ÁLEFE DE SOUZA ALMEIDA FILOSOFIA DA DIFERENÇA NA EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE ÉTICA Marília 2024 Câmpus de Marília PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ÁLEFE DE SOUZA ALMEIDA FILOSOFIA DA DIFERENÇA NA EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE ÉTICA Dissertação de pesquisa apresentada à banca Examinadora do Programa de Pós- graduação em Educação, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciência, Marília, como exigência para obtenção do título de “Mestre em Educação”. Linha de Pesquisa: Filosofia e História da Educação no Brasil Orientador: Pedro Angelo Pagni Marília 2024 A447f Almeida, Álefe de Souza Filosofia da Diferença na Educação : Reflexões sobre Ética / Álefe de Souza Almeida. -- Marília, 2024 77 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Pedro Angelo Pagni 1. Educação. 2. Filosofia da Educação. 3. Ética. 4. Moral. 5. Corpo. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Álefe de Souza Almeida Filosofia da Diferença na Educação: Reflexões sobre Ética Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de pesquisa: Filosofia e História da Educação Banca Examinadora Profª. Drª. Pedro Angelo Pagni UNESP – Câmpus de Marília Orientador Prof. Dr. Rodrigo Barbosa Mugnai Lopes UNESP – Presidente Prudentefol Prof. Dr. Alexandre Filordi de Carvalho Universidade Federal de Lavras Marília, 07 de março de 2024. DEDICATÓRIA Para Margarida Erbenia, minha mãe. AGRADECIMENTOS Primeiramente, sinto-me grato a minha mãe pelo carinho, pela atenção, pelos gestos de amor e compreensão, garantindo a melhor composição que poderia dedicar a nossas vidas, ainda em vida. Pelas palavras, cuidado, paciência e liberdade que me deu ao deixar que eu escolhesse o caminho a ser trilhado. Em segundo lugar, agradecer à família que a sorte, as experiências e os afetos me fizeram criar nesses trinta anos de vida. Agradeço à Isabela Veiga, por tanta compreensão, palavras doces e generosidade com a nossa amizade de tantos anos. Por acreditar em mim; por olhar o que eu já não conseguia ver. Por enlaçar nossas vidas com amor e intensidade. Agradeço também ao meu companheiro, pela dedicação a nós, com tanta beleza e carinho, pelo esforço e empatia. Pela presença doce e pelas risadas compartilhadas com tanto amor. Grato também a: Samuel, Dan, Priscila, Guilherme, que acompanharam parte da trajetória deste mestrado, tornando os dias de trabalho mais leves e harmoniosos. Ao Prof. Pedro Pagni, orientador desta pesquisa, companheiro de trabalho e estudo. Sinto-me grato pela sua paciência, pelos comentários profundos, a ironia aguçada e todo o esforço para tornar os nossos trabalhos mais potentes. Estendo meus agradecimentos aos membros titulares da banca de qualificação e da defesa por se dedicarem para revisar este trabalho e fornecerem orientações construtivas e fundamentais para aprimorar a pesquisa, assim como ampliar minha compreensão sobre o tema. Enfim, agradeço a bolsa concedida para a realização desta dissertação, pois o presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Porque, afinal, cada começo é só uma continuação e o livro dos acontecimentos está sempre aberto na metade. Wislawa Szymborska, Amor à primeira vista. RESUMO Esta dissertação discute a relação de elementos conceituais e práticos de problemas da Ética na Educação sob a ótica da Filosofia da Diferença. A indagação feita se concentra em positivar movimentos aberrantes na lógica dessa filosofia e relacioná-los com a formação ética no ambiente escolar. É por meio da reunião de textos da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que desenvolvemos o nosso objetivo geral: pensar o CsO numa nova dimensão ética para a educação. Desse modo, teoricamente, refletimos sobre os conceitos de Afeto, Agenciamento e entre outros, que interferem na criação do nomeado: Corpo sem Órgãos, abrangendo e movimentando também outros conceitos como, por exemplo, o de Movimentos Aberrantes, de David Lapoujade. A pesquisa é permeada ainda por escritos de Fernand Deligny. Delimitamos, como primeiro procedimento, os problemas relacionados tanto à Moral quanto à Ética na educação brasileira e, a partir disso, reunimos algumas ideias valiosas fundamentadas em diversas bibliografias. Na sequência, apresenta-se por meio dos textos monográficos de Gilles Deleuze sobre o pensamento de Baruch de Espinosa, um caminho específico da constituição de um corpo inorgânico e não representativo, desaguando em outros escritos, propriamente, no projeto do CsO. Por meio da análise dos conceitos do quadro categorial dessa Filosofia da Diferença, direcionados ao problema central da Ética na Educação, articula-se a constituição dessa problemática com o que chamamos de Ética aberrante: linhas de fuga potencializadas e contrárias a sujeições de agenciamentos de poder presentes na máquina capitalista que criam por meio de individualizações novos espaços para a escola. Propõe-se, assim, contribuir para o debate sobre os fluxos de potências de corpos não organizados, que não só resistem ao espectro da normalização, mas também “aberram” a normalidade com suas potencialidades de criar e recriar novos territórios. Palavras-chave: Ética; CsO; Educação; Agenciamento; Afeto. ABSTRACT This dissertation discusses the relationship between conceptual and practical elements of Ethics in Education from the perspective of the Philosophy of Difference. The inquiry focuses on affirming aberrant movements within the logic of this philosophy and relating them to ethical formation in the school environment. Through the compilation of texts from the philosophy of Gilles Deleuze and Félix Guattari, we develop our general objective: to contemplate the Body without Organs in a new ethical dimension for education. Thus, theoretically, we reflect on the concepts of Affection, Assemblage, among others, in the creation of this named concept: Body without Organs, encompassing and also mobilizing other concepts, such as Aberrant Movements, by David Lapoujade. The research is also permeated by the writings of Fernand Deligny. As a first step, we delimit the problems related to both Morality and Ethics in Brazilian education and, from there, gather some valuable ideas grounded in various bibliographies. Subsequently, through monographic texts by Gilles Deleuze on the thought of Baruch de Espinosa, a specific path towards the constitution of an inorganic and non-representative body is presented, leading to other writings, specifically, in the project of the Body without Organs. Through the analysis of the concepts within the categorical framework of this Philosophy of Difference, directed towards the central problem of Ethics in Education, the constitution of this problem is articulated with what we call Aberrant Ethics: lines of flight potentiated and contrary to the subjectifications of power assemblages present in the capitalist machine that create, through individualizations, new spaces for the school. Thus, it aims to enable debates on the flows of powers of unorganized bodies, which not only resist the spectrum of normalization but also "aberrate" normality with their potential to create and recreate new territories. Keywords: Ethics; BwO (Body without Organs); Education; Becoming; Affect. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9 1. MACROPOLÍTICA: EDUCAÇÃO MORAL E ÉTICA ................................................. 19 1.1 Considerações sobre a educação brasileira: máquina de ensino .......................................... 19 1.2 A Ética como problema na educação .................................................................................. 25 2. A ÉTICA DELEUZIANA ................................................................................................... 28 2.1 Potências aumentativas e servidões diminutivas ................................................................. 28 2.2 Diferenciando os termos em latim: affectio x affectus ........................................................ 30 2.3 Ter ideias inadequadas ou ideias adequadas ........................................................................ 33 2.4 Por uma ética alegre ............................................................................................................ 38 3. MICROPOLÍTICA: CORPO SEM ÓRGÃOS E A CRIAÇÃO DE SI NA EDUCAÇÃO ............................................................................................................................ 41 3.1 O Corpo sem Órgãos ......................................................................................................... 41 3.1.1 A influência de Artaud ..................................................................................................... 42 3.1.2 A influência de Espinosa .................................................................................................. 44 3.1.3 Máquinas desejantes e a criação do CsO .......................................................................... 46 3.2 Ética, Produção e Educação ............................................................................................. 53 3.2.1 Sujeição e produção de si ................................................................................................. 59 3.2.2 Movimentos aberrantes e as linhas de erro de Fernand Deligny ...................................... 61 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 67 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 72 9 INTRODUÇÃO As indagações e reflexões feitas nesta dissertação não se limitam à narrativa pessoal de quem as elabora. Quero dizer, falamos sobre questões que abarcam problemas comuns na sociedade tanto no âmbito teórico quanto prático. No entanto, é crucial saber também que se interessar por essas problemáticas morais e éticas não contribui e diz a respeito apenas ao contexto coletivo, mas, claramente, confere singularidade às trajetórias daquele que as escreves. Ora, compreender e refletir sobre tais problemas ultrapassa a mera observação costumeira que se tem dos indivíduos sujeitados às próprias experiências. Isto é, buscamos produzir e implicamo-nos num processo íntimo ao escrever o que se lê agora. Ao olhar a conjuntura atual das Ciências Humanas, vislumbram-se os diversos estudos que destacam as crises das subjetividades que, visivelmente, são ocasionadas por variados motivos e possuem soluções múltiplas. Da modernidade até os dias atuais, as referências como a de Maquiavel, Hobbes, Karl Marx, Marcuse, Foucault, Lazzarato, entre outros, contribuíram para o debate sobre política, economia e subjetividade do nosso tempo. Os questionamentos e as respostas dadas para certos problemas compartilhados são extensos, mas em um consenso por vezes silencioso, convergem para a questão do porquê as pessoas em determinadas circunstâncias aceitam a submissão ao invés de se revoltarem. Nesse contexto, refletimos sobre os problemas de submissão ou não, de sujeição ou não, quanto às subjetividades por meio das diversas questões suscitadas pela área de Filosofia da Educação. O trajeto escolhido para a presente dissertação foi realizado por meio da leitura de alguns pensadores, mas, principalmente, dos franceses, Deleuze e Guattari, com as suas composições conceituais, e Lapoujade e Deligny, em leituras práticas do mundo. Gilles Deleuze (2000), em sua vasta obra, reflete a complexidade que está no exercício de orientar o nosso pensamento sobre a vida, sobre as nossas ações, por meio da multiplicidade, do acontecimento e do devir. Quer dizer, o autor se preocupa lenta e atentamente a cada expressão que uma vida tem nos encontros com outros viventes. Por esse motivo, acreditamos que os seus conceitos instigam a pensar caminhos distintos para os atuais problemas da ética na educação, assim como esse exercício flexiona o pensamento à nossa própria experiência de vida de modo inevitável, mesmo que façamos isso pensando sobre a, com a e na educação. 10 Conhecidamente, por ser uma filosofia pautada na ideia de diferença, o ritmo sobre essa questão é aproveitado por este trabalho ao perguntar como tais ideias podem ser úteis para alocar respostas aos problemas, não novos, com a diversidade e a produção da micropolítica nas relações afetivas nas escolas, ou seja, na educação. Esse é um ambiente que, atualmente, vive preenchido pelas padronizações disciplinares do corpo, do modo de ser, da vida; permeado pela racionalidade gerencial-neoliberal, ou, se preferirem, por todo um maquinismo capitalista de produção de subjetividades esvaziadas, pelo e para o capital. O desafio proposto implica a ideia de criação de novas possibilidades e respostas, bem como compõe-se na ideia de impulsionar certas transformações menos teóricas e mais práticas, a fim de resoluções sobre o nosso cotidiano e sobre o cotidiano educacional brasileiro. Sob a perspectiva deleuziana, aloca-se não somente o corpo na equação que queremos resolver, mas também é necessário elucidar a ideia de uma criação coletiva que parece ser inevitável, mesmo quando a proposição imposta pelas instituições é outra. Isto é, segundo Zourabichvili (2019), a ideia de agenciamento tem como característica fundante a individualização, mas que ocorre mais na relação entre o devir de alguém e em seu agenciamento coletivo, do que na construção singularizada da ideia clássica de um sujeito consciente de si e identificado pelo seu Eu individual. Se, repetimos algumas perguntas: como de fato adquirimos o conhecimento? – Deleuze responderia: com o corpo envolvido ao problema. Ao perguntar sobre o que o corpo é capaz? – Também é uma questão que foi feita anteriormente e, igualmente, respondida; sem o encontro com o outro corpo nunca se saberá ou dará conta de respondê- la. E, se partirmos para, o que o corpo não aguenta mais? – parece uma saída pouco explorada 1 . Porém, esta dissertação visa responder e circular outros lugares, como refletir sobre: nós agenciamos os encontros para nos potencializar, ou o contrário? Como isso ocorre na educação? E, se ocorre, quais e como são as resistências operadas nesse processo?. Considerando esses questionamentos, passamos, como efeito, a considerar também o papel crucial desenvolvido pelos encontros na própria dinâmica de experimentar a vida, principalmente as experimentações ocorridas dentro do contexto escolar e educacional. Dessa maneira, procuramos desafiar o modo de operar da educação atual e a fixação de qualquer ideia macropolítica, que se mostram a todo vapor, tentando capturar toda e 1 Fazemos referência ao texto: O corpo que não aguenta mais, de David Lapoujade. 11 qualquer linha que se escape e crie uma fuga dos padrões impostos. Falar sobre uma ética por essa perspectiva deleuziana é tratar de um tema que não se limita aos ensinamentos transmitidos de um a um, ou seja, indivíduo por indivíduo, como certa transmissão de valores e de ensinamentos de vida, comumente pensada na educação tradicional brasileira. De outro modo, debatemos uma necessária experiência e experimentação da vida. São assim, questionamentos que desafiam as convenções educacionais e tradicionais. Além disso, também é se preocupar com o desafio, por exemplo, de pensar e vislumbrar a colaboração mútua entre os indivíduos. A criação coletiva. Algo que parece simples, mas que, naturalmente gera um problema a ser resolvido, pois o ambiente educacional está contaminado majoritariamente pela aposta e pela ideia de uma jornada individual de aprendizado para cada humano. Pode-se dizer assim que, se constroem os métodos científicos e filosóficos da modernidade se opondo a toda formação derivada da ideia de trocas afetivas e de criações comunitárias. Por outro lado, dialogando com os filósofos Deleuze e Guattari, que não deixaram de se preocupar com a experiência, com os encontros, com as subjetividades e com outras questões similares, constrõem uma nova perspectiva, a saber, a ideia de que a própria subjetividade é uma trama que não está dada naturalmente e de antemão, pois se parece mais com um exercício de composição contínuo e com diferentes arranjos, do que uma espécie de moldura formatada que leva à padronização do indivíduo a ser conhecido e reconhecido. Assim descreve Brito (2012) sobre esse processo de individuação na filosofia dos pensadores: Deleuze enfrenta a ideia do sujeito unificado, essencializado e universal, quando mostra um território de criação de pensamento que está povoado por intensidades incorporais ao modo dos estóicos, acontecimentos, imanência, movimentos deslocamentos, conduzidos não mais por um sujeito, mas por sujeitos larvares. (Brito, 2012, p. 11). Dessa maneira, o ensaio teórico que se segue está atrelado essencialmente aos movimentos profundos e de intensidades afetivas, a fim de operar sobre aquilo que não se sabe ao certo nem quando se diz, nem mesmo quando é enunciado. E, quando se chega a alguma resposta singular, percebe-se também que são respostas comuns. São riscos feitos sobre compreensões de um “uno-múltiplo”. Falar de algo que é enunciado, mas que não se sabe direito o que se diz, é dizer de uma força intensiva inconsciente, “pré-individual”. Ao falar sobre o inconsciente, remetemo-nos involuntariamente, à Psicanálise, pois, por um lado, mesmo para os leitores desatentos é sabido que Sigmund Freud (1856-1939) 12 foi considerado aquele quem trouxe as observações valiosas e centralizadas nos movimentos desconhecidos da nossa mente; sobre as regiões povoadas, mas não vistas. Por outro lado, também é sabido que tanto o inconsciente quanto o desejo são temas recorrentes de investigação e eram sublinhados mesmo antes do médico e psicanalista austríaco. Nietzsche, Leibniz, Hegel, Schopenhauer e Espinosa, por exemplo, demonstram interesses sobre essa vida pulsante, obscura e comum. Decerto, observamos que a busca por compreensão das forças orgânicas e inorgânicas da vida não é novidade, ou seja, não foi uma “boa nova” da atualidade, do nosso tempo. Ao contrário, é contínua, foi e é enfadonha e repetitiva. Contudo, continua-se a percorrê-la e prossegui-la, pois são questões que convidam a todos a se perguntarem sobre o que fazemos e por qual razão agimos dessa ou de outra maneira. Mas, iniciando uma breve digressão, outra questão nos surge: e a escrita? Devemos falar dela também? Veja, é possível dizer que por meio da escrita que a conexão ao que é pulsante e cheio de intensidade pode acontecer. Dessa maneira, passa a ser sensível aquilo que singularizou quando passou, mas que não é único. Aquilo que se expressou no encontro de modo independente dos corpos que efetuam: o próprio Acontecimento e seu devir. Capturar o que esta por vir, através da escrita, é mais do que um desafio, é um problema complexo, quiçá, a proposição de uma tarefa (im)possível. E, se a pergunta for direcionada a esta escrita especificamente: por que escrevemos esta dissertação? A reposta não poderá fugir da ideia de que o presente texto é também uma busca de conexão com a vida, com a experiência, com o movimento, com esse Acontecimento e com o devir. A escrita desta dissertação, mais uma vez, é o processo de devires outros que buscam somar resistências e criação novos territórios, lugares afetivos e lutas comuns. Não é apenas uma comunicação ou representação. Nem mesmo, é sobre algo; é, na verdade, entre nós, entre aquele que escreve e o leitor, é feito porque acontece essencialmente na imanência. Como diz Deleuze ao observar o tema: “é a potência de uma vida não orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música.” (2000, p. 179). Desafia-se, dessa maneira, a criação de algo novo, perseguindo a experimentação daqueles pelos quais fomos atravessados na vida desperta e, de algum modo, podemos atravessar a partir da leitura destas linhas. Esta dissertação busca ser uma conexão de novas vidas compondo uma vida. A conexão ética, sob essa perspectiva, é enlaçada por múltiplas forças não orgânicas, com as quais se cria um campo de intesidade num território de comum interesse para nós, como um eixo norteador: a Educação e a Ética. Assim, a fim de intencionar esse campo de interlocução e buscar por meio da ideia de cartografia os desejos emergidos nesse momento 13 de escrita, bem como, de outras vivências, os caminhos escolhidos a serem trilhados estruturam um intuito maior, a saber, o de potencializar e dar visibilidade as linhas de fuga criadas por agenciamentos coletivos na educação. Se pensarmos no ambiente escolar, o espaço-tempo do nosso tema, começamos a refletir sobre possíveis ações dos estudantes e dos agentes escolares pelas quais impulsionam resistências. Observa-se a formação de novos grupos, de um novo povo por vir 2 . Vale questionar ainda a respeito do próprio espaço ocupado nas paredes e chãos frios das escolas. Quais corpos ocupam e como eles ocupam esse ambientes. Não deixando de questionar, bem como criticar o próprio cenário escolar por completo: permeado pela racionalidade e pelas estruturas neoliberais do capital. Nesse sentido, utilizamos a cartografia para pensar certos movimentos de “singularidades pré-individuais” (Deleuze, 2006, p. 178), por meio de uma literatura diversa da Filosofia da Educação como, também, da Filosofia da Diferença. Sendo assim, o primeiro capítulo constrói as chamadas práxis educacionais 3 que, no Brasil, têm passado por transformações graduais, todavia, sendo transformações, cada vez mais, focadas na concentração de capital e dos dispositivos de formação técnica. Criamos um breve preâmbulo para pensar como esse foi um processo de construção moral convencional na educação, ao mesmo tempo em que esvaziou as subjetividades desse espaço, bem como transformou a escola num ambiente insustentável para os corpos desviantes e (im)possibilitando a criação de uma aliança ética desses corpos. Tal conjuntura da educação, influenciada pela racionalidade neoliberal 4 , direcionou a formação individual para longe da reflexão e da criação de multiplicidades. É um âmbito propício para a produção de corpos e subjetividades adaptadas somente e, especialmente, ao mercado de trabalho. Pode-se dizer assim que, esse é um diagnóstico atual das nossas escolas. Não obstante, os sistemas educativos também desempenham um papel determinante nessa narrativa neoliberal, já que se propõem a imprimir uma aliança da produção de realidade ao ideal neoliberal de vida e de economia. Quando se confronta essa realidade atual, os desafios aparecem como, por exemplo, 2 Faremos referência a essa ideia mais a frente, no terceiro capítulo. 3 Para compreensão pormenorizada das práticas pedagógicas e a práxis educacional, veja o ensaio de: Dalbosco, Claudio Almir; Bertotto, Claudio; Schwengber, Ivan Luis. A ação pedagógica crítica e formação do pensamento reflexivo. Olhar do professor, vol. 23, 2020. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=68464195054. 4 Paradigma social, político e econômico que enfatiza a racionalidade econômica e a eficiência. Ou seja, o neoliberalismo (Carvalho, 2023) tem alcance global e sua funcionalidade é atestada pela sua incorporação nas decisões políticas econômicas e de Estado em todos os âmbitos da vida. 14 a mercantilização da educação, a formação técnica em detrimento da formação integral do indivíduo e a própria desvalorização da dimensão ética e da alteridade no processo educativo, sobretudo, na educação básica. Esse último ponto remonta o processo de pesquisa escolhido nesta dissertação, ou seja, falemos sobre problemas da ética na educação e as dimensões que a perpassam. Parece ser inquestionável que a educação desempenhe um papel essencial na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e de valoração ao respeito às diferenças e diversidades. Por outro lado, há de se concordar que, ao olharmos para a educação atual e todos os seus slogans e métodos desenvolvidos, vemos apenas produtos mercadológicos. Por isso, gostaríamos de discorrer e refletir sobre uma educação que resiste ao avanço neoliberal, bem como uma educação que não consuma as diferenças e as multiplicidades dos espaços para esavaziar as possibilidades subjetivas movediças. Pensamos, assim, numa concepção de educação não limitante que não fixe seus indivíduos e os seus agenciamentos a ponto de modelar as suas vidas – ou não-vidas, de maneira unidimensional, ou então, criando restrições às reflexões individuais e/ou coletivas. Pensamos em criar novas respostas para perguntas já feitas. Refletimos sobre questões para que não sejam respondidas no vácuo. Por esse motivo, a promoção de um espaço e de um tempo educacional potencializador de devires para além da formação técnica de subjetividades e econômica para o capital emerge como fundamental e “investe” nas criações mais equitativas e afirmativas sobre os diferentes modos de existir. Contudo, o que pode ocorrer com a educação quando é pensada sem esses slogans, sem as ordens e as hierarquias?. Não sabemos, mas buscamos novas formas de considerar a ética e seus problemas na educação com esta pesquisa. Buscar ideias que passem pela valorização das diferenças do espaço escolar, como também estimulem autonomia, reflexões críticas e criação de novos territórios potentes e de formação coletiva, que anunciem a vitória de um povo que falta. Uma escola que produza um outro lugar ainda não conhecido. Além disso, falemos das linhas de fuga tão necessárias ao presente amordaçador que estimula a falta de compreensão do que é alteridade e a aniquilação de vidas desviantes. Nesse sentido, fazer uma análise de tópicos conceituais sobre a potência de uma perspectiva ética à educação, pautada nos encontros dos corpos e na sua relação de potencialização dos movimentos marginais e aberrantes, constrói a nossa hipótese de impulsionar uma Ética aberrante, cujos movimentos transgridam o que, comumente, é proposto pela literatura na Filosofia da Diferença: diferenciar-se de uma postura sobre 15 educação emergida apenas e somente nessa destituição de uma educação ou vertical ou horizontal. Vamos trabalhar com conceitos. Criaremos conceitos e ideias para se pensar. Isto só é possível, mediante aos conceitos já criados e que nos levam diretamente para pensar a prática da vida, tais como: Corpo Sem Órgãos, Afeto e Agenciamento. Nesse cenário, há uma produção que advoga sobre formulações da nossa subjetividade e individuação pelas quais desfazem o saber tradicional legado pela história da Filosofia Ocidental e depositado na figura da consciência. Isso só pode ocorrer, pois o indivíduo em formação constante também está em completa exposição e, por isso, passível de ser moldado através da sociabilidade do espaço que ocupa. É uma filosofia que contrapõe essa tradição ocidental baseada no processo que compreende a subjetividade como partícipe de certo domínio da natureza humana. De outra maneira, essa perspectiva da Filosofia da Diferença, sob esses conceitos, propõe como substituição outro entendimento. Fala-se sobre a compreensão de usina ou de uma máquina produtiva, sendo essa a nossa subjetividade. Sem limita-la, assim, em centros e unificações. De modo que a subjetividade passa a ser fabricada e consumida (Guattari, Rolnik, 2008). É isto que nos interessa. O intuito, então, é menos descobrir as verdades ou mesmo as falácias das constituições subjetivas, do que compreender o problema essencial para o cartógrafo, como afirma Rolnik (1989): O que vitaliza ou destrói, o que é ativo de si ou apenas reativo do exterior. Isto é, fundamentalmente o trabalho do cartógrafo está no exercício de “expropriar, se apropriar, devorar e desovar [...].” (1989, p. 67). Nesse mesmo sentido, David Lapoujade (2015) sublinha também sobre intensidades, mas orientado por Deleuze para o que chamou interessantemente de movimentos aberrantes. Segue uma de suas afirmações sobre o tema: O que interessa Deleuze são os movimentos aberrantes. Sua filosofia [...] constitui a tentativa mais rigorosa, mais desmedida e também sistemática de inventariar os movimentos aberrantes que atravessam a matéria, a vida, o pensamento, a natureza, a história das sociedades. (2015, p. 9) Tais considerações sobre a filosofia deleuziana nos empurram às fronteiras de outras duas ideias que parecem fundamentais para essa reflexão: “um conjunto de relações entre a consciência humana, por um lado, campo transcendental, empirismo transcendental e plano de imanência, por outro lado.” (Carmelo, 2001, p. 2). 16 Segundo Agamben (2000), adentrando na filosofia de Deleuze por outra abertura, a individuação ou a ideia de “sujeito” aparece “[...] a partir do encontro contingente com uma verdade e deixa de lado o vivente como animal da espécie humana chamado a servir de suporte a este encontro.” (2000, p. 170). Por esse motivo, dirigimos o presente estudo ao ponto de convergência entre as chamadas individuações, ou a questão da subjetivação e o plano de imanência dos encontros, ou então, justamente a formulação sobre uma noção de ética que se relaciona diretamente com a experimentação aberrante. Félix Guattari (2011), por sua vez, ao abordar a questão da subjetividade, oferece uma visão crítica das formas como os indivíduos são moldados, serializados e registrados como modelos. Ao pensar o ambiente escolar, por exemplo, são inúmeras existências compactuando com esse paradigma sólido e atual, denunciado pelo filósofo. São, assim, diversas as individualidades que se conformam ao processo moral definido pelas diretrizes que norteiam o ensino: as macropolíticas da educação. Segundo Deleuze e Guattari (1996), não se trata de trabalhar com a ideia de sujeito, ou de uma subjetividade identitária que aprisiona os indivíduos da construção de um Eu, de um rosto e de um buraco negro do eu. Por outro lado, eles entendem que “[...] se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino” (Deleuze, Guattari, 1996, p. 35 e 36). No sistema capitalista, os filósofos entendem que há sistemas de conexões que são conduzidos de maneira direta “entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo.” (Guattari; Rolnik. p. 35, 1996). Isto é, as subjetividades individuais, conforme essa tese são resultados do entrecruzamento de inúmeras determinações, como: sociais, econômicas, tecnológicas, de mídia – e arriscamos a dizer aqui, educacionais. Compreendendo esses conceitos e ideias como ferramentas importantes para investigarmos os problemas no âmbito da educação, a nossa abordagem passa também pelas três teses contra uma Moral em favor da Ética, por assim dizer, aberrante. Essa é uma temática apresentada por Gilles Deleuze em algumas de suas obras (2002; 2009; 2017), e que permeia tal tema desde uma leitura espinosista. O intuito é, justamente, desvencilhar as atitudes e as ações que versam, ora sobre uma construção moral, ora pelo viés da experiência ética. Decerto, faremos nesta dissertação o exercício de pensar a vida de maneira imanente. Desse modo, acreditamos que por meio da perspectiva teórica dos afetos, principalmente as questões relacionadas sobre como as nossas ações individuais e coletivas, os critérios 17 sociais e os possíveis limites de convivência que se tem e que intervêm na própria “sintagmática da subjetivação inconsciente” (Guattari, 2008, p. 43), podem ser ao menos refletidos por um novo olhar. Prosseguindo essa discussão, com o intuito de buscar conteúdos sobre autores e seus escritos como Fernand Deligny (2015) e David Lapoujade (2015), inicia-se um mapeamento das bibliografias que aberram e desviam a normalidade estabelecida pelos parâmetros e diretrizes impostos, especialmente, pela moral neoliberal de juízo religioso fixada num sujeito, que tanto submete a todos, ao passo que, não tolera qualquer ação ou experimentação de vida fora de sua centralidade e normalidade. Nesse ponto, utilizamos as distintas vivências narradas por Deligny (2015) em suas obras. Elas complementam tais questões como blocos de apoio à construção desta dissertação. O desafio posto está em viver e enxergar as vidas através das experiências de encontros, resistindo e ecoando denúncias de vidas que gritam convivência em rede. Imaginar, assim, com Deligny quais práticas que permitem as vidas em rede persistirem e, não só, existirem (Deligny, 2015). Sem esquecer, dessa maneira, que este projeto não tem um caminho delimitado, pois acontece com os devires, através dos encontros, num devir- aracniano; isto é, ao modo de Deligny (2015): “a aranha não tem necessidade alguma de pensar no inseto que é pego em sua teia. (2015, p. 39)”. David Lapoujade corrobora, por sua vez, como um notável pensador e leitor de Deleuze para a seguinte leitura conceitual e prática, auxiliando, sobretudo, as fundamentações de análise sobre os movimentos aberrantes. Movimentos que, segundo ele, ocupam os espaços e também transitam em intensidades formando subjetividades marginais nessa máquina produtiva capitalista atual. Ele é um pensador que ajuda a dar visibilidade e indicar, desse modo, certa dimensão ética da vida que deve ser pensada na educação. Um espaço pautado na produção disso que chamamos de Ética aberrante. Enfim, compreende-se de imediato que tanto Deleuze quanto Guattari advogam contra o pensamento fundamentado e direcionado para o mercado, cujo efeito está em condicionar e territorializar a existência de modo fixo, rostificando um Eu e não o si, ocorrida em uma atualização constante do capitalismo. Mas, também, denunciam as vidas esvaziadas pelo processo de submissão das macropolíticas. Nesse processo operado pelo capital, por exemplo, vemos a descodificação da vida “[...] para recodificá-la no campo moral, por onde busca prolongar seus investimentos e territorializações.” (Santos, 2021, p. 43). Isto é, há certa produção repulsiva da própria diferença, bem como o próprio esvaziamento da vida em prol dos juízos da moral e de 18 Deus. Por outro lado, é com Espinosa que os autores, principalmente Deleuze, empregam a denúncia aos modos de vida apoiados nas paixões tristes, em que o pensamento, enquanto categoria de conhecimento constitui “uma imagem do universal, um estriamento do espaço mental que almeja construir universalidades, a imagem do Todo e do Sujeito.” (Santos, 2021, p. 45). De outro modo, pensemos e propomos, portanto, a investigação sobre elementos afetivos da experimentação e do devir. Exercendo, dessa maneira, uma produção não mais a partir das imagens pré-existentes e nem confundidas pelas cumplicidades maquínicas acopladas no eixo: Estado, Religião e Moral. Mas sim, trabalhar acerca de um exercício de pensamento que experimenta a si, num grande porvir criado na condição de ser destruído e desfeito. Vislumbrar linhas de fuga de um pensamento agressivo, cujo objetivo está em romper com tudo aquilo que aprisiona o pensamento e o fluxo da vida. Assim, em criação com o novo, com territorialidades e potencializando os espaços de educação, bem como as subjetividades que neles transitam, afim de criar máquinas de guerra nos encontros que ocorrem nas relações micropolíticas da escola, pensemos, portanto, sobre uma Ética aberrante. 19 1. MACROPOLÍTICA: EDUCAÇÃO MORAL E ÉTICA 1.1 Considerações sobre a educação brasileira: modo de ensino e de formação de uma moral convencional Nesta primeira seção, escolhemos esboçar linhas descritivas sobre a educação brasileira, visando alinhar essa reflexão com a ideia de macropolítica, ou seja, linhas molares, conscientes e rígidas da educação brasileira, na qual o investimento do desejo pelos atores da educação recorta e ajusta as subjetividades por oposições binárias 5 e externas. São fatores que agem como uma máquina. Vale dizer 6 que, certamente, a perspectiva crítica que escolhemos aos movimentos históricos na educação faz parte de uma leitura, de um olhar e de sentidos inspirados na Filosofia da diferença e em seus interlocutores. No entanto, neste primeiro momento, faremos as considerações sobre o ensino e a aprendizagem propostas à educação brasileira tradicionalmente, em que as ações didáticas e pedagógicas estão envoltas numa complexa formação moral. Assim, foi no início do século XX que a educação brasileira se fundamentou em uma linha de pensamento chamada de pedagogia tradicional. Essa foi uma pedagogia que designou diversas tendências aplicadas na educação brasileira, principalmente, nas primeiras décadas do século em questão. O seu método era composto por algumas características, como: (1) O professor ter a responsabilidade por conduzir e padronizar todo o processo educativo de aprendizado e formação. (2) Processo regido por aulas expositivas, repetição de leituras e cópias de matérias, com o intuito de criar uma memorização dos conceitos trabalhados. Não menos importante, a formação educacional dos indivíduos era feita (3) pela rigidez do ensino e de comportamento. Diante desse cenário, o intuito era desenvolver uma uniformização de método, da prática pedagógica e, também, da formação dos indivíduos. A escola passa a ser um espaço pouco oportuno para inovações. 5 Quando se fala dessa educação, trata-se de olhar apenas ações e definições previsíveis de controle: Homem/Mulher; Trabalhador/Empresário; Deficiente/Normal; Disciplinado/Indisciplinado. 6 Também é necessário dizer que, a função da ideia de macropolítica utilizada nesta seção é uma abordagem da autora Suely Rolnik (1989), na qual define a macropolítica como, entre outras formas, um campo molar da representação, ou seja, uma espécie de delineação conceitual para algo externo, exterior e, que desempenha um único papel, aquele a qual foi lhe atribuído, programado, tal qual, o olho: a representação dependente do órgão da visão, ou, as instituições, por exemplo, a Educação. 20 Pode-se dizer que, como certo avanço no debate educacional, surge nas décadas seguintes daquele século XX a concepção da Escola Nova 7 . Esse foi um período em que houve diversas experiências de práticas pedagógicas consideradas novas. Essencialmente, foram condutas que empregavam como importância o interesse dos alunos no aprendizado transmitido pelo professor. Nesse contexto, o professor teria o papel de desenvolver os alunos a solucionarem problemas de forma experimental, fazendo-os capazes de autoavaliarem seu aprendizado ao final de cada ciclo. De acordo com Marques e Targa (2013), essa metodologia de abordagem foi amplamente difundida nos cursos de licenciatura do Brasil, tendo como um de seus fundamentos a democratização do ensino. Porém, o papel desempenhado pela escola foi criticado por educadores e especialistas ao identificarem-na mais como uma “adaptação ao meio social estabelecido do que como um processo real de democratização.” (2013, p. 150). Nesse sentido, a escola passou a desenvolver uma dupla função: primeiramente, manter os interesses dominantes do capital e, em segundo lugar, desenvolver uma forma de ensino que se adequasse a esses interesses. Ademais, historicamente, essa concepção prevaleceu na educação brasileira até a primeira metade do século XX. Entretanto, com diversas críticas direcionadas ao seu método, na década de 60, outra influência de concepção pedagógica emerge: a concepção tecnicista. Esse novo método tinha como princípio atrelar a ciência – a lá durkheimiana – à pedagogia, visando replanejar a educação escolar em todos os seus níveis e, assim, “dotando-a de uma organização mais ágil, mecanizada e capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem por em risco sua eficiência.” (Marques, Targa, 2013, p. 151). É importante destacar o seu contexto de implementação, afinal, tal concepção tecnicista fazia parte da política oficial do governo ditatorial para as escolas públicas. Logo, a política escolar tinha como função a consolidação de um sistema profissionalizante que respondia diretamente às demandas sobre a ideia de sujeito, bem como de trabalho para o capital. Demandas as quais estavam sendo instaladas no Brasil nos anos 60 e 70. Além disso, reforçava “a distinção de classes mantida pelo capitalismo” (Marques, Targa, 2013, p. 150). Tal concepção seguia certo padrão behaviorista e utilizava fundamentos em conceitos skinnerianos de comportamento, visando o estabelecimento de uma formação e de uma certa função baseada em esquemas mecânicos e de mudanças de comportamento, 7 Com o desenvolvimento feito para a modernização e a democratização do Brasil, a escola se renova a caminho do esclarecimento das classes mais populares. 21 assim como de novas formas de aprendizados voltados, majoritariamente, à aplicação profissionalizante. Desse modo, vimos de maneira breve que essas concepções, Pedagogia tradicional, Escola Nova e a Tecnicista tornaram-se apenas um meio de garantir a mercantilização da educação mediante seus instrumentos de controle. O comportamento e a formação individual ficam em uma esteira mercadológica para suprir as demandas do capitalismo industrial brasileiro. Nessa concepção liberal capitalista da educação, os diferentes modos de ser começam a ser suspensos e ficam a serviço de uma alienação do ato de aprender. Como uma perspectiva contrária e de constante combate aos movimentos anteriormente citados, sublinhamos a pedagogia como prática de liberdade, de Paulo Freire (1921 – 1997). Em sua concepção de educação bancária, o pedagogo brasileiro observou as teorias educacionais em práticas no Brasil sob uma perspectiva de padrão operacional de mercado. Quer dizer, tal pedagogia era utilizada como instrumento para manter uma sociedade opressora e sob o controle institucional, transformando-a, desse modo, numa máquina de ensino e de formação moral convencional. Freire, sob esse contexto, entende o educador como protagonista de uma teatralização das operações financeiras do mercado, na escola. O pedagogo denunciava que o protagonista dessa peça, o professor, desempenhava o papel de depositador de conteúdos nos alunos, e, desse modo, “quanto mais vá enchendo os recipientes com seus depósitos, tanto melhor o educador será. Quanto mais se deixarem docilmente encher, tanto melhores educandos serão.” (Freire, 1987, p. 58). Contudo, em sua perspectiva, o intuito da educação era outro: o desenvolvimento de uma pedagogia crítica, além almejar uma educação com total envolvimento político. Assim, seus estudos buscou assegurar questões como: justiça social e democracia nas escolas, relacionando-as ao – ainda – binário ensino-aprendizagem, assim como, repensando as relações e as experiências de formação ética nas escolas. Isto é, a sua concepção educacional teria como intuito a transformação dos indivíduos e dos seus saberes. Sendo assim, uma transformação fundamentada na ideia de uma consciência de si, emergida na prática pedagógica e da situação individual no mundo, de acordo com a ideia de sociedade de classes. (Martins, 2012, p. 86). Paulo Freire, com sua educação libertadora, desempenhou um papel fundamental na história da educação, especialmente no contexto brasileiro. Ele denunciou a educação bancária num momento bastante oportuno da nossa história, e os seus ensinamentos 22 destacaram a importância de repensar as relações de poder na sala de aula 8 , bem como fizeram pensar em uma promoção de certa educação que valorize mais a participação ativa dos alunos no processo de ensino-aprendizagem e o seu próprio contexto social. Em contrapartida, observamos que a educação baseada na ideia de uma aquisição consciente do indivíduo presente, tanto nas concepções anteriores quanto na pedagogia de Freire, encontra alguns limites do que é o pensar e o conhecimento afetivo das relações que constituem as singularidades existenciais de um modo ético dos indivíduos. A saber, a máquina de guerra que cria uma educação libertadora também produz a moralidade convencional, mediante as estruturas discursivas e a criação de uma maquinaria que ignora parcialmente os afetos na micropolítica das subjetividades. Além disso, é possível analisar nesse processo certa produção de subjetividades de modo consciente e controlado, por meio do conceito “sociedade de controle”, nos termos de Deleuze (1992). Ao refletir sobre o término da Segunda Guerra Mundial, o filósofo passou a identificar uma crise nas instituições que foram estabelecidas historicamente. Esta crise, por sua vez, corroborou para a ascensão de instituições fracassadas nas estruturas subjetivas individuais. As corporações/empresas, em particular, vislumbraram uma oportunidade de ocupar o espaço deixado pelas fábricas dos séculos XVIII e XIX, dando origem, assim, a uma nova ordem de signos e símbolos. Neste contexto, o controle, a otimização e a projeção subjetiva assumem papéis fundamentais (COSTA, 2018). No âmbito educacional e escolar, esse controle se manifesta diariamente por meio de programas destinados tanto aos professores quanto aos alunos. Tais programas incluem desde avaliações externas até formações continuadas. Essa modalidade de educação que podemos classificar como moralizante, transcende os limites físicos das escolas, tornando- se um pilar fundamental do que Durkheim (2007) descreveu como a educação necessária para uma sociedade civil sem anomalias: [...] a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não são maduras para a vida social. Tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio a qual se destina particularmente. (Durkheim, 2007, p. 52). A educação, nesse viés, assume o lugar de uma potência social, constituindo-se como base da organização social. No entanto, esse processo se dá por meio do controle de conduta, dos 8 É necessário pontuar que a sua pedagogia não se atinha a escola regular, mas a Educação de Jovem e Adultos. 23 direcionamentos de olhares, da aplicação de recompensas, da influência da música, das lições transmitidas, do processo de ensino-aprendizagem, dos exemplos fornecidos e das dinâmicas das subjetividades, entre outros aspectos. Observamos também como a tecnologia e os sistemas de monitoramento estão, cada vez mais, integrados ao ambiente educacional, influenciando as práticas de ensino e aprendizagem. É na escola e no ambiente familiar, portanto, que se configura o epicentro dessa transformação social da imposição da forma e prática do controle moral de seus atores. O professor, inserido nesse processo, muitas vezes se torna um mero executor da moralização de seus alunos, mesmo que seu próprio exercício de ensino esteja comprometido apenas com a aparência, por exemplo, o caráter da educação passa a ser apenas utilitarista. Neste cenário, nada é tão contemporâneo 9 quanto a narrativa do ambiente educacional que se desenrola a seguir: A cobrança de presença, a utilização insistente de pequenos trabalhos ao longo do período e de recursos tecnológicos, a hipervalorização dos instrumentos didáticos, a instituição de seminários (oficializando a saída de cena do professor, deixando o tablado para o aluno, agora responsável por ensinar a seus colegas, mesmo que brevemente), são índices de que o professor naturalizado na instituição, bem ou mal intencionadamente, termina por escamotear o ensino. (Costa, 2018, p. 13). A própria imposição do currículo educacional revela o excesso de personalização e compartimentalização do conhecimento. Se esses mecanismos eram originalmente modelados com base em uma estrutura de fábrica e, posteriormente, foram transferidos para dentro das escolas, hoje, testemunhamos a educação sendo tratada como uma mercadoria e os alunos como empreendedores de si 10 . O controle e o movimento de monitoramento são constantes em toda a estrutura escolar, desde as salas de aulas aos componentes curriculares, que corroboram com esse movimento massificador e controlador. Dessa forma, é fundamental ressaltar as afirmações assertivas de Freire que, em seus estudos eleva a pedagogia política, criando um saber essencialmente coletivo e centrado nas palavras geradoras (Martins, 2012, p. 96). No entanto, apesar de seu projeto não se distanciar muito do que é proposto nesta dissertação, ele não vai adiante quando a política, 9 E aqui faço menção direta a minha experiência em sala de aula na Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo. 10 A escola se tornou palco para disputas desenfreadas, produzindo atores-máquinas de competição e de empresariamento de si e, aquele que se destaca nessa competição, recebe o seu mérito. O dispositivo de controle aqui é nítido: lucratividade e utilidade (só deve ser ensinado aqueles conteúdos eleitos como úteis para o indivíduo sobreviver no mercado competitivo, o que não tem utilidade dentro desse objetivo deve permanecer fora dos muros escolares), calculabilidade (tudo deve ser racionalizado, programado), empregabilidade. 24 juntamente com o conhecimento e a formação cidadã, avança por processos e caminhos pré-concebidos e preestabelecidos, sobretudo, no campo em que Deleuze e Guattari denominam de micropolítico. Diante disso, torna-se evidente a urgência premente de uma reflexão crítica sobre os rumos e o impacto dos desafios éticos e seus problemas relacionados à educação. O contexto descrito revela a necessidade de repensar não apenas os métodos educacionais, uma vez que nosso objetivo aqui também não é esse, mas sim, focalizar como a adoção de uma moral convencional e de um estado fascista aniquila possibilidades de novas formas de existência no processo ético e no ambiente educacional. Observamos assim, como a educação e a escola muitas vezes perpetuam a produção homogênea de vidas, excluindo aqueles que não se encaixam nos padrões estabelecidos. Estamos, portanto, discutindo uma educação que, ao se limitar à reprodução maquínica dos mesmos modelos e normas, fecha-se às multiplicidades e às linhas de fuga, impedindo a emergência de singularidades e devires outros. Por outro lado, trata-se de refletir sobre uma educação que desafie essas estruturas rígidas e estabelecidas, propondo uma ética que experimente, explore e crie novos agenciamentos. Diante do exposto, ao escolher Deleuze e Guattari como referências para o presente trabalho, percebemos que o ato de pensar é essencialmente criativo e problematizador, especialmente diante do improvável e do imprevisível: do devir. Em vista disso, emerge a possibilidade de conceber uma educação e uma ética permeada por questionamentos nesse território, principalmente, os que dizem a respeito ao que esses pensadores suscitam em suas produções. A abordagem dessa filosofia deleuzo-guattariana e de seus interlocutores propõe a presente reflexão embasada na valorização dos afetos, isto é, do saber afetivo construído pelas experiências de quem as produz e são atravessados. Em outras palavras: “a possibilidade de se falar de um saber de afeto, um saber construído por aquilo que importa à vida daquele que o construiu.” (Martins, 2012, p. 97). Essa literatura educacional invoca a todos nós rupturas com as estruturas convencionais. É um convite para nos libertarmos das amarras do conhecimento feito de antemão e nos abrirmos para a criação de um saber ético que verdadeiramente ressoa com as nossas vidas. Enfim, é romper com todas essas práticas e esses métodos que já foram ou continuam sendo aplicados à educação. 25 1.2 A Ética como problema na Educação A questão ética na educação ultrapassa as fronteiras do tempo. Queremos dizer com isso que as dinâmicas sociais, os comportamentos individuais e os valores fundamentais de uma sociedade são influenciados por essa reflexão. Tal influência acontece por meio de normas e políticas públicas de um estado moral. Nesse sentido, vivemos sob o paradigma de uma educação moralizante e a escola a serviço do controle total. Vimos que as correntes clássicas e tecnicistas utilizam mecanismos de aprendizagem e métodos de ensino não apenas para transmitir conhecimento, mas também para impulsionar e impor os padrões de modos de viver específicos e igualmente únicos em novas possibilidades de vida. Em outras palavras, a educação não é apenas uma instituição de aprendizado, ela é um agente ativo que exerce influência na formação moral da sociedade. Esse paradigma e suas implicações estruturam uma moral consistente que também está centralizada na ideia do empreendedorismo de si. Esse, na educação básica, tem sido executado de modo transversal pelas políticas públicas e impulsiona, cada vez mais, a ideia de que o indivíduo deve superar a todos e a si próprio. E ele faz disso um motor de vida. Isso significa dizer que preocupações sobre a formação individual e coletiva estão apenas centralizadas em valores para o capital neoliberal, bem como concentram-se em produzir um certo esvaziamento subjetivo. Do que se trata aqui? Trata-se de uma escola como máquina de produção social de desejos e subjetividades competitivas, as quais definem os padrões morais e éticos a serem seguidos. Se um dos direcionamentos à educação passa a ser pensado como neoliberal e de uma moral que não cabe aspectos de vidas desviantes da normalidade, quando pensamos, então, o seu espaço como um território de construção e aprendizado, enxergamos que, em espaço e tempo, as escolas se tornaram um lugar pouco produtivo para emergência de um aprendizado ético por parte de seus atores, visto a sua moralidade e os seus valores intrínsecos de subjetivação e esvaziamento subjetivos. Especificamente no Brasil, é a partir da redemocratização com a constituição de 1988 que as diretrizes educacionais – ou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) – foram impulsionadas por essa reabertura democrática, destacando um marco referencial e regulatório importante para a educação. Com base nessas considerações, a questão ética na educação emerge num novo estágio: a formação ética na educação enquanto crítica da escola vigente. 26 Conforme a literatura já produzida sobre esse tema, apreende-se que a educação brasileira, em seu longo trajeto histórico, teve como função regularizar um padrão e docilizar alunos, associando-se tanto com a ideia de obediência quanto de moralidade. É possível identificar, de acordo com Pagni (2018), cerca de quatro perspectivas que discorrem sobre a temática levantada. Na primeira, inspirada nos referenciais psicológicos e na epistemologia genética, em suas variações, a educação escolar é responsável por uma espécie de moralização do indivíduo, de modo diverso daquele concebido filosoficamente por Kant, contudo, mantendo ainda o entendimento que a ética é apreendida como um juízo moral, bem como a sua formação se dá através de juízos determinantes e se apresentam como campo de estudo da moral. A segunda perspectiva entende que a ética implica na necessária reflexão crítica dos indivíduos sobre si e sobre suas próprias ações o que evitaria as forças destruidoras que os conduziriam à barbárie ou quando um sentido negativo seria assumindo tal qual o postulado pela primeira geração da Teoria Crítica em oposição à moralidade empreendida pela instituição escolar, isto é, a crítica aos mecanismos de subjetivação impostos por juízos determinantes. Não menos importante, como variação desse olhar da Teoria Crítica, apontado anteriormente, uma terceira perspectiva aglutinaria os estudos que tentam associar tal crítica compreendida como uma inflexão em direção ao sujeito à relação com o outro, o que implicaria no diálogo e na ação comunicativa no âmbito pedagógico. A última perspectiva, por fim, evidencia essa fissura como uma diferença ontológica importante e também imanente à ética na educação. Assim, inspirada nos filósofos da diferença, entende-se que é, justamente, nessa tal fissura que o acontecimento e os agenciamentos ocorrem. Invocando uma atitude ética dos atores da escola, bem como produzindo novos processos de subjetivação a despeito da regulamentação e da univocidade moral ao qual são guindados, como vimos. Embora essa perspectiva não negue a educação moral, nos apresenta a dimensão inesperada da vida em busca do aprendizado ético próprio e a partir da experiência, procurando articular, desse modo, o conceito de ética em toda a sua transversalidade. A última perspectiva, dessa maneira, indica-nos um contraponto ao papel moralizante da educação escolar, fundamentada, sobretudo, na concepção filosófica de que a sua função principal seria ensinar aos estudantes a aprenderem a obedecer aos juízos determinantes. Aqueles moldados pela disciplina escolar e educacional. 27 Para contextualizar nossa compreensão, ao longo do século XVIII, o aprendizado nas escolas que eram concebidas enquanto instituição social e agente da moralidade, dedicou-se à docilização dos corpos e à disciplinarização deles, para depois abordar a correção dos incorrigíveis. Não obstante, mais recentemente, começou a promover a integração de uma racionalidade econômica, como se sabe. Além disso, a escola enquanto instituição de educação e responsável pela formação de cidadãos segue um modelo de narrativas formatadas de antemão. Segundo Teza (2016), esse modelo se crê capaz de representar o mundo de modo verdadeiro por meio de certas regras e, então, o “pensamento ordinário é formatado, visto que este espaço constitui um modelo de pensamento que se limita ao treino, à repetição, à resolução de problemas já solucionados” (2016, p. 223). Entendemos, dessa forma, que a pedagogia soube conciliar, nessa história de longa duração, alguns momentos de docilidade cega, em que estaria associada com a ideia de obediência e de moralidade. Por outro lado, em todo esse percurso a educação presenciou, do mesmo modo, espaços e tempos em que tanto a desobediência se insurgiu quanto a atitude ética essencial para a crítica se manifestou. Aproveitaremos o diálogo com essa manifestação de insurreição e, através dela, buscaremos fundamentar reflexões acerca de outra dimensão ética na educação, nos baseando na Filosofia da diferença e nos guardando de seus conceitos como instrumentos para contribuir acerca da quarta perspectiva apresentada acima. 28 2. A ÉTICA DELEUZIANA 2.1 Potências aumentativas e servidões diminutivas No segundo capítulo da obra Espinosa: Filosofia Prática, Deleuze (2002) define que há um nível de conhecimento mais baixo, no qual três ilusões são constituídas, sendo o lugar da consciência para ele. Essa definição, por sua vez, não é apenas a sua primeira tese contra a Moral, a saber, a desvalorização da Consciência, mas é também a tese que levou o espinosismo a ser acusado de materialismo. Ao pensar com Espinosa a ordem das causas na Natureza 11 , Deleuze (2002) propõe à Consciência não uma instância de conhecimento verdadeiro, mas sim, um conhecimento de tal modo que gera uma confusão na diferença singular de cada individualidade. Em virtude desse nível de conhecimento, tem-se apenas o que o autor denomina de Ideias Inadequadas. Esse pensamento impulsiona a compreensão de que a mente é a ideia do corpo. Isto porque, segundo Deleuze (2002), a Consciência emerge enquanto uma faculdade informativa, maleável e transitiva do pensamento, por meio do encontro entre os corpos. Tais concatenações, que ocorrem nas ideias e também nas ditas paixões, geram “as condições em que conhecemos as coisas e tomamos consciência de nós mesmos”, embora, ao mesmo tempo, nos condena “[...] a ter apenas ideias inadequadas.” (Deleuze, 2002, p. 25). Para explicar como isto ocorre, Deleuze escreve que tal ordem causal segue, rigorosamente, leis características de composições e decomposições de vida em sua prática, por exemplo: Cada corpo na extensão, cada ideia ou cada espírito no pensamento são constituídos por relações características que subsumem as partes desse corpo, as partes dessas ideias. Quando um corpo “encontra” outro corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão de suas partes. Eis o que é prodigioso tanto no corpo como no espírito: esses conjuntos de partes vivas que se compõem e decompõem segundo leis complexas. A ordem das causas é então uma ordem de composição e de decomposição de relações que afeta infinitamente toda a natureza. (Deleuze, 2002, p. 25). 11 De acordo com o Glossário da obra Espinosa, filosofia prática, a Natureza espinosana é definida de um lado como naturante: substância e causa; e de outro, Natureza naturada: efeito e modo; e estão vinculadas na imanência: “por um lado, a causa permanece em si mesma para produzir; por outro, o efeito ou o produto permanecem na causa.” (DELEUZE, 2002, p. 94). Ademais, de acordo com Ramaciotti (2012): “A distinção estabelecida por Espinosa entre substância transcendente e substância imanente é transposta para a distinção deleuziana entre o “plano de imanência” e o “plano de transcendência” (2012, p. 114). Isto é, ao que diz respeito ao plano de imanência, diz-se que este “é designado como um "plano de consistência" ou um "plano modal", pois todas as coisas e indivíduos existem como coisas singulares em ato e expressam a "única Natureza". (2012, p. 114). 29 A fim de compreender o fundamento das Ideias Inadequadas, primeiramente é preciso diferenciar dois termos em latim, que veremos a seguir, cujos significados distintos costumam ser traduzidos enquanto sinônimos por diversos autores. Isso se transforma, assim, em um problema teórico dentro da filosofia. Isto porque, traduzir ambos os termos num só, levar-nos-ia a perder uma das dimensões significativas ou, justamente, a dimensão do acontecimento imanente para essa teoria da afetividade, visto que o corpo, no plano imanente, bem como, fundamento à Filosofia Prática deleuziana tem implicações diretas nos processos psicológicos individuais e, consequentemente, nos modos de existência. No curso sobre o Afeto e a Ideia, com o intuito de desenlaçar tal problemática, também de tradução, Deleuze define Affectio para a força das causas externas, relacionando-o à Ideia que se tem num encontro qualquer; e Affectus para o Afeto, por sua vez, relacionado com a potência de agir do indivíduo que, por sua vez, varia de acordo com cada encontro de corpos e também de ideias. Para o primeiro termo, temos “afecções” em português; no caso do segundo, temos a palavra “afeto”. Por meio dessa definição primária, iniciamos uma análise sobre as potencialidades dos modos de existência; e também de um dos gêneros de conhecimento (Deleuze, 1997, p. 177). 30 2.2 Diferenciando os termos em Latim: Affectio X Affectus No curso ministrado na Universidade de Vincennes, Deleuze define o que ele chama de ideia-afecção (affectio) como: “um modo do pensamento que representa alguma coisa.” (Deleuze, 2009, p. 34). Por exemplo, “a ideia do triângulo é o modo de pensamento que representa o triângulo.” (Deleuze, 2009, p. 34). Por outro lado, esse modo representativo de pensamento é a primeira diferença entre a Ideia e o Afeto, para ele. Isso ocorre, pois o afeto (affectus) é um modo de pensamento que nada representa. Ou seja, trata-se de compreender que querer alguma coisa implica que essa coisa seja uma ideia, entretanto, o fato de querer algo não é uma ideia, isto é, não tem ligação a representatividade de um objeto. Nesse sentido, desejar, amar, querer, entre outros, são sentimentos que nada representam objetivamente, ao mesmo tempo que não são um modo de pensamento, cuja representação esteja ligada a um objeto exterior, assim dizendo, não existe uma ligação da natureza com o objeto. Portanto, compreende-se que “todo modo de pensamento enquanto não representativo será denominado afeto.” (Deleuze, 2009, p. 35). Ao falar de afecções sob uma perspectiva ética, entende-se que elas se classificam em afecções físicas e corporais. No que diz respeito a essas afecções, trata-se de entendê-las enquanto efeitos de um encontro entre corpos, isto é, entre indivíduos a ponto de contagiarmo-nos pela alteridade e, dessa maneira, avaliarmos a expressão da consciência “como o sentimento contínuo de uma tal passagem, do mais ao menos, do menos ao mais, testemunha das variações e determinações do Conatus 12 [....] (Deleuze, 2002, p. 27). Dessa maniera, a consciência como testemunha não é, de forma alguma, entendida como consciência-de-si, ou mesmo, dona-de-si, comumente analisada de tal modo pela história da Filosofia moderna. A consciência se enuncia, assim, distintamente, ou seja, como uma faculdade do pensamento cujo conhecimento que se tem à sua medida está sob constante mutilação, externalidade e julgamento moral. De certa maneira, as variações que temos na vida não estão separadas de um fluxo incessável de uma variação de ideias que nos ocorre no corpo e no pensamento ao mesmo tempo, embora, como vimos, são conhecimentos mutilados e concebidos pelo externo. 12 A saber, Conatus, de modo sucinto, exprime a potência humana. E a possibilidade de fortalecer ou definir tal potência, a fim de encontrar por meio da afetividade a causa adequada do desejo, da alegria, que os encontros alegres demonstram-se necessários. De acordo com Espinosa (2008) conservar e potencializar o conatus é fundamental e o próprio fundamento único da virtude: “A virtude é a própria potência humana, que é definida exclusivamente pela essência do homem, isto é, que é definida pelo esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar em seu ser.” (Espinosa, IV, preposição n.20, p. 289). Isto posto, afetar-se e afetar inúmeros corpos está na composição e no esforço de construir-se eticamente. 31 Certamente, a Ideia é sempre primeira, como uma contemporaneidade de cada individuação, isto é, “a Ideia é a realidade pré-individual” e cada corpo formado é diferenciado e, ao mesmo tempo, “inseparável de um corpo inextenso, intensivo, sem organização, que é a Ideia dele.” (Lapoujade, 2015, p. 114). Trata-se assim, de certa compreensão sobre essas variações que ocorrem, constantemente, entre dois polos de paixões fundamentais, como definiu Espinosa em sua obra Ética, sendo os limiares mínimo e máximo de uma potência: sentimentos de Tristeza – potencialização mínima e Alegria – potencialização máxima. Nesse sentido, o que chamamos de uma ideia-afecção, leva-nos a conhecer o objeto apenas pelo seu efeito em nosso corpo. Na prática, observamos da seguinte maneira, por exemplo: em um encontro casual com alguém que não gostamos, ocorre em nós uma variação em nosso modo de extensão (matéria) que, de maneira paralela, ocorre também no pensamento. Em termos de sentimentos de paixão e de ação, pode-se dizer que “quando depois de ter visto alguém que me torna alegre, eu vejo alguém que me torna triste, eu digo que minha potência de agir é inibida ou impedida.” (Deleuze, 2009, p. 26). Por assim dizer, para utilizar uma ideia espinosana – o meu conatus é diminuído. Portanto, a consciência emerge como uma instância do conhecimento que transita e é maleável, “como uma passagem, ou melhor, como o sentimento de passagem dessas totalidades menos poderosas às mais poderosas e inversamente.” (Deleuze, 2002, p. 27). Se compreendermos que Ideia e Afeto são noções distintas por natureza, pois à primeira compete a representação de um objeto e à outra um modo de pensamento não representativo, outra questão surge: O que seria propriamente o Afeto? O que é esse pensamento não representativo? Diante de tais perguntas e, com as explicações anteriores sobre Ideia e Afeto, podemos suscitar algumas reflexões, mesmo que de modo inicial, desorganizado. Zourabichvilli (2016) ajuda-nos a organizar esse pensamento. O autor, referência de estudos de filosofia contemporânea, sustenta que o Afeto é um campo externo, de exterioridade, um campo de diferença absoluta. Assimilando, assim, o Afeto com as paixões que sentimos através do corpo, num encontro heterogêneo com outro corpo. O resultado dessa interseção é justamente o que nos interessa, quer dizer, “a questão é saber qual é a condição pela qual o sujeito pensante entra em conexão com um elemento desconhecido [...]” (Zourabichvilli, 2016, p. 63). Como é que o pensamento e o corpo concebem um encontro, ora com outros corpos, ora com outros objetos e no paralelismo entre esses termos? Embora saibamos que essa 32 relação se dá inicialmente pela Ideia e pelo Afeto, vale ressaltar também que o corpo ao forçar o pensamento por meio de cada encontro, tem um efeito de deslocar as posições subjetivas dos indivíduos. Zourabichvilli (2016, p. 63) escreve “[...] não que o sujeito passeie sua identidade por entre as coisas, mas a individuação de um novo objeto é inseparável de uma nova individuação do sujeito”. Ora, não seria justamente essa a concepção de Deleuze para o afeto? Um campo de forças que está em variação, em jogo o tempo todo através e por meio do corpo? E por isso mesmo são confusos, múltiplos, intensos e transformadores. Em nossa vida prática, podemos analisar, ao menos, duas coisas que correm, por exemplo: por um lado, uma sucessão de ideias no pensamento a partir de um encontro; no entanto, por outro lado, percebe-se que algo em nós não cessa de variar, ou seja, “há um regime da variação que não é a mesma coisa que a sucessão das ideias em si-mesmas.” (Deleuze, 2009, p. 39). Basta destacarmos um exemplo prático e simples sobre esta variação para entendermos melhor: Eu cruzo na rua com Pedro que me é muito antipático, e depois que eu o ultrapasso, digo “bom dia Pedro”, se bem que eu tenho medo; e depois eu vejo de repente, Paulo, que me é muito encantador, e eu digo “bom dia Paulo”, tranquilizado, contente. Bem. O que está acontecendo? Por um lado, sucessão de duas ideias, a ideia de Pedro e a ideia de Paulo; mas há outra coisa: operou em mim, também, uma variação – aqui, as palavras de Spinoza são muito precisas; eu as cito: (variação) de minha força de existir, ou outra palavra que ele emprega como sinônimo: vis existendi, a força de existir ou potentia agendi, a potência de agir; e estas variações são perpétuas. (Deleuze, 2009, p. 39). O que nos acontece na vida prática é que um corpo externo pode convir com a nossa relação característica ou, ao contrário, tal relação do corpo encontrado não nos convém. Isto é, ter um bom encontro ocorre quando a minha própria potência de agir é favorecida, portanto, o meu afeto é alegre. Mas quando, em um mau encontro, depois de ter visto alguém que me torna alegre, digo que a potência de agir é impedida. Desse modo, “há uma variação contínua sob a forma aumento-diminuição-aumento- diminuição da potência de agir ou da força de existir de acordo com as ideias que se tem.” (Deleuze, 2009, p. 40). Vale ressaltar, porém, que o afeto não é somente e apenas uma sucessão de ideias, transição de pensamentos, ou uma comparação inteligível entre ideias, mas sim, uma variação na existência a partir da transição vivida das coisas que nos afeta, passando de um grau de “perfeição” a outro, ou seja, variando de um polo da paixão ao outro. Por isso, o Afeto tem a capacidade de gerar variações contínuas na potência de 33 existir, ao mesmo tempo em que produz ideias que podem vitalizar ou despotencializar a nossa existência, os modos de existir. 34 2.3 Ter Ideias Inadequadas ou Ideias Adequadas? Voltemos ao entendimento sobre o modo inadequado de conhecer, e perguntamos uma vez mais: o que são as Ideias Inadequadas? Deleuze as explica como um modo de conhecimento pelo qual se conhece as coisas da vida unicamente pelos efeitos de modo separado de suas causas e, por consequência, “experimenta” e “avalia” a vida apenas e a partir de ideias fundamentalmente confusas e mutiladas. Efeito distinto de suas causas. Na percepção do autor francês, uma ideia inadequada, ou o inadequado, é considerada inexpressiva. Nesse sentido, pela consciência, com essas ideias inexpressivas, obtêm-se o que Deleuze anuncia como: ideias da imaginação ou imagens dogmáticas. Com efeito, são imagens do corpo exterior que agem, tanto em nossa matéria física humana quanto em nosso pensamento, ocasionando as variações, nos modos de existir, embora, como vimos, seja uma forma de conhecer. Um modo de pensamento é, de tal maneira, que não nos levaria a compreensão dos nossos próprios afetos, das nossas ideias da essência, que poderiam aumentar a potência de vida, de existir. Assim, essas Ideias inadequadas apenas “indicam um estado do nosso corpo, mas não explicam a natureza ou a essência do corpo exterior.” (Deleuze, 2017, p. 162). Portanto, fazem-se conhecer por identificação de corpos exteriores, imagens dadas, dogmáticas, imaginadas. Ideias que não envolvem tanto a individualidade quanto a diferença de cada indivíduo. Considerando todas essas afirmações, é indiscutível a dificuldade de compreensão sobre a temática. Questionamo-nos, por exemplo, como nós, seres conscientes, conseguimos acalmar a angústia em não saber e não conhecer a nossa potência? Ou então: enquanto animais conscientes de si mesmos, como podemos afirmar que não nos conhecemos, a saber não conhecemos os nossos afetos? E a nossa racionalidade? Ou ainda, se estamos em constante encontro com o outro, só podemos conhecer o mundo, os afetos e a nós mesmos através de ideias inadequadas? Deleuze escreve uma resposta complexa a tais perguntas; resposta que acompanha um retorno à consciência e ao seu funcionamento, descrevendo-a por meio de três ilusões primordiais, a saber: (a) ilusão das causas finais, (b) ilusão dos decretos livres e (c) ilusão teológica. A primeira ilusão da consciência se define da seguinte maneira, diz Deleuze (2002): (a) através de um encontro se compreende uma reunião de efeitos de um corpo exterior 35 sobre a nossa própria relação. Por sua vez, a consciência supre a ignorância ocasionando uma inversão das coisas: o efeito pela causa. Essa instância baixa de conhecimento toma a ideia de que se tem do efeito como a causa final de suas ações. (b) Em decorrência da primeira ilusão, a consciência “tomar-se-á a si própria por causa primeira e invocará o seu poder sobre o corpo.” (Deleuze, 2002, p. 26), julgando-se, assim, dona de si mesma a fim de controlar as paixões advindas do corpo. (c) A terceira ilusão que é estabelecida na consciência porque não dá conta de se imaginar como causa primeira, organizadora dos acontecimentos, força o indivíduo a invocar “[...] um Deus dotado de entendimento e de vontade, operando por causas finais ou decretos livres, para preparar ao homem um mundo na medida de sua glória e dos seus castigos.” (Deleuze, 2002, p. 26). A consciência sob essa polêmica 13 apresentada anteriormente, isto é, a tríade ilusória (Ilusão da finalidade, Ilusão da liberdade e Ilusão teológica) é enunciada por Deleuze como um sonho que se sonha de olhos abertos. Vejamos o exemplo prático que o filósofo apresenta: É assim que uma criancinha julga apetecer livremente o leite; um rapaz irritado, a vingança; e o medroso, a fuga. Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da alma que conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferia ter calado. (DELEUZE, 2002, p. 26). Apesar de serem definições concisas são, significativamente, profícuas sobre esse movimento ilusório da consciência. Desse modo, há uma compreensão que as “ações” dos indivíduos nesse nível de conhecimento são mais próximas de “reações”, à maneira postulada pela filosofia nietzschiana, isto é, à medida de uma potência reativa e, desse modo, reagem por meio das ideias que se têm com o fora, a saber, com o exterior, embora sem ausentarem de revelar e implicar em ideias intrínsecas. São essas potências reativas e não propriamente potências ativas, pela qual as “ações” da nossa potência de agir ou as compreensões da nossa maneira de existir possam exprimir a diferença e a individualidade. De outro modo, são existências que exprimem uma vida repleta de acasos de modo a padecer em todo e qualquer encontro. Dizemos isso sem moralismo, pois o que se quer provocar é justamente uma reflexão acerca da perda de sensibilidade afetiva sobre a própria individuação, bem como sobre a 13 Segundo Deleuze, Espinosa, em sua Ética foi o primeiro filósofo a se ver com a teoria do primeiro homem perfeito, ou a conhecida tese teológica “Teoria adâmica”. Então, ao afirmar a deflação da consciência, consequentemente, diz Deleuze: “não podemos nem sequer pensar que as criancinhas são felizes, nem o primeiro homem seja perfeito: ignorantes das causas e da natureza, reduzidos à consciência do acontecimento, condenados a sofrer efeitos cuja lei lhes escapa eles são escravos de qualquer coisa, angustiados e infelizes, na medida de sua imperfeição.” (Deleuze, 2002, p. 26) 36 perda da sensibilidade no encontro com o outro. Trata-se, então, de um problema ético afetivo, portanto, não é mais sobre um problema de uma moral. Outrossim, é possível retirar da consciência o seu poder, “e de mostrar, efetivamente, que existem outras maneiras de viver, e que estes novos modos de existir partem de uma necessidade comum: estar atento à experiência.” (Zeppini, 2010. p, 71). Nesse sentido, admite-se a necessidade em compreender uma causa própria da consciência. Ora, se faz necessário que a consciência tenha em si uma causa própria, pois como se pode então conhecer para além dessa instância “transitiva”!?. Insisto: além desse primeiro nível de conhecimento? Como formar então Ideias Adequadas?, Ou se está condenado a viver com as ideias inadequadas sendo nós esses seres conscientes? Nesse ponto, Deleuze nos interpela com a definição de Desejo em Espinosa. Primeiramente, existe o desejo como um apetite com consciência de si mesmo. Embora seja uma definição nominal, todavia ele nos demonstra “ao mesmo tempo a “causa” pela qual a consciência é como que cavada no processo do apetite”. (Deleuze, 2002, p. 27). Por conseguinte, afirma-se que: “não tendemos para uma coisa porque a julgamos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela.” (Deleuze, 2002, p. 27). Com efeito, o desejo deve ser compreendido como causa de si próprio, como o apetite de um “esforço pelo qual cada coisa encoraja-se a perseverar no seu ser, cada corpo na extensão, cada alma ou cada ideia no pensamento (conatus).” (Deleuze, 2002, p. 27). Dito ainda de outra forma, o desejo é entendido como uma ponte entre a individualidade e o objeto. Nesse ínterim, o filósofo francês explica que “porque este esforço nos motiva a agir diferentemente segundo os objetos encontrados, devemos dizer que ele está, a cada instante, determinado pelas afecções que nos vêm dos objetos.” (Deleuze, 2002, p. 27). Sendo assim, podemos concluir que uma Ideia Inadequada é, portanto, “uma ideia que envolve a privação do conhecimento de sua própria causa, tanto formalmente quanto materialmente” e é, nesse sentido “que ela permanece inexpressiva: truncada, como se fosse uma consequência sem suas premissas.” (Deleuze, 2017, p. 163). Nesse ponto de vista, pode-se dizer que não há de se confiar apenas no conhecimento construído ou retido na consciência, pois o seu lugar, como vimos, é justamente o lugar de uma tripla ilusão, em que se tem um conhecimento confuso por ser justamente um nível de conhecimento mais baixo. A partir da necessidade de valorizar o “inesperado” da vida, a filosofia prática de Deleuze constantemente tem como ponto de partida o encontro, a saber, a interseção de uma individualidade com outra, visto que é só com e através do heterogêneo 37 que podemos formar as nossas próprias ideias expressivas. Assim, toma-se que é diferente da configuração do pensamento. Apesar de ambos se relacionarem, eles são de naturezas diferentes: a consciência incorre em poder, em obediência, em leis transcendentes, enquanto nessa chave de leitura, o pensamento decorre da experimentação, da intensidade da vida. Portanto, é com Deleuze que se compreende os modos de pensamentos ao passo que os modos de vida, cujos afetos atravessados em encontros corpóreos e também de conhecimentos são correlatos de como se vive. Em consonância a tais afirmações, Deleuze em seu diálogo com Nietzsche, afirma que: A grande atividade principal é inconsciente; a consciência só aparece habitualmente quando o todo se quer subordinar a um todo superior; ela é antes de tudo a consciência desse todo superior, da realidade exterior ao eu; a consciência nasce em relação ao ser do qual poderíamos ser função, é o meio de nos incorporarmos nele. (DELEUZE, 2002, p. 27-28). Todavia, Deleuze propõe um gênero de conhecimento mais baixo no pensamento, onde se encontra justamente a consciência e, por conseguinte, existem apenas ideias inadequadas. Isto é, trata-se de mostrar um caminho que é contrário à compreensão da consciência como uma instância do pensamento sob o empoderamento dela enquanto um juízo a priori que, sobretudo, representa uma “verdade”. A ideia inadequada tem um conteúdo apenas representativo, trata-se apenas de aparência, é uma ideia-afecção, enquanto as ideias adequadas têm um conteúdo expressivo, mais profundo, ou seja, decorrentes de um esforço do pensamento. Ora, além do corpo ganhar uma significação distinta do pensamento clássico, essa ética sugere que ele possa ser compreendido também como um elemento que força o pensamento a pensar e, como consequência, deflacionando o valor dado à consciência. E, o corpo exercendo, significativamente, a função de levar a formar noções comuns de nós mesmos com o outro, bem como a possibilidade de conhecer ideias da própria potência. Trata-se de compreendê-lo no processo formativo individual, ou seja, para pensar é necessário romper com a própria passividade da consciência, com seu status de “Verdade” a priori; e, portanto, incluir ao pensamento também o que se passa no corpo. De acordo com Deleuze, a consciência implica numa moral, pois basta não saber das coisas e ignorar suas causas que passamos a moralizar as ações. Afinal, segundo um intérprete deleuziano, a consciência é uma instância a qual serve para informar as variações de potência e “para nos fazer perceber o momento presente e agir, ou ainda, para nos dar indicações dos elementos que estão em jogo em cada encontro.” (Zeppini, 2010, p. 53). 38 Ressalta-se assim que, Deleuze em sua leitura de Espinosa, ensina a nós o importante papel da consciência em nossas experiências vividas, no entanto, sublinham que “ela não é senhora de tudo que se passa, ou seja, ela é limitada e não pode, ou melhor, não é capaz, sozinha, de nos levar a sentir e a pensar as intensidades que também compõem nossas vidas.”, isto é, “a consciência caminha ao lado da moral e da criação de valores que supõem um mundo a parte, de um além-vida regido por valores superiores capazes de definir verdadeiramente o Bem e o Mal.” (Zeppini, 2010, p. 71). 39 2.4 Por uma Ética alegre A denúncia feita ao que se pode chamar de tríade ilusória denota a desvalorização da consciência a favor dos afetos e de um modo de existir fundamentado em certo pensamento profundo, expressivo e inconsciente. Esse é um dos aspectos dos quais a filosofia de Deleuze se utiliza para criticar a moral. Tal crítica ocorre por intermédio de sua aproximação de, principalmente, Espinosa, mas também com Nietzsche. Pode-se dizer também, como estabelecemos até aqui, que tal denúncia é invocada com a inclusão da noção de corpo no pensamento, ou seja, o corpo implicado no modo de pensar. O corpo- pensante agitando um modo de alegrar-se ou entristecer-se e de compreensão da variação da nossa capacidade de agir. E, quanto ao corpo propriamente dito, é sabido que desde a antiguidade clássica, ele foi classificado a partir da reunião de aspectos da materialidade, ou seja, do sensível. Trata- se de vê-lo também pelo modo que o pensamento ocidental clássico o caracterizou sob um aspecto “desligado” da formação moral e ética. E, quando não desligado, essa concepção relacionava-o a uma hierarquia de atributos, um sobre outro e, portanto, o corpo devia ser controlado pela mente. Além disso, ao longo da história do pensamento ocidental, ambas as noções, ética e moral, foram definidas de maneira sinônimas. Quer dizer, no que diz respeito aos “problemas da ação” a filosofia compreendeu a ética como um estudo de valores morais que, de algum modo, disciplinaria o indivíduo: a consciência de si. Nesse sentido, ao indivíduo em sua “individuação”, couberam os valores transcendentes formulados pelo espírito ou pela consciência. Por sua vez, a consciência, ao passo que foi definida de maneira “racional” se instaurou como proposição máxima ao ser humano e, assim, instituiu- se a possibilidade da mente controlar os sentimentos, as paixões e os nossos desejos. Dessa forma, vemos que a consciência se fixou sob leis e deveres, perdendo a sua maleabilidade de variação e a possibilidade de uma construção ética, pois se instaurou, a partir da moral, a rigidez da consciência e em reflexo a fixação de identidades na sociedade ocidental. O corpo, por sua vez, relegado como um receptáculo de um espírito imortal foi impedido de seu fluxo natural na natureza, a saber, o desenvolvimento de qualquer subjetividade que se proporia estar em fluxo, ou, como diz Deleuze, nômade, foi acorrentando os indivíduos, sobretudo, às leis morais. A Filosofia Prática em Deleuze, compreende e talvez seja o seu aspecto mais significativo para esta dissertação, visto que, na sociedade atual, principalmente a brasileira, 40 se discursa em prol tanto da Moral quanto da Ética. Da maneira como argumentamos aqui, ambas as noções possuem naturezas distintas e são, fundamentalmente, diferentes, e, portanto, não são sinônimas, bem como não se dizem de uma mesma coisa. Em vista disso, “se Ética e a Moral se contentassem em interpretar diferentemente os mesmos preceitos, sua distinção seria apenas teórica. Mas não é nada disso.” (Deleuze, 2002, p. 31). Ou seja, “segundo ele [Deleuze], a visão ética do mundo advém da não hierarquização, ou igualdade, dos atributos e a visão moral do mundo se apoia na eminência de um atributo sobre o outro.” (Toledo, 2018). Na mesma direção, de acordo com Diaz (2017) a respeito da ideia de uma ética da experimentação em Gilles Deleuze, é salientado que não existe uma consciência moral como se pressupõe tradicionalmente, pois o indivíduo se constitui com os encontros a todo instante, visto que não há um Eu dado, fixado ou pronto e indissolúvel. Então, diz-se que a ética deleuziana compreende a formação do indivíduo através de uma produção de si mesmo, isto é: Produzir a si mesmo implica a ideia de que as experimentações ocorrem a partir dos encontros. Qualquer encontro com coisas, objetos ou pessoas, trata-se de encontro com algum tipo de signo. Os signos afetam de algum modo o sujeito do encontro e somente pela repetição das experiências, nos encontros, é que se pode avaliar se o que se passou colabora para a potência de vida ou não. Os encontros estão fadados ao acaso, porém é possível pensar sobre quais modos de produção de subjetivação podem ser organizados e afirmados. (DIAZ, 2017, p. 45). Por outro lado, tem-se a moral com a qual se trata de entender a subjetividade e os nossos desejos enquanto um perigo que sobretudo devem ser controlados, e, desse modo, formulam-se leis para dominar e docilizar os sentimentos e as paixões. Deleuze escreve ser através da moral que se busca fixar o indivíduo a imagens pré-estabelecidas, imagens dogmáticas e com subjetividades predicadas. Signos que se explicam por si, antes mesmo do encontro. Dessa maneira, resta às identidades e aos pensamentos serem replicados por todos os indivíduos na sociedade. No entanto, a sua filosofia prática entende ser por meio da produção da subjetividade que o corpo se faz presente e primeiro. Isto é, o corpo não é compreendido apenas como “um complexo orgânico”, mas, por outro lado, como ”uma unidade viva que se entende e se vivencia como subjetividade e é vivenciada, de forma relacional, por outros como subjetividade.” (Ludwig, 2013, p. 19). Ou melhor, essa filosofia apresenta a nós a possibilidade em compreender os nossos próprios desejos como imanentes, assim como, a maneira pela qual se escolhe uma coisa e não outra, quer dizer, de experimentar sabendo o 41 que se escolhe. Para tanto, a fim de realizar essa escolha, o único preceito possível para escolher um modo de vida e não outro é pelo corpo, na imanência. Ora, é apenas e só a partir da vida, bem como das experimentações que se faz possível avaliar e dizer o que é melhor para compor um modo de existência, separando-se de uma atmosfera niilista. Vimos que Deleuze ao afirmar sobre a ética substituir a moral, sugere diferenças significativas de entendimento entre ambas as noções, a ponto de determinar um “corte” radical entre elas. Nesse sentido, não propor um esforço de pensamento imanente sobre os encontros, necessariamente, faz a vida invocar uma transcendência moral, a ponto de vivermos apenas encontros quaisquer, sempre à mercê do acaso, de variações perigosas e perdendo o acontecimento, o por vir. A Ética de Deleuze é, portanto, construída a partir do corpo e pelos afetos com a experiência, num esforço “racional” em organizar os encontros, avaliando o campo de imanência, bem como fazendo nascerem novos modos de existir e buscando uma atitude que amplie os desejos, na medida em que sublinhe a liberdade do indivíduo. Por sua vez, a moral é oposta à ética e surge na ausência do conhecimento, dependente, sobretudo, de um espaço transcendente que estabelece leis, obrigações e generalizações dos corpos. Diz-se assim, portanto, que “Deleuze propõe colocar a ética como condição prática de uma ontologia”, e, por isso, “conquistar a ação e a liberdade para conhecer o ser - o conhecimento do ser não sendo posto como finalidade, mas como consequência necessária do salto ético”. (Toledo, 2018). Saindo assim, de um modo de vida espiritualista, moralista ou mesmo “mentalista” para atravessarmos uma vida de experimentações, intensidades, forças corporais e produção de conhecimento. 42 3. MICROPOLÍTICA: Corpo sem Órgãos e a produção de si na Educação 3.1 O Corpo sem Órgãos A fim de cartografar certa micropolítica: linhas de afetos cartografáveis, mas não subjetivados (Rolnik, 1989), que são demarcadoras dos processos dos devires, iniciamos a compreensão do Corpo sem Órgão – ou somente CsO 14 . Esse é um tema complexo, retratado na arte, refletido na filosofia, bem como nas diversas outras áreas do saber. Estamos falando de determinada reflexão que, por sua vez, está intrincada na ideia do desejo ser um fluxo intenso, e, especialmente, não ser perspectivado como falta 15 . Isso é importante ressaltar. Desse modo, a sua compreensão é um exercício difícil, pois busca a compreensão de certo processo subjetivo plenamente dinâmico e, ao mesmo tempo, sem fim e, ainda, sobretudo, fora da consciência, como vimos no capítulo anterior. Essa dificuldade também é atestada ao enxergar o seu processo não apenas como um fenômeno isolado, mas como algo que a dinâmica do desejo humano o constitui. Quer dizer, o corpo e o desejo constituídos por todos os outros corpos de viventes, todos os ambientes e também todas as relações sociais existentes nos diferentes modos de vida. O que implica também em caminhar com maior profundidade nesse tipo de reflexão e compreender certa transcendência desse processo que está para além do âmbito individual do inconsciente, possuindo um âmbito coletivo, por assim dizer. Nesse sentido, são produções de desejos feitos à demanda pelas máquinas desejantes que, por sua vez, operam em diversos níveis, constituindo toda a nossa dimensão social e histórica. Podemos dizer que, é justamente nesse seu dinamismo em que as linhas de fuga são criadas. Constatamos assim que para darmos conta desse movimento dinâmico e complexo, faz-se necessário acionar diversos conceitos tal como apresentado nas linhas a seguir. Segundo Deleuze e Guattari (2010), o CsO opera por meio de uma prática, ficando para além de um simples conceito; se quisermos compreendê-lo, primeiro devemos perguntar como esse processo se manifesta na prática. Pode-se indagar também, como é possível compreender a relação entre o desejo e a sociedade por meio dessa prática? Essa 14 Abreviação atribuída pelos autores para a ideia de Corpo sem Órgãos que utilizaremos daqui para a frente. 15 Fazemos referência ao modo que o desejo é compreendido no âmbito da Psicanálise inicial, referindo-se aos primeiros escritos dessa teoria com, por exemplo, os escritos freudianos da primeira tópica. 43 pergunta encontra início na denúncia feita por Antonin Artaud 16 e deságua na filosofia ética desenvolvida por eles. Desse modo, refletir sobre o CsO é adentrar num embate com diversos combatentes que buscam destituir a moral convencional e acabar com a hierarquização do organismo, bem como a organização dos desejos, principalmente quando a reflexão versa sobre a educação moral vigente. Ou seja, são práticas da vida e da dimensão coletiva dessa que as instituições exercem certo tipo de força, a fim de moldá-las. Acreditamos que, ao refletir sobre essas conexões individuais e da vida coletiva, aciona-se certa capacidade transformadora, bem como uma produção incessante de novas possibilidades e de novas configurações de vida. 3.1.1 A influência de Artaud Antonin Artaud viveu na primeira metade do século XX (1896-1940). Foi ator, diretor de teatro, escritor, poeta, ator de cinema (Shishido, 2015) e levou uma vida marcada por intensas experiências numa busca implacável por expressões de vida inovadoras. Ele emerge como uma figura crucial nesta reflexão. Isso porque, ao proferir um discurso notável 17 , em 1947, intitulado “Pour en finir avec le jugement de dieu 18 ”, o dramaturgo ecoa vozes de denúncias contundentes ao demonstrar a sua visão radical do mundo, desafiando as estruturas estabelecidas e expondo a busca por um corpo fora do registro consciente ao se inserir no processo da criação do CsO 19 . Vejamos uma passagem de sua transmissão bastante intrigante e complexa: O que é grave é sabermos que atrás da ordem deste mundo existe uma outra. Que outra? Não o sabemos. O número e a ordem de suposições possíveis neste campo é precisamente o infinito! E o que é o infinito? Não o sabemos com certeza. É uma palavra que usamos para designar a abertura da nossa consciência diante da possibilidade desmedida, inesgotável e desmedida. E o que é a consciência? Não o sabemos com certeza. É o nada. Um nada que usamos para designar quando não 16 Antonin Artaud, assim foi conhecido, era um poeta, dramaturgo e ator ligado ao surrealismo, cujas obras em diferentes áreas do saber faziam denúncia principalmente à moralidade e as organizações sociais e corporais impostas na sociedade. É conhecido também como um provocador e inovador para o teatro ao propor uma linguagem corporal em substituição ao “textocentrismo” teatral. É sobre as reflexões desses trabalhos com o corpo que se funda a ideia de um corpo sem órgãos. 17 Mas, não foi transmitido por conta do seu conteúdo. 18 Tradução: Para acabar com o julgamento de Deus.