UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - CAMPUS DE FRANCA LÍVIA RIBEIRO CUNHA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E O ENCARCERAMENTO DAS MULHERES INSERIDAS NA COMERCIALIZAÇÃO ILEGAL DE DROGAS NO BRASIL FRANCA 2023 LÍVIA RIBEIRO CUNHA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E O ENCARCERAMENTO DAS MULHERES INSERIDAS NA COMERCIALIZAÇÃO ILEGAL DE DROGAS NO BRASIL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Dra. Ana Gabriela Mendes Braga FRANCA FOLHA DE APROVAÇÃO LÍVIA RIBEIRO CUNHA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E O ENCARCERAMENTO DAS MULHERES INSERIDAS NA COMERCIALIZAÇÃO ILEGAL DE DROGAS NO BRASIL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Dra. Ana Gabriela Mendes Braga Banca Examinadora Orientadora:____________________________________________________ Dr.(a) Ana Gabriela Mendes Braga 1º Examinador:______________________________________________ Letícia Cardoso Ferreira 2º Examinador: __________________________________________________ Paola Cristina Silva Oliveira Franca, ______ de _____________________ de 2023 Dedico este trabalho à minha mãe, ao pai, ao meu irmão, à minha prima Janaína e aos meus guias espirituais. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço aos meus pais, Cláudia e Amauri, pelo amor, cuidado e o amplo amparo. Agradeço pelo apoio a todas as decisões que tomei ao longo da minha vida e, principalmente, pelo apoio durante a minha jornada universitária. À minha mãe por sempre me dar suporte aos meus vôos e pela visão positiva do mundo, que auxiliaram na construção da minha individualidade. Ao meu pai, pelos valores, ao exemplo de integridade e ambição, que os tomei para mim e que foram extremamente importantes para que eu pudesse iniciar a minha jornada nos estudos. Agradeço meu irmão, Guilherme, pela presença alto astral, “piadinhas”, companheirismo, amizade, conselhos e pela fé depositada em mim durante toda a minha vida. Agradeço pelo suporte ativo e sincero dado a mim durante a graduação nos momentos felizes e tristes. Agradeço pelas suas visitas em Franca que me revigoraram e me fortaleceram. Agradeço a minha prima Janaina, sendo ela a verdadeira e a primeira precursora que nutriu, junto a mim, o meu sonho de infância de me tornar advogada. Agradeço também pelo suporte dado a mim para alcançar inúmeras realizações pessoais. Agradeço pela amizade, amor, respeito, palavras de apoio e por todos os diálogos profundos (que iniciaram-se na casa de nossos avós, durante a nossa infância). Agradeço aos meus avós pelo aconchego e pelo legado, os quais foram usufruídos por mim. À minha avó Isaura (em memória) pela doçura, orações e por acreditar nos meus sonhos. A minha avó Leonidia (em memória), que sempre senti presente em toda a minha jornada, pelo legado de força que perdura, vividamente, na minha família. Ao meu avô Lázaro pelas orações voltadas à mim. Agradeço a Tia Salete, Tio Nil, Tia Rose, Tio Donizetti, Tio Nerito, Tio Zé, Arlinda, Yasmin e Emili por me ampararem em momentos importantes da minha trajetória de estudos, em especial, pela ajuda dada a mim, no início 2018, que quase me levou a mudar de estado. Agradeço a Tia Thais, Tia Preta, Tio Pepeto, Henry, Gabriel, Tio Nê, Christian, Nicolas e Tia Nelma pela presença em momentos especiais da minha vida cotidiana, desde as festas de escola até a trajetória de estudos. Agradeço às minhas amigas da minha terra natal, Jéssica e Gabi, que me acompanham há mais de 10 anos e que sempre me depositaram força e confiança. Agradeço pelos diálogos, amizade, respeito, carinho e trocas. Agradeço aos meus professores do Cursinho Popular de Mairinque, que me aturaram nos plantões de dúvidas, pelo profissionalismo que me serviram de degrau para que pudesse ingressar numa Universidade Pública. Agradeço especialmente aos meus professores Marco, Elias e Lobo, os quais possuo uma grande admiração, carinho e gratidão. Agradeço aos meus amigos Unespianos Poliglota, Bunny, Chanel, Sandy, Over, Raba, Talitinha, Tinder e Lucila que tornaram a minha permanência em Franca mais feliz, leve e marcante. Agradeço ao grupo “Mulheres espiritualizadas”, que tornou a minha vivência em 2023 muito mais divertida e alegre. Agradeço aos meus amigos de turma Caio, Vitória e Ricardo que me ajudaram a me desenvolver academicamente e pelos grupos de trabalho. Agradeço, em especial, minhas veteranas de Direito Cruella e Lola, que me deram inúmeras dicas de estudos e de estágio. Agradeço, em especial, a Sal, a Mari, a Nanny, a Baby e a Pose, as quais desenvolvi vínculos sinceros e fluídos que levarei para além da UNESP, e que me serviram como um verdadeiro berço durante a minha permanência na Universidade. Agradeço ao Coletivo “AFROntar” e todas as outras pessoas pretas que me aquilombei durante esses cinco anos, que me proporcionaram um espaço confortável, lúcido, acolhedor e fortalecedor durante a faculdade. Agradeço também à Pró-Reitoria de Pesquisa (a PROPe) pela oportunidade de desenvolver uma Pesquisa de Iniciação Científica (ICSB), que me nortearam a desenvolver este trabalho. Agradeço ao Professor Agnaldo Barbosa pela elaboração responsável, crítica e humanizada de suas aulas na UNESP, que me impulsionou a observar o Direito de modo emancipatório e revolucionário. Agradeço a professora Kelly Canela pelo profissionalismo e doçura, que fizeram me apaixonar pela matéria de Direito Civil. Agradeço a Professora Ana Gabriela pelas orientações desta monografia. Agradeço pelo profissionalismo na elaboração de suas aulas, que me encaminharam a desenvolver uma visão crítica sobre o Sistema Penal. Agradeço pela compreensão e sensibilidade. Agradeço à cidade de Franca pela receptividade e pelas experiências profissionais, acadêmicas e pessoais que pude explorar. Agradeço pela sensação de pertencimento e carinho pelo município que me foi proporcionada. Por fim, agradeço imensamente pelos meus guias espirituais, em especial, meu Anjo da Guarda, Baiano Severino e Dona Maria Navalha, que me guiaram, acompanharam e iluminaram para que eu pudesse finalizar a graduação com vigor e desenvolver, de maneira plena, a minha vida pessoal. Agradeço pela abertura de caminhos, fortalecimento e aprendizados, que levarei sempre comigo. Agradeço ao Terreiro de Umbanda “Mané Baiano” pelo acolhimento, seriedade e vitalidade. Ficamos plenos de esperança, mas não cegos diante de todas as nossas dificuldades, sabíamos que tínhamos várias questões a enfrentar. A maior era a nossa dificuldade interior de acreditar novamente no valor da vida… (Evaristo, 2014, p. 70). CUNHA, Lívia Ribeiro. A construção da identidade e o encarceramento das mulheres inseridas na comercialização de drogas no Brasil. 79 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. RESUMO O objeto da presente monografia é analisar, através de pesquisas bibliográficas, as pormenoridades acerca das mulheres inseridas na comercialização de substâncias ilícitas no Brasil, bem como a conjuntura das penitenciárias femininas. Em suma, a abordagem deste trabalho será qualitativa, enquanto a sua natureza será explicativa. Na Escola Clássica e Positivista, a mulher criminosa era considerada patologicamente anormal e perigosa. Num período posterior, a Criminologia Crítica atribuiu um viés mais científico sobre os fenômenos criminológicos, porém, devido ao fato de seus estudos se voltarem para o homem branco, cisgenero e de classe média, a mulher criminosa ainda era invisibilizada. Apenas com o desenvolvimento da Criminologia Feminista, a condição da criminosa, principalmente da traficante de drogas, passou a ser analisada por uma ótica científica e social. Alguns fatores influenciam no ingresso dessas figuras na comercialização ilegal de substancias ilicitas no país, sendo eles: a raça, o status civil, a classe social, a escolaridade, o acesso a trabalho formais e a condição de chefia que ocupam em seu núcleo familiar. Além disso, a seletividade penal, bem como a Lei n° 11.343/2006, colaboram com o crescimento dos índices de encarceramento feminino no país, sendo esta população carcerária composta, predominantemente, por aquelas que estavam inseridas no tráfico de entorpecentes. A estrutura das unidades prisionais femininas são sub-humanas e não contemplam as demandas femininas. Em suma, estes estabelecimentos perpetuam a exclusão e as violências que estas personagens já sofriam enquanto estavam em liberdade e o quadro agrava-se, quando levado em consideração que os impactos da penalização destas, também afetam terceiros. PALAVRAS CHAVES: criminologia; gênero; raça; tráfico de drogas; encarceramento. CUNHA, Lívia Ribeiro. The construction of identity and the incarceration of women involved in the drug trade in Brazil. 79 p. Course Conclusion Paper (Graduation in Law) - Faculty of Human and Social Sciences, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2023.79 ABSTRACT The purpose of this monograph is to analyze, through bibliographical research, the details of women involved in the sale of illicit substances in Brazil, as well as the situation in women's prisons. In short, the approach of this work will be qualitative, while its nature will be explanatory. In the Classical and Positivist Schools, women criminals were considered pathologically abnormal and dangerous. In a later period, Critical Criminology took a more scientific approach to criminological phenomena, but because its studies focused on white, cisgender, middle-class men, women criminals were still invisible. It was only with the development of Feminist Criminology that the condition of criminals, especially drug traffickers, began to be analyzed from a scientific and social perspective. Some factors influence the entry of these figures into the illegal trade of illicit substances in the country, such as race, marital status, social class, schooling, access to formal employment and the position of head of the family. In addition, penal selectivity, as well as Law No. 11.343/2006, have contributed to the growth in female incarceration rates in the country, with this prison population being made up predominantly of those who were involved in drug trafficking. The structure of women's prisons is subhuman and does not meet women's demands. In short, these establishments perpetuate the exclusion and violence that these characters already suffered while they were free, and the situation worsens when it is taken into account that the impacts of their penalization also affect third parties. KEYWORDS: criminology; gender; race; drug trafficking; incarceration. INTRODUÇÃO 12 CAPÍTULO 1: CRIMINOLOGIA, MULHER E FEMINISMO 18 1.1 A designação da mulher na criminologia 18 1.2 Criminologia: o estudo do crime 19 1.3 A criminologia na Escola Clássica e na Escola Positivista no Direito Penal 21 1.4 A Criminologia Crítica 23 CAPÍTULO 2: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA MULHER TRANSGRESSORA 26 2.1 A associação de Direito e gênero: feminismo e a criminologia feminista 26 2.2 O processo histórico da criminalização de drogas 30 2.3 Penitenciária para as mulheres X penitência às mulheres 32 CAPÍTULO 3: A FACE DAS MULHERES CRIMINALIZADAS POR TRÁFICO DE DROGAS NO BRASIL 35 3. 1 O encargo feminino dentro da organização interna do tráfico de drogas 35 3. 2 O ingresso das mulheres no tráfico de drogas: Protagonismo X Vitimização 39 3.2 Uma breve descrição do perfil das mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Brasil 43 CAPÍTULO 4: O ENCARCERAMENTO FEMININO 53 4.1 O aumento da população carcerária feminina por tráfico de drogas e pelos demais crimes 53 4.2. Os impactos do encarceramento feminino por tráfico de drogas 59 4.3 A ausência de infraestrutura das penitenciárias femininas e a sua repercussão entre diferentes grupos de mulheres 61 CONCLUSÃO 69 REFERÊNCIAS 73 12 INTRODUÇÃO O objeto da presente monografia é analisar as especificidades acerca das mulheres inseridas no comércio ilegal de drogas no Brasil e a condição atravessada por estas no estabelecimento prisional. Para isso, servirão como fonte bibliográfica, as obras sobre a criminologia feminista, como Carmen Hein de Campos, Sintia Soares Helpes e Gabriela Bessa Lima, assim como as autoras do feminismo negro, como Sueli Carneiro e Ana Luiza Pinheiro Flauzina. Para tratar de questões que vão além da condição de gênero, principalmente no que refere-se às conjunturas perpassadas pelas traficantes de drogas no país, serão utilizadas as pesquisas do ITTC1. Também serão utilizadas como fonte bibliográfica, os artigos científicos disponibilizados no Google Scholar, visto que ele oferece conteúdos científicos de diversas revistas acadêmicas, anais, dissertações, entre outros materiais sobre gênero, tráfico de drogas e prisão. As pesquisas do SISDEPEN2, mais especificamente o rol sobre as “informações gerais criminais” e "Mulheres e grupos especificos”, também serão utilizadas. Em suma, a abordagem da pesquisa será qualitativa, devido ao seu caráter descritivo e interpretativo. Enquanto a sua natureza será explicativa, visto que serão analisadas as especificidades referentes a este fenômeno. No primeiro capítulo, denominado como “Criminologia, Mulher e Feminismo” será abordado, brevemente, sobre a condição da mulher dentro das escolas criminológicas. No capítulo “A Construção Histórica da Mulher Transgressora”, será tangenciando sobre o processo histórico de criminalização das mulheres, bem como a penalização destas. Já no capítulo “A Face das Mulheres Criminalizadas por Tráfico de Drogas no Brasil” traçará o perfil das mulheres encarceradas pelo crime de comercialização ilegal de substancias ilicitas, assim como as cinscuntancias que as levam a ingressarem em tal atividade. Por fim, no último capítulo, nomeado como “O Encarceramento Feminino” retratará sobre o aprisionamento massivo de mulheres no país por tráfico de drogas e pelos demais crimes, como também sobre a condição sub-humana das unidades prisionais femininas e os impactos do encarceramento dessas personagens. Os primeiros estudos criminológicos surgiram com a Escola Clássica na Europa, no século XVIII, durante o período iluminista, cujo principal pensador era Cesare Beccaria. Suas teses firmavam-se num viés filosófico, principalmente no que concerne ao livre-arbítrio e à 2 SISDEPEN: Secretaria Nacional de Políticas Penais. 1 ITTC: Instituto Terra Trabalho e Cidadania. 13 moral. Posteriormente, no final do século XIX, emerge a Escola Positivista, que representou um grande avanço nos estudos da criminologia. Esta escola se autodenomina como científica, racional e positivista perante aos fenômenos criminológicos e à personalidade do desviante, pois eram levados em consideração aspectos como: o determinismo social, os fatores psíquicos, as questões ambientais e outros pontos relevantes para este estudo. É justamente neste periodo que Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, mediante comparações entre sexo masculino e feminino de diferentes espécies de animais, concluiram que havia um padrão evolutivo entre gêneros, no qual o homem era mais evoluído que a mulher. E, com isso, foi determinado que as figuras femininas possuíam padrões fisiológicos inferiores aos masculinos. Posteriormente, a sociologia passou a tratar dos fenômenos criminológicos por um viés puramente científico e sociológico, e, assim, afastando-se da abordagem patológica e individualista do então período iluminista. No fim do século XX, surge a Criminologia Crítica na Europa e Estados Unidos. Estes estudos são influenciados por ideais críticos, advindos do marxismo, e traz em pauta elementos econômicos e sociais sobre os fenômenos criminológicos (Oliveira, 2009). Outro ponto relevante, é que esta corrente também analisa a origem e os meios para que o Estado contivesse as atividades criminosas. Já no início do século XX, surgem os primeiros estudos sobre a criminalidade de mulheres, os quais reforçavam o viés patológico sobre os fenômenos criminológicos. Nesse mesmo sentido, a figura feminina era segmentada entre a mulher “comum” e a transgressora, a primeira era considerada débil, frágil, maternal e subalterna ao homem, enquanto a segunda era acometida pela sagacidade e o instinto selvagem, que a tornava uma criminosa mais perigosa que o homem transgressor. Com a maior evidência dos movimentos feministas entre as décadas de 1960 e 1980, a criminologia passou a atribuir um caráter mais científico e protagonista para a mulher criminosa, observando mais amplamente a conjuntura e as especificidades que as abarcam. Este estudo criminológico, voltado exclusivamente para a figura feminina, representa uma evolução da teoria crítica e da escola positiva. Contudo, mesmo que a criminologia feminista atribua um novo caráter para os estudos criminologicos, em praxís, a politica criminal não leva em consideração as especificidades do genero. A autora Carmen Hein de Campos (2020, p. 274) aponta que há um hiato entre a criminologia crítica tradicional e o feminismo no Brasil. A ausência de diálogo entre ambos os assuntos, somada à estigmatização das mulheres, resulta num 14 vislumbre coletivo limitado e inverídico, o qual desassocia a atividade de tráfico de drogas e o gênero. Assim, a comerciante de narcóticos é invisibilizada e discriminada, pois, além dela desviar do seu papel social e cometer um crime hediondo, ela também ocupa uma função incumbida aos homens. Nesse mesmo prisma, Alessandro Baratta alega que: Suscita-se que tendo o sistema penal um controle específico das relações de trabalho que se dão no âmbito produtivo, bem como da ordem pública, na qual os homens seriam protagonistas, este não atingiria o domínio da vida privada, das relações reprodutivas nas quais as mulheres predominantemente atuam ou deveriam atuar e, portanto, o sistema de justiça atuaria fora do alcance de controle feminino. (Baratta, 1999b, p. 45). Primeiramente, para entender as especificidades sobre o contexto das mulheres inseridas na comercialização ilegal de drogas no país, é importante traçar o perfil dessas figuras. Segundo Edna Ferreira Carvalho (2021) e pesquisas do ITTC (2017), elas são, predominantemente: negras, com baixa escolaridade, pobres, mães, residentes em periferias, solteiras, jovens (entre 18 e 29 anos), chefes de família. Somado a isso, essas transgressoras são as mais atingidas pela crescente informalidade trabalhista e, com isso, o tráfico de narcóticos torna-se mais atrativo ou, quiçá, único meio de prover seu próprio sustento e de sua família. A pesquisa do IPEA aponta que o índice de desemprego entre as mulheres brasileiras, em 2022, era de 11,6%, sendo 4,6% maior que a masculina. Além disso, mesmo que os dados gerais apontem que a população trabalhadora do país cresceu 7,5%, a modalidade de trabalho sem carteira assinada cresceu 19,9%. Entretanto, a problemática torna-se ainda mais gravosa, quando levado em consideração que essas personagens são mães e as únicas responsáveis pelo provimento do ambiente doméstico (ITTC, 2019). No entanto, o contexto em que as mulheres negras ingressam na comercialização ilegal de drogas é ainda mais singular e, por isso, devem ser observadas mediante a corrente do “feminismo negro”. Conforme levantado por Sueli Carneiro (2019), as mulheres pretas da América Latina, assim como no Brasil, enfrentaram um processo histórico de marginalização e coisificação, as quais repercutem até os dias atuais. Em outras palavras, a conjuntura das mulheres pretas inseridas no tráfico de drogas no Brasil, remete a um quadro ainda mais complexo, visto que, além da questão de gênero, este soma-se a fatores como a raça e a estratificação social. Luciana Boiteux (2015, p.36) aponta que “o encarceramento de mulheres por tráfico só reforça o patriarcado [...] a guerra contra as 15 drogas é uma guerra contra mulheres”, sendo ainda mais agravada a condição da mulher pobre e negra. Portanto, à medida que as transgressoras brancas enfrentam a invisibilização e a quebra do estigma social de gênero, a condição da criminosa negra é ainda mais complexa, pois soma-se a tais impasses a marginalização e os desdobramentos do racismo estrutural, que as afastam do desfrute dos Direitos Fundamentais firmados na Constituição Federal. Mesmo com este cenário, dados apontam que o crime de tráfico de drogas é o que mais prende mulheres no Brasil, representando 62% da população penitenciária feminina, sendo 67,81% delas pretas ou pardas3. (SISDEPEN, 2022). Nesse mesmo sentido, Nathalia Oliveira e Lucia Sestokas ressaltam que: As mulheres negras que transitaram da condição de mercadoria no final do século XIX para sujeitas de direitos não gozam plenamente, no século XXI, de todos os direitos políticos, econômicos, sociais e afetivos contemplados pelas pessoas brancas. As desigualdades políticas, econômicas e sociais apontadas por Davis são resultados de sociedades estruturadas no racismo e, uma vez assim estruturadas, todas as relações carregarão os marcadores de desigualdades fundadas nesse mecanismo (Sestokas, Oliveira, 2018, p. 161). Outro fator que corrobora para que as figuras femininas ingressem no comércio ilegal de drogas no país provem do relapso do Estado em estabelecer políticas públicas de modo homogêneo e equitativo, sobretudo, para aqueles que pertencem a grupos vulneráveis. Embora parte significativa da intempérie possa ser solucionada com a garantia de políticas públicas para as personagens em questão, destaca-se que a principal medida governamental para conter a criminalidade, em especial, o tráfico de drogas, é o encarceramento massivo de mulheres. Dentro disso, pesquisas apontam que o aprisionamento de mulheres cresceu 60% entre 2000 e 2021, enquanto a população carcerária masculina cresceu 22% durante este mesmo período. Representando assim, quase ⅓ da curva do crescimento do encarceramento feminino4 (Mena, 2022 apud ICPR, 2021). Nesse mesmo sentido, quando a traficante de drogas recai sob a custódia da justiça criminal, ela é duplamente penalizada, pois, além de infringir uma norma penal, ela também desviou do papel de gênero atribuído pela sociedade. Outro ponto relevante, é que desde o 4 Informação repassada pelo jornal “Folha de S. Paulo” referente a outubro de 2022. Os dados em questão foram coletados na 5ª edição da World Femele Imprisonment List, realizado pelo ICPR (sigla traduzida para o portugues como: Pesquisas em Políticas criminais e de Justiça) da Universidade de Londres, no Reino Unido. 3 Estes dados foram averiguados entre janeiro à junho de 2022, pelo Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN). 16 momento do flagrante do delito até o encarceramento, com a decretação da prisão definitiva, elas são fortemente acometidas pela violência institucional, física, psicológica e moral (ITTC, 2019). Não bastando isso, levando em consideração o perfil dessas figuras, quando elas são condenadas e aprisionadas, a pena não se restringe exclusivamente a estas, pois o seu núcleo familiar também é, indiretamente, afetado. Assim, seus dependentes também tornam-se alvo desta penalização (ITTC, 2019). No momento do flagrante do delito de tráfico de drogas, elas ainda sofrem violência de gênero pelos policiais militares. Portanto, durante este ensejo, é comum que ocorra zombaria sobre seus corpos, assédio sexual, violência psicológica e moral. Nesse mesmo aspecto, quando as traficantes de drogas chegam no cárcere privado, elas são submetidas a uma revista vexatória e totalmente invasiva pelos próprios agentes penitenciários, que remete à continuidade das violências já sofridas anteriormente. Nesse ínterim, a entrada, assim como a permanência dessas mulheres no estabelecimento prisional, é espinhosa e demasiadamente cruel. Sintia Soares Helpes (2014) aponta a naturalização e a permissividade de atos violentos contra as mulheres criminosas. Além das violências geradas pelas instituições do Estado, como o próprio encarceramento privado, estas também são vítimas de violência doméstica que, em sua maioria predominante, são advindas do seu companheiro romântico. As penitenciárias femininas não são adaptadas para as mulheres grávidas, lactantes, crianças, mulheres com deficiência e estrangeiras, mães ou transexuais. É possível afirmar que esta estruturação das penitenciárias é oriundo do próprio abandono governamental e da repugnância da sociedade contra as mulheres transgressoras, que as submetem a uma condição sub humana. Nesse mesmo sentido, estas também são abandonadas dentro das penitenciárias pelos companheiros e pelos familiares, os quais, muitas vezes, enfrentam dificuldades para frequentar os horários de visitas. Em síntese, as mulheres em questão compõem um grupo desfavorecido socialmente, o qual não desfruta dos direitos fundamentais básicos, firmados no artigo 6º da Constituição Federal, o qual assevera que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” (Brasil, 1988). Mesmo com este cenário, dados do SISDEPEN (2022) apontam o crime de tráfico de drogas como o que mais prende mulheres no Brasil, representando 64% da população penitenciária feminina. 17 Por fim, a condição da mulheres inseridas na comercialização de drogas no Brasil, possui inúmeras especificidades relacionadas ao gênero que devem ser observadas adequadamente, desde o momento em que essas mulheres passam a integrar esta atividade criminosa até o momento em que a Justiça Penal é acionada, com o encarceramento destas (no caso daquelas que não saem da criminalidade por escolha própria). Portanto, a criminologia feminista será um meio de analisar, pormenorizamente, a condição dessas personagens. 18 CAPÍTULO 1: CRIMINOLOGIA, MULHER E FEMINISMO 1.1 A designação da mulher na criminologia A definição atual de criminologia foi construída mediante diversas vertentes teóricas sobre os fenômenos criminológicos. Por esta razão, para entender a criminologia feminista, é importante abordar alguns pensamentos que influenciaram em sua definição e como as mulheres criminosas eram retratadas nas escolas criminológicas. A associação do Direito Penal e da criminalidade feminina é oriunda de um lento processo histórico e político, que iniciou-se com a Escola Positivista no século XIX. Neste período, as mulheres eram tuteladas somente pelo ambiente doméstico e pelo próprio Estado, porém, posteriormente, elas também passaram a ser custodiadas pelo sistema penal. O pensamento feminista tem um histórico de reivindicações de reformas legais punitiva para a melhoria da vida das mulheres. Contudo, argumenta-se que existem limitações a essas reformas pretendidas, pois se demonstra a problemática de se recorrer ao instrumento do direito e principalmente sobre o uso simbólico do direito penal como ferramenta de proteção das mulheres e de grupos vulneráveis. O direito é reprodutor de desigualdades, exploração e estrutura das relações de opressão, e dessa maneira, não é capaz de utilizar suas ferramentas para modificar a estrutura patriarcal, tendo em vista que faz parte dela e por ela é informado (Andrade apud Lima, p. 62, 2021). Entretanto, o quadro supracitado, bem como as Escolas Criminológicas que serão retratadas nos subcapítulos subsequentes, referem-se, exclusivamente, à condição das mulheres brancas. Os primeiros estudos criminológicos não abordavam a realidade das mulheres negras, as quais estavam custodiadas pelo trabalho forçado e coisificação perante ao Estado. Dentro disso, Cecília Moreira Soares (2017) assevera que: As lacunas que se encontram na criminologia feminista tradicional ou mainstream são bastante semelhantes àquelas encontradas dentro do movimento feminista que o feminismo negro e decolonial denunciam. Especialmente aquelas no que tange ao ocultamento do racismo como uma estrutura que atua no campo criminal e possui inúmeras consequências no controle do corpo feminino pelas instâncias estatais, especialmente o das negras, que foram, desde os tempos em que o Brasil era Colônia, trabalhadoras de rua e comerciantes, ou seja, ocupantes dos espaços públicos e das ruas (Soares apud Franklin, 2017, p. 45). Com o seguinte trecho, a deficiência entre interseccionalidade entre gênero e raça dentro dos estudos criminológicos torna-se mais evidente: 19 Mesmo a criminologia produzida sob o paradigma de gênero não é completa e abrangente o suficiente, porque, até aqui, pouco tem levado em conta a necessária interseccionalidade, considerando outros sistemas de opressão que funcionam ao lado da opressão de gênero (raça, classe, orientação sexual, capacidade) [....] tendo produzido trabalhos que procuraram criticar a ausência do reconhecimento de que o direito tem gênero; reproduzindo, no entanto, os discursos hegemônicos do que vou chamar aqui de feminismo branco essencialista (Gomes, 2017, p. 19). Contudo, para compreender como se deu o processo histórico de criminalização das mulheres, em especial pelo crime de tráfico de drogas, será necessário expor nos próximos subcapítulos sobre algumas escolas criminológicas, a guerra às drogas e a interseccionalidade de direito penal e gênero. Embora os primeiros pensadores não levem em consideração a criminalidade feminina, a abordagem histórica é fundamental para o desenvolvimento e compreensão deste estudo. 1.2 Criminologia: o estudo do crime A criminologia, de uma maneira geral, visa informar a sociedade e o Estado sobre as práticas criminosas, por intermédio das investigações realizadas sob a figura da vítima e do criminoso, bem como as motivações que levaram ao cometimento do ato ilícito. Nesse sentido, a criminologia configura-se como uma ciência que identifica o problema criminal e propõe meios efetivos para a sua contenção e prevenção. Nesse ínterim, Bandeira e Portugal (2017) atribuem a seguinte conceituação para a criminologia: Um estudo completo do crime, portanto, exige uma análise ampla, em que a utilização de mais de uma forma de abordagem pode trazer resultados úteis de investigação. Desse modo, é possível falar na interdisciplinaridade, pois o objeto de estudo da criminologia ultrapassa os limites dessa disciplina, sendo estudado, como vimos, por algumas outras. Assim, todos os campos de estudo dialogarão com o mesmo patamar de importância (Bandeira, Portugal, p. 13, 2017). Para conceder uma outra definição para a criminologia e tornar o entendimento desta ciência mais completa, João Farias Júnior (2006) aponta que: A Criminologia é a ciência humano-social que estuda: O homem criminoso, a natureza de sua personalidade, os fatores criminógenos, a criminalidade, suas geratrizes, o grau de sua nocividade social, a insegurança e a intranquilidade que ela é capaz de causar à sociedade e seus membros; a solução do problema da criminalidade e da violência através do emprego dos meios capazes de prevenir incidência e a reincidência no crime, evitando ou eliminando suas causas. (Junior, p. 21, 2006). 20 Para definir a criminologia de modo mais concreto, é necessário enfatizar que, a princípio, esta ciência parte dos seguintes objetos de estudo: o crime, os agentes de controle, a vítima e a criminosa. Indubitavelmente, a definição de cada um destes termos alterou-se ao longo do tempo. O crime é positivado no Direito Penal através das normas, configurando como uma conduta humana que representa a quebra de uma expectativa social ou, para além disso, remete à infração de uma lei firmada no Código Penal (Silva, 2020, p. 6). Por outro lado, os agentes de controle são medidas externas que visam a contenção e o controle da criminalidade, estas ações podem ser aludidas a nível social e Estatal. A primeira concerne a ações do Estado que visam comedir a criminalidade, como a criação e a efetivação de políticas públicas, alterações legislativas, o cumprimento do devido processo penal. Já o último relaciona-se com um conjunto de valores e idealizações, oriundas da própria sociedade, com cunho anti-criminais (Silva, 2020, p. 11-12). A criminosa refere-se à figura que infringiu a lei penal positivada no Código Penal, portanto, ele é o sujeito responsável por uma lesão gerada a alguém ou a um bem jurídico. Dentro disso, podem ser feitas análises sobre as motivações que o fizeram cometer o delito e seu perfil. Por fim, a figura da vítima passou a ser englobada nos estudos criminógenos recentemente (Silva, 2020, p. 8). A vítima é aquela que, alheia à sua vontade ou consentimento, teve o seu bem jurídico lesado pelo delito, em outras palavras, é aquela que sofreu com impactos da infração penal por terceiros (Silva, 2020, p. 9-10). As análises referentes à figura da vítima também são nomeadas como Vitimologia, cunhando assim o “estudo da vítima”. Outrossim, os estudos criminológicos se alicerçam nas quatro segmentações supramencionadas e, para que suas análises sejam concretas e fidedignas, é necessário interligar tais objetos. Em síntese, é um ato indispensável na apreciação dos atos criminosos observar todas as ramificações ao que concerne a vítima, do crime, do criminoso e do controle social, sendo também importante correlacionar dois ou mais destes elementos. Portanto, a criminologia consiste em uma ciência interdisciplinar complexa, que analisa o fenômeno criminológico de forma completa e aprofundada, e, assim, servindo como uma óptica que permite vislumbrar a criminalidade para além do viés positivista. Entretanto, ainda que esta possua o crime, os agentes de controle e a vítima e o criminoso, este último será o mais relevante para entender-se a criminalidade, mais especificamente a atividade de tráfico de drogas, entre as mulheres. 21 1.3 A criminologia na Escola Clássica e na Escola Positivista no Direito Penal O surgimento da Escola Clássica na Europa, durante o século XVIII, representa uma grande evolução dentro dos estudos dos fenômenos criminais. Os principais nomes que emergiram neste momento foram o de Cesare Beccaria, Francesco Carrara e Giovanni Carmignani. Nesse sentido, o cometimento de um delito, bem como a figura do delinquente, passaram a ser observados pelo prisma pré-científico e pela lógica do sistema dedutivo. Devido ao fato da Escola Clássica ter surgido durante o iluminismo, está analisava os fenômenos criminológicos por um viés altamente filosófico, sendo assim, associado à menção do livre arbítrio, da liberdade e da moral. Por certo, estes dois últimos carecem de maior atenção. A liberdade remete ao Contratualismo, de Jean Jacques Rousseau, que afirmava que o ser humano cede a sua liberdade e os direitos individuais para o Estado, para que assim ele fortaleça o seu poder e promova a proteção aos cidadãos. Já a moral defendida por Hugo Grócio, concerne ao Jusnaturalismo, que associa, intrinsecamente, a essência do direito à moral. Os Clássicos partiram de duas teorias distintas: o jusnaturalismo (direito natural, de Grócio), que decorria da natureza eterna e imutável do ser humano, e o contratualismo (contrato social ou utilitarismo, de Rousseau), em que o Estado surge a partir de um grande pacto entre os homens, no qual estes cedem parcela de sua liberdade e direitos em prol da segurança coletiva (Filho, 2014, p. 44). Quanto à penalização dos criminosos, Cesare Beccaria, o principal nome da escola clássica, apontava que, para conter os atos criminosos, era necessário que a aplicação da pena e o medo social generalizado desta, fossem superiores às vantagens de agir criminosamente. Entretanto, mesmo que as penas, neste período, fossem severas, ainda havia o cometimento de delitos e por isso surge a necessidade de colocar a figura do criminoso como objeto central de estudo. Nesta escola, os estudos criminológicos eram voltados exclusivamente para os homens delinquentes, visto que o cometimento de um delito por uma mulher era remetido a um transtorno psiquiátrico. Segundo os escassos estudos sobre a figura feminina durante a Escola Clássica, não era da natureza das mulheres envolver-se em atos criminosos, já que estas estavam incumbididas à maternidade e ao ambiente doméstico, sendo colocadas como coadjuvantes da figura masculina. 22 Já a Escola Positivista surgiu no continente Europeu, no final do século XIX, sendo esta corrente a que mais influenciou o direito penal brasileiro (Bezerra; Silva; Favero; Sokolowski, 2018, p. 82).5 Seus principais nomes são de Rafael Garófalo, Enrico Ferri e Cesare Lombroso, sendo este último considerado o pai da criminologia. Esta representa uma evolução da Escola Clássica, pois seus métodos de estudos são indutivos, científicos e levam em consideração aspectos sociais que contribuem para o cometimento do delito e na determinação do delinquente. Os fenótipos dos indivíduos, assim como o determinismo biológico, eram argumentos utilizados para estudar a personalidade do criminoso e as motivações que os levaram ao cometimento do delito. Nesse sentido, os estudos de Lombroso associavam a figura do delituoso a características selvagens, bestiais e animalescas. Ademais, o pensador tentou comprovar, mediante as suas pesquisas, que a condição de criminoso era inata, natural, patológica e intrínseca. Em outras palavras, o cometimento de delitos, ou até mesmo a figura do criminoso, era oriundo de uma enfermidade e, portanto, para a contenção da criminalidade era necessário remeter a algum tipo de “cura” ao invés de outros tipos de penalidades ou sanções que, até então, eram tradicionais. Assim como na Escola Clássica, os estudos criminológicos positivistas eram predominantemente voltados para a figura masculina, recaindo sob a mulher transgressora a invisibilidade e a subalternização ao homem. Todavia, nos seus escassos estudos direcionados ao sexo feminino, Lombroso aponta que as mulheres criminosas eram marcadas pelas seguintes caracteristicas: assimetria craniana e facial, mandíbula acentuada, estrabismo, dentes irregulares, clitóris e lábios vaginais grandes e sexualidade exarcebada e pervertida, o que para ele significava atos de masturbação e relações homossexuais. (Helpes, 2014, p. 47-48). Na citação seguinte, é possível ilustrar, mais claramente, os ideais de Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero: A criminosa nata, demonstraria, em suma, uma profunda tendência a se confundir com o tipo masculino. Esta, pelo erotismo excessivo, a fraca tendência à maternidade, o prazer pela vida desviada, a inteligência, a astúcia, a dominação sobre os seres fracos e sugestionáveis, algumas vezes mesmo pela força muscular, o gosto excessivo dos exercícios violentos, dos vícios e mesmos vestes viris reproduz um ou outro traços masculinos. A estes caracteres viris se juntariam frequentemente 5 Foi fimado neste anal de congresso que a escola positivista antropológica, até atualmente, serve como norte dos estudos criminológicos e da política criminal do Brasil, pois, por intermédio deste, foram criados inúmeros institutos penais que favorecem a elite. 23 as piores qualidades da psicologia feminina à inclinação exagerada à vingança, a astúcia, a crueldade, a paixão pela aparência, a mentira, formando, assim, tipos de uma perversidade levada ao extremo limite (Lombroso e Ferrero Apud Helps, 2014. p.48). Para além disso, este autor e Guglielmo Ferrero desenvolveram um estudo cuja análise associava pessoas a animais, e concluíram que a figura masculina era mais evoluída na escala evolutiva do que a feminina. Portanto, no trecho abaixo, Guglielmo Ferrero e Cesare Lombroso expõem, mais aprofundadamente, sobre a condição patológica da mulher criminosa: O macho possui predominância no fim da escala evolutiva, ou seja, nas espécies animais mais evoluídas, as fêmeas possuíam características fisiológicas que demonstravam a sua inferioridade em relação ao macho (Lombroso apud Lima, 2021, p. 47). Conforme Lombroso, a mulher tinha forte tendência à mentira, à inveja, à vingança, futilidades, ciúmes e à vaidade, mas essas características eram reprimidas pela passividade e o medo que as acometiam. Dessa maneira, as transgressoras eram dadas como desviantes e essencialmente masculinizadas. Estas personagens poderiam ter seu perfil segmentado em três grupos: a criminosa nata, a ocasional e a por paixão. A figura das criminosas natas são aquelas que já nascem com condição patológica que as fazem cometer crimes, e assim, cumprindo o perfil fenotípico supracitado. Já as criminosas ocasionais, ainda que não sejam naturalmente criminosas, podem cometer atos delituosos por influência de terceiros. Por fim, as criminosas por paixão são, em sua maioria, mulheres jovens que enquadram-se como “comuns”, mas que pelos impulsos das paixão acabavam agindo criminosamente. Por fim, é importante salientar que, neste período, a mulher remetia a custódia do Estado, pais, filhos ou marido, sendo ela incumbida ao ambiente doméstico ou, nos casos das mulheres negras, ao âmbito do trabalho (Lima, 2021, p. 17). Portanto, havia uma dissociação entre o cometimento de delitos e o gênero. 1.4 A Criminologia Crítica A Criminologia Crítica, emerge nos Estados Unidos e na Europa na década de 1960, sendo assim, marcada pela modernidade. Esta é fortemente influenciada por ideias econômicas e políticas, oriundas do marxismo e, por isso, buscava compreender os 24 fenômenos criminógenos por um prisma social e institucional. Por conseguinte, o enfoque destes estudos não era o criminoso, mas sim as influências exógenas que levavam ao cometimento de tal conduta. Portanto, as suas observações voltavam-se para a questão estrutural e sistêmica da sociedade, visto que o indivíduo era levado a delinquir devido à estruturação do próprio sistema. Em outras palavras, o Estado oferece um modelo governamental e social que não impede o indivíduo de delinquir, mas sim, o leva a delinquir. Torna-se evidente que, diferente das outras escolas criminológicas, como a corrente Clássica e Positivista, o objeto de estudo deixa de ser o sujeito que delinquiu, e passa a ser a própria estruturação do Estado e a efetividade da política criminal (Oliveira, 2009, p. 96). Dessa maneira, esta corrente defendia que a política criminal deve ser reestruturada pelo Estado, para que assim haja, de fato, a contenção da criminalidade. Pelo prisma de Alessandro Baratta é possível aprofundar-se nas alegações supracitadas: A etiqueta “criminologia crítica” se refere a um campo muito vasto e não homogêneo de discursos que, no campo do pensamento criminológico e sociológico-jurídico contemporâneo, têm em comum uma característica que os distingue da criminologia “tradicional”: a nova forma de definir objeto e os termos mesmos da questão criminal. A diferença é uma consequência daquilo que, utilizando a nomenclatura da teoria recente sobre “as revoluções científicas”, onde pode ser definido como “mudança de paradigma” produzida na criminologia moderna. Sobre a base do paradigma etiológico a criminologia se converteu em sinônimo de ciência das causas da criminalidade (Baratta, 2002, p.209). A Teoria do Etiquetamento e a Reação Social são as principais bases da Criminologia Crítica. A primeira atribui uma ótica social aos fatos, pois afirmava que o Estado não combate, efetivamente, a criminalidade, mas sim persegue o sujeito que delinque. Já a segunda aponta que as atividades criminosas eram fruto do próprio sistema repressivo de controle, ou de suas instituições e, por isso, ele jamais seria páreo para combater a criminalidade. (Oliveira, 2009, 97). Por outro lado, devido a estrutura da sociedade durante este período, que se fazia altamente excludente, os estudos da criminologia crítica não traçavam as especificidades relevantes sobre a figura dos transgressores. Por esta razão, a tal escola criminológica não abarcava questões como raça, gênero, classe, escolaridade e orientação sexual. Em outras palavras, é correto afirmar que as abordagens dos pensadores da criminologia crítica eram supressivas, pois estes, determinadamente, redigiram seus estudos de modo excludente e restrito, seguindo os moldes machistas, racistas e classistas da época. 25 Por consequencia deste cenario, as suas análises são direcionados ao homem médio, de classe média, brancos e cis-gereros, gerando assim uma ideia falsa de universalização de seus estudos (Lima, 2021, p. 72). Mesmo com este quadro, a Criminologia Crítica serviu como base para os ideais feministas, visto que aquela é considerada umas das ciências criminológicas mais modernas e científicas (Lima, 2021). Embora os estudos criminológicos feministas apresentem um afastamento da teoria anterior, a criminologia crítica, ambas as ciências possuem características em comum. Apesar de ter sido responsável pela superação da criminologia etiológica, a partir da desconstrução dos fundamentos e das justificativas apresentadas pelo positivismo, há uma evidente continuidade da tradição ortodoxa que invade os estudos contemporâneos relacionados com o envolvimento das mulheres nas dinâmicas delitivas, isto porque não se superou a interpretação dos conflitos como resultado de uma dinâmica estritamente individual e privada, no qual as violências que envolvem as mulheres foram inseridas em um horizonte de investigação cuja base interpretativa era, como continua sendo, causalistas, mantendo as noções individualistas e essencialistas sobre as mulheres (Weigert; Carvalho, 2020, p. 1791). 26 CAPÍTULO 2: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA MULHER TRANSGRESSORA 2.1 A associação de Direito e gênero: feminismo e a criminologia feminista A Revolução Industrial na Inglaterra foi o primeiro marco histórico responsável pela associação do Direito e do gênero, pois, com o ingresso das mulheres nos meios de produção, tornou-se necessário que as demandas femininas também fossem levadas em consideração no âmbito jurídico. Até este período, a sociedade era fortemente influenciada pelo determinismo biológico, o qual designava os indivíduos para o espaço público ou privado conforme os sexos e, indubitavelmente, cabia às mulheres os cuidados domésticos e familiares (Campos, 2020). Nesse prisma, foi mediante a positivação do princípio de igualdade entre os gêneros feminino e masculino que o Direito passou a pautar a condição de gênero. Ao que concerne ao Direito Penal, de acordo com Carmen Hein de Campos (2020, p. 251-252), ele sempre garantiu, exclusivamente, a segurança jurídica e os direitos daqueles do sexo masculino. Ou seja, ainda que um homem fosse o réu de um processo criminal, ele obtinha esta ferramenta legal à sua disposição. Por outro lado, as mulheres, ainda que vítimas de uma ação criminosa, não eram protegidas pelo Direito Penal. Portanto, os movimentos feministas iniciaram uma mobilização para que este dispositivo também as abarcasse. Segundo a dinâmica social da época, os homens enquadravam-se, integral e organicamente, à esfera pública, sendo responsáveis pelo sustento familiar e pela organização ativa da sociedade. Por outra perspectiva, as mulheres brancas deveriam, indispensavelmente, introduzir-se (ou serem introduzidas) no âmbito privado, sendo encarregadas da criação dos filhos e do cuidado do lar (Lima, 2015, p. 45). Enquanto as negras, tinham responsabilidade com o lar e com o trabalho sub-humanizado e, portanto, a junção dos dois encargos era a principal forma de controle destas figuras (Carneiro, 2021). Com estas exposições, torna-se evidente a segmentação entre espaço público e privado, somado aos estigmas e determinismo de gênero e raça, estas personagens ficavam totalmente desprotegidas pelo dispositivo penal perante as violências domésticas (Campos, 2020). Em suma, o Direito Penal tangenciava seus estudos sob uma suposta “neutralidade” e imparcialidade que, indubitavelmente, invisibilizava aqueles que não eram homens, brancos, cis e ocidentais. Nesse prisma, os ideais feministas fortalecem e tornam-se ferramentas de combate contra o patriarcado, as desigualdades de gênero e a incorporação das mulheres na 27 esfera jurídica penal. Outrossim, as ideias feministas também serviram como base teórica e ideológica nos movimentos reivindicatórios das mulheres no Brasil e no mundo. Nesse ínterim, as críticas feministas apontam que enquanto os homens possuem a suas individualidades e pessoalidades respeitadas (assegurando, assim, a pluralidade existente dentro do grupo masculino), a condição das mulheres é generalizada (Campos, 2020, p. 218). Em todas as sociedades do mundo, o vislumbre coletivo do papel feminino as insere num grupo homogêneo, independente da cultura, classe social, etnia e orientação sexual a que elas pertencem. Dentro disso, Nancy Chodorow (1978) assevera sobre a “Ética do Cuidado”, na qual a construção da figura feminina, como a concepção de justiça, identidade e idoneidade, provém do cuidado e da relação entre sujeitos. Em resumo, esta generalização não permite que as especificidades do gênero feminino sejam levadas em consideração e, por consequência, não afirma sobre a universalidade que existe dentro da definição de mulher, como a realidade das mulheres com deficiência, negras, LGBTQIA+, hipossuficientes e etc. As características dadas socialmente como femininas eram lidas pelos sociólogos e criminólogos tradicionais como a “essência feminina" e, somado a isso, essa essência, bem como os estudos desses pensadores, são voltados, exclusivamente, às mulheres brancas (Magalhães apud Lima, 2015, p. 72) . Ou seja, a idealização sobre as mulheres (brancas) é oriunda de uma condição inata e determinada biologicamente, que as limitam a emotividade, maternidade e domesticidade. Portanto, as personagens que cometiam crimes distanciavam-se da sua essência e, por isso, eram consideradas como figuras mais masculinizadas. Indubitavelmente, esse cenário influenciou na limitação interpretativa sobre o gênero dentro do direito penal, criminologia e políticas criminais. As ideias feministas também atribuem críticas para a criminologia que, conforme Carmen Hein de Campos (2020), podem ser segmentadas em duas fases, como explicitado no trecho abaixo: Assim, pode-se dizer que a primeira fase da critica feminista em criminologia se preocupou em a) expor o carater androcentrico da disciplina; b) visibilizar as mulheres que cometeram crimes; c) relevar o sexismo instiruicional do estudo do crime e das maneiras pelas quais criminosos e vitimas eram tratados; d) problematizar a conformidade feminina como natural e autoevidente. Na segunda fase, houve preocupação com a incorporação do debate pós moderno e as feministas a) problematizaram o termo mulher como categoria unificada; b) reconheceram que a experiencia das mulheres é, em parte, construida pelos discursos criminologicos e juridicos; 3) revisitaram as relações entre sexo e genero; 4) refletem sobre os pontos 28 fortes e limites da contrução do conhecimento e verdades feministas. (Campos, 2020, p. 223-224). Até mesmo no Brasil, os ideais feministas influenciaram diretamente no desenvolvimento dos movimentos feministas no início do século XX, que, a princípio, reivindicavam os direitos contra a violência doméstica e sexual. Foi justamente nesse período que emergiram as primeiras delegacias de proteção da mulher no país e, muito posteriormente, em 2006, a Lei Maria da Penha, que representa um grande avanço ao que se refere ao combate da violência contra as mulheres e a garantia de proteção juridica à estas (Lima, 2015). No trecho abaixo será exposto o Título I da Lei n° 11.340/06, o qual introduz, mais claramente, o caráter da deste dispositivo legal. Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. § 1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 2º Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput. Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. É importante enfatizar que, devido ao fato das primeiras teorias feministas serem fundadas no continente europeu, elas possuem como base a cultura eurocêntrica, ou seja, são as mulheres brancas que eram o centro desta corrente teórica. As mulheres racializadas, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art226%C2%A78 29 principalmente as mulheres negras, não eram levadas em consideração nestes estudos, e assim, as tais teorias configuravam-se como excludentes (Carneiro, 2019). Ao passo em que as mulheres brancas estavam lutando por melhores condições de trabalho e igualdade de gênero na Revolução Industrial em 1789, as mulheres negras já estavam sob a custódia do trabalho escravo, em condições subumanas, há mais de três séculos (Soares apud Lima, 2015, p. 72) . Nesse prisma, enquanto as brancas queimavam seus sutiãs contra a opressão de gênero no concurso nacional de Miss Estados Unidos em 1968, as mulheres negras ainda sofriam com os resquícios do Aphartheid, já que a segregação racial foi finalizada no país em questão, apenas em 1964, com a Lei de Direitos Civis. A socióloga Sueli Carneiro (2019) faz um apontamento nesse sentido: Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados (Carneiro, p. 02, 2020). No que concerne ao âmbito brasileiro, a população negra foi escravizada durante três séculos. Embora tenha havido abolição da escravatura no final do século XIX, com a lei áurea, não houve nenhuma politica publica, ou qualquer outra medida do Estado, para a inserção e a inclusão dos negros na sociedade. Ao contrário disso, eles foram marginalizados e segregados territorialmente (Carneiro, 2019). Este quadro gerou inúmeras consequências políticas e sociais, que perduram incisiva e vividamente até atualmente na realidade das pessoas pretas. Portanto, na segunda metade do século XX, ascende o feminismo negro, o qual estuda a condição da mulher negra e suas esfecificidades, visto que o feminismo tradicional não abordava e atendia as demandas das figuras pretas (Rosa, 2022, p. 25). Diferentemente das teorias feministas, que possuem matriz eurocêntrica, as teorias feministas negras no Brasil, bem como no mundo, possuem a escravização e o racismo estrutural como eixo fundante. Mediante os ideais feministas supracitados (tanto o branco, como o negro), a criminologia feminista passou a compreender a criminalidade feminina por um teor menos criminalizante (Lima, 2015, p. 48), mas ainda assim, no inicio de seus estudos, o foco ainda 30 voltava-se para as mulheres brancas. Contudo, gradualmente, a interseccionalidade étnica, racial, de classe e sexualidade e outros aspectos relevantes, também passaram a ser ponderadas por esta ciência criminológica (Campos, 2020). Em síntese, mediante os ideais Feministas, a criminologia com foco em mulheres desvencilhou-se da criminologia tradicional e, comitantemente, passou a analisar a criminalidade feminina por intermédio da estrutura histórico-social, das instituições políticas e sociais e pelos padrões de vida em sociedade. Nesse mesmo prisma, observar as ocorrências criminosas bem como a estrutura social, institucional e histórica em que o machismo se (res) estabelece é crucial para entender o crime, as políticas criminais, o processo de incriminação, o sistema de justiça e o encarceramento feminino. No trecho abaixo Daly e Lind firman sobre a construção do gênero dentro da criminologia: a) o gênero não é um fato natural, mas um complexo produto histórico, social e cultural, relacionado, mas não simplesmente derivado da diferença sexual biológica ou das capacidades reprodutivas; b) O gênero e as relações de gênero estruturam a vida e as instituições sociais de modo fundamental; c) As relações de gênero e as construções da feminilidade e masculinidade não são simétricas, mas estão baseadas em um princípio organizador da superioridade masculina e da dominação econômica, social e política das mulheres; d) A produção de conhecimento reflete a visão dos homens sobre o mundo social e natural. O conhecimento é ‘gendrado’; e) As mulheres devem estar no centro da pesquisa intelectual e não periférica, invisíveis ou apêndices dos homens (DALY; LIND apud Campos, 2020, p. 271-272). 2.2 O processo histórico da criminalização de drogas A definição de crime é estipulada segundo os parâmetros de admissibilidade das condutas humanas e dos anseios sociais, os quais são fortemente influenciados por viés moralista e cultural. Desse modo, conforme o vislumbre social e do próprio Estado, o cometimento de um delito representa a quebra de contrato social e, por isso, o delinquente deverá ser penalizado à medida dos impactos gerados por tal ato. Num outro sentido, a aplicação da pena deve incumbir o delituoso ao sofrimento, assim como num purgatório (Alves, p. 20, 2019). Houve um longo processo histórico para que a comercialização de drogas se configurasse como atividade ilícita e amoral. No período pré-histórico e antigo, o uso de drogas extraídas da natureza possuíam fins medicinais, religiosos, afrodisíacos, bélicos e etc 31 (Pedrinha, 2008). Contudo, com a ascensão do capitalismo comercial, estas drogas também passaram a ser objeto de barganha. Por outro lado, com a sua comercialização, as drogas passaram a ser alvo do controle social, devido ao aumento de casos de uso abusivo dessas substâncias, ou seja, paulatinamente, a sua utilização desvencilhou-se de suas finalidades imanentes (Pedrinha, 2008). Somado a isso, o abuso de entorpecentes tornou-se um problema social em muitos países, sendo a sua proibição e regularização os principais meios para a contenção de danos sociais. (Pedrinha, 2008). Já na Idade Média, o manuseio de medicamentos foi utilizado como pretexto para perseguir um grupo de sujeitos marginalizados, como por exemplo, às mulheres. E assim, além do ato de manusear, dispor e consumir drogas configurar-se como bruxaria e feitiçaria, esta mesma dinâmica passou a ser alvo do Santo Ofício da Inquisição. (Lima, 2021). Posteriormente, no período Pós-Moderno, conforme aponta o psicanalista (Birman apud Pedrinha, 2008, p. 5488), a sociedade passou a recorrer ao uso de drogas como uma forma de escape e para a alternância de consciência. Nesse mesmo sentido, os médicos, inclusive os psiquiatras, passaram a pregar o processo de medicalização como meio de tratamento terapêutico . Num momento posterior ao supracitado, mais especificamente no período contemporâneo, surge o “Movimento Lei e Ordem” nos Estados Unidos durante o governo de Richard Nixon na década de 1970. Este ato político passou a atribuir um maior endurecimento no combate às ações criminosas, principalmente no que concerne à atividade de comercialização de drogas ilícitas (Oliveira, 2009). Por conseguinte, devido ao anseio social sobre os impactos que as drogas podem gerar na sociedade, o traficante torna-se o inimigo número um do Estado. Com isso, o próprio Governo estadunidense organizou-se para que as políticas criminais repressivas se tornassem de competência não apenas do Poder Legislativo, como também do Poder Judiciário e Executivo (Oliveira, 2009). Nesse mesmo prisma, foi atribuído às punições um caráter exemplificativo e preventivo, os quais fortalecem a repressão e a seletividade penal, que fecunda num poder autoritário. Nesse sentido, Luciana Boiteux afirma que: A atual política de controle das drogas, portanto, tem em sua origem aspectos religiosos, econômicos e sociais, muito embora na atualidade seja mais perceptível o discurso oficial médico. Não há como se deixar de analisar o quadro dentro de um contexto mais amplo, que leva, na atualidade, à coexistência de drogas proibidas, de 32 consumo semi clandestino, por um lado, e de substâncias “terapêuticas” legais, fabricadas pelas grandes indústrias multinacionais, cuja diferenciação é feita por critérios políticos legislativos e sofre a influência de atitudes sociais que determinam quais drogas são admissíveis e atribuem qualidades éticas aos produtos químicos (Boiteux, 2016, p. 32). 2.3 Penitenciária para as mulheres X penitência às mulheres Ainda que a perseguição às drogas tenha se fortalecido ao redor do mundo com as políticas do "Movimento Lei e Ordem”, como mencionado no subcapítulo anterior, sempre houveram pretextos para que o Estado aplicasse as punições contra os desviados socialmente. Nesse ínterim, é importante ressaltar que os fundamentos e os modos para a aplicação das penas contra mulheres eram específicos. O Santo Ofício da Inquisição representa a primeira forma de penalização contra as figuras femininas. Devido ao fato do Estado, durante a Idade Média, ser redigido pela igreja católica, a aplicação das penas era de responsabilidade desta última (Lima, 2021). Um exemplo disso, é o termo “penitencia”, que remete a um processo de remissão aos clérigos rebeldes dentro do próprio mosteiro que, com o processo evolutivo das penas, originou a palavra “penitenciária”. Neste período as penas consistiam em severos castigos físicos que eram destinados às mulheres que fugiam dos rigorosos padrões sociais, religiosos e normativos. Era comum que a sociedade atribuísse a essas mulheres o rótulo de “bruxas” e, com isso, elas eram torturadas, enforcadas ou, até mesmo, jogadas vivas em fogueiras. Ainda que documentos bíblicos não discriminassem sobre seus hereges, as figuras femininas eram, predominantemente, os principais alvos da Santa Inquisição (Pedrinha, 2008). A Inquisição foi a primeira manifestação do poder punitivo enquanto uma forma integrada de um discurso sofisticado de criminologia, direito penal, direito processual penal e criminalística que foi voltado especialmente contra as mulheres, vinculando delitos heréticos diretamente com a feminilidade e com o ser mulher, demonizando suas vivências e práticas que divergiam do que prescrevia a igreja. Dessa forma, a Inquisição, por meio de seus manuais de inquisidores como O Martelo das Feiticeiras e através de sua própria atuação representa um marco nas estratégias para impor um processo de perseguição, repressão e violência aos corpos das mulheres que se articulou diretamente, não apenas com a criminalização e vitimização dessas sujeitas, mas também com o processo de acumulação primitiva que possibilitou a consolidação do capitalismo. (Lima, 2021 p. 44-45).6 6 Informação foi extraida do Trabalho de Conclusão de Curso “Por uma criminologia crítica com perspectivas feministas: uma análise sobre as tensões e aproximações entre a criminologia crítica e a criminologia feminista no Brasil” Gabriela Holanda Bessa de Lima documentado em 2021. O martelo das feiticeiras consiste numa junção sistemática de crenças, que associavam a vocação da figura feminina e sua tendência delituosa. Nesse 33 A reformulação do sistema punitivo e da aplicação de pena ocorreu apenas no século XVIII e XIX, com a Revolução Francesa. Nesse período, as Reformas Humanizadoras passaram a atribuir penas mais “abrandadas” aos transgressores e assim, substituindo os castigos físicos (os suplícios) e o encarceramento prisional. Porém, a aplicação dessas penas não eram destinadas às mulheres ou pessoas racializadas (Lima, 2021). Por outro lado, foi justamente neste período que surgiram as casas de reclusão destinadas, exclusivamente, para mulheres. Eram encaminhadas para este estabelecimento, as mulheres ébrias, com doenças mentais, pobres, prostitutas, arruaceiras e criminosas. Embora estas casas se assemelhassem às prisões ou aos antigos manicômios, ali também eram repassados valores como as boas maneiras e os padrões de comportamentos sociais atribuídos ao gênero feminino (Lima, p. 44, 2021). Ao que concerne às penitenciárias femininas do Brasil, num período muito posterior ao supracitado, a aplicação das penas para as figuras femininas se dava de um modo desumanizado e indiscriminado. No final do século XIX, haviam celas especiais destinadas exclusivamente para as mulheres, porém, elas encontravam-se no mesmo complexo penitenciário que os homens. Simultaneamente a este período, a população carcerária masculina era, alarmantemente, maior que a feminina (Angotti; Salla, 2018, p. 13). O Relatório do Chefe de Polícia de São Paulo aponta que, em 1896, a população carcerária de São Paulo, desde os primeiros encarceramentos, recebeu 1706 homens, em contrapartida, apenas 65 mulheres foram encarceradas (Angotti; Salla, 2018, p. 12). É importante enfatizar que o encarceramento neste período era uma ferramenta utilizada para a contenção e penalização das figuras marginalizadas socialmente. Em outras palavras, o aprisionamento dessas mulheres tinha como intuito recolhê-las do ambiente social e inseri-las num meio de total controle do Estado. Mesmo com este cenário, segundo Bruna Angotti e Fernando Salla (2018), Lemos Britto foi o primeiro a pensar na necessidade de instituir uma prisão para mulheres no Brasil. Tal jurista alegava que um país devidamente civilizado, não poderia manter o padrão de aprisionamento redigido durante o Brasil Império. Para além disso, a instituição do novo Código Penal e o Código de Processo Penal, gera uma nova demanda sob a estruturação das penitenciárias. Nesse mesmo sentido, do Art. 29, parágrafo 2º do Código Penal de 1940 afirma que “as mulheres cumprem pena em mesmo sentido, é possível afirmar que o capitalismo se estrutura sob a desigualdade social, o machismo estrutural, racismo e, dentro de uma perspectiva histórica, sob a caça às bruxas. 34 estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno” (Artur, 2009, p. 3). Cumprindo esta lei, foi criada, na cidade de São Paulo, a primeira prisão para mulheres do Brasil em 1941 e, logo em seguida, foi instalada no Rio de Janeiro em 1942, a segunda instituição carcerária feminina. Angela Teixeira Artur (2009) discrimina, de maneira ainda mais aprofundada, as ações legais tomadas pelo Estado para o estabelecimento das prisões para as mulheres: O governo federal adotou as seguintes medidas: implementou, em 1930, o Regimento das Correições que pretendia reorganizar o regime carcerário; em 1934, foi criado o Fundo e o Selo Penitenciário, a fim de arrecadar dinheiro e impostos para investimento nas prisões; em 1935, foi estabelecido o Código Penitenciário da República, que passou a legislar sobre o ordenamento de todas as circunstâncias que envolviam a vida do indivíduo condenado pela Justiça; e, em 1940, passou a vigorar o novo Código Penal (Artur, 2009, p. 2). Para que as criminosas fossem encaminhadas para tais cárceres, elas deveriam, imprescritivelmente, serem processadas, julgadas e condenadas pelo sistema de justiça penal. Por conseguinte, durante o andamento desses trâmites processuais, elas ficavam sob a custódia das casas de detenção ou nas prisões das delegacias (Artur, 2019, p. 3). Segundo Angotti e Salla (2018), ainda que o Governo Federal tenha instituído e que administrasse, legalmente, as prisões femininas, eram as freiras da Congregação do Bom Pastor d’Angers quem redigiam instituições e possuíam contato direto com as detentas. O intuito das prisões para as mulheres, além de isolá-las do convívio social, era devolvê-las a docilidade, a domesticidade e incorporar, intrinsecamente, as atribuições relacionadas ao gênero. Nesse sentido, elas eram encarregadas de tarefas como costureiras, cozinheiras, lavanderias e outras funções similares. Portanto, segundo os pensadores da época, para que o estabelecimento prisional feminino fosse efetivo em seus objetivos, a sua direção deveria ser incumbida a uma entidade da igreja católica, composta por mulheres exemplares e angelicais, ou seja, as freiras (Angotti; Salla, 2018, p. 16). 35 CAPÍTULO 3: A FACE DAS MULHERES CRIMINALIZADAS POR TRÁFICO DE DROGAS NO BRASIL 3. 1 O encargo feminino dentro da organização interna do tráfico de drogas Mesmo que o tráfico de drogas configure-se como crime hediondo, é inegável que suas atividades se equiparam à atividade dos mercados varejistas, já que possui fornecedores, trabalhadores e consumidores. Ou seja, ainda que seja uma atividade ilícita, o mercado de drogas exige uma alta organização interna, desde o recebimento dos “produtos” (das drogas) até a venda destes. Portanto, deve-se levar em consideração e como legítima, a denominação “lojinha” dada pelos traficantes a este posto. O crime de tráfico de drogas é tipificado no artigo 33 da Lei n° 11.343/06 do Código Penal, como exposto no trecho abaixo: Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – Advertência sobre os efeitos das drogas; II – Prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. [...] Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. [...] Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: I - a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito. Devido à alta demanda de trabalho e os riscos envolvidos nesta atividade, torna-se necessário até mesmo serviços de seguranças, logísticos, contábeis e administrativos de requinte. Como qualquer outro negócio, é necessário diferentes trabalhadores para que o produto seja recebido, preparado e vendido da maneira mais ágil, segura e econômica (Malvasi, 2013, p. 276-283). ‘ 36 Imagem 1 - A estrutura organizacional e o fluxo das drogas em uma boca de fumo Fonte: Trabalho de conclusão de curso de Paulo Vitor Romão dos Santos Sousa, apresentado à graduação de Direito da Universidade São Judas Tadeu em 2022. Nesse ínterim, a partir dessa imagem é visível a hierarquização organizacional e o fluxo de drogas do tráfico. Todavia, ainda que haja diferentes níveis hierárquicos e encargos, 37 as mulheres ocupam as funções subalternizadas, de nível hierárquico mais baixo, os quais os homens não almejam ocupar. De acordo com Mariana Barcinski (2007), na organização interna do tráfico de drogas as mulheres, predominantemente, ocupam os cargos de “vapores”, “olheiras/fogueteiras” (tais tarefas enquadram-se na classificação de “prestadores de serviço” da imagem acima) ou “mulas” (encargo não ilustrado). São raras as ocasiões em que são promovidas ao cargo de “enroladoras” ou gerentes. As “vapores” são responsáveis pela venda de drogas, dentro da boca, diretamente para os consumidores (Folha de São Paulo, 1994). Este encargo é caracterizado por apresentar maior vulnerabilidade às operações policiais. Já as “olheiras ou/e fogueteiras” vigiam, em pontos estratégicos no território em que foram incumbidas a trabalhar, para isso utilizam fogos de artifício e rádios-comunicadores (Folha de São Paulo, 1994). Num outro sentido, as “enroladoras”, também nomeadas como “embaladoras”, são responsáveis pelo empacotamento das drogas (Folha de São Paulo, 1994). Nesta função encontra-se num nível hierárquico superior, visto que baseia-se na fase preparatória da venda, ou seja, a preparação para droga ser comercializada. Além disso, as “enroladoras” possuem maior proximidade com os gerentes gerais e com os chefes do tráfico (Sousa, 2022, p. 14). Por fim, as “mulas” são as figuras que transportam drogas no âmbito local, nacional ou internacional (ITTC, 2013, p. 7). Para isso, elas podem ser incumbidas ao transporte de drogas em seus corpos, estômago ou pertences (ITTC, 2013, p. 9). Este encargo também expõe as mulheres a um perigo extremo, pois, além destas, poderem sofrer com overdose devido à eclosão das cápsulas engolidas, quando essas são flagradas transportando drogas a nível internacional, a pena é ainda mais severa. Uma das razões pelas quais as mulheres ocupam os cargos de alta periculosidade é justamente pelo fato destas, supostamente, obterem mais chances de passarem despercebidas perante o olhar policial. Estes sub-encargos submetem as mulheres a maiores riscos contra a sua integridade física, moral e psicológica e, até mesmo, suas próprias vidas. Além da prisão por drogas, a maioria das mulheres presas na América Latina têm em comum a ausência de antecedentes, a condição de chefes de família em lares monoparentais, a baixa escolaridade formal, a dificuldade de acesso a empregos formais e a condição de arrimo familiar (Lima, 2015, p. 1). Também é importante salientar que aquelas encontram-se na base da pirâmide no tráfico de drogas possuem maiores chances de serem apreendidas em flagrante e, consequentemente, de serem encarceradas. Com isso, é possível visualizar uma das razões 38 pela qual o índice de encarceramento feminino aumentou nos últimos 23 anos (Boiteux, 2015). Dentro disso, Luciana Chernicharo e Luciana Boiteux apontam que: A estrutura do mercado de drogas ilícitas reproduz um padrão muito similar ao do mundo do trabalho legal. Em geral, as mulheres ocupam as posições mais subalternas, como mula, avião, bucha, vendedora, “fogueteira”, vapor, etc. Estas posições são também as mais vulneráveis, pois demandam contato direto com a droga, e como, em geral, estas mulheres são pobres, a margem de negociação (ou “arregos”) com os policiais é muito limitada. Foi verificado que, na América Latina, as atividades de “mula” e outras formas de participação feminina no tráfico (como microtraficantes), assumem uma perspectiva laboral, na medida em que muitas mulheres inserem nas margens de sua sobrevivência tipos de trabalho considerados ilícitos (Chernicharo, Bouteux, 2022, p. 3) Segundo a pesquisadora Mariana Barcinski (2012), são raros os casos em que as mulheres ocupam cargos de alto escalão, como os de gerência. A título de exemplo, Rayane Nazareth Cardoso da Silveira, também apelidada como “Hello Kitty”, foi alvo de grande perseguição policial, devido ao fato de gerenciar o tráfico de drogas da região metropolitana do Rio de Janeiro. Quando a traficante foi assassinada numa operação policial em São Gonçalo e Niterói (RJ) em 2021, a sua morte tornou-se manchete de grandes jornais do país, os quais, em parte significante das vezes, perpassam a notícia em tom vexatório ou discriminatório (Rosa, 2022, p. 39). Inquestionavelmente, a árdua perseguição policial e a relevância jornalística dada a esta ocorrência, vai muito além do fato desta estar inserida em uma atividade criminosa. Rayane era uma mulher e com cargo de destaque no tráfico de drogas de uma das maiores cidades do Brasil, representando, assim, uma exceção dentro da estrutura social e do próprio comércio ilícito de entorpecentes.7 Entretanto, em alguns relatos, de mulheres envolvidas na comercialização de substâncias ilícitas, é firmado a necessidade do aval masculino para que elas ascendam nos cargos. Dentro disso, algumas delas alegaram que para conseguirem progredir nesta 7 Na dissertação de mestrado “Narrativas jornalísticas sobre mulheres envolvidas no tráfico de Drogas no estado do Pará e do amazonas’ de ana Cléia Ferreira Costa, publicada em 2022 pela Universidade Federal do Tocantins, aponta como os jornais abordam a atividade de tráfico de drogas exercidas por mulheres. Nesse estudo, foi discernido como a raça, classe, aparência física e, principalmente, o território em que estas figuras traficam influenciam na elaboração das matérias jornalísticas. As mulheres com boa aparência, assim como aquelas pertencentes a classes econômicas altas, possuem a sua identidade preservada por lei, além do fato das matérias, veladamente, apontarem que a suas ações criminosas representam um mero desvio ou erro de conduta. Por outro lado, as mulheres negras, periféricas e de oriunda de classes sociais favorecidas, são abordadas como perigosas, “bandidas” e vilãs. Outro ponto importante deste estudo, é que a aperencia física das mulheres são trazidas no texto das matérioas jornalistas, sendo este fenomeno completamente incomum quando trata-se de homens envolvidos na comercialização ilegal de narcóticos. 39 atividade, foi necessário a influência romântica com homens poderosos dentro tráfico, parentalidade ou o cumprimento de atividades relacionadas ao gênero (Barcinski, 2009). Em contraste com mulheres que decidem deliberadamente entrar para o tráfico de drogas, as participantes referem-se àquelas que se envolvem involuntariamente na atividade, em função da relação amorosa com homens criminosos. Nesse caso, o comportamento dessas “mulheres de bandido” é restringido pela posição subordinada que ocupam na relação com bandidos. Portanto, gênero é central na forma como as participantes constroem a participação delas e de outras mulheres no tráfico de drogas. A opressão e a submissão aos homens caracterizam o envolvimento de mulheres na atividade, independente de tal envolvimento ter sido o resultado de uma decisão deliberada ou a consequência da relação amorosa com homens criminosos (Barcinski, 2009, p. 1851). Para tornar tal alegação mais clara, é necessário expor o relato de Denise, entrevistada por Mariana Barcinski (2009): “Primeiro eu comecei fazendo comida, depois eu comecei assim a me envolver mais profundo, a olhar, comecei a transar com os líder, alguns líder né, do [nome da facção] e por último eu fui negociando armas, cocaína pura, alguns quilos”. Portanto, torna-se evidente que a estrutura interna no tráfico de drogas reflete o machismo estrutural e o patriarcado. Expor as mulheres em encargos subalternizados é um modo de fortalecer o pacto contratual entre homens, em que eles se mantêm mais “protegidos” dentro da atividade, enquanto as mulheres são ainda mais vulnerabilizadas. Somado a isto, considerando que estas possuem dependentes econômicos (como ascendentes e descendentes), os riscos que elas enfrentam dentro do comercio ilegal de narcóticos, também geram impactos a terceiros. 3. 2 O ingresso das mulheres no tráfico de drogas: Protagonismo X Vitimização Como já pontuado em capítulos anteriores, as razões pelas quais as mulheres ingressam na comercialização ilícitas de drogas no Brasil são diferentes das motivações masculinas. O perfil das mulheres envolvidas no tráfico de drogas não é fator determinante para que esta atividade criminosa torne seus meios de subsistência pessoal e familiar, porém, eles influenciam, ou até mesmo, restringem, que formas lícitas para obtenção de renda sejam consideradas. Dentro disso, a cientista Sintia Soares Helpes (2014) elenca em sua dissertação, as principais circunstâncias que levam as mulheres a ingressarem no tráfico de substâncias ilícitas. 40 A região territorial em que as periferias estão situadas as distanciam dos grandes centros urbanos, os quais são responsáveis por concentrarem maiores quantidades de vagas de empregos formais. A imobilidade urbana, bem como a insuficiência de transporte público que atenda a toda a população periférica, dificultam ainda mais o acesso ao trabalho (Pereira, Malfitano, 2014, p. 39). Pode-se afirmar que tais impasses são legados da marginalização social e higienização urbana ocorridas no Brasil na primeira metade do século XX. Com estas exposições, a dificuldade financeira e para acessar empregos dentro da formalidade são as principais motivações para que as mulheres insiram-se na atividade de tráfico de drogas no país. Dentro disso, pesquisas apontam que o índice de desemprego entre as mulheres brasileiras, em 2022, era de 11,6%, sendo 4,6% maior que a masculina. Além disso, mesmo que os dados gerais apontem que a população trabalhadora do país cresceu 7,5%, a modalidade de trabalho sem carteira assinada cresceu 19,9% (SISDEPEN, 2014).8 Outro ponto relevante que contribui para o aumento do índice de mulheres envolvidas no tráfico de substâncias ilícitas, é que essas mulheres são solteiras e possuem dependentes, como exposto no subcapítulo anterior. Tendo em vista que este grupo é composto por mulheres solteiras, também são recorrentes os casos em que as mães destas (avós maternas de seus filhos) auxiliam com o cuidado com a casa e com os filhos, em especial, quando estas mulheres são encarceradas (Helpes, 2014, p. 147-148). Entretanto, a ajuda atribuída por estas avós é altamente limitada, insuficiente ou, até mesmo, não necessariamente remete a uma ajuda financeira. Por conseguinte, o núcleo familiar daquelas que emergem nesta atividade criminosa é estruturado e redigido exclusivamente por mulheres, além do fato do número de adultos ser inferior ao número de crianças dentro da residência, conforme os dados já apresentados. Todavia, muitos estudos sobre o tráfico de drogas feminino no Brasil convergem sob a tese de que o principal motivo pelo qual as mulheres ingressam e/ou são aprisionadas por esta atividade é oriundo da influência masculina, mais especificamente do companheiro (Barcinski, 2009, p. 1844). Por conseguinte, alguns estudiosos apontam que a influência que o aprisionamento do companheiro romântico foi determinante para o ingresso e/ou encarceramento das mulheres por tráfico de drogas (Santoro; Pereira, 2018, p. 104). É comum que, com o aprisionamento de seu marido ou namorado, elas sejam incumbidas a ocupar seu cargo (Barcinski, 2007). Ademais, também são recorrentes os casos em que as mulheres levam drogas nas visitas em 8 Estes dados foram averiguados entre janeiro a junho de 2022, pelo Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN). 41 estabelecimentos prisionais, a pedido do companheiro, e com isso são flagradas e presas pelo crime de comercialização de substâncias ilícitas (Chernicharo, 2014, p. 110). Para além disso, com esta conduta, elas se colocam em inúmeros riscos, pois, para cumprir tais pedidos, em muitas das vezes, seus corpos são utilizados como escondedouro para dificultar a localização e apreensão da substância. De acordo com Santoro e Pereira (2018, p. 103), as mulheres podem se envolver nesta atividade de modo involuntário. São comuns os relatos de mulheres que asseveram que não participaram, ativamente, na comercialização de drogas, mas que estão inseridas no mesmo ambiente em que seus companheiros envolvidos, seja na esfera doméstica ou nos espaços sociais. E, com isto, elas tornam-se coniventes com tal movimentação criminosa. Tratar do envolvimento da mulher no tráfico de drogas e sua relação com as representações sociais que o sujeito carrega consigo acerca de sua identidade no contexto do amor significa adentrar num universo simbólico tipicamente feminino, permeado por idéias que não são exclusivas da mulher traficante de drogas, mas fazem parte da construção social da categoria mulheres, como resultado daquilo que elas apreenderam ao longo de sua trajetória histórica. Como tivemos por proposta o estudo das práticas femininas relacionadas às drogas a partir da sua ligação com um sujeito masculino – marido, namorado, companheiro, irmão –, inserimos nossa pesquisa no campo de estudos de gênero, cuja posição, no universo das Ciências Sociais, exige certo cuidado, sob pena de se repetir o equívoco do sexismo no estudo das relações entre masculino e feminino (Pimentel, 2008, p. 3-4). Também são recorrentes os casos em que os antecessores ou parentes próximos destas mulheres, como pais, irmãos, primos, tios e outros, sejam envolvidos no tráfico de drogas. Dessa maneira, devido a naturalização deste encargo criminoso, as mulheres passam a compor o tráfico de substâncias ilícitas de modo ativo e naturalizado (Helpes, 2014). Com estas exposições, torna-se evidente que algumas mulheres podem sim ser influenciadas por terceiros, principalmente pelo companheiro amoroso, a envolverem-se na comercialização de drogas. Contudo, segundo pesquisas do ITTC (2019) não é comprovado cientificamente a alegação firmada pela mídia e por alguns estudiosos de que as mulheres ingressam nesta atividade devido a influência do companheiro. Como já mencionado neste estudo, as circunstâncias que estas enfrentam são diversas e convergem, principalmente, para o aspecto financeiro. Entre as crenças mais populares a respeito do encarceramento de mulheres está a de que são presas por participarem de crimes realizados pelos seus companheiros, especialmente quando se fala em tráfico de drogas. Apesar de veículos de mídia e até estudiosos replicarem esse argumento, ele não se prova como regra. Reforçar essa argumentação é reduzir as mulheres a um papel menor daquele que elas realmente exercem (ITTC, 2019, p. 1). 42 Nesse sentido, afirmar que as mulheres estão envolvidas nessa atividade, exclusivamente, pela interferências do companheiro ou de uma figura masculina é um modo de desconsiderar seu livre arbítrio, liberdade de escolha, para além de vitimiza-las. Tal ideia ilustra o vislumbre social inverídico e limitado sobre o tráfico de drogas feminino. O machismo estrutural e o patriarcado estão institucionalizados no âmago da sociedade e do Estado brasileiro. É justamente por isso que todo o universo em que as mulheres estavam inseridas antes de ingressarem no tráfico de drogas é invisibilizado, enquanto os homens tornam-se os protagonistas de sua própria história e também das delas (Chernicharo, 2014, p. 78). Em outras palavras, são desconsideradas as razões particulares e pessoais que levam as mulheres a ingressarem nesta atividade, bem como a sua subjetividade e os fatores externos que as englobam (como a econômica, a política e cultura), para que elas tornem-se “sombra dos homens”. Segundo Mariana Barcinski (2009), o tráfico de drogas concede às mulheres um status social que dificilmente seria obtido por mulheres negras, periféricas, hipossuficientes e sem escolaridade. Essas mulheres passam a se auto-observarem como poderosas e aclamadas dentro do território em que trabalham e residem. Elas passam a exercer certa influência e relevância dentro das periferias, sendo até mesmo aclamadas pela população em caso de assistência e conflitos, ou seja, elas tornam-se protetoras da comunidade em que moram. Com isso, elas passam a ter uma visibilidade e autoestima nunca experimentada em toda sua história de vida. Em consequência disso, elas também passam a se considerarem como diferentes das outras mulheres, justamente por exercerem uma função dada como masculina. Este fenômeno também pode ser observado pelo ponto que elas passam a ter um marco identitário indistinguível e singular, obtido através de conquista pessoal e de suas próprias ações (Barcinski, 2009) Além disso, devido às diferentes funções e hierarquizações existentes dentro da organização interna do tráfico de substâncias ilícitas, elas podem se transmutar para diferentes cargos e podem até mesmo ter uma “previsão de carreira”(Barcinski, 2009, p. 1848). Este quadro, indubitavelmente, contribui não somente para a inserção dessas figuras nesta atividade, como também para a sua permanência nesta. O protagonismo é obviamente exercido dentro dos limites impostos por uma realidade social, econômica, cultural e familiar mais ampla. É também nesse sentido que devemos entender a ambigüidade presente no discurso das participantes. Por 43 um lado, entendemos a insistência delas em posicionarem-se como agentes, especialmente se levarmos em consideração a invisibilidade e vitimização que tradicionalmente marcam a trajetória dos favelados. Por outro lado, o protagonismo é sempre experienciado dentro dos mesmos limites que determinam essa invisibilidade e marginalização dos favelados. Desta forma, protagonismo e vitimização devem ser pensados como caminhos possíveis dentro da realidade das participantes, caminhos que enfatizam a força de ambos, suas histórias pessoais e seu contexto circundante (Barcinski, 2009, p. 585). Porquanto, na visão das mulheres que ingressam no tráfico de drogas no Brasil, elas possuem um papel protagonista e, para além disso, elas também possuem as suas trajetórias pessoais e dentro da própria criminalidade redigidas, exclusivamente por elas. Ou seja, a exclusão social e a acessibilidade às políticas públicas atravessadas por estas mulheres, não é fator determinante para que elas ingressem na comercialização de substâncias narcóticas. Mesmo com este quadro, elas ainda gozam do livre arbítrio e, por isso, também podem ser as protagonistas de suas próprias escolhas. 3.2 Uma breve descrição do perfil das mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Brasil A década de 90 marca o início da flexibilização, descriminalização e despenalização do plantio, uso, venda, transporte, aquisição adotados por alguns países (Sestokas; Oliveira, 2018, p. 155). Dentro disso, os estudiosos estimavam que tais medidas resultariam na redução dos índices de encarceramento. Porém, pesquisas apontaram o contrário (Diplomatique apud ITTC; Sestokas; Oliveira, 2018, p. 158)9. No trecho abaixo, é possível expor este quadro mais claramente: Nele, constatamos que, ao contrário da nossa hipótese inicial, mais da metade dos países que levantamos apresentavam aumento do encarceramento: dos 36 países que “flexibilizaram” suas políticas de drogas, 22 apresentaram aumento do encarceramento geral e 19 apresentaram aumento do encarceramento feminino (Sestokas, Oliveira, p. 155, 2018). 9 Esta informação foi coletada através de um banco de dados produzido pelo jornal Francês “Diplomatique” que, posteriormente, em 2016, transformou-se no Infográfico de Política de Drogas e Encarceramento: um panorama América-Europa, do ITTC. De acordo com tal estudo, conclui-se que alguns países, mesmo que com diferentes políticas e graus para a flexibilização das drogas, ainda obtiveram crescimento da população carcerária. Os países que apresentaram aumento na população carcerária total são: a Argentina, a Bélgica, a Bolívia, o Brasil, o Chile, a Colômbia, o Equador, a Eslováquia, a Eslovênia, a Espanha, a Holanda, Honduras, a Hungria, a Irlanda, a Itália, Luxemburgo, o México, o Paraguai, o Peru, Portugal, o Reino Unido e a Venezuela. Apresentaram aumento da população carcerária feminina a Argentina, o Brasil, o Chile, a Colômbia, o Equador, a Eslováquia, a Eslovênia, a Espanha, a Holanda, Honduras, a Hungria, a Irlanda, a Itália, Luxemburgo, o México, o Paraguai, o Peru, o Reino Unido e a Venezuela. 44 Tais estudos concluíram que a grande maioria dos países estudados apenas legalizaram o uso de drogas, sendo esta a única medida efetiva para a redução da criminalização de substâncias ilícitas. A título de exemplo, no México, com a Lei de Narcomenudeo de 2009, foi descriminalizado o porte de maconha, ópio, cocaína, LSD, metanfetamina, heroína ou diacetilmorfina. Contudo, se um indivíduo é flagrado portando uma quantidade relativamente superior àquela estabelecida legalmente, ele pode ser criminalizado. (Sestokas; Oliveira, 2018, p. 158). Este quadro assemelha-se à condição brasileira, visto que, mesmo com a descriminalização do uso de drogas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por intermédio da Lei nº 11.343 de 2006, o Poder Judiciário ainda tem dificuldade em delimitar a quantidade de drogas que distinga, concretamente, o usuário e o traficante de drogas. (Sestokas; Oliveira, 2018, p. 156-157). Dentro disso, a criminóloga Luciana Boiteux e o Colectivo de Estudios Drogas y Derecho (2015) apontam que, entre 2005 e 2013, a população carcerária no Brasil aumentou de 345%, sendo que a porcentagem de mulheres presas durante este mesmo período cresceu 290%. Portanto, não basta a descriminalização parcial das drogas, pois o processo discriminatório deve ser efetivo, a fim de reduzir a população carcerária e impedir a existência de obscuridades legais. Contudo, é importante esclarecer sob qual circunstância o Brasil encontra-se estagnado em matérias referentes à flexibilização das drogas, as quais não extrapolam os limites do consumo e pequeno porte de drogas. A perseguição ao tráfico de drogas no país serve como pretexto para reprimir grupos minoritários, como as pessoas negras, periféricas e hipossuficientes, as quais tornam-se inimigas número um do Estado (Flauzina, 2006, p. 25). Com isto, fica esclarecido que, por trás da alegação que a comercialização de narcóticos lesiona a saúde pública, persistem as ideias classistas e, principalmente, racistas. Dentro disso, Gabriela Jacinto aponta que: O tráfico de drogas existe em qualquer classe social, porém somente há repressão aos que comportam a classe empobrecida, situada em favelas e comunidades com poucos recursos econômicos, pois esses lugares são espaços que se tornam públicos no sentido de que o Estado exerce seu poder como se fossem lugares de ninguém, cujos corpos concentrados ali são considerados objetos. Nesse espaço invadido, as previsões legais, inclusive constitucionais, de proteção são visivelmente violadas, convertidas por opressão . Das áreas do Direito, a que chega mais próxima aos pobres e que é mais sentida por eles, é o Direito Penal (JACINTO, 2012, p. 44) 45 Em outras palavras, a criminalização das drogas no país possibilita um amplo controle, através da intervenção do sistema penal, sobre grupos minoritários, principalmente ao que se refere à população negra (Flauzina, 2006). Dessa maneira, a implementação de políticas públicas, como ferramenta inibitória para a atividade de tráfico de drogas, é substituída pelo aprisionamento massivo de um determinado segmento social. Tal problemática torna-se ainda mais agravada quando leva-se em consideração a conjuntura específica das mulheres traficantes de drogas, as quais são invisibilizadas pela sociedade e pelo Estado brasileiro. Por estas razões, neste subcapítulo será discernido, de maneira aprofundada, o perfil destas figuras. Como apontado por Edna Ferreira Carvalho (2021) e pelas pesquisas do ITTC (2019), as mulheres inseridas na comercialização ilegal de drogas no Brasil são, predominantemente: periféricas, mães, chefes de familia, hipossuficientes, com baixa escolaridade, solteiras, jovens (entre 18 e 29 anos) e negras. Também é de suma importância salientar, que no momento em que estas figuras ingressam na criminalidade, elas estavam desempregadas ou em subempregos (Helpes, 2021, p. 124). Nesse mesmo sentido, é possível que a venda de entorpecentes seja feita dentro do próprio ambiente doméstico, sendo viável e concebível a ajuda de familiares e amigos. Com isso, levando em conta que essas mulheres são mães, chefes de família, com baixa escolaridade, hipossuficientes e, como na maioria relevante dos casos, a única provedora de seus lares, este encargo possibilita que elas obtenham uma fonte de renda e cuidem do lar (Helpes, 2021, p. 129). Para além disso, a condição de mães solos e a indisponibilidade de creches públicas para seus filhos dificultam o acesso a trabalhos formais (Helpes, 2021, p. 179), e assim, o tráfico torna-se o principal, ou quiçá, o único meio de sobrevivência. Nesse sentido, o sociólogo brasileiro Ruy Braga (2012) assevera que: Trata-se de um amplo contingente de trabalhadores que, pelo fato de possuírem qualificações escassas, são admitidos e demitidos muito rapidamente pelas empresas, ou encontram-se no campo, na informalidade ou são ainda jovens que ainda buscam o seu primeiro emprego ou estão inseridos em ocupações degradantes, sub-remuneradas ou precárias que resultam numa reprodução anômala de força de trabalho (Braga, p. 7, 2012). Nesse mesmo prisma, na entrevista dada por Ruy Braga (2012)10, a população carcerária é composta de sujeitos que já pertenceram à classe trabalhadora. Em outras 10 Refere-se a entrevista dada por Ruy Braga a Revista Humanitas da Universidade do Rio do vale dos Sinos (UNISINOS) em 2012. Em tal entrevista o sociólogo discute sobre a política do precariado e a mercantilização do trabalho e, dentro disso, ele tangencia sobre as condições que os encarcerados trabalhavam. 46 palavras, a maioria dos encarcerados já tiveram outros trabalhos, sendo eles formais ou informais, antes de ingressar na criminalidade. Porém, estes indivíduos poderiam enquadrar-se na classificação trabalhista nomeada como “subproletariados”, haja vista a precarização em que trabalhavam e a má remuneração. Entretanto, este quadro supracitado torna-se ainda mais agravado quando trazido para realidade das mulheres brasileiras traficantes de substâncias ilícitas. Estas personagens possuem dificuldades para permanecerem em trabalhos con