unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LUÍS GUILHERME COMAR FREZA G.K. Chesterton e o (re)encantamento do mundo ARARAQUARA – S.P. 2024 LUÍS GUILHERME COMAR FREZA G.K. Chesterton e o (re)encantamento do mundo Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr), como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Críticas da Narrativa Orientador: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi ARARAQUARA – S.P. 2024 F896m Freza, Luís Guilherme Comar Moor Eeffoc : G.K. Chesterton e o (re)encantamento do mundo / Luís Guilherme Comar Freza. -- , 2024 118 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, Orientador: Aparecido Donizete Rossi 1. Literatura inglesa. 2. G.K. Chesterton. 3. Reencantamento. 4. Romance. 5. Fantástico. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. LUÍS GUILHERME COMAR FREZA G.K. Chesterton e o (re)encantamento do mundo Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr), como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Críticas da Narrativa Orientador: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi Data da defesa: 24/06/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi (UNESP - FCL-CAr) Membro Titular: Profª. Dra. Fernanda Aquino Sylvestre (UFU) Membro Titular: Profª. Dra. Karin Volobuef (UNESP - FCL-CAr ) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara O autor gostaria de se juntar a Neil Gaiman e Terry Pratchett, que por sua vez se juntaram ao demônio Crowley, ao dedicar este trabalho à memória de G.K. Chesterton Um homem que sabia o que estava acontecendo. AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, a Deus e à Virgem Santíssima, pela enorme quantidade de bênçãos que são derramadas sobre mim todos os dias. O sentido de fazer este trabalho é, de alguma maneira, uma ação de graças. Agradeço a meus pais, que sempre me proporcionaram todo o conforto e segurança e sempre estiveram comigo, mesmo não entendendo bem por que eu fico trancado no quarto tantas horas lendo e escrevendo e por que compro tantos livros. Agradeço à minha tia Ivani, minha segunda mãe, que tanto se preocupa comigo e quer me ver feliz. Agradeço, com muito carinho, também aos meus avós, por esse mesmo zelo e preocupação. Agradeço, in memoriam, ao Sr. Wilson Moreira, falecido dono do primeiro sebo que frequentei, sem quem eu talvez não estivesse fazendo hoje uma pesquisa em literatura. Agradeço a meus amigos do Ramalhete, em especial ao Pedro Gorla e ao Pedro Tamburus, que me apresentaram Chesterton antes que eu lesse qualquer coisa dele. Agradeço às professoras Karin Volobuef, Renata Philippov e Fernanda Sylvestre pelo carinho e atenção que dedicaram ao meu trabalho nas bancas de qualificação e defesa. Sua leitura cuidadosa e suas reflexões pertinentes foram muito importantes para que este trabalho chegasse até aqui. Agradeço, de maneira especial, ao meu orientador, professor Cido Rossi, por toda essa jornada que ultrapassou em muito uma simples orientação. Sem a confiança, a paciência, a caridade, a disposição e a inteligência dele, esta dissertação não teria sido possível. Agradeço, enfim, in memoriam, a Gilbert Chesterton. Mais que um autor de interesse; mais que um objeto de pesquisa; mais que alguém para se passar momentos únicos; Gilbert é um guia espiritual para mim. Agradeço, com a feliz esperança de que nos encontraremos um dia naquela imensa taverna no fim do mundo e beberemos vinho com todos os personagens de Dickens (e também de Gilbert). E espero confiante, assim como o Major Brown de O Clube dos Negócios Estranhos, que ali todo o mistério será, enfim, revelado. “I like to read myself to sleep in Bed, A thing that every honest man has done At one time or another, it is said, But not as something in the usual run; Now I from ten years old to forty one Have never missed a night: and what I need To buck me up is Gilbert Chesterton, (The only man I regularly read). The Illustrated London News is wed To letter press as stodgy as a bun, The Daily News might just as well be dead, The ‘Idler’ has a tawdry kind of fun, The ‘Speaker’ is a sort of Sally Lunn, The ‘World’ is like a small unpleasant weed; I take them all because of Chesterton, (The only man I regularly read). The memories of the Duke of Beach Head, The memories of Lord Hildebrand (his son) Are things I could have written on my head, So are the memories of the Comte de Mun, And as for novels written by the ton, I’d burn the bloody lot! I know the Breed! And get me back to with Chesterton (The only man I regularly read). ENVOI Prince, have you read a book called “Thoughts upon The Ethos of the Athanasian Creed”? No matter—it is not by Chesterton (The only man I regularly read).” Hilaire Belloc “Possam a religião e a filosofia voltar um dia, compelidas pelo grito de um desesperado!” Charles Baudelaire, “L'école païenne” “É a peça deles agora. Você se lembra de me dizer que eu devia convocar um hipogrifo ou algum monstro da terra dos milagres? Os mais monstruosos de todos os monstros estão marchando pelo seu palco, sacudindo a terra como dragões e quimeras; as mais imponentes, as mais terríveis criaturas que a vida já lançou sobre o caos. Afaste-se – fique longe de seu caminho. Eles são homens vivos.” G.K. Chesterton, The Surprise, Ato II, Cena I RESUMO A presente dissertação tem o intuito de investigar como G.K. Chesterton empreende, em sua obra ficcional, a busca por um encantamento, ou reencantamento do mundo. Nós investigamos a hipótese de que é por meio dos mecanismos da narrativa de investigação que isso se dá, unindo-se às características composicionais clássicas da ficção investigativa elementos derivados do universo feérico da ficção de fantasia para imbuir o locus urbano de uma retratação mística e mítica. No processo de contaminação da estrutura tradicional da narrativa investigativa e de seus elementos consagrados por elementos e desenvolvimentos derivados do universo feérico da ficção de fantasia, não só o locus urbano em Chesterton adquire uma retratação mística e mítica que desafia a tensão tradicional entre símbolo e literalidade na compreensão desse espaço, quanto os protagonistas chestertonianos, geralmente portadores de uma filosofia transcendente em relação ao racionalismo típico de tal processo, colocam-se diante de uma possibilidade de aventura que vai muito além da simples resolução do mistério. A partir de uma reflexão que considere esses dois modos de produção literária, amparados por instrumental de análise que parte primordialmente da reflexão textual, empreenderemos nossa própria trajetória investigativa pela literatura de Chesterton, ainda tão carente de estudos acadêmicos no âmbito dos estudos literários. Palavras–chave: Literatura inglesa; G.K. Chesterton; Encantamento; Romances; O Fantástico; Investigação. ABSTRACT This thesis aims to investigate how G.K. Chesterton undertakes, in his fictional work, the search for an enchantment, or re-enchantment of the world. We investigate the hypothesis that it is through the mechanisms of the investigative narrative that this occurs, joining the classic compositional characteristics of investigative fiction with elements derived from the fey universe of fantasy fiction to imbue the urban locus with a mystical and mythical portrayal. In the process of contamination of the traditional structure of the investigative narrative and its hallowed elements by elements and developments derived from the fey universe of fantasy fiction, not only does the urban locus in Chesterton acquire a mystical and mythical portrayal that challenges the traditional tension between symbol and literality in understanding this space, as well as the Chestertonian protagonists, generally carrying a transcendent philosophy in relation to the rationalism typical of such a process, they are faced with a possibility of adventure that goes far beyond the simple resolution of the mystery. From a reflection that considers these two modes of literary production, supported by analytical tools that start primarily from textual reflection, we will undertake our own investigative trajectory through Chesterton's literature, still so lacking in academic studies in the scope of literary studies. Keywords: English literature; G.K. Chesterton; Enchantment; Romances; The Fantastic; Investigation. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 11 2. A VOLTA DE D. QUIXOTE: UM ROMANCEIRO NA INGLATERRA MODERNA 18 3. QUIXOTE E SANCHO: ROMANTISMO E PERFORMANCE EM UM CLUBE DE NEGÓCIOS ESTRANHOS 36 4. UM ROMANTISMO PRÁTICO: O PROJETO ESTÉTICO CHESTERTONIANO ENTRE ROMANTISMO E MODERNISMO 63 5. O ROMANCE DA ORTODOXIA, OU: O REENCANTAMENTO DO MUNDO 97 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 107 110 117 11 1 INTRODUÇÃO Ao fim de uma tarde de outono, um convalescente está sentado em um café sem nome identificável (uma “coffee room”, como chamam na Inglaterra) de Londres. A quem está nesse período da convalescência, segundo ele explica, “os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias” (Poe, 2008, p. 258). Tudo excita seus sentidos. Tudo parece então pronto para uma verdadeira investigação da cidade, em que cada elemento despertaria um interesse genuíno. O flâneur é aquele que tem um interesse genuíno nesse mundo que sorve. Mas tudo que o homem então observa é trivial. O único que, enfim, chama sua atenção, é “um velho decrépito” (Poe, 20008, p. 262) de aparência horrenda e com um segredo tão triste quanto inacessível. Mais ou menos por volta da mesma época, o ainda jovem Charles Dickens, segundo registra seu biógrafo Forster (2011), entra também em uma “coffee room” em St. Martin’s Lane e senta-se perto de uma janela de vidro ovalado. Ele olha para o letreiro do café e, pelo reflexo no vidro, vê escrito ao contrário: “moor eeffoc”. Esse episódio nunca sairia da mente de Dickens e, sempre que estivesse em qualquer outro café, lembrar-se-ia dele. Afinal, como G.K. Chesterton consagrou em sua biografia do autor vitoriano, essa palavra inexistente no dicionário, que parece saída de um poema nonsense de Edward Lear, “é o lema de todo realismo verdadeiro; é uma obra-prima do bom princípio realista: o princípio de que a coisa mais fantástica de todas costuma ser o fato exato” (Chesterton, 2023, p. 44). O que Dickens vê pela vidraça do café é bem diferente do que o flâneur de Poe vê. É a coisa mais trivial que poderia haver para ser vista da janela de um estabelecimento assim: apenas seu próprio letreiro. Mas a maneira como Dickens olha, a posição, o ângulo em que se coloca para olhar, fazem toda a diferença. O que o flâneur de Poe vê apenas reproduz um mundo cujo progresso da modernidade que ele observa e do racionalismo que encarna, conforme notamos em sua fala, geraram pessoas desencantadas. “Desencantado” pode ser o mesmo que desinteressado. Pode dizer respeito à falta de sentido (encontrar sentido, fazer a ligação do significante com o significado no que apreendemos no mundo), ou a um repúdio pelo que os tempos mais simples da Idade Média anterior às eras da razão e, antes mesmo dela, as sociedades pagãs, tinham como a “magia exterior” do mundo: nos movimentos da natureza, das primeiras cidades, das pessoas, dos animais, dos objetos no geral. É assim que Max Weber, tomando esse conceito emprestado de Schiller, pensou o que é tanto causa quanto efeito de dois 12 processos intrínsecos à modernidade e que avançam junto a esse desencantamento: materialismo e racionalismo (Pierucci, 2013). Quem poderia explicar qual é a diferença na maneira como Dickens olha? Quem poderia oferecer a esse homem moderno desencantado uma espécie de receituário para abandonar seu estado de letargia, desânimo – ou mesmo dessa convalescência que não está aberta a encantar- se com o simples antes de procurar no mais escuso? Tolkien (2010) ofereceu-nos a pista de Chesterton e dessa investigação a que aqui vamos nos propor na obra chestertoniana quando buscou o que poderia atuar, para o leitor moderno, como um braço auxiliar das histórias de fadas em um tipo de literatura mais “realista” (isto é, apenas por não ser de fantasia). É claro que as histórias de fadas não são o único meio de recuperação ou profilaxia contra a perda. A humildade basta. E existe (especialmente para os humildes) Mooreeffoc, ou Fantasia chestertoniana. Mooreeffoc é uma palavra fantástica, mas poderia ser vista escrita em todas as cidades deste país. É a palavra Coffee-room vista do lado de dentro em uma porta de vidro, como foi vista por Dickens num escuro dia londrino, e usada por Chesterton para denotar a estranheza de coisas que se tornaram triviais quando de repente são vistas por um novo ângulo (Tolkien, 2010, p. 73-74). Por conta desse trecho e dessa tamanha especialidade que Tolkien concede não às ideias, mas à própria prática literária de nosso autor Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), uma apresentação de como ele foi um nome importante para autores ligados ao universo do insólito ficcional (incluindo o “primo distante” do romance gótico, o gênero policial) deveria ser dispensada. Mas sabemos que o nome de Chesterton pode soar estranho à maioria dentro do universo acadêmico. Já fizemos, em verdade, uma apresentação de autores dessas searas que o mencionaram como um nome de importância, que se encontra em um capítulo de livro publicado durante o desenvolvimento de nosso mestrado (Freza, 2023a), motivo pelo qual reproduzimos aqui apenas um trecho para mostrar um pouco de como o nome de Chesterton continuou relevante junto aos autores de literatura: Além do reconhecimento de Tolkien, ele recebeu sucessivas homenagens de um famoso autor contemporâneo no gênero de fantasia: Neil Gaiman. Chesterton é referenciado de um modo ou outro em várias obras de Gaiman. A famosa série de quadrinhos Sandman (incluir tradução no rodapé) tem o personagem Fiddler’s Green, claramente inspirado em Chesterton desde a aparência e a constituição física, seu apelido “Gilbert”, até suas características psicológicas que incluem o gosto pelos paradoxos, traço marcante do autor inglês (que, por isso, recebeu a alcunha de “príncipe do paradoxo”). A referência viria a se confirmar em Lugar nenhum (Neverwhere, 1996), seu primeiro romance, que se inicia com uma citação do também primeiro romance de Chesterton, O napoleão de Notting Hill (The Napoleon of Notting Hill, 1904). Em Deuses americanos (American Gods, 2001), outra citação direta do autor, desta vez marcada no corpo do romance, quando o personagem Wednesday cita um verso do poema de Chesterton The Song of the Strange Ascetic para confrontar a concepção de paganismo de Easter (Freza, 2023a) 13 Tolkien, Neil Gaiman, mas também Agatha Christie, Ellery Queen, Jorge Luis Borges… vários autores mantiveram seu nome como referência. E também, em sua época, a popularidade junto ao público, sobretudo pelo Padre Brown, sua principal criação, era sentida. Medeiros e Albuquerque (1979, p. 5) assinala que: Richard Church, crítico britânico, coloca-o ao lado de Hilaire Belloc, como um dos maiores expoentes da literatura inglesa no primeiro quarto deste século. Conseguiu ele uma honra poucas vezes alcançada por escritores britânicos: bastavam as iniciais G.K.C. para que os leitores de toda a Inglaterra o conhecessem, só ocorrendo o mesmo na época com Bernard Shaw (B.S.). Essa memória popular continuou, de uma maneira ou de outra. Nossa motivação é a de que o renascimento do interesse por Chesterton ao redor do mundo é um fato observável. Vários países já contam com uma sociedade própria privada dedicada a ele, inclusive o Brasil1. A primeira apareceu nos Estados Unidos, a American Chesterton Society, e desde então vem inspirando surgimentos de sociedades semelhantes ao redor do mundo: em países como Inglaterra, Portugal, Itália, Alemanha, França, Irlanda, Brasil, Argentina, dentre outros2. O mercado editorial brasileiro e seu crescente interesse pela publicação obras de Chesterton em nosso país constituem outra evidência desse renascimento. Ao longo da última década, uma série de diferentes editoras publicaram reedições ou obras inéditas do autor: Ecclesiae, Principis, Instituto Hugo de São Vítor, Cristo e Livros, dentre outras. Na Inglaterra, em Londres, o autor desta dissertação teve uma experiência pessoal peculiar ao entrar em um alfarrabista de primeiras edições e perguntar por livros de Chesterton. Para sua surpresa, a atendente disse que não mais havia, pois várias pessoas tinham ido ao local atrás de livros do autor naqueles últimos meses. No Brasil, o interesse popular atual não fica muito atrás. Recente ao tempo de escrita destas linhas, em 2024, surgiram artigos em veículos famosos de mídia jornalística acerca do termo que ficou conhecido por “cerca de Chesterton”3: 1 A Sociedade Chesterton Brasil, segundo seu próprio site, “nasceu do interesse de alguns admiradores do escritor inglês G. K. Chesterton [...] em diálogo com outras sociedades espalhadas pelo mundo, principalmente com a American Chesterton Society.” (SOCIEDADE, [201-]). O site pode ser acessado em: https://www.sociedadechestertonbrasil.org/sociedade/. Acesso em: 10 mai. 2024. 2 O mapa completo com todos os países pode ser acessado em: https://www.chesterton.org/local-societies/. Acesso em: 10 mai. 2024. 3 Um artigo da BBC News Brasil de 7 de janeiro de 2024 pode ser acessado em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c902we095v5o. Acesso em: 10 mai. 2024. Um artigo do Portal terra do mesmo dia 7 de janeiro de 2024 pode ser acessado em: https://www.terra.com.br/diversao/arte-e-cultura/a-cerca-de-chesterton-o-principio-que-te-obriga-a-pensar-duas- vezes-antes-de-mudar-algo,84740bf1534f08578fadfcdd92b1b7c9htr1ypu9.html. Acesso em: 10 mai. 2024. Um artigo da Revista Superinteressante de 11 de maio de 2024 pode ser acessado em: https://super.abril.com.br/coluna/oraculo/o-que-e-a-cerca-de-chesterton. Acesso em: 19 mai. 2024. https://www.sociedadechestertonbrasil.org/sociedade/ https://www.chesterton.org/local-societies/ https://www.bbc.com/portuguese/articles/c902we095v5o https://www.terra.com.br/diversao/arte-e-cultura/a-cerca-de-chesterton-o-principio-que-te-obriga-a-pensar-duas-vezes-antes-de-mudar-algo,84740bf1534f08578fadfcdd92b1b7c9htr1ypu9.html https://www.terra.com.br/diversao/arte-e-cultura/a-cerca-de-chesterton-o-principio-que-te-obriga-a-pensar-duas-vezes-antes-de-mudar-algo,84740bf1534f08578fadfcdd92b1b7c9htr1ypu9.html https://super.abril.com.br/coluna/oraculo/o-que-e-a-cerca-de-chesterton 14 um princípio de prudência na vida social e nas decisões da esfera pública alinhado a pressupostos do conservadorismo inglês – embora seja um erro classificar Chesterton como um conservador, como ele mesmo negou o título. Logo, acreditamos e partimos do pressuposto de que um escritor que angariou tanta fama nos meios literário e popular ao longo das décadas, e vem tendo o interesse ao redor de si renovado, é um escritor com qualidades e particularidades textuais e literárias a serem investigadas, que não precisam necessariamente estar restritas ao arco religioso e que são, portanto, de interesse dos estudos literários, dos quais estes não podem mesmo se furtar, dada a recente demanda do público leitor (sobretudo brasileiro) pelo consumo de sua literatura que coloca à academia um desafio e uma necessidade de resposta. A nível mundial, a maioria dos estudos sobre Chesterton concentra-se nas áreas de teologia e religião, com relações secundárias à literatura, à filosofia e a outras áreas. O periódico acadêmico de maior importância nos estudos chestertonianos, o The Chesterton Review, foi fundado em 1974 no G.K. Chesterton Institute for Faith & Culture da Setton Hall University, uma universidade norte-americana privada de confissão católica. Hoje, devido a esse crescente renascimento do interesse por Chesterton ao redor do mundo, a revista conta com edições anuais em outras línguas além do inglês: espanhol, francês, italiano e português, de acordo com o site do Instituto. No Brasil, nosso levantamento mostrou que o pioneiro no estudo de Chesterton no âmbito dos estudos literários foi Lindo (1992), já na tardia década de 1990, com seu trabalho intitulado Retórica e literatura em Chesterton. O objetivo do trabalho (trabalho este ao qual tivemos acesso e incorporamos em nossas referências bibliográficas para nosso próprio), conforme se lê em seu resumo, “é mostrar que uma característica fundamental da literatura de Chesterton reside na busca de fins práticos de natureza retórica, tal como o de persuadir o leitor da justeza da opinião do partido que o autor representa, no caso a igreja católica” (Lindo, 1992). Isso evidencia o tipo de enfoque religioso-teológico em que se concentram, desde o início, as análises acadêmicas da obra de Chesterton. Uma busca no Banco de Teses da CAPES revelou apenas outras duas dissertações de mestrado relevantes em áreas relacionadas à narrativa, que são, curiosamente, sobre o procedimento do detetive. Elas são: O Detetive e o Método, de Mônica Bernardo Schettini, em mestrado em Comunicação e Semiótica obtido pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (Schettini, 2002); e, mais recente, Culpado ou Inocente: O Suspense de Poe, Chesterton e Hitchcock, de Daniel Lukan Shimith Silva, em mestrado em Literatura obtido pela Universidade de Brasília (Silva, 2017). Por serem, no entanto, mais focadas em relações com 15 outros autores em personagens específicos e/ou outras semioses (filme), outras linhas de pesquisa e epistemologias (semiótica), não se mostraram de relevância para nosso trabalho. Nossa investigação iniciou-se por meio de uma discussão apresentada no projeto de pesquisa elaborado para o processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. O que então propomos no projeto é uma investigação sobre um tema central à obra desse autor inglês: o encantamento, ou reencantamento do mundo. Verificamos que as críticas de Chesterton ao mundo moderno, sobretudo em Ortodoxia (Orthodoxy, 1908), partem, antes da defesa da visão de mundo religiosa, de uma contraposição a visões de mundo filosóficas dessa mesma modernidade, sobretudo o racionalismo e o materialismo puros. Suas ideias possuem pontos de contato com a teoria do desencantamento do mundo em Max Weber, conceituada por Pierucci (2013) como uma teoria do processo de racionalização ocidental. Quando advoga a importância da retomada das lições dos contos de fadas pelo homem moderno, o que Chesterton propõe é a necessidade de um reencantamento do mundo que parte da ficção, projeto que ele, verdadeiramente, tentou realizar em sua própria obra ficional. Nosso intuito, desde o início, era analisar como se dá esse empreendimento na busca por tal (re)encantamento no conjunto geral de sua literatura. Escolhemos focar nossa atenção na narrativa de investigação e nos processos de investigação de detetives como Basil Grant e Rupert Grant, de O Clube dos Negócios Estranhos, ou Gabriel Gale, de O Poeta e os Lunáticos. A escolha foi orientada por um princípio de maior adequação ao tema proposto. Em O Clube dos Negócios Estranhos, fica bastante evidente desde a gênese do problema (ou solução) na formação do Clube o prazer do narrador chestertoniano por exercitar aquela que foi descrita por Tolkien como sua filosofia fundamental, de olhar as coisas cotidianas com um novo olhar (“Moor Eeffoc”), dada a própria excentricidade do caso: A descoberta dessa estranha sociedade foi algo curiosamente refrescante; perceber que havia dez novos negócios no mundo foi como olhar para o primeiro navio ou o primeiro arado. Nos dava a sensação que sempre devemos sentir, de que ainda estamos na infância do mundo (Chesterton, 2020, p. 7). Ademais, a importância dessa obra enquanto a primeira coleção de contos policiais de Chesterton – sendo, portanto, sua primeira aventura no gênero – assume um caráter de centralidade em relação ao tema proposto. É por essa obra que, para Julius West, contemporâneo de Chesterton e o primeiro a realizar um estudo crítico da sua até-então obra completa em 1915, “Chesterton pode ser reportado como o responsável por ter inventado uma nova espécie de história de detetive – do tipo que não tem crime ou criminoso, e tem um detetive 16 cujos processos são transcedentais.”4 (West, 2008, p. 29, tradução nossa). Esse tipo novo não vem do acaso, mas sim está dentro do “projeto” de Chesterton para a narrativa policial. Ele mesmo esboça esse projeto, do qual a obra O Clube dos Negócios Estranhos é a primeira (e, cremos, a mais completa) expressão em seu artigo “Em defesa dos romances policiais”, presente na coletânea O Defensor (The Defendant, 1901): Qualquer coisa que tenda, mesmo sob a forma fantástica das minúcias de Sherlock Holmes, a afirmar este romance do detalhe na civilização, a enfatizar este insondável caráter humano das pedras e telhas, é algo bom. É bom que o homem comum adquira o hábito de olhar imaginativamente para dez homens na rua, mesmo que seja apenas pela chance de que o undécimo seja um ladrão notório. Podemos sonhar, talvez, que seria possível ter outro e mais elevado romance sobre Londres, que as almas dos homens tenham aventuras mais estranhas que seus corpos, e que seria mais difícil e mais emocionante desvendar suas virtudes do que seus crimes (Chesterton, 2015a, p. 96-97, grifo nosso). O Clube dos Negócios Estranhos é a obra em que o autor empreende essa tentativa de inversão, em que, ao invés de crimes, o que a investigação mostra ao fim são excentricidades saudáveis, em sua perspectiva. De fato, a obra tem sua originalidade demarcada nessa tentativa e coloca Chesterton como uma inovação no gênero policial, de modo que Leitch (1988, p. 66, tradução nossa) afirmou: “Se Chesterton não tivesse criado o Padre Brown, sua ficção detetivesca seria raramente lida hoje em dia, mas seu lugar no desenvolvimento histórico do gênero ainda assim estaria seguro”5. Pode parecer estranha a escolha por se analisar o tema proposto do (re)encantamento do mundo em narrativas de investigação, ou ainda mais em um gênero como o policial que, classicamente, pressupõe somente o uso da racionalidade e da investigação praticamente científica dos fatos do mundo material. No entanto, é justamente uma junção desse tipo, estranha em si mesma, quase um paradoxo (exatamente ao gosto deste que é chamado o príncipe do paradoxo), que é fundamental a Chesterton e que nos leva a assumir, como hipótese inicial a ser verificada na pesquisa, que é a partir dos mecanismos da narrativa de investigação que ele encontrou seu método de promover o reencantamento do mundo, produzindo, de uma mesma feita, algo inédito na literatura. Desde o uso de comparações e metáforas a nível textual, feitas pelos narradores, que imbuem o locus urbano de Londres de uma aura mítica e mística, associando, por exemplo, um ônibus de dois andares a uma colina que anda em um conto de fadas (Chesterton, 2020), até uma imbricação dos processos de composição do fantástico e do 4 “Chesterton may be held to have invented a new species of detective story—the sort that has no crime, no criminal, and a detective whose processes are transcendental.” 5 “If Chesterton had not created Father Brown, his detective fiction would rarely be read today, but his place in the historical development of the genre would still be secure.” 17 policial, acreditamos que, pela filosofia de Chesterton que pretende trazer as vivências da ficção para a realidade e oferecer novas perspectivas ao homem moderno, é, justamente, fundamental haver no autor essa fusão entre modo fantástico e modo mimético-realista, considerados aqui a partir da conceituação de Ceserani (2006). Uma tal fusão leva em conta o policial entendido enquanto gênero, na esteira de Boileau e Narcejac (1991) e outros, bem como o fantástico enquanto modo literário, conforme definido por Ceserani (2006), com seus limites e ligações no estranho e no maravilhoso segundo a definição paradigmática de Todorov (2017). As obras literárias de Chesterton apresentam não só as evidentes ligações ao gênero policial, mas também toda a série de procedimentos formais e temáticos que, segundo Ceserani (2006), caracterizaria o fantástico enquanto modo historicamente constituído: as narrações em primeira pessoa, a posição de relevo dos procedimentos narrativos no próprio corpo da narração, um forte interesse pela capacidade projetiva da linguagem, o objeto mediador, a figuratividade e, sobretudo, a forte carga cômica e irônica (característica que desponta em quase toda página de Chesterton). Chesterton concebia que o escritor de narrativas policiais “é apreciado não porque ele cria mistério, mas porque ele destrói o mistério”6 (Chesterton, 2019, posição 5883, tradução nossa). Isso parece apontar que, para si, o processo de investigação é o que é verdadeiramente importante, mais que o crime em si. É esse mesmo processo que levou Borges, por ver nele profundas ligações com as histórias de horror fantástico de Poe, a conceber que Chesterton seria sempre lido porque a impressão que o processo da elucidação do mistério é forte, bem mais forte que as respostas que tal elucidação dá (Borges, 2000). É isso que nos faz assumir a hipótese que aqui assumimos e desejar empreender esse trabalho de investigação dos processos de (re)encantamento do mundo na literatura de Chesterton. 6 “is enjoyed not because he creates mystery, but because he destroys mystery”. 18 2 A VOLTA DE D. QUIXOTE: UM ROMANCEIRO NA INGLATERRA MODERNA Um trabalho como o que segue poderia iniciar de muitas maneiras, pois o arcabouço literário construído por Chesterton é, assim como ele pensava sobre a Igreja Católica após sua conversão ao fim da vida, “uma casa com cem portões”, e ninguém entra nele “do mesmo ângulo exato em que outra pessoa entrou” (Chesterton, 2019b, p. 30). Ele aventurou-se em quase todos os gêneros em que era possível atuar à sua época: conto, romance, crônica, poesia, drama, ensaio, crítica literária, crítica de arte, biografia, artigo jornalístico, narrativa histórica, narrativa de viagem, apologética religiosa, etc. Para alguns, como Ward (1953), não se sobressaiu em nenhum deles. Já para outros, saiu-se bem em todos, de maneira que Conlon (1976) aponta para uma dificuldade em compreender o lugar de Chesterton na literatura inglesa a partir do histórico de sua recepção crítica: alguém que esteja estudando essa recepção, segundo o autor, poderia ser desculpado por pensar tanto que ele não era bom em nada quanto excelente em tudo. Braybrooke (2008), escrevendo contemporaneamente a Chesterton, indaga- se sobre esse lugar em vista da impossibilidade de saber como o autor ficaria marcado em relação a seu momento histórico nas letras britânicas e como seria lembrado posteriormente: É como um ensaísta? É como um romancista? É como um historiador? É como um crítico? Se é como um romancista, então é como um escritor de fantasia peculiar; se é como um ensaísta, é como brilhante controversialista; se é como um historiador, é como crítico de história único; se é como um crítico, é como um de mente-aberta não só para grandes autores do passado, como para eventos atuais (Braybrooke, 2008, p. 111, tradução nossa)7. Uma investigação deve escolher algum lugar por onde começar. Assumindo como condição prévia ser a investigação a que aqui nos propomos literária, o que circunscreve o lugar onde procurar (mas não indubitavelmente, já que, como veremos, as próprias classificações dessas obras são dúbias, pois cruzam fronteiras), e já que essa investigação, assim como toda investigação, como a investigação da própria vida e da razão de se estar vivo, não deixa de ser, em conformidade com Chesterton (2021a), análoga a uma investigação policial, investigação em que, conforme apontaram seus teóricos, a lógica tem um papel preponderante (Medeiros e Albuquerque, 1979), os três caminhos básicos do raciocínio lógico apresentam-se a nós logo de cara: indução, dedução ou abdução. 7 “Is it as an essayist? Is it as a novelist? Is it as a historian? Is it as a critic? If it is as a novelist, then it is as a writer of peculiar phantasy; if it is as an essayist, it is as a brilliant controversialist; if it is as a historian, it is as a unique critic of history; if it is as a critic, it is as a broad-minded one of not only past great authors but of current events.” 19 O detetive Aristide Valentin, no conto “A cruz azul”, o primeiro conto do detetive Padre Brown que inaugura A Inocência do Padre Brown (The Innocence of Father Brown, 1911), ao recordar a engenhosidade do cérebro do criminoso Flambeau em suas fugas improváveis, oferece-nos a analogia: “O criminoso é o artista criador; o detetive é só o crítico” (Chesterton, 2017a, p. 43). Assumamos, pois, o papel que nos cabe enquanto críticos e tomemos um método propriamente chestertoniano para a detecção dos elementos na obra. Devemo-lo, quando não por outro motivo, mais propriamente porque Chesterton permitiu-nos ter, sim, um método – não deixado de maneira objetiva, explícita e coesa, talvez nem totalmente consciente, antes sugerido por suas múltiplas histórias, pelas observações de vários detetives, pelo diálogo com sua filosofia e teoria literária, por sua expressividade formal e significativa; ou seja, pelo conjunto de sua produção, quando a olhamos em conjunto. Toda a formação imaginativa e literária do autor inglês desde a infância com as nursery rhymes, contos de fadas e histórias populares, conforme um percurso próprio que nos é narrado em Ortodoxia (Orthodoxy, 1908), já devidamente ficcionalizado, isto é, transposto para uma voz discursiva ao mesmo tempo autobiográfica e ficcional, fala sobre esse mesmo método percorrido em sua formação de leitor e crítico, que foi, posteriormente, exercitado sob múltiplas perspectivas no trabalho de criação. Um método que, conforme as analogias indicam, serve tanto para o ator (criminoso, autor) quanto para o receptor (investigador, crítico) – ainda mais porque, conforme recorrentemente acontece em sua obra, trocam de lugar ou tiram as máscaras e revelam ser a mesma pessoa. E, sobretudo, é pertinente segui-lo, pois que revelar e esmiuçar esse método, esse percurso, que se traduzirá, por sua vez, em uma maneira particular de olhar o mundo e, consequentemente, de produzir literatura que, para o autor, possui uma relação em via de mão-dupla com essa nova concepção de mundo, é um dos principais objetivos em que nossa pesquisa se assenta. Belloc (1940) considerava Chesterton um mestre da dedução. Não só seu pensamento, assim como todo pensamento humano, é, para esse amigo e colaborador muito próximo de nosso autor, essencialmente dedutivo, enquanto a indução é caracterizada por ele como não sendo pensamento humano em absoluto, mas simples lances de experimento e observação que compartilhamos com os animais (Belloc, 1940). A dedução é, de fato, o processo central para Chesterton, partindo-se da essência, ou do até então isolado e abandonado númeno kantiano, uma vez já reencontrados, para o objeto ou seu fenômeno: mesmo na investigação em que se baseia o núcleo central do enredo literário, processo no qual o detetive, subvertendo a epistemologia lógica tradicional do gênero policial, funda seu “caminho de volta” ao mundo para que este se lhe apresente reencantado, conforme discutiremos ao longo da dissertação. No entanto, isso só vale quando tal redescoberta da essência já aconteceu, quando já conseguimos 20 ver o mundo com toda a sua estranheza essencial, em seu conjunto de possibilidades; quando já estamos na posição do saber – para usar o verbo que caracteriza a atitude de Horne Fisher, O Homem que Sabia Demais (The Man Who Knew Too Much, 1922) –, ou na posição do místico – como é apresentado Basil Grant, de O Clube dos Negócios Estranhos (The Club of Queer Trades, 1905). Enquanto não temos um conhecimento formado, estando ainda condenados à cata de contingências, devemos, pois, percorrer outro caminho. Novamente Aristide Valentin esboça um ponto de partida singular na tentativa de explicar sua busca ao companheiro detetive que está no caminho errado, à procura de provas, isto é, daquilo que só corroboraria uma ideia que já tivesse de antemão: – Se você sabe o que um homem vai fazer, adiante-se a ele. Mas, se quer descobrir o que ele está fazendo, vá atrás dele. Perca-se onde ele se perder, pare quando ele parar, e vá tão lentamente como ele. Então verá o mesmo que ele viu, e poderá adivinhar- lhe as ações e agir consequentemente. A única coisa que podemos fazer é manter os olhos atentos a qualquer coisa estranha (Chesterton, 2017a, p. 47-48, grifo nosso). Eis o caminho mais prudente para iniciarmos uma investigação estética da obra de Chesterton fora dos paradigmas e preconceitos que já foram atribuídos a ela por críticos tais quais o detetive aficcionado com seu próprio método e que, por isso, limitaram seu estudo. Essa espécie de indução nos servirá para, partindo dos fenômenos, objetos ou símbolos que o conjunto da obra manifesta, formarmos inicialmente uma ideia geral que nos permita enquadrar a obra literária desse autor tão multifacetado e já tão marcado por sua atuação em outras formas da produção intelectual fora do trabalho com a literatura em um projeto estético que nos dará a noção de como ele se coloca em seu contexto histórico e social e como, em vista desse contexto e dos gêneros e modos ficcionais com os quais trabalha, realiza o projeto temático que aqui investigamos como tema geral em sua obra: o reencantamento do mundo. Falar em “manter os olhos atentos a qualquer coisa estranha” é especialmente válido no caso de Chesterton, uma vez que “coisas estranhas” ficam evidenciadas com toda a força praticamente a cada página de sua obra. A fala de Valentin já é um indicativo epistemológico meta-ficcional, conforme a relação estabelecida entre o crime e a arte aponta. Sobre os romances de Chesterton, e com todas as especificações e restrições sobre aplicar esse termo às suas obras, West (2008, p. 25, tradução nossa), ainda na altura da metade da carreira do autor (1915), disse: “Se todos os dragões da antiga novela de cavalaria (romance) fossem soltos sobre a ficção de nossos dias, o resultado, alguém poderia imaginar, seria algo como um romance 21 (novel) chestertoniano”8. Ao mesmo tempo, porém, tais romances não foram encarados como passadismo, como um simples retorno a modos ficcionais antigos, mas como algo genuinamente novo e diferente após a ressaca das convenções vitorianas. Exatamente como um renascimento de uma emoção muito primitiva que chega, em tempos que a rejeitam como elemento superado, com a força de uma revolução. Nos jornais da época, louvava-se O Napoleão de Notting Hill (The Napoleon of Notting Hill, 1904), seu primeiro romance publicado, com o qual surge na cena literária inglesa, propriamente como uma renascença: “Essa é aquela “Renascença do Maravilhamento” que está produzindo um novo céu e uma nova terra para a geração mais nova”9, escreveu Douglas (1976, p. 85, tradução nossa) no The Star. Era difícil para esses críticos apontar do que, mais efetivamente, era esse renascimento, em vista da própria incapacidade em definir ou classificar o romance. Esse mesmo autor inicia o artigo emulando, pela anarquia conceitual, o mesmo efeito de desorientação do leitor que a narrativa chestertoniana busca atingir desde seu início: “é um romance alegórico, uma fantasia didática, um capricho humorístico. Não é fácil dizer o que ele significa; o Sr. Chesterton mesmo provavelmente não sabe”10 (Douglas, 1976, p. 85, tradução nossa). Dada a impossibilidade conceitual, ele reduz, assim, a evidência do maravilhamento a sensações corporais e subjetivas diversas que a leitura e seu estímulo da imaginação causam. Um termo, no entanto, era recorrente em todas as críticas: “romance”. F.G. Bettany, do The Sunday Times, entendeu que esse sentimento de renascimento era o do “romance”, e que, mais que uma simples retomada, Chesterton estava dando à sua geração “uma nova veia do romance”11, que é o título de seu artigo (Bettany, 1976, p. 87, tradução nossa). O autor faz a mesma rapsódia conceitual com outros termos tangencialmente similares, na tentativa de dizer que o romance em questão pode ser muitas coisas: “pode ser chamado uma fantasia farsesca, um prognóstico burlesco, uma sátira nonsense, uma piada ridícula”12 (Bettany, 1976, p. 87, tradução nossa). Mas sua essência, conclui, está em como consegue resgatar uma atmosfera romanesca a partir do novo cenário urbano de Londres, a partir da exploração do espaço – o que é visto como a essência do “romance” em contrário a “novel”. 8 “If all the dragons of old romance were loosed upon the fiction of our day, the result, one would imagine, would be something like that of a Chestertonian novel”. 9 “This is that “Renascence of Wonder” which is making a new heaven and a new earth to the younger generation”. 10 “[…] is an allegorical romance, a didactic fantasy, a humorous whimsy. It is not easy to say what it means; Mr. Chesterton himself probably does not know”. 11 “A New Vein of Romance”. 12 “it may be called a farcical fantasy, a burlesque forecast, a nonsensical satire, a preposterous joke […]”. 22 Outra noite, o Sr. Maurice Howlett estava nos contando que não havia, nos dias de hoje, um reavivamento do romance porque a inspiração deste último é de cenário, enquanto a da novel é de personagem, porque o romance moderno era muito sofisticado e faltava com atmosfera. Tudo que um leitor de O Napoleão de Notting Hill pode dizer é que ele nunca mais olhará para a Torre de Água de Campden Hill ou passará pela Estação de Notting Hill sem lembrar sorridente, grato, o Prefeito Wayne e seu Rei13 (Bettany, 1976, p. 87, tradução nossa). A distinção apontada entre “novel” e “romance”14 é importante, pois afetou a recepção da obra de Chesterton considerada como arte enquanto um todo. Muitos autores falaram a respeito da dificuldade de chamar seus romances de “novels” propriamente, mas tomando isso como sinal de falta de qualidade artística – já que o padrão de “novels” à época, ditado pelos ensejos da então contemporânea literatura modernista e da tradição realista europeia do século XIX, excluía tais produções. Boyd (1975), em um estudo que tenta distinguir o que, na produção narrativa de Chesterton, poderia ser analisado enquanto próprio da “arte” do que se afiguraria enquanto “propaganda”, aponta para a presença da argumentação e da disputa de ideias como algo alheio ao romance e que dificultaria a apreciação para os dois lados, relacionando com alguns críticos que assim chamavam a atenção para sua produção argumentativa e polemista, mas que desconsideravam o valor de seu trabalho artístico – dentre os quais estão o próprio T.S. Eliot, que compartilhava das ideias religiosas de Chesterton e, portanto, considerava que “julgar Chesterton por suas ‘contribuições à literatura’ seria, então, aplicar os padrões errados de medida”15 (Eliot, 2017, p. 369-370, tradução nossa), preferindo a defesa de tais ideias em seu trabalho jornalístico; ou George Orwell, que, não compartilhando dessas mesmas ideias, julgava que “Chesterton era um escritor de considerável talento que escolheu suprimir tanto suas sensibilidades quanto sua honestidade intelectual pela causa da propaganda Católica Romana”16 (Orwell, 2014, p. 303, tradução nossa). Boyd sumariza, falando sobre as obras que pretende analisar em vista da controvérsia: 13 “…The other night Mr. Maurice Howlett was telling some of us that there today no revival of romance, because the inspiration of the latter was one of place as the novel’s was of character, because the modern romance was too sophisticated and lacked atmosphere. All that one reader of “The Napoleon of Notting Hill” can say is that he will never see the Water Tower of Campden Hill nor pass Nothing Hill station without remembering smilingly, gratefully, Provost Wayne and his King” 14 “novel” é o que chamamos, em português, de “romance” enquanto forma narrativa em prosa típica da modernidade; “romance” é o que chamamos de “novela de cavalaria”, forma narrativa da Idade Média que contava aventuras de cavaleiros andantes, ou manifestações ligadas ao gênero do romanceiro de maneira geral (poemas e prosa de tradição e transmissão oral). 15 “To judge Chesterton on his ‘contributions to literature’, then, would be to apply the wrong standards of measurement” 16 “Chesterton was a writer of considerable talent who chose to suppress both his sensibilities and his intellectual honesty in the cause of Roman Catholic propaganda.” 23 Se esses livros são romances (“novels”), são romances apenas no sentido mais vago da palavra. Por outro lado, se eles são propaganda, raramente se conformam a qualquer noção popular do que se espera que seja propaganda […] Sem preencher propriamente as definições de nenhum dos dois termos, eles podem ser descritos como fábulas políticas, parábolas, alegorias, ou mais simplesmente e convenientemente como romances17 (Boyd, 1975, p. 5, tradução nossa). Por outro lado, para além dos sobressaltados com o debate de ideias, houve também quem ficou receoso em considerar a parte artística da produção de Chesterton propriamente enquanto tal, sobretudo nos romances, por conta da predominância de representações cômicas e carnavalescas com um certo ar anacrônico de ideais perdidos, que nada de sério pareciam discutir sobre a situação do homem moderno. Leys (2013) fala dessa sentida inadequação do autor aos medos e ansiedades do século XX como algo que promoveu uma visão equivocada para sua avaliação: Um dos maiores mal-entendidos que constantemente acolhemos a respeito de Chesterton é em representá-lo como um grande, benigno, alegre companheiro, inexaustivamente possuído por um riso inocente; um homem que parece ter passado toda a sua vida felizmente inconsciente do lado noturno da condição humana; um homem seguramente e serenamente ancorado em certezas solares; um homem que estava aparentemente apartado de nossas comuns angústias, e dúvidas, e medos; um homem talvez de outra era, e que dificilmente poderia ter tido uma suspeita dos terrores e horrores que caracterizavam nosso tempo18 (Leys, 2013, p. 111-112, tradução nossa). Churchill (1961) sintetiza os dois lados do argumento ao relacionar todas essas características à tradição dickensiana da literatura inglesa, que, para o crítico, seria a fonte da literatura de ideias na Inglaterra do século XX. Chesterton e outros de seu círculo literário (H.G. Wells, Bernard Shaw, Aldous Huxley, George Orwell), alguns dos quais seus frequentes correspondentes, fariam parte da linha de tradição do romance que flui de Fielding e Smollet a Scott e Dickens em suas preocupações com caricaturas e temas sociais, enquanto autores como Henry James e Joseph Conrad pertenceriam à outra linha que flui de Richardson e Jane Austen a George Eliot e James Joyce, preocupados em centrar toda a obra na relação dramática das personagens. Estes últimos, Churchill considera os verdadeiros artistas sérios, expondo sua 17 “If these books are novels, they are novels only in the loosest sense of the word. On the other hand, if they are propaganda, they scarcely conform to any popular notion of what propaganda is supposed to be […] Without fulfilling precisely the definitions of any of the terms, they may be described as political fables, parables, and allegories, or more simply and conveniently as novels.” 18 “One of the many misunderstandings we often entertain on the subject of Chesterton is to picture him as a big, benign, jolly fellow, inexhaustibly possessed by innocent laughter; a man who seems to have spent all his life blissfully unaware of the nocturnal side of the human condition; a man securely and serenely anchored in sunny certainties; a man who seemingly was spared our common anguishes, and doubts and fears; a man from another age perhaps, and who could hardly have had an inkling of the terrors and horrors that were to characterise our time.” 24 valoração, enquanto os primeiros são considerados por ele excêntricos exageradores, fanáticos por debater ideias e seguir a produção descontroladamente ao sabor de suas ideias em lugar de dar uma direção central em um planejamento geral às obras. Proporção […] é a essência do artista literário sério; o exagero cômico, ainda que com propósitos geralmente sérios, representa o tom de Dickens, bem como da literatura de idéias do século XX: o exagero em todas as suas formas, de discurso, de idéia, de conduta. Daí que Dickens, no prefácio a Little Dorrit, seja incapaz de falar simplesmente de um ‘menino carregando um nenê’, mas precisa necessariamente escrever ‘o menor menino com que já conversei, carregando o maior nenê que já vi’ […] o artista literário se interessa acima de tudo pelas relações pessoais de suas personagens (…) O escritor de romance ou drama de idéias está pronto a conceber suas idéias em primeiro lugar, inventando em seguida as personagens que as personifiquem (Churchill, 1961, p. 227-228 apud Lindo, 1992, p. 44-46). O modelo do romance dickensiano, em seu modo de representação, não encontrava mais lugar entre a opinião literária em voga já na época de Chesterton. Eram constantes as críticas negativas de Virginia Woolf aos autores eduardianos já mencionados, justamente por compartilhar dessa mesma opinião de Arnold Bennett: “A fundação da boa ficção é a criação de personagens e nada mais”19 (Bennett apud Woolf, 1924, p. 3, tradução nossa). Em vista disso, para Woolf, os eduardianos não eram verdadeiros ficcionistas, pois “nunca estiveram interessados no personagem nele mesmo; ou no livro nele mesmo. Eles estavam interessados em alguma coisa exterior. Seus livros, então, eram livros incompletos, e requeriam que o leitor os finalizasse, ativamente e praticamente, por si mesmo”20 (Woolf, 1924, p. 12, tradução nossa). Considerações similares ela teve a respeito do próprio Dickens, seguindo as de seu tio James Fitzsjames Stephen, que, junto a Henry James, foi um dos primeiros críticos negativos de Dickens em vista de uma nova teoria literária dominante entre os modernistas, centrada na personagem e na verossimilhança do real, conforme argumenta Quagli (2017), reconhecendo a importância central da numerosa crítica de Chesterton a Dickens para uma revitalização e uma reavaliação do autor vitoriano. Os demais eduardianos, no entanto, encontraram seus lugares como ponto de inflexão ou mesmo fundação de gêneros específicos que garantiram que as portas da apreciação literária não se fechassem para eles (Wells com a ficção científica; Shaw com toda uma teoria do teatro em complementaridade a Ibsen e Brecht; Orwell e Huxley na distopia). Mesmo com Wells fazendo sobre si a mesma asserção de que sempre fora um jornalista, não um artista, e preferia 19 “The foundation of good fiction is character-creating and nothing else”. 20 “[the Edwardians] were never interested in character in itself; or in the book in itself. They were interested in something outside. Their books, then, were incomplete as books, and required that the reader should finish them, actively and practically, for himself.” 25 ser tido como tal (Edel; Ray, 1958), essa posição perante o gênero impediu que a declaração fosse levada em conta como fator determinante na crítica. Não foi o que aconteceu com Chesterton. Sendo de difícil enquadramento em um gênero ou técnica específicos, conforme a miscelânea conceitual muito espontânea e subjetiva da crítica já levantada demonstra, muitos dos receosos encontraram coro para seu esquecimento literário nas próprias palavras do autor em sua Autobiografia (Autobiography, 1936), quando igualmente rejeita a si o título de romancista em favor do de jornalista: Tirando a vaidade e a falsa modéstia (de que as pessoas saudáveis sempre se valem como piadas), meu verdadeiro julgamento de minha própria obra é que estraguei um monte de divertidas boas ideias. […] Tomadas enquanto estórias, no sentido de anedotas, essas coisas me parecem ter sido mais ou menos novas e pessoais; mas, tomadas enquanto romances, elas não só não são tão boas quanto um verdadeiro romancista poderia tê-las feito, como não são tão boas quanto eu mesmo as poderia ter feito se realmente tivesse tentado ser um bom romancista. E, entre tantos outros motivos abjetos para não ser um romancista, está o fato de que sempre fui e presumivelmente sempre serei um jornalista. […] Em suma, eu não podia ser um romancista, pois eu realmente gostava de ver as ideias ou conceitos lutando nus, tal como verdadeiramente eram, e não vestidos em um baile de máscaras como homens e mulheres (Chesterton, 2012a, p. 329-330, grifo nosso). Excetuando-se a ingenuidade metodológica dos críticos que tomam a declaração do autor sobre suas obras como critério último – ignorando o que o próprio Chesterton advertiu repetidas vezes ao falar sobre Dickens e outros: “A crítica não existe para dizer sobre os autores as coisas que eles mesmos sabiam. Existe para dizer sobre eles as coisas que eles não sabiam”21 (Chesterton, 2007, p. 51, tradução nossa) –, a afirmação é-nos valiosa por mostrar consonância com as declarações dos críticos, evidenciando como o estabelecimento do critério distintivo do romance no estudo de caráteres humanos em representações individuais verossímeis aos seus contextos permaneceu como um paradigma desde a época de Chesterton até épocas posteriores, assim como mostrar a consciência que possui o autor de partir de princípios de representação distintos. O paradigma é confirmado como definição precisa em The Victorian Age in Literature (1913), em que ele contrapõe tal definição ao mesmo termo “anedota” usado para caracterizar sua produção literária no trecho acima, agora para explicar por que o romance é algo essencialmente moderno: Eu meramente digo, portanto, que quando falo “romance” (“novel”), refiro-me a uma narrativa fictícia (quase invariavelmente, mas não necessariamente, em prosa) em que o essencial é que a história não é contada em favor de seu apontamento cru como uma anedota, ou em favor das paisagens irrelevantes e visões que possam ser capturadas 21 “Criticism does not exist to say about authors the things that they knew themselves. It exists to say the things about them which they did not know themselves.” 26 nelas, mas em favor de algum estudo da diferença entre seres humanos22 (Chesterton, 2006, p. 90, tradução nossa). Manter a perspectiva moderna que o autor tem em mente (o romance como produto da modernidade) é fundamental. Essa definição de romance (“novel”) que parafraseia a percepção dos autores apontados (enquadrados, não à toa, no rótulo de “modernistas”) é a mesma que Watt (2010) oferece para explicar o surgimento e ascensão do romance enquanto fenômeno propriamente moderno, não só produto, mas definidor da modernidade, análogo à filosofia de Descartes que propôs o individualismo como cosmovisão, concebendo a “busca da verdade como uma questão inteiramente individual” (Watt, 2010, p. 13). Uma forma que “pudesse incorporar a percepção individual da realidade com a mesma liberdade com que o método de Descartes e Locke permitia que seu pensamento brotasse dos fatos imediatos da consciência” (Watt, 2010, p. 16) parece, de fato, uma descrição incompatível com uma obra que começa assim: A raça humana, à qual tantos de meus leitores pertencem, tem feito brincadeiras de criança desde o início, e provavelmente continuará a fazê-las até o fim, o que é um estorvo para as poucas pessoas que amadurecem. E um de seus jogos favoritos se chama “Faça do Amanhã um Segredo”, que também é chamado (não tenho dúvida de que pelas pessoas rústicas de Shropshire) de “Trapacear os Profetas” […] Pois os seres humanos, sendo crianças, têm a teimosia e o mistério infantis. E, desde o começo do mundo, eles nunca fizeram o que os homens sábios disseram como inevitável (Chesterton, 2016, p. 11). Há uma intromissão direta do narrador no corpo da narração, chamando atenção aos procedimentos narrativos, ao caráter ficcional e, portanto, aproximando o leitor de uma realidade imposta, no que Ceserani (2006) conceitua como um dos procedimentos que caracterizam o modo fantástico de narração23 justamente como um dos efeitos da modernidade que vem questionar o modo mimético-realista que a engendra e que é erigido como centro dessa noção de romance – o que fica ainda mais caracterizado pela desestabilização das noções pressupostas de verossimilhança ao inferir-se que há leitores que podem não ser pertencentes à 22 “I merely say, therefore, that when I say "novel," I mean a fictitious narrative (almost invariably, but not necessarily, in prose) of which the essential is that the story is not told for the sake of its naked pointedness as an anecdote, or for the sake of the irrelevant landscapes and visions that can be caught up in it, but for the sake of some study of the difference between human beings.” 23 Pensando aqui o fantástico dessa maneira mais abrangente enquanto modo, conforme Ceserani (2006) o pensa, o que é diferente da noção todoroviana que lida mais especificamente com o sentido do enredo na descoberta de fenômenos sobrenaturais, em sua aceitação ou não e na relação com a realidade. Nessa noção todoroviana, a maior parte das narrativas de Chesterton não se configurarão como propriamente fantásticas, terminando por residir no estranho que quer chamar atenção à estranheza da realidade em nível metafísico, conforme veremos. Já no fantástico considerado enquanto modo, estão envolvidas determinadas maneiras de uso da linguagem e exploração de seus sentidos para questionar noções de sentido pré-fixadas pela razão. 27 raça humana, em uma narração que se assumirá toda sobre essa própria raça humana em seu status de realidade reconhecível historicamente e geograficamente (status logo introduzido pela referência ao condado inglês de Shropshire), gerando já, por essa brusca aproximação de distintos códigos de irrealidade e realidade, um estranhamento característico do modo fantástico. Mas, além desses procedimentos, o narrador da introdução de O Napoleão de Notting Hill ainda apresenta um tipo especial de onisciência que, em estudo anterior (Freza, 2023b), a partir da epistemologia da Análise de Discurso, identificamos, em outra obra de Chesterton, como sendo o processo enunciativo de aforização, recorrente em seus romances. A aforização é conceituada por Maingueneau (2007, 2010), em oposição à enunciação textualizante (padrão dos textos discursivos), como um processo em que os sentidos parecem emergir de uma fonte superior, situada em um grau de onisciência acima do leitor ou de outros sujeitos. Nesse primeiro capítulo do romance, o enunciador (ou, na perspectiva em que aqui estamos, o narrador), mais que ser onisciente, mas como ethos de um locutor situado acima da humanidade, com contornos míticos, arroga-se a autoridade de saber o que a humanidade pensa e prefere desde o início e assim continuará fazendo, bem como de direcionar o leitor conforme pertencente a essa humanidade da qual ele tem o conhecimento integral. Esse domínio superior é que faz o capítulo todo constituir-se como um grande aforisma, como um trecho de texto para ser tomado à parte e assumido como verdade isolada, segundo as definições de Maingueneau (2007, 2010). Isso explica o fato de Churchill (1961) ter sentido que a abertura em questão poderia ser desenvolvida sem dificuldades como um ensaio ao invés de como um primeiro capítulo de um romance. Todos esses procedimentos narrativos contradizem uma percepção individual livre da realidade. Isso mostra por que os autores não conseguem enxergá-lo como romance. Mas seria então outra coisa? Os procedimentos de Chesterton são narrativos, objetivam, como já dito, chamar atenção ao processo de contar a história (posteriormente, haverá um avanço de 80 anos no futuro com o qual o narrador é igualmente autoconsciente e adianta ao leitor, com ironia, que o cenário ainda será o mesmo de então), logo, ao caráter ficcional. Portanto, devemos perceber que, antes de não ser o texto de Chesterton objeto ficcional, artístico ou de tentar configurar-se em formas passadas, a conceituação de Watt (2010), que reproduz as noções dominantes junto ao próprio Chesterton e a muitos de seu período, simplesmente não se encaixa aqui, não comportando o fenômeno de um romance que não quer pertencer a um estágio acabado da modernidade como consequência dela. Se, por outro lado, formos a Bakhtin (2002), que propõe uma outra configuração de romance, rastreando sua origem não no advento da 28 modernidade, mas na literatura épica e nos gêneros cômicos do folclore que cumpriam a função de dessacralizar o passado épico e romper a distância com ele, podemos conceituar Chesterton não só como definitivamente um romancista, mas como um romancista que trabalha nas bases do romance, isto é, buscando um retorno a seus elementos distintivos. De acordo com o percurso que Bakhtin rastreia na fábula, na poesia bucólica, nos diálogos socráticos, nas sátiras menipeias, até chegar nas formas medievais que se constroem em um fluxo de cultura popular, como as obras de Rabelais (das quais Chesterton era grande tributário), “o romance se formou precisamente no processo de destruição da distância épica, no processo de familiarização cômica do mundo e do homem, no abaixamento do objeto da representação artística ao nível de uma realidade atual, inacabada e fluida” (Bakhtin, 2002, p. 427). Devemos ter isso em mente quando o narrador de Chesterton começa a lidar com a história da humanidade em sua essência fundamental (declarando peremptoriamente, em uma enunciação aforizante já identificada, aquilo que o Homem é e aquilo que não é, aquilo que faz desde o princípio dos tempos e o que não faz) e com o modo futurológico, características que comporiam um mito de origem na classificação de Eliade (1972), isto é, que parte da origem do mundo (cosmogonia) para explicar sua modificação; começa a lidar com isso, porém, de maneira paródica e irônica, reunindo em suas recapitulações, em pares, uma personagem histórica do próprio contexto de Chesterton ou do imediatamente anterior a ele (Era Vitoriana) e uma ou mais personagens criadas (fictícias ou ficcionais) para funcionarem como caricatura: Neste sentido, por exemplo, havia o Senhor H.G. Wells e outros, que pensavam que a Ciência assumiria a responsabilidade pelo futuro, e que, assim como o automóvel era mais rápido que a charrete, uma outra coisa adorável seria mais rápida que o automóvel, e para sempre assim destarte. E das suas cinzas surgiu o Dr. Quilp, que disse que o homem poderia, com uma máquina, viajar tão rápido que poderia conversar longamente com alguém em alguma cidade do Velho Mundo […] E dizem que o experimento foi tentado com um velho major que sofria de apoplexia, e que este foi mandado ao redor do mundo tão rapidamente que parecia haver se formado (aos habitantes de alguma outra galáxia) uma contínua faixa de bigodes brancos e de um corpo e de um terno vermelhos ao redor da Terra: algo como o anel de Saturno (Chesterton, 2016, p. 12-13). Há a tentativa mais da recuperação de um mito por meio de sua atualização que propriamente da criação de um. Ainda que seja tudo advindo da imaginação do autor, o narrador quer fazer passar por um conhecimento comum compartilhado pela humanidade que está sendo retomado. Apesar de se colocar no corpo da narração, de chamar atenção para os procedimentos que está usando para contar a história, ele não conta como algo que está sendo revelado por si pela primeira vez, mas faz a origem perder-se no sentido de comunidade, no aspecto lendário impessoalizado: “dizem que…”. As personagens fictícias ou ficcionais são apresentadas de 29 maneira que a caricatura fique evidente e que o aspecto cômico seja imediatamente reconhecível pelo leitor na contraposição à seriedade da personagem histórica. Quando apresenta o Sr. Edward Carpenter, poeta socialista, põe, como sucessor de sua teoria, “James Pickie (Pós-doutor pela Universidade Pocahontas)” (Chesterton, 2016, p. 13), em que a apresentação do título franqueia o elemento paródico. A Cecil Rhodes, o estadista, segue-se “seu amigo Dr. Zoppi (o São Paulo do racismo anglo-saxão)”, que ressaltou o proclamado abismo entre os que são do Império Britânico e os que não são postulando que só poderia ser tido como canibalismo os britânicos comerem pessoas de seu próprio Império, mas não dos povos dominados (Chesterton, 2016, p. 13-14). O resultado que une elementos tão díspares é que não é necessária uma grande capacidade de decifração ou interpretação para colocar-se na posição mítica em que o narrador quer inserir seu interlocutor. Este se vê de súbito imerso em um universo ao qual se sente inicialmente estranho, pela desestabilização de suas noções de verossimilhança e realidade já mencionadas, mas ao qual rapidamente tem a sensação de que já pertence desde o princípio dos tempos e está voltando a tomar posse. Jogado entre os extremos da atividade simbólica, entre o pleno desconhecimento e o pleno conhecimento, diante, portanto, de um paradoxo (uma característica recorrente em Chesterton, que ainda será aqui abordada, e que deu a ele a alcunha de “príncipe do paradoxo”), o leitor deixa-se conduzir pelo contador da história com um misto de rendição e autonomia. Está, afinal, na “infância do mundo” de que fala Swinburne, o narrador de O Clube dos Negócios Estranhos (1905), sobre como a descoberta de que haviam dez novos negócios no mundo (os negócios que compõem o Clube no romance) fez sentir a ele e aos outros que souberam dessa sociedade: “foi como olhar para o primeiro navio ou o primeiro arado” (Chesterton, 2020, p. 7); ou ainda a “manhã do mundo”, como o narrador heterodiegético bastante fabular de Tales of the Long Bow (1925) diz sobre Colonel Crane no primeiro conto do qual este é o protagonista: “Ele tinha aquela inocência de algum patriarca ou herói primitivo na manhã do mundo, encontrando mais do que podia ele mesmo compreender de sua lenda e de sua linhagem”24 (Chesterton, 2022a, p. 30, tradução nossa). É necessário primeiro compreender a mencionada dimensão da atualização do mito e do aspecto mítico buscada por Chesterton, já que esse herói que volta à manhã do mundo é um herói moderno, que só consegue acessá-la por sua situação presente do estado de coisas, assim como o efeito pretendido sobre o leitor também depende disso; o que implica compreender Chesterton enquanto autor que apenas pode existir como tal no período moderno, no século XX 24 “He had the innocence of some patriarch or primitive hero in the morning of the world, founding more than he could himself realize of his legend and his line.” 30 inglês, no romance e no modo romanesco, na crise da representação, no tempo histórico linear e irreversível próprio da cristandade e berço da sensibilidade moderna apresentado por Paz (2013), em que cada ato é decisivo e provoca uma ruptura no círculo temporal das sociedades antigas – e, portanto, o retorno a essas formas primordiais, como do mito e da lenda, na esteira da tradição romântica, só pode dar-se por uma revolução, uma nova ruptura que quebra com a ordem estabelecida e instaura o retorno. Mesmo nessas tradições, dificilmente houve um autor em que o paradoxo dessa aproximação de extremos (revolução e retorno) foi tão ressaltado e proclamado quanto Chesterton. Ele foi chamado por Carol (1971, p. 1) de “a dynamical classicist” (“um classicista dinâmico”), em um estudo que leva esse nome. O “classicista”, não significando enquadramento em um período ou estética entendidos como “clássicos”, mas simplesmente dizendo respeito a seu gosto pelas antigas tradições, que, conforme Bakhtin (2002) demonstra sobre o épico para apresentá-lo em perspectiva temporal e espacial com o romance, são originalmente acabadas e intocáveis, combina-se a um adjetivo de movimento. Pensando sobre as revoluções sociais o que podemos aplicar em paralelos à estética e à literatura (já que, para ele, refletem-se), Chesterton disse: “Não há tradições neste mundo que sejam tão antigas quanto as tradições que levam à moderna revolta e à inovação. Nada hoje é tão conservador quanto uma revolução”25 (Chesterton, 1975, tradução nossa). Não é difícil entender, pois, por que ele tem como seus principais interlocutores na crítica de poesia, sobretudo, autores românticos. Ele via nas inovações de Coleridge, em sua revolução do imaginário, ressonâncias de algo bastante primitivo. “A Balada do Velho Marinheiro”, segundo ele, “é provavelmente um dos poemas mais originais já escritos; e, como muitas coisas originais, é quase antiquado. Assim como muitos românticos revivendo o gótico sem entender o medievo, ele carregou o arcaísmo a extensões que foram quase cômicas”26 (Chesterton, 2014, posição 156749, tradução nossa). Já é conhecida a tese de que é através da ironia e da sátira que os autores modernos retornam ao mito. Ela está em Frye (2014), na anatomia dos modos, símbolos e arquétipos da literatura ocidental. O abaixamento dos objetos de representação, que Bakhtin (2002) coloca na gênese do romance, após ser levado aos extremos do que Frye (2014) conceitua como o modo mimético-baixo na literatura realista e naturalista do século XIX, começa a assumir fórmulas irônicas que, de cristalizadas, remetem ao modo mítico nos quais os modelos são criados. A 25 “No traditions in this world are so ancient as the traditions that lead to modern upheaval and innovation. Nothing nowadays is so conservative as a revolution.” 26 “‘The Ancient Mariner’” is probably one of the most original poems that were ever written; and, like many original things, it is almost antiquarian. Like most Romantics reviving the Gothic without understanding the mediaeval, he carried archaism to lengths that were almost comic.” 31 “obsessão de Zola com fórmulas irônicas”, por exemplo, “deram-lhe a reputação de um observador imparcial da cena humana”, diz Frye (2014, p. 165) relacionando o modelo de investigação naturalista ao modelo de investigação do cotidiano na história de detetive, gênero que é fruto legítimo da época irônica. Tanto um como o outro “inicia-se como uma intensificação do mimético baixo, uma tentativa de descrever a vida exatamente como ela é, e termina, pela própria lógica dessa tentativa, em ironia pura” (Frye, 2014, p. 165), já que as posições que conduzem a narração (a do narrador, no primeiro caso, e a do detetive, no outro) acabam assumindo ares julgadores acima de qualquer possibilidade de percepção individual que era a proposta original do romance (Watt, 2010) como forma do mimético-baixo. Está-se, então, analogamente, no mesmo momento em que o narrador de uma fábula ou de um conto de fadas apresenta-nos a realidade conforme ele próprio a concebe, apresenta os objetos que serão importantes na história e os que não serão. Para dar um exemplo de um conto de fadas moderno que foi dos livros favoritos de Chesterton, é quando o narrador de A Princesa e o Goblin, de George MacDonald, expõe explicitamente seu mecanismo fabular de adiar informações ao leitor no momento em que, após chamar a atenção para a descoberta feita por Curdie, o garoto mineiro que está à caça dos goblins, sobre os animais de estimação que vivem com estes goblins em seu palácio, decide não os revelar ainda: Foi uma procissão bastante estranha que ele seguiu, mas a parte mais curiosa foi a dos animais domésticos que se amontoavam entre os pés dos goblins. Era verdade que não existiam animais selvagens, pelo menos ele não conhecia nenhum, mas havia um número incrível de domesticados. Contudo, devo reservar qualquer contribuição para a história natural desses animais um pouco mais adiante (MacDonald, 2021, p. 55). Chesterton também percebeu essa vocação das histórias de detetive e narrativas policiais em geral de retornarem ao modo mítico justamente pela característica apontada por Frye como aquela na qual este gênero se funda inicialmente, do “aguçamento da atenção a detalhes que faz que as trivialidades mais enfadonhas e negligenciadas da vida diária sejam alçadas a uma significância misteriosa e fatídica” (Frye, 2014, p. 161). Enquanto para o crítico canadense, porém, é a exacerbação dessa atenção aos detalhes em uma tendência realista que, não aguentando o peso de soar natural à custa de convenções, termina remetendo ao mito, Chesterton pensa que é a própria atenção às trivialidades que provoca esse retorno por uma emoção em descobrir os mistérios até então ocultos do novo locus do homem moderno – a cidade grande –, que é como um universo inexplorado. É isso que ele chama de “poesia da vida moderna” (Chesterton, 2015a, p. 95), que só o romance policial, dentre todos os gêneros, seria capaz de revelar: 32 Com relação a essa percepção de uma grande cidade como algo em si mesmo selvagem e óbvio, os romances policiais certamente são sua Ilíada. Ninguém pode ter deixado de notar que nestas histórias o herói ou investigador cruza Londres com algo da solidão e da liberdade de um príncipe em um conto de fadas, que durante aquela jornada incalculável o ônibus casual assume as cores primárias de um navio de fantasia. As luzes da cidade começam a brilhar como os olhos de inumeráveis duendes, já que são as guardiãs de algum segredo, talvez grotesco, que o escritor conhece e o leitor, não. Cada curva da rua é como um dedo que aponta para isso; cada fantástica linha de chaminés parece assinalar de forma fantástica e zombeteira o significado do mistério (Chesterton, 2015a, p. 96). A leitura de Chesterton busca na sinceridade do processo de investigação uma relação que, na teoria de Frye, só vem a partir de uma relação intelectual instauradora de ironia. O romance policial, afinal, é um gênero fundado sobre o raciocínio, sobre uma compreensão de investigação que é científica – o olhar do detetive deve, por necessidade, ser um olhar objetivo e desapaixonado como o do cientista. Nas famosas quatro normas de Thomas Narcejac para a composição de um romance policial, o autor postula que “é necessário que os enigmas propostos ao detetive sejam, ao mesmo tempo, verdadeiras provas” (Narcejac apud Medeiros e Albuquerque, 1979, p. 20). Enigmas que guardem analogias com um universo místico, que exercitem a imaginação para fora do método rigoroso de observação e raciocínio lógico, seriam impossíveis. S.S. Van Dine (pseudônimo de Willard Huntington Wright), mais audacioso ao compor vinte regras, diz em sua regra de número 14 que “o método utilizado para o assassinato e o meio de descobri-lo devem ser lógicos e científicos” (Van Dine apud Medeiros e Albuquerque, 1979, p. 29), com o risco de que, ao se sair disso para o terreno da pseudociência ou dos dispositivos imaginativos ou especulativos, está-se “além dos limites da ficção policial, com piruetas nos recantos ignotos da aventura”. Mas, contra essa leitura, a aventura é justamente o recanto no qual Medeiros e Albuquerque (1979) vai buscar a origem do gênero policial: o supracitado “romance” (que ele traduz por “romance de aventura”). No romance de aventura, “a ação, e acima de tudo a ação que comandava a maioria das cenas, era a tônica das narrativas” (Medeiros e Albuquerque, 1979, p. 2). Essa ação está muito ligada a uma simplicidade (logo, convencionalidade) narrativa da lenda, mito ou história oral, que foram definidas por Jolles (1976) justamente como “Formas Simples” por sua capacidade de cristalização de diferentes experiências de mundo vividas por múltiplos indivíduos ao longo dos tempos em um gesto verbal que se abra à recorrência, à capacidade de repetir-se e expressar- se em outras formas e narrativas particulares e atuais. Segundo o autor, sempre que uma certa disposição mental leva certos fatos vividos a se cristalizarem nisso que ele nomeia de “gesto verbal”, reconhecendo a semelhança ao termo “motivo” comumente usado na crítica literária, 33 mas querendo diferenciar deste um papel ativo da linguagem na significação desses fatos vividos, cria-se uma Forma Simples (Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto ou Chiste) que pode se particularizar em uma determinada narrativa e tornar- se, então, Forma Atualizada. Medeiros e Albuquerque (1979) oferece exemplos do que poderíamos, na esteira de Jolles (1976), chamar de formas simples, que encarnam a luta do bem contra o mal, oposição que se atualizará, no romance policial, na luta entre ordem e desordem, barbárie e civilização, dentre outras reescrituras. Tais exemplos – Ivanhoé, Sir Galahad e Guilherme Tell –, em sua universalidade e capacidade de atualização, não são ignorados por Chesterton. Em Hereges (Heretics, 1905), ele defende que a história de Guilherme Tell não deve ser colocada, como os antropólogos fazem, no patamar de histórias impossíveis simplesmente porque é contada em toda a parte. “Ora, é óbvio que era contada por toda parte, porque, verdade ou ficção, é o que chamamos de ‘uma boa história’; é diferente, empolgante e tem clímax” (Chesterton, 2021b, p. 114). Sugerir, no entanto, que tal história não poderia acontecer com nenhum arqueiro em toda a história da arquearia, passado ou mesmo futuro, seria imprudência. E, por outro lado, outras histórias as há que seriam perfeitamente possíveis não por sua peculiaridade, mas justamente por seu aspecto simples e convencional – por serem histórias que dizem respeito a aspectos comuns da natureza humana, elas poderiam explicar uma série de acontecimentos com pessoas diferentes na História. Seria o caso das histórias que se baseiam no enredo de um homem que tem sua força abalada pela fraqueza misteriosa de uma mulher – Sansão e Dalila, Artur e Guinevere, por exemplo (Chesterton, 2021b). A defesa de tal convencionalidade que leva à universalidade, isto é, a narrativa comunicando sentido a todos os homens e a cada um deles, ecoa a distinção de Aristóteles (2014) entre o trabalho do poeta e o do historiador, englobando a ficção como um todo contra uma estrutura científica de discurso: podemos também dizer, conectando com o texto de Chesterton, uma distinção entre o mitólogo e o cientista. Mas também é feita de maneira específica por Jolles (1976) no caso da história de Guilherme Tell, que a enquadra na categoria de “mito” por basear-se em uma dinâmica de interrogação e resposta: o homem que interroga o universo diante de uma dada realidade para receber uma explicação. O gesto verbal que constitui a forma desse mito vem como a resposta ao homem que confronta a essência de uma situação de opressão na qual um tirano subjuga todo um povo, indagando o que acontece a partir daí. A fórmula dessa resposta é capaz de aglutinar uma série de atos isolados de crueldade, imposição e injustiça em um evento situado em um nível superior: “O monstro obriga o pai a atingir uma maçã colocada sobre a cabeça de seu filho” (Jolles, 1976, p. 102). Ser “uma boa 34 história” por ter a estrutura de uma boa história, como chamou Chesterton (2021b), nada mais é que ser esse conflito que surpreende com a captura, em um objeto unificado, de sentimentos que estão dispersos em muitas ações pelo mundo, e gera uma expectativa que nada mais é que o sentimento humano da busca por justiça. O clímax é que “no momento exato em que a flecha atravessa a maçã, o universo de injustiça desmorona e dá-se a libertação […] o impossível exigido pelo arbitrário foi coroado de êxito e, ao acontecer, pulverizou o reino da violência” (Jolles, 1976, p. 103). Dessa organização de captura de sentimentos e acontecimentos comunitários em objeto de atenção definido e repetível, que é capaz de dar cristalização e unificação (início, meio e fim) aos eventos dispersos, Jolles conclui que não importa que o evento no mundo empírico interpretado pelo mito esteja alhures, distante temporalmente ou espacialmente de sua disseminação, pois “isso apenas provará que o gesto verbal apreendeu corretamente o elemento de constância e de repetição regular; que o apreendeu tão bem, inclusive, que ele continua a ser considerado a ligação válida e coerente entre pergunta e resposta, ainda que num tempo e num lugar diferentes” (Jolles, 1976, p. 103). O Mito, por transmitir o conhecimento em um objeto que se cria a si mesmo a partir da interrogação do universo, por ser um saber absoluto e destacado, é permanente e inesgotável: atende a cada atualização possível, a cada vez que novas pessoas em seus novos contextos se colocarem diante da mesma interrogação. Foi o advento da imprensa (aumento da propagação de livros impressos e consequente decadência do contexto das narrações orais) que fez, segundo Medeiros e Albuquerque (1979, p. 2), as narrativas deixarem de buscar essas formas simples e partirem em busca de tramas mais complexas que pudessem dar ao povo “algo de novo para ler em busca de novos conhecimentos”, conforme esses homens frutos das eras do progresso e da razão buscavam. A constância e repetição consubstanciadas nos gestos verbais das formas simples não mais bastam então; o conhecimento não mais pode criar a si mesmo, antes deve ser descoberto pelo sujeito na disposição científica que Jolles (1976) contrapõe à disposição mental que origina a cristalização das experiências nas formas simples. O romance de aventura passa a romance de espionagem, e depois a romance policial. A ação vai perdendo cada vez mais lugar até ser suplantada, no último estágio, pelo raciocínio lógico – pois, em tudo, passa a tratar-se mais de uma questão de descobrir algo, resolver um mistério27, chegar a novas respostas, do que fabular em cima de eventos já conhecidos em sua significação e extrair a força do sentimento de aventura em relação à ação à qual os personagens são submetidos justamente pelo fato de a 27 Esse tipo de enredo ganhou até um termo para classificá-lo como um subgênero específico que logo se tornou o dominante no meio do romance policial: o “whodunit”, cuja significação está em descobrir quem cometeu o crime. 35 resposta já estar dada e o leitor não ter que descobrir nada, apenas embarcar no processo de reviver a aventura. 36 3 QUIXOTE E SANCHO: ROMANTISMO E PERFORMANCE EM UM CLUBE DE NEGÓCIOS ESTRANHOS “Shaw: Você luta… não para vencer… mas pelo mero prazer de lutar… você é igualzinho a Dom Quixote; e apesar de a sua loucura às vezes fazer a dele parecer pálida na comparação, você ainda forja algum meio misterioso de ser seu próprio Sancho Pança. Chesterton: Exatamente! E qualquer um, menos você, poderia ver que a combinação desses dois extremos forma o ponto de vista católico.” (Correspondência entre Chesterton e George Bernard Shaw). “Não é dado a todo o mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença das massas populares é uma arte. E somente ele pode fazer, às expensas do gênero humano, uma festa de vitalidade, a quem urna fada insuflou em seu berço o gosto da fantasia e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão por viagens. (...) O poeta goza desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de qualquer um. Só para ele tudo está vago; e se certos lugares lhe parecem fechados é que, a seu ver, não valem a pena ser visitados.” (Charles Baudelaire, “As multidões”) Numa tarde de verão, depois do chá, para a surpresa absoluta de Watson, Sherlock Holmes, que sempre fora completamente reservado sobre suas relações humanas, revela a existência do irmão Mycroft e do clube que este dirige: o Clube Diógenes. “O Clube Diógenes é o mais bizarro de Londres e Mycroft, um dos homens mais bizarros” (Doyle, [s.d.], p. 83). É assim que Sherlock o apresenta. Trata-se de uma associação criada para homens que não gostam do convívio com outras pessoas e querem paz para ler seus jornais. As regras criadas em torno dessa premissa são estritas: “Não se permite a nenhum membro dar a menor atenção a qualquer outro. Não se permite nenhuma conversa, sob nenhuma circunstância, salvo na Sala dos Estranhos. E três faltas, levadas ao conhecimento da diretoria, tornam o tagarela sujeito à expulsão” (Doyle, [s.d.], p. 84). O narrador está mais impressionado pela própria existência de alguém que o companheiro nunca revelara e que diz possuir a capacidade de observação e dedução lógica em graus ainda mais elevados que ele próprio e, portanto, não atina muito para a excentricidade que é a existência de um Clube próprio para antissociais. 37 Esse motivo inicial do conto de Conan Doyle, “O intérprete grego”, mostra como a sensibilidade e as figuras que rondam o gênero de detetive distanciaram-se daquela origem do romance que coloca Medeiros e Albuquerque (1979). Mycroft Holmes é uma exacerbação de Sherlock segundo seu método descrito por ele próprio em detalhes no romance Um estudo em vermelho (1887). Ali, Holmes escreve um artigo em defesa do raciocínio lógico: ‘A partir de uma gota d’água’, dizia o autor, ‘um lógico podia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara, sem ter visto nenhum dos dois, nem ter ouvido falar de qualquer um deles. Assim toda a vida é uma grande cadeia, cuja natureza conhecemos sempre que nos mostram um único de seus elos. […] Nas unhas de um homem, na manga de seu casaco, na sua bota, nos joelhos de suas calças, nas calosidades de seu dedo indicador ou de seu polegar, na sua expressão, nos punhos de sua camisa – em cada um desses itens, a profissão do homem é claramente revelada. Que todos esses elementos juntos deixem de esclarecer o observador competente, é quase inconcebível (Doyle, 2010, p. 29-30). Temos aqui uma perfeita descrição do paradigma indiciário que teorizou Ginzburg (1989) a partir da influência que o método morelliano de atribuição de obras de arte exerceu nas ciências humanas. Trata-se de assumir como paradigma os pormenores mais negligenciáveis para descobrir os rastros do autor, seja de uma obra de arte ou de um crime – Chesterton foi talvez o primeiro a aproximar os dois no reconhecimento de Aristide Valentin, mencionado no primeiro capítulo, sobre a comum identidade de criminoso e artista, bem como de detetive e crítico, chancelando, assim, que o detetive deve tentar seguir esses rastros do criminoso como se estivesse estudando criticamente uma obra de arte. Giovanni Morelli argumentou ser nos detalhes menos óbvios, portanto mais esquecidos, como as orelhas, unhas, dedos, as mesmas coisas de que fala Sherlock, que as evidências de autenticidade ou cópia poderiam ser descobertas nos quadros. Holmes, em uma das histórias de Doyle, resolve um caso a partir da singularidade da estrutura anatômica das orelhas (Ginzburg, 1989). Esse método clássico do detetive no gênero baseia-se em encontrar significados em pistas que passam despercebidas à polícia oficial. Mas não se baseia menos, conforme se manifesta em Holmes, em estudá-los friamente como um cientista, com o mínimo de envolvimento possível com seu objeto, observando-o com a maior distância permitida pelas condições. Não então uma aproximação crítica, que necessita do envolvimento, como pressupunha a observação de Aristide, mas científica. Watson se surpreende: “– Mas você quer dizer […] que, sem deixar a sua sala, você consegue desatar um nó que outros homens não souberam compreender, embora tivessem visto eles próprios todos os detalhes? – Exatamente. Tenho uma intuição nesse sentido” (Doyle, 2010, p. 32). Holmes diz que, por ter muitos conhecimentos especiais, por sua ampla experiência com a observação, pode geralmente intuir a resposta sem precisar sequer ir 38 ao encontro do objeto. “De vez em quando surge um caso que é um pouco mais complexo. Então tenho de me mexer e ver as coisas com meus próprios olhos” (Doyle, 2010, p. 32). Mycroft Holmes leva essa maneira de encarar os objetos do mundo a um nível que chega a soar, retroativamente, quase irônico em relação a pensar o método de seu irmão. Seu problema, segundo Sherlock argumenta, é que ele não pode ser um detetive verdadeiro porque sua arte começa e termina “no raciocínio feito numa cadeira” (Doyle, [s.d.], p. 83), observação que levou ao que popularmente ficou conhecido pelo termo “armchair detective”. Essa falta de disposição de Mycroft (assim vista por seu irmão) está ligada à sua antipatia social, o que culmina no motivo para a criação do Clube Diógenes. Mycroft “prefere considerar-se errado a entrar na luta para provar que está certo” (Doyle, [s.d.], p. 83), já que a atividade do mundo exterior e o convívio com seus semelhantes o aborrecem. Ele só pode ser encontrado dentro de seu refúgio no Clube, e a falta de inclinação para a atividade in loco e para a relação social reflete-se em seus olhos que, “de um gris aquoso particularmente leve, pareciam conservar sempre aquela aparência longínqua e introspectiva que só tinha observado em Sherlock quando estava exercendo seus plenos poderes” (Doyle, [s.d.], p. 83). A Chesterton, alguém que continua enxergando a relação do romance policial com o romance de aventura, que, como dissemos, vê na atividade do detetive cruzando a cidade para sua investigação uma solidão própria, mas a “solidão e liberdade de um príncipe em um conto de fadas” (Chesterton, 2015a, p. 96), tal recusa da aventura soa muito artificial. Escrevendo diretrizes para a composição de histórias policiais, o autor erige como uma das principais que “o oculto assassino tem o direito artístico de aparecer em cena e não apenas o direito realista de estar no mundo. Não só deve estar presente no local do acontecimento, como ainda na busílis do enredo” (Chesterton, 1988, p. 11). Logo se vê como a resolução de um mistério somente no “raciocínio feito numa cadeira” (Doyle, [s.d.], p. 83) seria impensável a Chesterton e não tocaria no cerne do gênero. Toda literatura policial deveria ser um eterno momento sobrestendido da luta de Sherlock com o Professor Moriarty (conto “O problema final”), momento raro na obra de Conan Doyle. Watson, ele mesmo um frio estudioso de corpos humanos que preza pelo método científico, que não é dado sequer às excentricidades dos irmãos Holmes em frequentar clubes como o Diógenes, é um sujeito muito menos imaginativo que o secundário Aristide Valentin de Chesterton e, logo, não segue seu método: “manter os olhos atentos a qualquer coisa estranha” (Chesterton, 2017a, p. 48). Assim, apesar dos alertas de Holmes sobre ser o clube mais bizarro de Londres, não extraímos da associação tudo que poderíamos; não passa ela a exercer uma função ou lugar de destaque nas histórias. 39 Chesterton, por outro lado, deu-nos Gully Swinburne, um narrador que tem a prerrogativa de ser um ávido frequentador de clubes dos mais variados espalhados por Londres, e que, portanto, pode apresentar-nos com toda a propriedade e destaque um clube que se esconde nos apartamentos londrinos, esses “imensos cortiços escuros” onde o “passante só procura seu destino melancólico, seja a Agência de Correios Montenegro ou o escritório londrino do ‘Sentinela de Rutland’, e passa pelas vias ensombrecidas como se passa pelos corredores crepusculares de um sonho” (Chesterton, 2020, p. 6). Em uma massa homogênea de portas, janelas e ruas perpendiculares em que “qualquer coisa pode habitar ou ocorrer […] nada atrai ou espanta” (Chesterton, 2020, p. 5-6), só um narrador assim treinado a prestar atenção a coisas estranhas poderia encontrar o clube em questão. A auto-apresentação de Swinburne faz- nos ficar desconcertados de uma maneira bastante similar àquela que o narrador de O Napoleão de Notting Hill nos desconcerta na introdução referida. Pode-se dizer que eu coleciono clubes, e acumulei uma variedade vasta e fantástica de espécimes desde que, em minha audaz juventude, eu coletei o Athenaeum. Em algum momento futuro eu talvez conte histórias de algumas das outras instituições às quais já pertenci. Falarei dos feitos da Sociedade dos Sapatos do Homem Morto (grupo superficialmente imoral, mas sombriamente justificável). Explicarei a curiosa origem do grupo “Gato e Cristão”, cujo nome foi tão vergonhosamente mal interpretado; e o mundo saberá finalmente por que o Instituto das Máquinas de Escrever se uniu à Liga da Tulipa Vermelha. Obviamente não ouso dizer uma só palavra sobre o clube das Dez Xícaras de Chá […] A juventude louca da metrópole me chama de “Rei dos Clubes”. Eles também me chamam de “Querubim”, aludindo à aparência rosácea e juvenil que ainda exibo em meus anos de declínio. Eu espero que os espíritos no mundo do além desfrutem de jantares tão bons quanto os meus (Chesterton, 2020, p. 7). Há aqui o mesmo procedimento de unir o factual do mundo empírico, bem localizável no contexto espaciotemporal de Chesterton (o Athenaeum, clube de homens das artes e ciências em Pall Mall, fundado em 1824) ao fictício e francamente paródico/satírico. Tomamos aqui como definição de técnica satírica a de Feinberg (1963, p. 7, tradução nossa) de “uma forjadamente crítica distorção do familiar”28, que nos leva a conceber como próximas as classificações de “paródia” e “sátira”. É uma definição válida porque é, em certa medida, a do próprio Chesterton, que disse a respeito da sátira em autores como Aristófanes, Rabelais e Sterne: “O absurdo29 nestes homens era satírico – isto é, simbólico; era uma espécie de 28 “a playfully critical distortion of the familiar”. Embora o autor não separe conceitualmente “sátira” de “paródia”, entende que aquela engloba esta, na separação que comumente se faz, quando diz que “playfully” deve ser entendido no sentido de acentuar o elemento de “pretense” ao invés do de “jollity”, embora, às vezes, puramente “jollity” esteja presente na sátira. 29 “Absurdo” deve aqui ser entendido no sentido de “nonsense”, pois o autor está falando no ensaio em questão sobre o nonsense vitoriano, contrapondo-o ao dos autores precursores citados. Pela história da literatura, entendemos 40 exuberante cabriolagem ao redor de uma verdade descoberta” (Chesterton, 2015a, p. 44). Chesterton concebe a sátira como uma “cabriolagem”, isto é, um esforço de mascaramento e dissimulação de uma verdade descoberta (que, por definição, é algo já familiar a quem descobriu). Tais compreensões de que a narrativa policial do autor é, antes de tudo, satírica (em contramão do que é comum ao gênero) e de que, quando falamos em sátira, é a essa distorção premeditada do familiar que nos reportamos, serão muito importantes para o desenvolvimento de nossa tese de que o tema, bem como o procedimento, central da literatura chestertoniana é a busca por um reencantamento do mundo. Estando em construção o argumento em relação ao procedimento de composição, assumamos, primeiramente, o tema. A contraposição que Swimburne começa por estabelecer é em relação ao moderno enquanto padronização, massificação, como se manifesta no projeto de apartamentos de Londres, em que olhamos sempre para as mesmas portas e construções todas iguais, e o mistério, o surpreendente, que se esconde em meio a essa própria banalidade moderna a quem estiver disposto e treinado a olhar. O familiar, aquilo que está entregue ao olhar da maioria como sempre ali, sempre igual, deve passar por uma distorção para que seja permitido ver o que antes não se via. Então, após apresentar o Clube dos Negócios Estranhos que se encontra nessa massa de prédios e apartamentos, ele diz: “A descoberta dessa estranha sociedade foi algo curiosamente refrescante; perceber que havia dez novos