizades descritos por este governante, associando-os aos vocábulos philía e amicitia, cada qual ligado ao seu respectivo universo cultural. Em nosso Mestrado, levantamos a hipótese de que as relações de amizade de Juliano sofreram alterações entre o momento em que ele atuou como César e quando governou como imperador. Queremos dizer com isto que ele começou a negligenciar o tipo de amizade associado à amicitia, no arco temporal de 355 e 363 d.C. Tais mudanças guardam relação com o seu aprofundamento nos estudos filosóficos, caracterizados por um neoplatonismo teúrgico da corrente de Jâmblico e pelos mistérios orientais. Consequentemente, a maneira como este imperador governava e concebia sua basileía também sofreu alterações. Para realizarmos nossa investigação, utilizaremos cinquenta e sete epístolas (incluindo as quarenta e oito da nossa Monografia) e cinco discursos de Juliano – a partir das traduções em grego/francês, grego/inglês e espanhol –, que são os seguintes: Carta para Temístio, o filósofo, Consolação a si mesmo sobre a partida do excelente Salústio; Hino à Mãe dos Deuses, Os Césares e Hino a Hélios Rei. Palavras-chave: Antiguidade Tardia; imperador Juliano; basileía; neoplatonismo; amizade. ABSTRACT In the 4th century AD, the emperor had a central role in the government of the Empire and had to deal with different people, especially the Roman elites. Therefore, the understanding of friendship in Late Antiquity is essential to think about the social and power relations of this period. Numerous studies have been devoted to Emperor Julian over the years. However, until our Scientific Initiation, none of these researches had brought up the topic of friendship. In this sense, we wish to continue this task during the Master's. Analyzing forty-eight of Julian's seventy-three epistles, during the Scientific Initiation, we were able to observe two types of friendships described by this ruler, associating them with the words philia and amicitia, each one linked to its respective cultural universe. In our Master's, we hypothesized that Julian's friendships changed between the time he acted as Caesar and when he ruled as emperor. By this we mean that he began to neglect the kind of friendship associated with amicitia, in the time arc of 355 and 363 AD. Such changes are related to his deepening in philosophical studies, characterized by a theurgical neoplatonism of the Iamblichus current and by the oriental mysteries. Consequently, the way in which this emperor ruled and conceived his basileia also underwent changes. To carry out our investigation, we will use fifty-seven epistles (including the forty-eight of our Monography) and five speeches by Julian – from the translations in Greek/French, Greek/English and Spanish –, which are the following: Letter to Themistius, the philosopher, Consolation to himself upon the departure of the excellent Sallust; Hymn to the Mother of the Gods, The Caesars and Hymn to King Helios. Keywords: Late Antiquity; Emperor Julian; basileia; Neoplatonism; Friendship. RESUMEN En el siglo IV d.C., el emperador tenía un papel central en el gobierno del Imperio y tenía que tratar con diferentes personas, especialmente con las élites romanas. Por tanto, la comprensión de la amistad en la Antigüedad Tardía es fundamental para pensar las relaciones sociales y de poder de este período. Se han dedicado numerosos estudios al emperador Juliano a lo largo de los años. Sin embargo, hasta nuestra Iniciación Científica, ninguna de estas investigaciones había planteado el tema de la amistad. En este sentido, deseamos continuar con esta tarea durante el Máster. Analizando cuarenta y ocho de las setenta y tres epístolas de Juliano, durante la Iniciación Científica, pudimos observar dos tipos de amistades descritas por este gobernante, asociándolas con las palabras philía y amicitia, cada una ligada a su respectivo universo cultural. En nuestro Máster, planteamos la hipótesis de que las amistades de Juliano cambiaron entre el momento en que actuó como César y cuando gobernó como emperador. Con esto queremos decir que comenzó a descuidar el tipo de amistad asociada con la amicitia, en el arco de tiempo de 355 y 363 d.C. Tales cambios están relacionados con su profundización en los estudios filosóficos, caracterizados por un neoplatonismo teúrgico de la corriente de Jámblico y por los misterios orientales. En consecuencia, la forma en que este emperador gobernaba y concebía su basileía también sufrió cambios. Para llevar a cabo nuestra investigación, utilizaremos cincuenta y siete epístolas (incluidas las cuarenta y ocho de nuestra Monografía) y cinco discursos de Juliano – de las traducciones al griego/francés, griego/inglés y español –, que son los siguientes: Carta a Temistio, el filósofo, Consolación a sí mismo por la marcha del excelente Salustio; Himno a la Madre de los Dioses, Los Césares e Himno a Helios Rei. Palabras clave: Antigüedad Tardía; emperador Juliano; basileía; neoplatonismo; amistad. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 CAPÍTULO I – TRATAMENTO DOCUMENTAL: EPISTOLOGRAFIA, DISCURSO DE CONSOLAÇÃO E HINOS JULIÂNICOS .................................................................... 23 1. 1. As missivas do imperador Juliano ..................................................................... 24 1. 2. Carta para Temístio, o filósofo ............................................................................ 32 1. 3. Consolação a si mesmo sobre a partida do excelente Salústio .......................... 41 1. 4. Hino à Mãe dos Deuses ....................................................................................... 48 1. 5. Os Césares ............................................................................................................ 52 1. 6. Hino a Hélios Rei ................................................................................................. 56 CAPÍTULO II - CONTEXTUALIZAÇÃO POLÍTICO-CULTURAL DO IMPERADOR JULIANO ............................................................................................................................... 60 2. 1. O século IV: os cristianismos, o helenismo e as medidas governamentais do imperador Juliano ................................................................................................................. 60 2. 2. A paideía do século IV: educação, cultura e grupo de pertencimento .......... 70 2. 3. As correntes neoplatônicas, a teurgia de Jâmblico e os mistérios orientais . 78 CAPÍTULO III - CATALOGAÇÃO E ANÁLISE DE VOCÁBULOS GREGOS ........... 95 3. 1. Catálogo ............................................................................................................... 99 3. 2. Tabela de vocábulos gregos .............................................................................. 122 CAPÍTULO IV – AS TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES DE AMIZADE DE JULIANO E O SEU IDEAL DE BASILEÍA ..................................................................... 133 4. 1. O conceito de amizade de Juliano: entre a philía e a amicitia ...................... 133 4. 2. Os amigos de Juliano: modificações entre o cesarato e o governo do Império ................................................................................................................................................ 145 4. 3. Basileía: tolerância e justiça ............................................................................ 152 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 165 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 168 Documentações textuais ........................................................................................... 168 Obras de referência .................................................................................................. 169 Obras gerais .............................................................................................................. 169 APÊNDICES ......................................................................................................................... 188 APÊNDICE A – CRONOLOGIA DA VIDA DE JULIANO ................................ 188 APÊNDICE B – CARTAS, DATAÇÃO, LOCALIZAÇÃO E ELEMENTOS PROSOPOGRÁFICOS ............................................................................................ 192 ANEXOS ............................................................................................................................... 204 ANEXO A – O IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO IV ...................................... 204 ANEXO B – MAPA DA GÁLIA NO SÉCULO IV .............................................. 205 ANEXO C – ESTÁTUA DE MÁRMORE DO IMPERADOR JULIANO ......... 206 ANEXO D – ÁRVORE GENEALÓGICA DO IMPERADOR JULIANO ......... 207 12 INTRODUÇÃO Flávio Cláudio Juliano, personagem central da nossa investigação, nasceu em 331 e faleceu em 3631. Possuidor de uma vida conturbada, entre o massacre2 da sua família e os períodos de isolamento, foi o último imperador da dinastia constantiniana. Tornou-se César do seu primo, Constâncio II (317 – 361), entre os anos de 355 e 360, proclamado Augusto pelas tropas militares da Gália no final de 360 e declarado único governante do Império Romano em 361. Recebeu uma educação cristã ariana3, mas era um helênico4 em seu íntimo. Pleiteia-se que o responsável pelo seu interesse quanto à cultura helênica tenha sido Mardônio, educador de sua infância e encarregado da educação de sua mãe, Basilina (? – 332). Jean Martin (2007) argumentou, em um artigo publicado originalmente em 1998, que esse professor poderia ter sido Nícocles5, uma das pessoas que lecionaram para Juliano na cidade de Constantinopla, ao alegar um erro de tradução. Não concordamos com Martin, uma vez que, como nos informou Joseph Bidez (2012), o nosso personagem já demonstrava conhecer os clássicos gregos desde o seu exílio em Macellum, período anterior ao encontro com Nícocles. A apostasia de Juliano só se tornaria pública após a sua proclamação como Augusto. Ele foi moldado pela paideía grega e fortemente influenciado pelos escritos de Homero (VIII a.C.), Platão (428/427 – 348/347 a.C.), Aristóteles (384 – 322 a.C.), entre outros grandes nomes da Antiguidade Clássica (BIDEZ, 2012). Existe todo um arcabouço documental para a reconstrução da história do imperador Juliano. Além dos seus próprios textos, deparamo-nos com os escritos literários greco-latinos e orientais, as leis, os objetos arqueológicos, a epigrafia e a iconografia. Lamentamos a perda de algumas dessas documentações e aquelas que chegaram aos nossos dias de forma fragmentária, como o seu discurso Contra os galileus. Encontramos obras da antiguidade que fizeram uso de outras produções do mesmo período ou de épocas anteriores para compor as suas redações. 1 Todas as datas as quais nos referimos remetem ao período depois de Cristo, salvo quando devidamente assinalado. 2 Evento denominado como massacre de 337. 3 O cristianismo do século IV foi marcado por contendas internas, sobretudo quanto ao dogma trinitário. Os cristãos arianos, apoiados por Constâncio II, acreditavam que o pai, o filho e o espírito santo não eram compostos pela mesma substância. Já o credo niceno, que hoje reconhecemos como ortodoxo, professava a consubstancialidade entre essas três entidades (PAPA, 2013). 4 Para Juliano, três elementos caracterizavam um helênico: o uso da língua grega, o conhecimento da cultura e da sociedade gregas e o culto da religião helênica (BOUFFARTIGUE, 1992). Enfatizamos o uso dos termos não cristão ou helênico em detrimento de pagão, assim como helenismo em lugar de paganismo. Isto porque esse termo – paganus – no século IV dizia respeito às pessoas que não gozavam das honras e dos prestígios ligados ao serviço imperial. Foi somente a partir de 370 que ele começou a ser utilizado por cristãos latinos em um sentido religioso e, mesmo assim, os cristãos de origem grega preferiam o termo hellēnes (BROWN, 2012). 5 Alguns dos personagens históricos mencionados nesta Dissertação têm o seu ano de nascimento e morte incertos e, portanto, não possuem arco temporal definido. 13 Podemos dividir os registros acerca do imperador neoplatônico entre aqueles elaborados em grego ou latim, contemporâneos ou posteriores a ele, helênicos ou cristãos. Seguem os nomes de alguns dentre os muitos personagens importantes nas pesquisas concernentes a Juliano: Oribásio de Pérgamo (320 – 403), Eunápio de Sárdis (347 – 414), João Malalas (491 – 578), Cláudio Mamertino, Amiano Marcelino (325/330 – 391), Himério de Atenas, Libânio (314 – 394), Temístio (317 – 387), Saturnino Segundo Salústio, Gregório de Nazianzo (329 – 389), João Crisóstomo (347 – 407), Basílio de Cesareia (330 – 379), Filostórgio (368 – 439), Sócrates Escolástico (380 – ?), Teodoreto de Ciro (393 – 458/466), Cirilo de Alexandria (375 – 444), Sozomeno (375 – 447), Zósimo, Ambrósio de Milão (340 – 397), Agostinho de Hipona (354 – 430), Paulo Orósio (385 – 420) e Efrém de Nísibis (306 – 373) (ALONSO-NUÑEZ, 1971). Desde a nossa Iniciação Científica6, analisamos o conceito de amizade do imperador Juliano e o que, para ele, constituiria um bom amigo. Neste momento, possuímos como foco o estudo das relações de amizade mantidas por ele. Temos por hipótese que os laços preservados por esse personagem sofreram alterações ao longo da sua vida. Acreditamos que essas variações estejam intimamente conectadas à sua dedicação aos estudos neoplatônicos, intensificados ulteriormente à sua nomeação como César e com ápice no seu governo enquanto imperador. O neoplatonismo praticado por ele estava inserido na corrente filosófica de Jâmblico (245 – 325), de cunho teúrgico e em ligação com a prática dos mistérios orientais. De maneira sincrônica, quando falamos de filosofia em Juliano, referimo-nos também à paideía que constituiu a sua educação e formação enquanto indivíduo. Consideramos que a mudança nas relações de amizade mantidas por ele se refletiu na sua concepção de basileía, isto é, na forma como ele deveria governar e quais pessoas estariam ao seu lado nessa tarefa. As documentações com as quais trabalhamos são constituídas por um total de cinquenta e sete epístolas, das quais quarenta e oito foram usadas em nossa Monografia, e por cinco discursos de Juliano. Das missivas, trabalhamos com as de número 4, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 17b, 19, 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 40, 41, 46, 54, 58, 59, 60, 61c, 73, 75b, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89a, 89b, 96, 97, 98, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 114, 115, 136b, 152, 1537. Dois dos discursos aos quais recorremos foram escritos durante os seus encargos como César – Carta para Temístio, o filósofo e Consolação a si mesmo sobre a partida do excelente Salústio – e três na qualidade de imperador – Hino à Mãe dos Deuses, Os Césares e Hino a Hélios Rei. Usufruímos das traduções em grego/francês de Bidez, Gabriel 6 Processo FAPESP de número 2018/23790-0. 7 Seguiremos, para a escrita desta Dissertação, a classificação e numeração das cartas realizadas por Bidez- Cumont. 14 Rochefort e Christian Lacombrade (Les Belles Lettres), em grego/inglês de Wilmer Cave Wright (Loeb Classical Library) e em espanhol de José García Blanco e Pilar Jiménez Gazapo (Editorial Gredos). Justificamos a escolha de trabalhar com as epístolas na medida em que elas representam uma faceta íntima de Juliano, normalmente não exposta nos seus discursos, ao menos não explicitamente. Elas ainda nos auxiliam na reconstituição das suas redes de sociabilidades, bem como nos permitem observar mudanças nos seus pensamentos em um determinado arco temporal, algo que não ocorre com os discursos que são, de certo modo, mais pontuais. A Carta para Temístio, o filósofo contém os principais ideais do César acerca da basileía. Percebemos mudanças nesse quesito se associarmos o discurso e o seu período de escrita com as cartas redigidas pelo imperador, especialmente aquelas ligadas a algumas das suas leis e às suas medidas político-religiosas. Esse discurso é um importante ponto de partida para discutirmos essa questão, aliado à sátira Os Césares, na qual nos deparamos com o ideal de basileía de um Juliano que já atuava no comando do Império. A Consolação a si mesmo sobre a partida do excelente Salústio é testemunha de um dos laços mais profundos mantidos pelo nosso personagem ao longo da sua vida e, portanto, indispensável para esta pesquisa. Os seus hinos contêm importantes informações sobre a sua filosofia neoplatônica e a prática dos mistérios orientais. Temos a consciência de que os tópicos supracitados estão presentes em todo o corpus documental do imperador, porém, devido à inevitabilidade de um recorte documental, estes foram os textos selecionados. Recorremos a dois pressupostos teóricos: o conceito de representação e o de história política. No primeiro caso, Roger Chartier afirmou que “A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler.” (CHARTIER, 2002, p. 16-17). Este autor nos lembrou que não existem discursos neutros e que a representação pode estar ligada a algo que existiu e não existe mais ou ser estabelecida simbolicamente. Atinamos que os discursos de Juliano refletem um certo contexto, tanto histórico – o Império Romano do século IV – quanto pessoal. Em conjunto, é preciso lidar com uma vasta historiografia que o representou sob variados prismas. Afinal, Juliano foi um príncipe filósofo, um herói da cultura helênica na Antiguidade Tardia, um perseguidor dos cristãos, um mito? Ou apenas um homem? Simultaneamente, o livro organizado por René Rémond (2003), Por uma História Política, inspira-nos a conceber o político como a estruturação de uma sociedade, composta pela mescla de representações da mesma. Não podemos nos esquecer de que o século IV foi caracterizado por uma combinação cultural extremamente heterogênea. É impossível 15 cogitarmos falar das práticas políticas e do ideal de basileía de Juliano sem refletirmos sobre questões culturais, religiosas, filosóficas e tantas outras que compuseram este arco temporal. Destacamos um capítulo em especial dessa obra, redigido por Jean-François Sirinelli, que se aprofundou no tema dos intelectuais franceses do século XX. Dos pontos elencados por esse autor, interessa-nos aqueles que demonstram a importância do estudo prosopográfico e das redes de sociabilidades na pesquisa desses personagens, afinal, é exequível denominarmos Juliano e grande parte dos seus correspondentes como intelectuais8. Falar de um grupo de intelectuais e do seu microcosmo requer que pensemos nas ideias, na cultura e nas mais variadas afinidades que os aproximaram, sem deixarmos de lado a afeição existente entre essas pessoas. As estruturas dessas redes de sociabilidades eram complexas, mas não podem ser ignoradas ou subestimadas. Outro quesito a ser abordado é o papel social e político-cultural do grupo estudado (SIRINELLI, 2003). Outrossim, é primordial para esta Dissertação definirmos o que entendemos por Antiguidade Tardia. Esse conceito foi desenvolvido por muitos pesquisadores, tais como Peter Brown (1971) e Henri-Irénée Marrou (1977). Cada um deles definiu, à sua maneira, o recorte temporal e as características do arco nomeado como Antiguidade Tardia. A partir dessas leituras, delimitamos que essa época se reporta de meados do século III ao final do século VII. Ela foi marcada por continuidades e rupturas e nos encaminha ao discernimento de que os diversos setores que compunham a sociedade romana do século IV não podem ser estudados separada ou isoladamente. Em termos metodológicos, apoiamo-nos na Análise de conteúdo, sobretudo na abordagem do tipo categorial (BARDIN, 2011), e na História das Emoções. Problemas e métodos (ROSENWEIN, 2011). Conquanto, não nos debruçaremos nos detalhes que compõem essas obras neste momento. Esse quesito será tratado com minuciosidade no Capítulo III desta Dissertação. Não obstante, gostaríamos de elencar alguns pontos sobre a linha da História das Emoções em virtude dos estudos embrionários que ela possui no Brasil. Sabemos que essa linha de pesquisa floresceu significativamente nas últimas décadas. O propósito dos estudos realizados sob essa perspectiva é o de pensar como as emoções foram sentidas e expressadas no passado. Ao mesmo tempo, procura-se por mudanças na concepção desses sentimentos entre o passado e o presente. Preocupação do nosso tempo, nos últimos vinte 8 Quanto ao uso do vocábulo intelectual na Antiguidade Tardia, referenciamos a definição contida no livro Intelectuais, poder e política na Roma Antiga: “No caso dos escritores, cujas obras compõem o que hoje se considera uma “tradição clássica”, o conceito de “intelectual” revela-se particularmente interessante por ser mais abrangente que os rótulos de poeta, filósofo, historiador e orador, tradicionalmente aplicados a esses escritores. Essa tendência a compartimentar a atividade intelectual, a colocar fronteiras entre as esferas do conhecimento, é muito mais um fenômeno contemporâneo do que propriamente uma característica do pensamento antigo.” (ARAÚJO; ROSA; JOLY, 2010, p. 14). 16 e cinco anos a nossa cultura passou a se importar consideravelmente com as emoções, não se restringindo ao campo da história. Essa é uma temática presente na psicologia, na neuropsicologia, na filosofia, na sociologia e até mesmo no jornalismo. De certa forma, esse campo de pesquisa tem por alicerce o questionamento acerca do que é uma emoção. Afinal, o que faz com que os gestos e as palavras sejam compreendidos como emoções? São sentimentos inatos ou aprendidos ao longo da vida? Racionais ou irracionais? Do ponto de vista dos estudos históricos, temos o conhecimento de que cada sociedade do passado definiu as emoções à sua própria maneira, o que muitas vezes pode soar estranho aos nossos ouvidos. O que hoje chamamos de emoções foram definidas diversamente em períodos distintos. A título de exemplo, os romanos, ao contrário de nós, consideravam a benevolência como um sentimento (ROSENWEIN; CRISTIANI, 2018). A obra de Pierre Ansart (2019), originalmente publicada em língua francesa no ano de 1983, articulou os sentimentos à vida política na contemporaneidade. A despeito de não se tratar de um livro inserido na pesquisa da antiguidade, a sua relevância se deve ao fato de ter sido uma das primeiras composições com tal intuito. Talvez as palavras desse autor possam expressar mais explicitamente o nosso posicionamento quanto à importância das emoções nos estudos históricos: A ciência positivista escolheu eliminar de seu foco as experiências cotidianas, para reter da realidade política apenas aquilo que pode ser objeto de uma tradução racionalizante. Porém, ao preço de um fracasso: a impossibilidade de compreender a experiência concreta dos agentes da história, tal como eles a experimentam ou sofrem (ANSART, 2019, p. 7). Também é importante destacarmos estudos como The Emotions: Social, Cultural and Biological Dimensions, editado por Rom Harré e W. Gerrod Parrott, em 1996. Nessa coletânea, deparamo-nos com capítulos que analisam diferentes emoções, desde a antiguidade até a contemporaneidade. Os seus autores nos mostraram como as emoções, enquanto respostas biológicas e expressões de julgamento, são submetidas a regras e convenções. Dentro de cada cultura, esses sentimentos seguem uma moral específica e um sistema normativo. As emoções sob a perspectiva dessa obra podem agir, para exemplificar, como controle social (constrangimento, vergonha, culpa) (HARRÉ; PARROTT, 1996). Avançando para um livro pertencente especificamente à História Antiga, dispomos daquele redigido por Robert A. Kaster (2005), denominado Emotion, Restraint, and Community in Ancient Rome. O seu conteúdo procurou compreender a interação existente entre as emoções e a ética presente nos estratos mais abastados da sociedade romana, isto é, nas ordens senatorial 17 e equestre, incluindo suas respectivas famílias, na transição entre a República e o Principado. Aqui, houve uma perspectiva de que os sentimentos e o jeito como eles são expressados reforçam as normas adotadas pela cultura romana no arco temporal em questão. Citemos alguns dos principais questionamentos de Kaster e que foram esmiuçados ao longo da sua escrita: Como (na visão romana) o comportamento virtuoso é moldado pelas emoções, especialmente aquelas movidas pela autoconsciência e pela consideração de (e para) os outros? Como, em particular, as várias formas romanas de medo, consternação, indignação e repulsa apoiam ou restringem diferentes tipos de comportamento eticamente significativos? Quais são os domínios específicos das várias emoções nas quais nos concentraremos e como elas se cruzam, sobrepõem-se ou se complementam? E como a sua interação cria uma economia de desprazer, um sistema que faz com que os sentimentos negativos circulem de forma construtiva? (KASTER, 2005, p. 4). Dois anos depois da publicação de Kaster, detectamos aquela executada por Margaret R. Graver, Stoicism and Emotion, lançada em 2007. Aparentemente, o título citado apresenta uma contradição: Stoicism, no inglês contemporâneo, significa sem emoção, em contraste com a palavra Emotion. A autora nos explicou que isso se dá porque temos uma visão de que os estoicos da Grécia Antiga defendiam a supressão dos sentimentos. Consequentemente, historiadores da História das Emoções têm olhado com suspeita e, às vezes, até mesmo com hostilidade para os estoicos. O que Graver tentou demonstrar para os seus leitores foi que os fundadores do estoicismo não desejavam suprimir ou negar os sentimentos naturais humanos. A discussão central, nesses escritos antigos, trata-se de questionar quais seriam os verdadeiros sentimentos naturais do homem e aqueles que são dispensáveis para que ele possa ser livre de falsas crenças (GRAVER, 2007). No ano de 2008, ocorreu a defesa da Tese de Barbara Sidwell, nomeada The Portrayal and Role of Anger in the Res Gestae of Ammianus Marcellinus. Essa autora teve por hipótese de que a raiva, nos escritos de Amiano Marcelino, transmite-nos muito mais acerca da educação, dos valores, da religião e da personalidade do próprio autor de sua documentação do que a respeito das pessoas sobre as quais ele escreveu. Sidwell ainda teve por objetivo aprofundar o entendimento do papel do sentimento da raiva na vida individual e coletiva dos personagens históricos citados por Amiano, assim como a maneira pela qual o autor se apropria dessa emoção para influenciar os seus leitores e tornar a sua narrativa mais vívida (SIDWELL, 2008). Alguns anos depois, em 2012, ocorreu a publicação da obra Unveiling Emotions: Sources and Methods for the Study of Emotions in the Greek World, editada por Angelos Chaniotis. Esse editor nos informou que todo fenômeno histórico, bem como cada 18 documentação textual ou cultura material analisados pelo historiador, está direta ou indiretamente conectado às emoções. Isso se dá seja porque esse acontecimento é determinado por elas, seja por almejar despertar emoções ou por estimular memórias afetivas. Logo, a questão não é se o historiador deve ou não estudar esses sentimentos, pois, conforme Chaniotis, essa tarefa está implícita em seu trabalho e não se trata de uma escolha (CHANIOTIS, 2012). Em 2016, defrontamo-nos com a obra editada por Ruth A. Caston e Kaster. Ao contrário dos estudos citados anteriormente, como aqueles que se preocupam com o medo ou com a raiva, esta obra foi dedicada ao que os editores chamaram de emoções positivas. Normalmente, elas são pouco trabalhadas na antiguidade se comparadas às emoções consideradas negativas, tais quais aquelas a que nos referenciamos. O que emergiu desses estudos foi a interação que essas emoções positivas conseguiam manter com outras emoções, tanto positivas quanto negativas, algo que não ocorria quando pensamos nas emoções negativas que geralmente interagiam apenas entre si (CASTON; KASTER, 2016). Por fim, em 2020, ocorreu a difusão da obra de Rosenwein, intitulada Anger. The Conflicted History of an Emotion. Ao longo do livro, a autora procurou compreender os diálogos entre os pensamentos e as teorias que falam acerca da raiva e como ela é expressada por meio de comportamentos na vida cotidiana. Os seus estudos abarcam o sentimento da raiva em diferentes comunidades emocionais. Podemos mencionar a rejeição de tal emoção no budismo e no estoicismo, a raiva como um vício e, ocasionalmente, como uma virtude em Aristóteles e nos seus herdeiros, além da noção de que a raiva é um sentimento natural sob a ótica de tradições médicas (ROSENWEIN, 2020). Embora tenhamos acesso a obras internacionais na linha da História das Emoções, como as citadas anteriormente, apenas a de Sidwell lidou com a Antiguidade Tardia. No Brasil, conhecemos duas historiadoras que trabalham com a referida metodologia: Margarida Maria de Carvalho e Luciane Munhoz de Omena, sendo que apenas a primeira realiza pesquisas no período da Antiguidade Tardia. Carvalho (2020c), em seu capítulo de livro, analisou os sentimentos de Juliano na rota da sua morte, a saber: a raiva, a ironia e a frustração. O período citado, entre julho de 362 e março de 363, foi caracterizado na vida dele por uma estadia turbulenta em Antioquia que lhe causou grandes ressentimentos para com os antioquianos. Em resposta aos conflitos vivenciados nessa região, o nosso personagem redigiu as cartas 84, 89a e 89b, ademais da sátira intitulada Misopṓgōn, documentações textuais usadas pela autora em questão. Já Omena (2020) explanou sobre como a morte era experimentada socialmente, utilizando-se da cultura material, isto é, do mausoléu de Augusto. A morte na antiguidade representava um tipo de poluição e havia toda uma regulamentação referente aos enterros, ao 19 estatuto social dos mortos e aos rituais fúnebres. Sentimentos como os de perda e medo foram trabalhados por essa autora no período do Principado Romano. Quando pensamos especificamente em Juliano, deparamo-nos com incontáveis referências bibliográficas direta ou indiretamente conectadas a ele. Somos capazes de afirmar que, com exceção dos trabalhos levados a cabo por Carvalho (2020a, 2020c), nenhuma dessas produções acadêmicas lidou com a História das Emoções. Seria impossível para nós detalharmos cada um dos textos aos quais tivemos acesso nesta Introdução. Todos eles encontram-se diluídos na nossa Dissertação, devidamente indicados. No entanto, acreditamos ser importante citarmos ao menos os nomes das publicações que versaram sobre Juliano entre 2011 e 2021. Tivemos acesso a livros autorais, obras organizadas, capítulos de livros, artigos e frutos de Mestrado, Doutorado e apresentações em eventos, publicados nacional e internacionalmente. Lembramos que, quando nos reportamos aos lançamentos no exterior, tratamos especificamente de redações escritas em inglês, francês, espanhol e italiano. A começar pela produção estrangeira, em ordem cronológica de lançamento, apontamos os seguintes livros: Emperor and Author: the writings of Julian the Apostate, organizado por Nicholas Baker-Brian e Shaun Tougher (2012); Sons of hellenism, Fathers of the Church. Emperor Julian, Gregory of Nazianzus, and the Vision of Rome (ELM, 2012); L’ombre de l’empereur Julien. Le destin des écrits de Julien chez les auteurs païens et chrétiens du IVe au VIe siècle (CÉLÉRIER, 2013); Themistius, Julian, and Greek Political Theory under Rome. Texts, Translations, and Studies of Four Key Works (SWAIN, 2013a); L’imperatore Giuliano. Realtà storica e rappresentazione, organizado por Arnaldo Marcone (2015); Giuliano. L’Imperatore filosofo e sacerdote che tentò la restaurazione del paganesimo (MARCONE, 2019). Em complemento, observamos os capítulos de livros Philanthropie et royauté chez Julien: deux concepts pour une meilleure compréhension de ses pratiques militaires (CARVALHO, 2016b); Politique et culture dans l'Antiquité tardive: l'empereur Julien et le Contre Julien de Grégoire de Nazianze (CARVALHO, 2017). Quanto aos artigos identificados, nomeamos: Juliano el Apóstata: Estudio de las Cartas escritas entre los años 355 y 360 (REDONDO MOYANO, 2012); Encuentros, desencuentros y reencuentros com Juliano: el Emperador Apóstata y sus secuelas a lo largo de la Historia (MORENO PAMPLIEGA, 2012); Flavius Claudius Julian's rhetorical speeches: stylistic and computational approach (ALEXANDROPOULOS, 2013); Reclutamiento y 'Annona' militares en le periodo de Juliano (355 a 363 d.C.) (CARVALHO, 2013c); The Longevity of Falsehood: Julian’s Political Purpose and the Historical Tradition (VANDERSPOEL, 2013); Julian the Emperor. A Consolation to Himself upon the Departure of the Excellent Sallust: Rhetorical 20 Approach (ALEXANDROPOULOS, 2014a); Rhetorical approach of Flavius Claudius Julian's Letters (ALEXANDROPOULOS, 2014b); Ética y religión en los escritos del Emperador Juliano (MORENO PAMPLIEGA, 2015); La figura del filosofo nel IV secolo d.C. Considerazioni sulla Lettera a Temistio di Giuliano Imperatore (CHIARADONNA, 2015a); Julian the Apostate: The Emperor who “Brought Piety as it Were Back from Exile” (SCAIFE, 2017); Juliano II y la recuperación del romanismo clássico (CABALLERO ESPERICUETA, 2017). Por fim, esses foram os frutos de Mestrado, Doutorado e publicações de trabalhos apresentados em eventos: Revisiting mythology in the 4th century AD: the testimony of Saloustios (FASSA, 2012); Companion to the Gods, friend to the Empire: the experiences and education of the Emperor Julian and how it influenced his reign (LILLY, 2014); Killing Julian: the death of an emperor and the Religious History of the Later Roman Empire (ROGACZEWSKI, 2014); “Lo impenetrable e irrevelable”. Una aproximación a la noción de mito en Juliano el apóstata (SILVA ÁLVAREZ, 2017). Em âmbito nacional, não poderíamos deixar de assinalar a predominância das obras de Carvalho: Amiano Marcelino e os construtos identitários nos relatos sobre os Imperadores Militares: Juliano, Joviano e Valentiniano I (361 – 375 d.C.) (CARVALHO; GONÇALVES, 2012); O Imperador Juliano entre a Filosofia Neoplatônica e a Arte Militar (CARVALHO, 2013a); O Significado do Contra nos discursos político-religiosos da Antiguidade Tardia: o Contra os Galileus do Imperador Juliano – 361-363 d.C. (CARVALHO; FIGUEIREDO, 2013b); Considerações sobre memória e morte do Imperador Juliano nos testemunhos de Libânio e Amiano Marcelino (século IV d.C.) (CARVALHO; OMENA, 2016a); Imperator e bouleutes na Antiguidade Tardia: os conflitos entre César Galo, Juliano, Teodósio e a elite municipal antioquena (século IV d.C.) (CARVALHO; SILVA, Érica Cristhyane Morais da, 2017); História, presságios memoráveis e a morte do Imperador Juliano na obra de Amiano Marcelino (390-392 d.C.) (CARVALHO, 2020a); Os iluministas e a apropriação da imagem e do discurso do Imperador Juliano contra a religião (CARVALHO; SILVA, Márcia Pereira da, 2020b); Sentimentos controversos do Imperador Juliano na rota da morte: raiva, ironia e frustração (362/363 d.C.) (CARVALHO, 2020c). Isso para não mencionarmos as demais produções da referida autora, em coautoria ou não. Outros dois textos nos foram acessíveis: Deus pode ser invejoso ou ciumento? Um debate sobre os atributos divinos entre o imperador Juliano e Cirilo de Alexandria (BOULNOIS, 2017), capítulo de livro originalmente redigido em francês, e a Dissertação intitulada Apostasia Solar. Juliano (361 – 363 d.C.) e a Retomada do Culto Solar (MIRANDA, 2016). 21 Apesar da abundância dos escritos dedicados a Juliano ou que falam dele, desde o ano da sua morte até os dias de hoje, é estranho notarmos a carência de trabalhos detalhados e minuciosos. A título de exemplo, por ter sido um imperador helênico em uma dinastia predominantemente cristã, num período de expansão do cristianismo e das suas vertentes, Juliano foi constantemente analisado mediante uma dicotomia entre o paganismo e o cristianismo. Nosso personagem foi apresentado com frequência como um ator coadjuvante na história eclesiástica e no tocante aos estudos reservados a Gregório de Nazianzo, Basílio de Cesareia e outros. Deveras, o bispo nazianzeno foi aquele responsável pela construção da imagem de Juliano como apóstata (CARVALHO, 2010a, p. 1-7). No decurso da nossa Iniciação Científica e da escrita do nosso Projeto de Mestrado, em nenhum momento cruzamos com qualquer texto cujo mote fosse o estudo da amizade em Juliano. Felizmente, quando ampliamos as nossas pesquisas bibliográficas para o italiano, encontramos na biblioteca pessoal da nossa orientadora a referência em um sumário fotocopiado de um texto fundamental para a presente Dissertação. Foi indispensável a aquisição física do livro onde se encontra esse texto, pois ele se mostrou inacessível por quaisquer outros meios. Referimo-nos ao capítulo escrito por Rosanna Guido (1998), chamado La nozione di φιλία in Giuliano Imperatore, publicado nos atos de colóquio do evento Giuliano Imperatore: le sue idee, i suoi amici, i suoi avversari. O estudo realizado por essa autora é crucial. Em primeiro lugar, o seu texto incluiu comentários de todo o corpus documental de Juliano, apresentando-nos um quadro geral que seria impossível alcançarmos no pouquíssimo tempo do qual dispomos em nosso Mestrado. Em segundo lugar, as suas afirmações quanto aos alicerces constituintes do sentimento de amizade em Juliano podem ser identificadas com aquelas já desenvolvidas por nós em nossa Monografia. Guido reiterou que a ideia que nosso personagem tinha de um bom amigo e das relações de amizade mantidas por ele foram os mesmos por toda a sua vida. Nesse ponto, concordamos com a autora. Todavia, vamos além. Ainda que Juliano tivesse uma ideia fixa daquilo que constituiria um vínculo de amizade, as pessoas com quem ele se relacionou não foram sempre as mesmas. As diferentes circunstâncias vividas por ele fizeram com que se aproximasse ou se afastasse de determinadas pessoas. Iremos nos aprofundar nesse ponto no Capítulo IV da nossa Dissertação, analisando cuidadosamente o texto de Guido e as nossas documentações. Duas obras pertencentes à linha da História das Emoções são primordiais para o desenvolvimento desta pesquisa: Friendship in the Classical World, de David Konstan (1997), e Reading Roman friendship, de Craig A. Williams (2012). Por meio desses textos temos acesso às definições de dois vocábulos que denominavam as relações de amizade nas línguas grega e latina, 22 respectivamente, a philía e a amicitia. Os autores desses livros questionaram a visão predominante na historiografia de que as relações de amizade na antiguidade se resumiam a meros vínculos de interesse. Konstan, cuja pesquisa se ocupou da philía, passou por documentações pertencentes ao arco temporal do século VIII a.C. ao século IV. Do seu ponto de vista, os laços de amizade na concepção grega se baseavam na afeição e numa noção de equidade e reciprocidade entre os amigos. Williams teve por alvo o estudo da amicitia e consultou as documentações textuais e a cultura material, sobretudo os epitáfios. Faz-se perceptível as mutações sofridas pelas relações de amicitia quando apresentadas nos textos ou nas inscrições materiais. O autor também abordou uma linha historiográfica que tendeu a pensar a amizade e a patronagem9 em termos excludentes. Concordamos com Williams no sentido em que as relações de patronagem na antiguidade não eliminavam a possibilidade da existência simultânea de laços de amizade. Ao contrário, ela seria fruto dos vínculos amicais e os interesses pessoais não eram a questão de maior relevância para o início ou para a manutenção desses laços. Com as exposições de Konstan (1997) e Williams (2012), concluímos que a amizade era um vínculo respaldado pela afeição e pela reciprocidade. Ela não era definida pelos laços sanguíneos ou comunitários, portanto, não era inata ou atribuída e se tratava de uma escolha. Podemos elencar tanto na definição grega quanto na latina algumas qualidades fundamentais que um amigo deveria possuir, como a afeição, a benevolência, a lealdade e a franqueza. Todavia, a philía partia da premissa de que deveria haver uma equidade entre as qualidades e as virtudes dos membros dessa relação. No caso do nosso personagem, os filósofos, os sofistas e os retóricos eram aqueles considerados como seus pares. Já quando refletimos sobre a amicitia, notamos que o conceito latino permitia a existência de disparidades. Por ora, limitar- nos-emos a essas reflexões e retomaremos esse debate no Capítulo IV desta Dissertação. Enquanto último ponto a ser tratado nesta Introdução, temos por intuito apresentar a composição da nossa investigação. Constituem-na a Introdução, quatro capítulos, Considerações finais, Apêndices e Anexos. No Capítulo I, procederemos ao tratamento documental dos textos que selecionamos. Isso inclui o estudo dos comentários dos seus tradutores, data e local de produção, conteúdo geral da obra analisada e menções a pesquisas específicas para as epístolas e os discursos. Estruturamos o Capítulo II em torno do contexto político-cultural do imperador Juliano e as suas medidas governamentais. Focaremos em pontos determinantes no pensamento do nosso personagem e fundamentais para o Capítulo IV: a paideía, o neoplatonismo, os mistérios orientais e a cultura helênica no século IV. No que tange 9 Entendemos a patronagem como a indicação de pessoas para cargos públicos ou eclesiásticos, realizadas por cidadãos romanos com grande influência regional ou dentro do Império como um todo, tanto em questões administrativas e associadas ao governo quanto em assuntos cristãos. 23 a esses pontos, traçaremos alguns comentários gerais, porém, apontaremos as suas peculiaridades na figura de Juliano. O Capítulo III será composto por um catálogo com as passagens nas quais o César ou imperador cita relações de amizade, virtudes ou sentimentos por ele valorizados. Esse capítulo compreende, igualmente, uma tabela de vocábulos gregos derivada das passagens selecionadas. Tal quadro possui a frequência, tradução e etimologia dos termos de suma importância para a nossa investigação. Notoriamente, não poderíamos deixar de realizar uma pequena introdução para apresentar esse trabalho minucioso que comporá o Capítulo III. No último capítulo da nossa Dissertação, procederemos com a demonstração da hipótese que propusemos. Dois apêndices constam neste nosso trabalho: o apêndice A – que consiste numa cronologia da vida de Juliano, com as principais datas e eventos biográficos que temos conhecimento, bem como as datas propostas para a redação dos seus discursos – e o apêndice B – com a numeração, datação, localização e elementos prosopográficos das cartas utilizadas. Desfrutamos dos Anexos A, B, C e D. Os dois primeiros retratam mapas do território romano no século IV e da região da Gália. Os dois últimos exprimem uma estátua do imperador Juliano e a sua árvore genealógica. Dito isto, damos início ao Capítulo I. CAPÍTULO I – TRATAMENTO DOCUMENTAL: EPISTOLOGRAFIA, DISCURSO DE CONSOLAÇÃO E HINOS JULIÂNICOS O intuito deste capítulo é realizar o tratamento documental das epístolas e dos discursos com os quais trabalhamos. Buscamos estabelecer um diálogo entre as documentações em questão e as nossas referências bibliográficas. Por isso, incluímos reflexões acerca do que era uma carta no século IV, dos manuais epistolográficos que influenciaram esse período, o antagonismo entre a ideia de uma missiva considerada pública ou privada, a configuração de um texto de consolação ou de um hino. Estão presentes pontos particularmente associados aos destinatários dos discursos e aos seus elementos prosopográficos. Não poderíamos deixar de reportar aspectos gerais citados por historiadores, filólogos e demais especialistas. Nesse quesito, gostaríamos de ressaltar que é nítido o desequilíbrio nos estudos dessas documentações ao longo dos anos. Há um número considerável de textos que tiveram por mote a compreensão da Carta para Temístio, o filósofo e do discurso Os Césares enquanto os hinos (Hino à Mãe dos Deuses e Hino a Hélios Rei) foram consideravelmente negligenciados. Malgrado o número de autores que versaram quanto a esses dois últimos discursos, não detectamos inovações significativas 24 quando comparamos as arguições apresentadas. Foram produzidas, na última década, algumas obras que focaram nos ideais neoplatônicos e teúrgicos de Juliano, nas quais se inserem esses hinos, mas eles são vagamente citados e incluídos em uma temática que considera o seu corpus documental como um todo. Tampouco tivemos um acesso expressivo a materiais compostos pela Consolação a si mesmo sobre a partida do excelente Salústio. Quanto às epístolas de Juliano, elas raramente foram exploradas individual ou coletivamente. O que podemos averiguar por meio da nossa pesquisa bibliográfica é que houve um foco muito grande naqueles textos associados à política religiosa do nosso personagem e à sua relação de conflito com os cristãos. As demais produções do César ou imperador receberam atenções pontuais e não configuram um debate entre autores propriamente dito. Dessa forma, justificamos a clara assimetria nos subtópicos da exposição deste tratamento documental. 1. 1. As missivas do imperador Juliano Antes de partirmos para a análise documental exclusivamente das missivas do nosso personagem, atentemo-nos a alguns detalhes quanto à epistolografia da Antiguidade Tardia. Jean-Luc Fournet fez uso dos papiros tardo-antigos redigidos em grego, provenientes dos séculos IV a VII, sob a intenção de averiguar quais os aspectos físicos e estruturais de uma carta nesse arco temporal e por quais mudanças elas passaram ao longo dos anos. Essas alterações refletem uma transformação na natureza e na função das missivas. A bibliografia acerca da epistolografia grega é prolífera. Entretanto, negligenciou-se o estudo dos seus aspectos materiais em detrimento das características da forma e dos tópicos que a compunham, particularmente das cartas escritas entre os séculos IV e VII. Em termos de elementos formais, a escrita da missiva poderia seguir ou não o sentido da fibra do papiro, ou seja, o papiro seria usado vertical ou horizontalmente. Além da escolha particular de um indivíduo ou da extensão da carta poderem interferir nesse ato, alguns padrões eram seguidos a depender do período observado. Até o século IV, as epístolas seguiam um modelo de uso vertical – as fibras permaneciam na horizontal, no formato de linhas –. Já no século VII, elas reproduziam um molde horizontal – fibras na posição vertical e perpendiculares ao texto – (FOURNET, 2009, p. 24-29). Graficamente, o formato vertical da carta no século IV estava associado aos seus componentes estruturais. Em comparação com aquelas do século VII, o seu conteúdo era mais extenso devido ao prescrito, à saudação, às fórmulas complexas e aos tratamentos sofisticados e infinitamente variáveis que despareceram com o passar do tempo. Concomitantemente, a 25 partir do século IV, a retórica se associou às ideias de philía10 e philanthrōpía11 na redação das cartas. Por isso, encontramos prólogos extensos e complexos que falam da benevolência do destinatário. Outra modificação que se consolidou no século IV foi a forte influência da literatura clássica nas cartas privadas, contando com a indicação de citações de autores, tais como Homero, nos manuais de epistolografia tardo-antigos. Estes últimos, devido ao amplo uso da retórica, proliferaram substancialmente na Antiguidade Tardia (FOURNET, 2009, p. 29-59). Somos capazes de afirmar que Juliano escolhia quando utilizar ou não os aspectos formais citados por Fournet. Por exemplo, se o prescrito e a saudação desapareceram paulatinamente do século IV ao VII, algumas das cartas analisadas por nós não têm esses elementos. Quanto aos prólogos dedicados à benevolência do recebedor, podemos ou não os encontrar a depender da epístola em questão. As citações e referências a autores clássicos são encontradas em toda a obra de Juliano, não somente nas suas missivas. Em termos de estudos acerca da teoria e da prática epistolográfica antiga, entre as décadas de 1950 e 1980 houve uma renovação no interesse dos estudiosos por essa temática. Mas essas investigações encontravam-se espalhadas e não tínhamos um tratamento sistemático dessa teoria nas pesquisas realizadas na língua inglesa. Os grandes tratados epistolográficos da antiguidade ainda não tinham sido traduzidos para um idioma moderno e não existia um empreendimento no sentido de contextualizar essa teoria dentro do estudo da retórica e do currículo escolar da antiguidade. O livro de Abraham Malherbe foi uma tentativa de suprir essas necessidades no final da década de 1980. Em conjunto com a contextualização da teoria epistolográfica antiga, ele apresentou a tradução dos textos de autores como Demétrio (século I a.C.), Cícero (106 – 43 a.C.), Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), Pseudo-Demétrio, Filóstrato de Lemnos (século III), Gregório de Nazianzo, Caio Júlio Victor (século IV) e Pseudo-Libânio (MALHERBE, 1988, p. 1-2). A despeito da teoria epistolográfica antiga ter pertencido ao domínio dos rétores, ela não fazia parte, originalmente, dos seus sistemas teóricos e foi desenvolvida aos poucos nessa esfera. O primeiro rétor a falar sobre a confecção de cartas dentro do sistema teórico da retórica foi Caio Júlio Victor, no século IV. As técnicas para a redação das missivas são expostas extensamente nos escritos do Pseudo-Demétrio e do Pseudo-Libânio, contudo, essas obras não se inserem em um sistema propriamente retórico. Esses manuais preservaram e refletiram práticas e tradições, bem como influenciaram a escrita das cartas ao serem utilizados nas escolas. O seu intuito não era expor normas e formas rígidas, e sim apresentar uma estrutura 10 Traduzida comumente como “amizade”. Entraremos em maiores detalhes acerca deste vocábulo no Capítulo IV. 11 Descrita como “humanidade”. Esta palavra encontra-se pormenorizada no subtópico 1.2. deste capítulo. 26 que permitisse a criatividade daquele que a seguisse. Não temos conhecimento da extensão do ensino epistolográfico no currículo escolar. Não obstante, ele se baseava em cartas modelos e provavelmente ocorria num estágio secundário da educação. Nele, meninos entre doze e quinze anos eram instruídos pelo grammaticus. Inicialmente, o professor se preocupava mais com a forma do que com o estilo das epístolas, tópico que só era trabalhado no final do ensino secundário com a inserção dos exercícios preliminares de retórica. No tocante aos manuais traduzidos por Malherbe, é provável que eles não tenham sido usados nesse tipo de ensino, porém, no treinamento dos escritores de cartas profissionais, familiarizados com um estilo retórico e oficial (MALHERBE, 1988, p. 2-7). As cartas na antiguidade serviam como um meio de comunicação e um código de reconhecimento e regência das relações sociais. Destinar uma missiva a alguém era uma marca da philía, uma prática que pedia o contra-dom da resposta. O conteúdo de uma epístola reflete aspectos da vida de um determinado período, ademais dos ideais morais e culturais de uma dada sociedade. No caso do século IV, um corpo social no qual a cultura – paideía – era um critério de acesso ao poder e a eloquência um meio para alcançá-lo. Uma epístola poderia exercer uma pressão política ou representar uma forma de resistência. Contudo, simultaneamente ao seu papel de elo entre dois polos de poder, a carta possui um caráter privado e abre espaço para a manifestação da individualidade e da personalidade do seu autor. Esse tipo de correspondência, ao jogar com a ambiguidade entre o público e o privado, lembra-nos constantemente que existiam regras a serem respeitadas (CABOURET, 2002, p. 16-25). Gostaríamos de explicitar que temos conhecimento de que pensarmos nas cartas da antiguidade em termos de público e privado é complexo. Portanto, quando nos remetermos a esses termos, não estamos nos referindo ao fato de uma missiva ter sido ou não lida pelo público em geral, mas sim à intenção do seu autor no ato da redação em ter ou não a sua epístola lida por outras pessoas que não o seu destinatário. Dito isso, A correspondência era um meio de regular as relações sociais, de compensar pelas regras estritamente estabelecidas de comunicação entre os homens e pela tensão e violência que o funcionamento de um governo centralizador e de uma sociedade hierárquica e heterogênea (étnica, cultural e religiosamente) pudesse causar. Ao introduzir nesses escritos normas de decência verbal, sinais de decência moral, esse tipo de comunicação garantiu um equilíbrio entre o poder central e os notáveis locais ligados às tradições e à eminência da cultura grega. Nesse sentido, a correspondência foi um fator unificador para as elites do Império (CABOURET, 2002, p. 26-27). 27 Exemplificamos na passagem abaixo, contida na Carta 30 enviada para Teodoro, o quanto a escrita epistolográfica era importante para o imperador Juliano e o seu sentimento em relação às respostas recebidas dos seus destinatários: A chegada da tua carta naturalmente me encheu de alegria. Como podemos permanecer insensíveis, de fato, quando descobrimos que um camarada, que o amigo mais querido está são e salvo? Então, depois de ter retirado o laço que envolvia a tua carta, eu a reli várias vezes e desisti de te descrever quais foram as minhas impressões; senti-me cheio de serenidade e alegria e, como se ela tivesse me oferecido uma imagem do teu nobre caráter, levei-a aos meus lábios (JULIANO, Carta 30). Muitas são as documentações da antiguidade compostas por cartas. Alguns conjuntos são extremamente extensos, como as cerca de mil quinhentas e quarenta e quatro cartas de Libânio que chegaram às nossas mãos. Proporcionalmente, em comparação com essas coleções, as cartas dos imperadores romanos não são numerosas. Sobreviveram até hoje as de Trajano e Marco Aurélio. Em paralelo, detemos as missivas de Juliano, um corpus documental amplo e diverso quanto ao seu conteúdo e aos seus destinatários. Os assuntos e os estilos dessas cartas são os mais variados possíveis e incluem notícias compartilhadas com os seus amigos, pedidos pessoais, comunicações formais do imperador para os cidadãos de cidades específicas, leis, mensagens que tratam de temas administrativos e religiosos, entre outros. Além da demanda desse tipo de comunicação como governante do Império, Juliano tinha ainda duas motivações para a escrita das suas epístolas: a valorização deste gênero na paideía e o seu uso entre os adeptos do helenismo. Nestes dois últimos casos, as missivas assumiam um caráter de pertencimento a um grupo particular (TRAPP, 2012, p. 105-107). Portanto, Juliano foi o único imperador romano a nos deixar uma correspondência abundante, variada e, em partes, confidencial. Tão múltiplos quanto os assuntos e os destinatários dessas cartas são os seus aspectos formais. Algumas missivas são diretas, outras iniciadas com citações, umas terminam sem despedida e as demais possuem o uso de diferentes fórmulas de encerramento. Nosso personagem chama os seus destinatários de amigos, camaradas, irmãos, além de usar títulos cerimoniosos, como sua bondade, sua sabedoria, sua magnanimidade. Bidez chamou a atenção para a clareza e a rapidez na escrita dessas missivas, para a perspicácia e as qualidades de espírito que numerosos biógrafos atribuíram ao protagonista da nossa investigação. Mesmo que foquemos nas suas relações de amizade e nos vocábulos associados a elas, ressaltamos que as cartas de Juliano são repletas de sentimentos (BIDEZ, 2004, p. i-xvii). 28 No que tange à escrita dessas epístolas, algumas foram feitas pelas suas próprias mãos ou por ele ditadas e redigidas pelos funcionários do Império. É do nosso conhecimento que Juliano passou por escolas retóricas e teve contato com as regras do gênero epistolográfico. Até nas cartas mais curtas se recomendava que o seu conteúdo devia se adaptar aos gostos e às ideias dos seus destinatários, assim como tinham que ser breves e claras. O que as missivas com as quais trabalhamos nos mostram, nitidamente, é que o nosso objeto de estudo esteve longe de seguir essas sugestões, uma vez que grafava tais escritos de um jeito improvisado. Considerando apenas o tamanho das suas missivas, percebemos que elas muitas vezes não eram curtas e continham inúmeras divagações e citações de autores antigos. As suas cartas também são caracterizadas por sentimentos vivos, pensamentos sinceros e seriedade. Não que essas qualidades não fossem valorizadas pelos ensinamentos epistolográficos do século IV, porém, o seu uso em Juliano possui um tom natural. Essas missivas são muito diferentes do estilo oficial e, ao escrever para os seus amigos, ele os considera de igual para igual. Não somos capazes de classificar as suas missivas em relação aos diversos gêneros epistolográficos existentes, posto que elas não seguiam essas recomendações e as categorias se misturam. Outrossim, não é possível classificá-las de acordo com os destinatários, pois raros são os que receberam mais de duas epístolas (BIDEZ, 2004, p. i-xvii). Em comparação com a profusão de biografias que versam sobre o imperador Juliano, as cartas do nosso personagem por si só nos dizem muito no que concerne aos acontecimentos da sua vida. As missivas escritas na Gália12 expressam diferentes facetas da intimidade do César, o seu interesse pela filosofia neoplatônica da corrente de Jâmblico, o seu sentimento de amizade, o seu posicionamento quanto ao papel dos sonhos nos eventos vindouros e as suas opiniões do ponto de vista militar (ALONSO-NUÑES, 1972, p. 55-60). Quanto aos pensamentos de Juliano sobre os sonhos, mencionamos a Carta 14, escrita para Oribásio, na qual ele descreve um sonho que teve próximo à data da sua proclamação pelo exército como Augusto: Sonhei que, plantada em um vasto triclínio, uma árvore muito alta se inclinava para o chão. Das suas raízes surgiu outro broto, ainda pequeno e jovem, e todo florido. Eu estava cheio de angústia, temendo que aquela planta frágil fosse arrancada com a grande. No entanto, quando estava bem perto, vi a grande árvore esticada no chão, enquanto a pequena permanecia de pé, mas se erguia do chão. Diante disso, minha ansiedade redobrou: “que pena para esta linda árvore!”, eu disse, “sua própria descendência está em perigo de morrer”. Então, alguém completamente desconhecido me disse: “dá uma boa olhada e 12 Das cinquenta e sete epístolas que analisamos, dez delas foram escritas por Juliano na condição de César, o que não significa que elas sejam menos ricas em conteúdo se contrastadas com as quarenta e sete redigidas como imperador. 29 recupera-te. Como a raiz permanece no solo, o pequeno broto sobrevive intacto e só ficará mais forte.” (JULIANO, Carta 14). Do ponto de vista militar, é importante expormos parte da Carta 17b, destinada a Constâncio II, logo após a nomeação de Juliano como Augusto: Nomeado César por ti e lançado no meio do horrível estrondo das batalhas, contentando-me com o poder que me foi delegado, e enviando-te, como um servidor fiel, relatos frequentes dos sucessos que ocorreram à vontade, eu cansei os teus ouvidos, sem nunca, entretanto, atribuir nada à minha coragem diante dos perigos; e, contudo, inúmeros exemplos o atestam, durante as operações em que os bárbaros13 foram derrotados e dispersados por todos os lados, sempre fui o primeiro a lutar, sempre fui o último a buscar descanso. Mas – digo-o sem ofender-te – se, na tua opinião, há uma revolução acontecendo hoje, é porque o soldado, consumindo inutilmente a sua vida em meio a guerras frequentes e duras, acabou realizando um projeto antigo; ele estremeceu de impaciência por ter apenas um subordinado como chefe e por se ver diante de um César impotente para recompensar os seus suores prolongados e as suas vitórias incessantes. A essa cólera dos soldados, que não obtiveram adiantamento nem salário anual, foi acrescentada inesperadamente uma nova queixa: a ordem de partir para as longínquas regiões do Oriente, habituados a um clima glacial, aqueles a quem vamos separar dos seus filhos e das suas esposas para permanecerem lá, pobres e nus. Com uma exasperação que nunca havíamos visto, à noite, eles se reuniram e sitiaram o palácio, saudando Juliano Augusto com os seus gritos repetidos. Fui tomado de horror, confesso; eu fiquei longe; enquanto pude, recuei, buscando salvação em silêncio e retiro. Então, como não me foi concedida nenhuma trégua, dei um passo à frente, tendo que me proteger, se assim posso dizer, com o único baluarte do meu peito desarmado, e me mostrei ao olhar de todos, acreditando acalmar o tumulto com a minha autoridade ou com algumas palavras conciliatórias. Seus espíritos se aqueceram de maneira extraordinária. Eles chegaram a tal ponto que, ao me ver tentando superar sua teimosia com as minhas orações, agrediram-me de perto e ameaçaram-me de morte. Enfim derrotado, e dizendo a mim mesmo que se eu morresse outro talvez se dispusesse a se deixar proclamar Imperador no meu lugar, desisti, na esperança de apaziguar a violência armada (JULIANO, Carta 17b). Podemos observar mais nitidamente as preferências pessoais de Juliano nas suas cartas redigidas na Ilíria e em Constantinopla, momento em que a sua apostasia já havia se tornado pública e que a ameaça de Constâncio II não mais existia. Além da admiração pelos filósofos e rétores presente nas cartas escritas na Gália, naquelas formuladas na Ilíria ou em Constantinopla presenciamos o seu apreço pelos médicos e professores. Houve, nesse período, uma intenção de transição pacífica na proposta de restauração helênica feita por Juliano. As epístolas registradas na travessia pela Ásia Menor marcam o seu desejo de se cercar de filósofos e 13 Denominamos como bárbaros aqueles que não compartilhavam da cultura e dos costumes romanos, quer dizer, os estrangeiros. Para Juliano, existiam dois tipos de bárbaros: aqueles que se adaptavam aos hábitos dos romanos, viviam dentro dessa sociedade e combatiam pelo seu exército e aqueles que não eram adaptáveis, contra os quais ele lutou nas fronteiras do Império. 30 apontam para certos interesses religiosos, exemplificativamente os cultos dedicados à Deméter e à Cibele. Já as missivas de Antioquia sinalizam as suas medidas religiosas e um forte espírito de justiça. Nota-se um enrijecimento das ideias político-religiosas do imperador, que se distanciam da tolerância proposta previamente (ALONSO-NUÑES, 1972, p. 55-60). Retomaremos este último apontamento no Capítulo IV desta Dissertação. Como dissemos, as cartas tinham grande importância para o nosso personagem. Afinal, Elena Redondo Moyano (2012, p. 208-210) nos relembrou muito bem que, na epístola do imperador destinada a Proerésio (Carta 31), Juliano afirma ter guardado uma cópia das missivas que enviou, certamente junto às respostas recebidas. Ele tinha o conhecimento de que as suas epístolas poderiam ser divulgadas publicamente sem o seu consentimento, o que podemos averiguar na passagem abaixo, contida na Carta 80 dirigida ao seu tio materno homônimo: No que diz respeito, no entanto, às cartas que ele afirma que tu tornaste públicas depois de tê-las recebido de mim, parece-me ridículo levá-las ao tribunal. Pois eu chamo os deuses para testemunhar, eu nunca escrevi para ti ou qualquer outro homem uma palavra que eu não esteja disposto a publicar para todos verem (JULIANO, Carta 80). Do mesmo modo, podemos referenciar a carta de número 40 enviada para Felipe: Então, cartas do imperador para pessoas particulares podem muito bem levar à sua exibição para se gabar e fazer falsos pretextos quando chegam às mãos de pessoas sem senso de propriedade, que as carregam como anéis selo e as mostram aos inexperientes (JULIANO, Carta 40). Portanto, mesmo que tivessem sido destinadas a um indivíduo em particular e tratassem de temas privados, outras pessoas poderiam ler as epístolas de Juliano. Notemos que aquelas confeccionadas pelo César tinham as suas especificidades. De fato, elas foram compostas como cartas privadas, quer dizer, não destinadas à publicação. Todavia, o nosso objeto sabia que, devido à vigilância de Constâncio II, elas provavelmente seriam lidas por outras pessoas, podendo até mesmo levantar suspeitas sobre o César e os seus destinatários. Na Carta 40, citada acima, depois da sua proclamação pelo exército como Augusto e da morte do seu primo, Juliano disse ter evitado escrever para os seus amigos até se tornar o único governante do Império na tentativa de protegê-los das possíveis acusações de Constâncio II (REDONDO MOYANO, 2012, p. 208-210). Observemos a referida passagem: Pelos deuses, quando eu ainda era apenas César, escrevi para ti, e mais de uma vez, eu acho. Frequentemente, eu queria fazer isso, mas fui impedido às vezes por um motivo, às vezes por outro; então, minha elevação ao Império deu origem a uma amizade lupina entre o abençoado Constâncio e eu. Tive o 31 cuidado de não escrever a ninguém além dos Alpes, por medo de causar-lhe um assunto desagradável (JULIANO, Carta 40). Desse modo, os assuntos das cartas produzidas na Gália foram restringidos. Ademais, esse foi um fator decisivo para que o César construísse nessas missivas a imagem de si mesmo que gostaria de divulgar. Ressaltamos que as dez cartas que possuímos dessa época foram escritas depois de 357, ano em que havia obtido significativas vitórias militares na Gália e que, embora sob a supervisão dos homens de confiança do seu primo, já não estava na presença física de Constâncio II, que se encontrava em marcha para o Oriente. Por outro lado, destacamos que os destinatários dessas cartas eram todos helênicos e pessoas com as quais Juliano conviveu ao longo dos seus anos de estudo antes da sua proclamação como César. Redondo Moyano argumentou que, ao escrever para rétores, filósofos e intelectuais, o nosso personagem pretendia mostrar-se como um homem interessado pela cultura, e não pelo poder. Logo, projetava uma imagem de si mesmo através da palavra – naquele momento uma das suas poucas armas – para afastar acusações de traição ou usurpação. Concordamos com a autora quanto a esse ponto, pois, ademais de dificultar qualquer suspeita, Juliano conseguiria proteger aqueles que lhe eram mais caros. Entretanto, discordamos dela no momento em que sugeriu a existência de um projeto elaborado por ele, a fim de tomar o poder do seu primo (REDONDO MOYANO, 2012, p. 217-230). Pensamos que o César provavelmente tinha apoiadores locais, sobretudo helênicos e que desejavam o seu governo como imperador. Porém, não compreendemos como poderia haver um plano friamente calculado da parte de Juliano, uma vez que em 357, com a vitória de Estrasburgo, ele havia sido proclamado Augusto pelo exército da Gália e tinha recusado a nomeação. Por que esperar três anos para assumir um Império que ele poderia ter tomado antes? Se ele chegou a ser chamado de Augusto foi por ter tido apoiadores locais. Naquele ano, ele ainda tinha Salústio (século IV d.C.) do seu lado e as suas reformas financeiras e administrativas na Gália mostravam-se promissoras. Não pretendemos argumentar que Juliano teve um papel passivo na sua proclamação de 360, como deixa transparecer na Carta 17b supracitada. Sem embargo, consideramos que o sucedido esteve mais relacionado com uma oportunidade momentânea do que com um projeto de longa data. O nosso alvo sempre foi um estudioso, mesmo depois que assumiu os seus encargos como César ou o governo do Império. As suas epístolas nos mostram como a sua cultura e as suas ações às vezes se opõem ou se sustentam. Naquelas escritas enquanto César, percebemos muitas citações dos autores clássicos e essas menções diminuem consideravelmente nas cartas seguintes. Como vimos, poderíamos alegar que tal ato foi uma tentativa de desviar a 32 desconfiança de Constâncio II. Contudo, é plausível que a redução dessa prática se justifique pela presença física dos filósofos e letrados para quem Juliano escreveu previamente na sua corte imperial. As temáticas das missivas do César e imperador foram alteradas ao longo dos anos e entre os temas expostos estão aqueles ligados à restauração do helenismo, a admoestações, felicitações e proclamações. Nesse sentido, para Pierre-Louis Malosse, a literatura clássica em si não foi a base persuasiva de Juliano, mas sim a história política do Império, os mitos e os provérbios (MALOSSE, 1993, p. 348-349). Nas epístolas, que marcam diferentes etapas da sua vida, nota-se que a inevitabilidade da ação o impede de se dedicar à escrita das cartas e aos estudos como ele gostaria. Enquanto César, um dos poucos momentos nos quais Juliano poderia se dedicar a esse exercício era durante o inverno, em Paris14. Por outro lado, as suas ações favoreceram a cultura. Em suas missivas, reparamos a aquisição de livros e a permissão para que rétores e filósofos usassem o cursus publicus15 (MALOSSE, 1993, p. 350-353). Se os encargos do nosso personagem o afastavam do aprendizado, ele soube usar o poder a seu favor e da cultura. Por essa razão, a ação deveria levar em conta a prática da cultura, quer dizer, os empreendimentos para Juliano não poderiam ser concebidos sem termos em vista a paideía, fosse para os seus fins ou para os seus meios. Ela não dependia do acaso e não se baseava em paixões. Em síntese, é necessário que tenhamos alguns pormenores em mente para trabalharmos com as missivas do César e imperador em questão: os aspectos formais e os conteúdos de uma carta no século IV, os manuais epistolográficos que circularam nesse período e a prática epistolográfica ligada à paideía. É evidente o dever de ponderarmos quanto à manifestação particular desses itens na figura de Juliano. Com as informações deste subtópico em mãos, partimos para o tratamento documental do primeiro discurso por nós selecionado. 1. 2. Carta para Temístio, o filósofo O primeiro item que nos chama a atenção no tratamento documental da Carta para Temístio, o filósofo é o vasto debate em torno da sua datação. García Blanco (1982b) afirmou que, apesar de alguns tradutores datarem esse discurso no período em que Juliano foi César, a maioria situa a sua escrita em novembro de 361, após a morte de Constâncio II e pouco depois 14 Foi no governo do imperador Juliano que a cidade de Lutécia passou a ser chamada de Paris. A mudança dos nomes das cidades na região da Gália era recorrente e estava relacionada à influência dos bárbaros daquele local (CASELLA, 2009). 15 O cursus publicus pode ser definido como o serviço público romano cuja função principal era o transporte de pessoas e objetos ligados ao governo do Império ou com a autorização do imperador. 33 da escrita da Carta ao senado e ao povo de Atenas. Rochefort (2003b) concordou com a datação proposta por Bidez de que o discurso foi redigido entre meados de novembro e onze de dezembro de 361. Ele ainda informou que essa data é a mais comumente aceita. Wright (1913b) declarou que esse texto foi escrito depois de Juliano ter se tornado imperador. No entanto, dentre os tradutores com os quais lidamos, ela foi a única a afirmar que nada indica que ele não pudesse ter sido elaborado antes desse período e que alguns autores defendem a data de 35516. Isso posto, quando olhamos para as pesquisas acadêmicas, verificamos que a afirmação dos tradutores de que a data de 361 é amplamente aceita não condiz com a realidade. Os textos aos quais tivemos acesso e que debateram ou citaram essa questão datam o discurso entre o final de 355 e o início de 356. Scott Bradbury rebateu a proposta de Bidez. De acordo com este autor, o argumento mais forte do historiador e filólogo belga para ao ano de 361 foi a afirmação do principal manuscrito onde se encontram os trabalhos de Juliano, o Vossianus, de que a Carta para Temístio, o filósofo foi escrita por nosso personagem na qualidade de imperador. Porém, Bradbury citou inúmeros casos de outros manuscritos contendo esses mesmos trabalhos e que se enganaram com a datação dos textos de Juliano. O segundo manuscrito mais importante, o Marcianus, a título de exemplo, afirma que Os Césares foi redigido em 356. Entretanto, sabemos que a data correta para a confecção desse discurso remete ao período entre 15 e 17 de dezembro de 362, já como imperador (BRADBURY, 1987, p. 242-243). O autor suprarreferido baseou-se, para a datação entre 355 e 356, na passagem onde Juliano menciona que Temístio o elogiou por ter abandonado a filosofia contemplativa pela vida ativa e política de um filósofo. A linha de raciocínio é a de que não seria adequado para Temístio que ele se referisse dessa forma a Juliano posteriormente aos seus quase seis anos atuando como César na Gália. Há o argumento filológico de que o nosso objeto de estudo se refere, nesse discurso, à divindade no singular (ho théōs), quando sabemos que em todos os seus escritos como imperador ele usa o plural (hoi théōi) ao citar os deuses e que só nos seus textos como César ele utiliza o singular. A apostasia de Juliano se tornou pública a partir do momento em que a morte de Constâncio II foi anunciada e a menção aos deuses no plural é feita na Carta 26, escrita para Máximo de Éfeso (310 – 372) em novembro de 361. Outro ponto em questão seria a incoerência de Juliano ao afirmar que Temístio não era um orador público, visto que entre 358 e 359 Constâncio II o havia indicado como procônsul da cidade de Constantinopla. O historiador ainda observou que o nosso alvo não diria ser inadequado para a 16 Infelizmente, Wright não explicitou os autores aos quais estaria se referindo. 34 vida pública depois de uma série de vitórias militares e sucessos administrativos na região da Gália (BRADBURY, 1987, p. 236-238). Jean Bouffartigue, assim como Bradbury, apresentou-nos os argumentos que sustentam a escrita da Carta para Temístio, o filósofo no período do cesarato de Juliano. Diante do conteúdo expresso nesse discurso, temos a percepção dos ideais de Temístio que o César busca refutar. Com isso em mente, Bouffartigue demonstrou que, no momento em que Temístio alude às vantagens de se ter um filósofo no poder, ele se alinha com as ideias escritas no seu panegírico dedicado a Constâncio II no ano de 355. Em conformidade com Bradbury, a presença da confrontação entre a vida contemplativa e a vida ativa só faz sentido se, no momento da escrita do discurso, Juliano estivesse iniciando as suas atividades públicas como César. A afirmação de que ele não possui talento político para governar ou a formação necessária para tal, ajusta-se a um momento de comedimento da sua parte no tempo em que se encontrava subordinado a Constâncio II. De fato, ele não possuía a experiência que viria a adquirir como César até assumir o governo do Império. Não há nenhuma referência no texto de Juliano aos seus sucessos ao longo do cesarato e à sua postura como um bom militar e administrador. Por fim, Bouffartigue mencionou que o nosso personagem sempre se refere à divindade no singular e não no plural, ao contrário do que faz em seus discursos escritos enquanto imperador. Há uma menção a um ser supremo que pode ser relacionado tanto com os ensinamentos neoplatônicos quanto com o cristianismo, forma muito parecida com aquela que Juliano utilizou nos seus panegíricos dedicados ao imperador Constâncio II e à imperatriz Eusébia (? – 360) (BOUFFARTIGUE, 2006, p. 118-124). Riccardo Chiaradonna (2015a; 2015b) e Simon Swain (2013b) foram autores que concordaram com Bradbury e Bouffartigue. Dito isso, admitimos que a Carta para Temístio, o filósofo foi escrita entre o final de 355 e o início de 356. Um ponto de relevância a ser citado é a existência de uma tradução em árabe de um texto atribuído a Temístio e que foi relacionado à nossa documentação de diferentes formas por três autores. Swain expôs que a composição árabe se trata da carta escrita pelo filósofo para Juliano e que este a respondeu com o seu discurso. Contudo, esse ela possui um estilo diferente das demais produções de Temístio e, por isso, autores como Bidez repudiam essa tradução e consideram-na apócrifa. Todavia, Swain defendeu a autenticidade do documento e apontou semelhanças entre a redação árabe e outros escritos de Temístio. Não obstante, o historiador não excluiu a possibilidade de que a tradução tenha sofrido acréscimos, decréscimos e alterações na passagem do grego para o árabe ou na sua transmissão até os nossos dias. Igualmente, ele buscou analisar as contribuições desse 35 documento para os discursos políticos do século IV, em termos de escritos acerca da basileía, ao considerar o contexto literário e intelectual dessa obra (SWAIN, 2013c, p. 22-32). Quanto ao conteúdo do texto árabe, a abertura do tratado apresenta temas associados ao funcionamento do corpo humano, à força da razão, à necessidade do artesanato, do comércio e da vida em comum. Apenas posteriormente a carta cita a basileía. Isso porque, para Temístio, de acordo com Swain, o comércio e os mais diversos tipos de trabalhos levavam à vida cívica que, por sua vez, conduzia inevitavelmente à existência das leis e de um governante. Continuando nessa linha de raciocínio e sob a influência de Platão, Temístio consideraria que a alma deve ser governada pela razão e o Império pelo filósofo. Este representava o homem mais virtuoso dentre os cidadãos e alguém capaz de lidar com os próprios problemas e com aqueles causados por outrem. O tema da economia citado na primeira parte da carta remete à ideia de que o principal objetivo do imperador deve ser garantir que as pessoas tenham uma vida próspera (SWAIN, 2013c, 22-32). Diferentemente de Swain, John W. Watt acreditou que a produção árabe abordou a resposta que Temístio teria escrito para Juliano, e não o contrário. Esse autor nos informou que, do ponto de vista do filósofo, não fazia sentido responder a carta do César para reafirmar os mesmos ideais expressos anteriormente. Sabemos, por meio das obras escritas por ele após o governo de Juliano, que o seu ponto de vista sobre a basileía permaneceu o mesmo. Visto que não chegariam a um acordo, não seria racional perpetuar tal debate. Sem embargo, a falta de resposta por parte de Temístio seria uma admissão de derrota. Embasando-se nos conceitos compartilhados entre o filósofo e Juliano, Watt expressou que o documento provavelmente foi uma resposta redigida de forma a encorajar o César, do ponto de vista filosófico, a participar da vida pública. A ausência no texto árabe da philanthrōpía e do imperador como a encarnação da lei representaria a tentativa de Temístio de adaptar as suas expectativas aos ideais juliânicos. Afinal, Watt reforça que a Carta para Temístio, o filósofo não poderia permanecer sem uma resposta por parte do filósofo, independentemente do ano em que o documento foi redigido (WATT, 2012, p. 94-98). John Vanderspoel ponderou, anteriormente a Swain e Watt, que o texto árabe não se trata daquele ao qual Juliano teria respondido ou da resposta de Temístio para o discurso do nosso personagem. Tratar-se-ia do panegírico dedicado ao imperador neoplatônico e que foi citado por Libânio. Concordamos com Vanderspoel na medida em que o tema da basileía presente na tradução era um tópico comum nos panegíricos escritos por Temístio. O conteúdo dessa obra não implica uma relação direta com a Carta para Temístio, o filósofo. A despeito de ter escrito ou não o panegírico em honra a Juliano por um senso de obrigação, a alusão a essa 36 redação permite que questionemos até que ponto esses personagens mantinham ou não uma relação ruim (VANDERSPOEL, 1995, p. 127-130). Expostas as perquirições quanto à datação da nossa documentação e à existência da produção árabe, faz-se necessário abordarmos determinados aspectos gerais da vida de Temístio, bem como os seus principais ideais político-filosóficos. Lawrence J. Daly nos indicou que o filósofo nasceu por volta de 317, proveniente de uma família que possuía muitas terras na região da Paflagônia, localizada entre a cidade da Bitínia e do Ponto, atualmente no norte da Anatólia central. Seu pai, Eugênio, foi um agricultor. Paralelamente, dedicava-se aos estudos da filosofia e da literatura clássica e chegou a ser professor de filosofia em Constantinopla, o que lhe proporcionou a admiração de pessoas como Libânio ou do futuro imperador Juliano. Temístio foi educado na mesma escola de retórica frequentada por seu pai e terminou a sua formação em filosofia no ano de 337, na cidade de Constantinopla, à sombra da tutela de Eugênio. Foi apenas em 344 que Temístio iniciou a sua carreira como professor de filosofia. A partir de então, rapidamente ganhou fama ao publicar paráfrases de Aristóteles, uma didática já aplicada anteriormente por seu pai, com o intuito de tornar esse clássico mais acessível (DALY, 1970, p. 10-22). Como educador no centro administrativo do Império, o filósofo recebia uma annona garantida aos cidadãos dessa cidade, porém, recusava-se a receber o pagamento oferecido ao cargo que ocupava. Ao contrário, esse homem chegou a dar o suporte financeiro necessário aos seus alunos menos favorecidos. Tal ato rendeu-lhe denúncias contra a sua integridade profissional. Contudo, essa prática ia ao encontro do propósito fundamental da filosofia que Eugênio havia ensinado a ele: fazer com que o ser humano praticasse e reconhecesse o bem. A educação, do ponto de vista de Temístio, possuía uma finalidade moral e a sua prática não poderia ser separada dos princípios morais por ele valorizados. A educação era necessária para o desenvolvimento do ser humano enquanto ser racional e, por isso, esperava-se dos alunos que Temístio auxiliava que eles se tornassem homens justos, com senso de dever e temperança (DALY, 1970, p. 10-22). O início da sua carreira política se deu com a sua nomeação para o senado de Constantinopla no ano de 355, realizada por Constâncio II. Assim como havia feito na sua carreira pedagógica, Temístio aceitou o cargo e recusou o salário que o acompanhava. No ano de 357, ele realizou uma viagem para a cidade de Roma, momento que representou um ponto de inflexão na sua carreira política. Entre 358 e 359, ele foi apontado por Constâncio II como procônsul de Constantinopla. Algumas das suas medidas nesse cargo envolveram a restauração da cota de milho do centro administrativo do Império e o recrutamento de senadores, cujo 37 número saltou de duzentos para cerca de dois mil membros. Seguidamente à morte de Constâncio II, surpreendentemente, a sua carreira não avançou, mesmo que ele tenha admirado o interesse de Juliano pela filosofia e que este o apreciasse como filósofo e o considerasse um amigo. O auge da carreira de Temístio só ocorreria entre 383 e 384, no governo de Teodósio I (347 – 395), época na qual ocupou o cargo de princeps senatus, em Constantinopla (DALY, 1970, p. 34-69). O educador ainda lecionou nas cidades de Ancira e Nicomédia. No desenrolar da sua carreira política, ele escreveu panegíricos dedicados a diversos imperadores. Dentre os que chegaram à atualidade, encontramos aqueles dirigidos a Constâncio II, Joviano (331 – 364), Valentiniano I (321 – 375) e Valente (328 – 378), Graciano (359 – 383) e Teodósio I. Temístio foi o autor de discursos de cunhos políticos e privados. Malgrado o gênero a que pertenciam os seus escritos, todos os textos desse personagem histórico expressam as suas perspectivas filosóficas. O paflagoniano se preocupava que os imperadores do século IV se atentassem muito aos preparativos militares em detrimento da sua educação clássica, da filosofia e do estudo da retórica. Essa era uma questão compreensível se levarmos em consideração os conflitos bélicos internos e externos que assolavam o Império. Sem embargo, Temístio buscava realçar os princípios morais e as virtudes que deveriam ser expressadas por esses governantes. Em seus panegíricos, ele destaca o tema da tolerância religiosa por parte dos imperadores. Essa mesma temática nos permite compreender como o filósofo foi capaz de transitar politicamente entre os governos de tantos imperadores (GONÇALVES, 2015, p. 25-28). Segundo Bruna Campos Gonçalves, Temístio concebia o bom governante como alguém versado em filosofia e, quando isso não fosse possível, fazia-se necessário que ele se cercasse de filósofos. Como depositária dos conhecimentos divinos, apenas a prática filosófica era capaz de fazer com que o imperador se tornasse semelhante a deus. Todavia, independentemente dos meios que teriam levado o governante do Império ao poder, ele havia sido eleito por deus e somente por meio do exercício diário de determinados valores morais ele comprovaria a sua ascensão divina. Ao filósofo cabia a teoria, ao governante competia a ação através do poder e da oportunidade. Enquanto lei viva, o imperador, para exercer o seu papel da melhor forma possível, deveria permanecer ancorado em duas principais virtudes: a clemência e a humanidade. Esta última, a philanthrōpía, era a mais importante das virtudes de um governante. Por ser essencialmente divina, somente deus era capaz de exercê-la com perfeição. Ao mesmo tempo, o imperador era o único a ter os meios e as aptidões necessárias para praticá-la na tentativa de imitar o divino. Frisamos que Temístio não era cristão ou neoplatônico, visto que seguia a filosofia aristotélica em contrapartida às pessoas que tomavam esse pensamento como 38 um complemento ao de Platão. Dessa forma, a divindade citada pelo paflagoniano não assume a forma neoplatônica nem a cristã, e sim o divino concebido por Aristóteles (GONÇALVES, 2015, p. 53-61). Daly apontou que a philanthrōpía, mais do que uma atividade por parte do governante, representava uma atitude e uma postura. Na época da Grécia Antiga, essa qualidade estava ligada ao amor que os deuses tinham pela humanidade e, mais especificamente no século IV a.C., passou a ser associada ao latim humanitas. Posteriormente, relacionou-se ao aprendizado e à graciosidade daquele que a possuía, assim como expressou um ideal moral e um critério de reconhecimento pela sociedade da Antiguidade Tardia quanto aos seus cidadãos mais proeminentes e poderosos. Entre os intelectuais do século IV, Temístio foi aquele que melhor formulou o princípio da philanthrōpía e que defendeu a sua prática vigorosamente. Essa era uma virtude não inata, adquirida e maturada pela paideía, e catalisadora de todas as demais virtudes imperiais. Ela derivava do poder e era considerada, como Gonçalves disse, uma qualidade divina, compartilhada pelos deuses apenas com o governante. A civilidade e a clemência eram as principais qualidades associadas à virtude da philanthrōpía (DALY, 1970, p. 181-189). O posicionamento do paflagoniano quanto à tolerância religiosa foi uma marca presente em todos os seus discursos que sobreviveram até os nossos dias. Afinal, tratava-se de responder a uma demanda do seu tempo. O século IV foi caracterizado por uma pluralidade de religiões e, para ir além, de vertentes distintas dentro de cada uma delas, todas disputando pelo seu próprio espaço de poder. Temístio defendia a liberdade de culto na esfera individual, criticava sutilmente as divisões internas do cristianismo e condenava as falsas conversões levadas a cabo por políticas repressivas. Tendo isso em mente, o papel do imperador era o de garantidor do equilíbrio entre as inúmeras religiões e vertentes presentes no Império (RITORÉ PONCE, 2001, p. 524-539). Vanderspoel nos transmitiu que Temístio foi considerado por muito tempo pela historiografia, e mesmo por alguns dos seus contemporâneos, como um falso filósofo e um bajulador de imperadores preocupado somente com a sua glória pessoal. Mas, considerá-lo um mero bajulador é ignorar os seus próprios objetivos como um orador. Ele sempre insistiu ter sido um filósofo que escolheu a vida política, ou a vida pública, para expressar a sua filosofia de forma que pudesse beneficiar a sociedade romana. Os seus discursos públicos e privados foram veículos de exposição das suas perspectivas filosóficas. De certa forma, a sua influência contínua exercida em diferentes governos representa uma parcela de sucesso nas suas tentativas de forjar uma aliança entre os helênicos e os cristãos, baseando-se nos principais elementos 39 caros a cada um desses grupos. Obviamente, ele sofreu com a oposição de dissidentes de ambos os lados. O seu empreendimento falhou, pois ele não ganhou um apelo universal. Conforme Vanderspoel, os seus sucessos ocasionais são uma ilusão, posto que imperadores tais como Valente teriam fingido aceitar as propostas do filósofo na tentativa de apaziguar uma porção helênica das elites governantes e que ainda era significativa (VANDERSPOEL, 1995, p. 3-19). A tradição clássica, tão cara a Temístio, era de suma importância para a época em que ele viveu e inspirou diretamente as suas ideias quanto à educação, à política e à filosofia. Esta precisava ter uma função prática na vida pública e foi considerada pelo paflagoniano como a performance da própria virtude quando posta à serviço do governo. Ao reivindicar a máxima socrática de que o filósofo carece da ação à custa da palavra, esse homem explicitou as suas convicções e participou ativa e extensivamente na educação, na filosofia e no governo do Império, desde Constâncio II até Teodósio I. O pensamento de Temístio era regido, portanto, pela tradição clássica, pela prática da filosofia e pela união desta com o poder. O exercício político era uma extensão dos estudos filosóficos e compunha uma relação natural entre o poder e a filosofia. Os governantes e os filósofos possuiriam, então, uma origem e um propósito em comum: agir em prol dos interesses da comunidade. O papel de Temístio, nesse caso, era o de conselheiro dos governantes e filósofos para que cada um deles assumisse as responsabilidades que lhes eram apropriadas. A reclusão do filósofo representava o seu fracasso em assumir os deveres que tinha perante a sociedade, uma vez que era seu papel agir como a encarnação da consciência dela. Tal qual o médico que cura o doente com o remédio, o filósofo deveria tratar os males da sociedade recorrendo à paideía e assumir o papel de educador público. Por isso, esse personagem transitou, com familiaridade e sucesso, entre os círculos políticos e filosóficos do século IV (DALY, 1970, p. 2-88). Se refletirmos sobre o importante papel que Temístio exerceu no sé