UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MARLEY DE FÁTIMA MORAIS BORGES O ENSINO DE HISTÓRIA, CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA PERSPECTIVA DA LEI Nº 10.639/2003: ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA EE. PROF. HÉLIO PALERMO, CIDADE DE FRANCA SP. FRANCA- SP 2016 MARLEY DE FÁTIMA MORAIS BORGES O ENSINO DE HISTÓRIA, CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA PERSPECTIVA DA LEI Nº 10.639/2003: ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA EE. PROF. HÉLIO PALERMO, CIDADE DE FRANCA SP. Dissertação de mestrado apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. Área de concentração em Política e Gestão Educacional. Orientador: Prof. Dr. Jonas Rafael dos Santos FRANCA- SP 2016 Borges, Marley de Fátima Morais. O Ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, na perspectiva da Lei Nº 10.639/2003 : analise de políticas publicas na EE. Prof. Hélio Palermo, cidade de Franca SP / Marley de Fátima Morais Borges. –Franca : [s.n.], 2016. 125 f. Dissertação (Mestrado Profissional – Políticas Públicas). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Orientador: Jonas Rafael dos Santos 1. Educação. 2. Relações raciais. 3. Políticas públicas. I. Título. CDD – 370 Dissertação (Mestrado Profissional – Políticas Públicas). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Orientador: Jonas Rafael dos Santos 1. Educação. 2. Relações raciais. 3. Políticas públicas. I. Título. CDD – 370 MARLEY DE FÁTIMA MORAIS BORGES O ENSINO DE HISTÓRIA, CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA PERSPECTIVA DA LEI Nº 10.639/2003: ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA EE. PROF. HÉLIO PALERMO, CIDADE DE FRANCA SP. Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. Área de Concentração: Política e Gestão Educacional. BANCA EXAMINADORA Presidente: _______________________________________________________________ Prof. Dr. Jonas Rafael dos Santos 1º Examinador: _____________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes 2º Examinador: _____________________________________________________________ Prof. Dr. Diogo da Silva Roiz Franca, ______de _____________de 2016. Dedico este trabalho à memória de meus pais Prudenciana e Gersolino. Agradecimentos Obrigada àqueles que acompanharam e contribuíram para a realização deste curso e de forma especial dessa pesquisa. À instituição UNESP e a todos os professores do Programa de Pós-graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. À professora Vânia de Fátima Martino pela amizade e profissionalismo. Ao professor e orientador Jonas Rafael dos Santos, por ser a luz a indicar o norte desta pesquisa. A todos os meus amigos de curso que me ajudaram a perseverar no caminho do conhecimento. Aos professores da EE. Prof. Hélio Palermo, em especial a professora coordenadora Maria Aparecida Chiarelo, sem os quais esta pesquisa não seria possível. A toda minha família pela paciência, carinho e compreensão nas muitas horas de ausência. Aos meus filhos Gabriela, André e Letícia; também aos filhos que chegaram depois Márcio, Marília e Rafael, pela presença e incentivo nas horas de cansaço. Aos meus netos Giovana e Murilo por sempre trazerem tanta alegria no sorriso. Ao meu esposo Deoclécio, pelo companheirismo. Aos meus irmãos, em especial a minha irmã Graça pela dedicação e a Édina por tantas trocas de ideias. Aos meus pais que, hoje ausentes fisicamente, foram responsáveis pela minha educação e por me ensinar desde muito cedo a importância da tolerância, da bondade e do respeito. À Deus e a todos que estiveram comigo nesta caminhada. O meu muito obrigada! Identidade Preciso ser um outro para ser eu mesmo Sou grão de rocha Sou o vento que a desgasta Sou pólen sem insecto Sou areia sustentando o sexo das árvores Existo onde me desconheço aguardando pelo meu passado ansiando a esperança do futuro No mundo que combato morro no mundo por que luto nasço (In "Raiz de Orvalho e Outros Poemas") Mia Couto BORGES, Marley de Fátima Morais. O Ensino de História, Cultura Africana e Afro- Brasileira, na perspectiva da Lei Nº 10.639/2003: análise de políticas públicas na EE. Prof. Hélio Palermo, cidade de Franca SP. Dissertação para obtenção do Título de Mestre no curso de (Mestrado em Planejamento e Análise de Políticas Públicas) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. Resumo Esta pesquisa tem como objetivo analisar como está sendo inserido o estudo de “História, Cultura Africana e Afro-Brasileira” e o seu nível de enraizamento à luz da Lei nº 10.639/2003, na EE. Prof. Hélio Palermo, localizada na cidade de Franca-SP. A metodologia utilizada tem como referência a abordagem qualitativa de pesquisa em educação; utilizando como fonte de informações o projeto político pedagógico da escola pesquisada, o currículo das disciplinas de História, Filosofia, Sociologia, Geografia, Arte e Língua Portuguesa. Ademais, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com a equipe gestora e professores do lócus investigado. Os referenciais teóricos utilizados têm como base estudos culturais, que avançam na reescrita da história afro-brasileira de valorização da cultura africana; e de pesquisadores das Ciências Políticas com ênfase em políticas públicas educacionais. Não obstante, procura apresentar uma proposta de intervenção que auxilie professores e gestores desta Diretoria de Ensino a trabalharem em conformidade com a obrigatoriedade da Lei Nº 10.639/2003. Palavras-chave: Educação. Questões-Étnico-racial. Lei Nº 10.639/2003. Abstract Teaching History, African and Afro-Brazilian culture in the light of the Law number 10.639/2003: an analysis of public policies into the Helio Palermo State public school, in the city of Franca, SP. This research has as its objective to analyze how the study of “History, African and Afro- Brazilian culture”and its rooting level are inserted into the State of São Paulo school’s curriculum in the light of the Law number 10.639/2003, more precisely atHelio Palermo State public school, in the city of Franca, SP. The methodology in this work is based on the educational qualitative research, and has as its source of information the pedagogical-political project from the named school, concerning the curriculum from subjects such as History, Philosophy, Sociology, Geography, Arts and Portuguese. Furthermore, semi structured interviews were conducted with the management team and with the teachers from Helio Palermo School. The theoretical background in this study is based on cultural studies which advanced into the rewriting of Afro-Brazilian History and the enhancement of the African culture, as well as in studies from public sciences researchers who developed studies into the educational public policies. Finally, this dissertation looks forward to present a proposition of intervention which could urge teachers and managers from the schools of the city of Franca, SP, to work in accordance to the requirements of the Law number 10.639/2003. Keywords: education. racial-ethnical issues. Law number 10.639/2003. LISTA DE FIGURAS FIGURA 01: Grupo de adolescente de diversas etnias .............................................. 60 FIGURA 02: Máscaras africanas ............................................................................ 61 FIGURA 03: Máscaras africanas ............................................................................ 61 FIGURA 04: Mapa da cidade de Franca no Estado de São Paulo ............................ 68 FIGURA 05: Mapa da cidade de Franca e cidades vizinhas .................................... 68 LISTA DE QUADROS QUADRO 01: Ações empreendidas pelo poder público federal, com objetivo de implementar a Lei nº 10.639/03 ............................................................................... 35 QUADRO 02: Porcentagem cor/raça, dos habitantes francanos em 2010 .................... 67 QUADRO 03: Porcentagem cor/raça, dos alunos em 2011 habitantes .......................... 70 QUADRO 04: Período de funcionamento da escola, turnos e alunos ........................... 70 QUADRO 05: Resultados do SARESP/ 2011 - 3º ano do ensino médio.......................... 72 QUADRO 06: Resultados do SARESP/ 2012 - 3º ano do ensino médio ....................... 72 QUADRO 07: Resultados do SARESP/ 2013 - 3º ano do ensino médio ....................... 73 QUADRO 08: Resultados do SARESP/ 2014 - 3º ano do ensino médio ......................... 73 QUADRO 09: Perfil dos professores que trabalham com temáticas étnico-raciais ......... 81 QUADRO 10: Resumo da ação proposta ............................................................... 98 QUADRO 11: Temática: História e cultura afro-brasileira avanços historiográficos ...... 100 LISTA DE SIGLAS CNE Conselho Nacional de Educação CNPIR Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial CONDECON Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da comunidade negra de Franca DCN Diretrizes Curriculares Nacionais DE Diretoria de Ensino EE Escola Estadual FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LDB Lei de Diretrizes e Bases MEC Ministério da Educação e Cultura MONUF Movimento Negro Francano ONU Organização das Nações Unidas OT Orientações Técnicas SARESP Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo PCNP Professor(a) Coordenador(a) de Núcleo Pedagógico PPP Projeto Político Pedagógico SEPPIR Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13 CAPÍTULO 1 REFLEXÃO SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS E A LEI Nº 10.639/2003 ...................................................................................................................... 20 1.1 A lei Nº 10.639/ 2003: constituição e formulação na agenda ..................................... 20 1. 2 A implementação da Lei Nº 10.639/2003................................................................... 31 CAPÍTULO 2 O ENSINO DE HISTÓRIA, CULTURA AFRICANA E AFRO- BRASILEIRA NO CURRÍCULO ................................................................................ 42 2.1 A educação brasileira da constituição de 1988 a lei nº 10.639/2003 .................. 42 2.2 Os embates e conflitos na formulação do currículo ................................................... 43 2.3 Currículo de Ciências Humanas, Linguagens, Códigos e suas tecnologias no ensino médio do estado de SP e a inserção da Lei nº 10.639/2003 .................................... 49 CAPITULO 3 ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICA EDUCACIONAIS NA EE. PROF. HÉLIO PALERMO, CIDADE DE FRANCA, S.P: NA PERSPECTIVA DA LEI Nº 10.639/2003 .................................................................................................. 65 3.1 Caracterização da EE. Prof. Hélio Palermo ............................................................... 66 3.2 A implementação da Lei 10.639 no chão da escola: desafios e limites ..................... 75 3.3 Proposta de intervenção que auxilie professores e gestores da Diretoria de Ensino de Franca a trabalharem em conformidade com a obrigatoriedade da Lei Nº 10.639/2003 ...................................................................................................................... 96 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 100 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 104 6 ANEXOS ....................................................................................................................... 110 7 APÊNDICES ................................................................................................................. 122 13 INTRODUÇÃO A menos de dez anos, uma jovem organizava seus pertences para mudar-se de Franca para São Carlos, cidades do interior de São Paulo. Era momento de muita alegria, pois havia passado no vestibular e ingressado em uma universidade federal. As aulas iniciaram e a garota foi morar em um apartamento, junto com outras quatro colegas. Ao chegar da aula, em sua república, com mochila nas costas e material escolar, no elevador um casal de meia idade, lhe perguntou: “você trabalha neste prédio?” Porém, antes de ter tempo para responder, a mulher adiantou-se, dizendo: “somos novos aqui no condomínio e queríamos saber se tem padaria aqui perto”. Relato fictício, porém fato corriqueiro. Situação aparentemente sem importância no quotidiano da vida urbana. Uma provocação ao leitor, a fim de instigar sua percepção sobre o imaginário nacional em relação ao negro. O prédio era residencial e um dos trabalhos mais prováveis que a garota poderia ocupar seria de empregada doméstica. Nesse contexto, surge o questionamento: “você trabalha neste prédio?” Essa seria uma forma de “racismo”, mesmo inconsciente porque a estudante era negra? Ou porque não é habitual ver negros(as) em situação socioeconômica confortável? Cenário recorrente em todo Brasil, encoberto pelo manto da chamada “democracia racial”. Toda situação de “racismo”, mesmo que velado, precisa ser estudada, pesquisada e discutida, para que se possa desconstruir o “mito da democracia racial” 1 e edificar uma sociedade brasileira mais justa entre negros e não negros como prevêem as condutas nacionais legais. Mesmo com o amadurecimento de uma historiografia africana, que vem reescrevendo a África e o afro-brasileiro de forma positiva e com as mobilizações sócio-política que impulsionaram a institucionalização da Lei n° 10.639/2003, o negro ainda se encontra em uma situação de vulnerabilidade social, econômica e intelectual muito maior que o não negro, 1 “Mito da democracia racial”: A crença de que no Brasil não existem conflitos raciais é o resultado da difusão do conceito de democracia racial, principalmente a partir da segunda metade do século XX. O sociólogo Gilberto Freyre, que em 1933 publicou a obra “Casa Grande e Senzala”, é considerado um dos principais difusores da ideia de que no Brasil, brancos e negros mantêm relações pacíficas e harmoniosas – embora nunca tenha adotado explicitamente este conceito, mas apenas usado uma expressão sinônima, “democracia étnica”. As estatísticas são eloquentes quanto a isso, na medida em que compõem o retrato de um Brasil profundamente desigual, cuja linha de corte é justamente a cor da pele. Em nosso país, os negros têm menos oportunidades de estudar, seus salários são menores que os dos brancos e eles são as principais vítimas da violência. Fonte: Revista: Pré- Univesp, nº 56 abril de 2016. Disponível em:< http://pre.univesp.br/democracia- racial#.VxZ5mn0rIdU>. Acesso em 18 abr.2016 http://pre.univesp.br/democracia-racial#.VxZ5mn0rIdU http://pre.univesp.br/democracia-racial#.VxZ5mn0rIdU 14 como afirma Rocha (2006) em sua dissertação de mestrado considerando dados do IBGE2 e do IPEA.3 [...] em cada dez brasileiros abaixo da linha de pobreza, aproximadamente sete são negros. O número de brancos no ensino superior é cinco vezes maior do que o da presença negra. A qualidade de vida dos negros do Brasil, atualmente, corresponde à quantidade de vida dos brancos no início dos anos 90. (ROCHA, 2006, p. 58) Estudos e dados inquestionáveis, como os citados; além das experiências adquiridas ao longo do exercício do magistério, são indicadores que motivaram e justificam esta pesquisa, cujo objetivo é analisar como está sendo inserido o estudo de “História, Cultura Africana e Afro-Brasileira” e efetivação da Lei nº 10.639/20034, na E.E. Prof. Hélio Palermo, localizada na cidade de Franca-SP. Analisar e/ou avaliar políticas públicas não é tarefa fácil. Visto que não se pretende, através desta investigação, julgar ou emitir critérios de valor, certo ou errado, nas práticas educacionais voltadas para as relações étnico-raciais desenvolvidas na EE. Prof. Hélio Palermo. Para isso, é importante ressaltar que avaliações de políticas públicas acontecem de vários tipos e natureza, sendo um campo bem complexo para o pesquisador definir. Para isto, Draibe (2001) realiza uma interessante distinção entre dois tipos de pesquisa de avaliação, que são de indicadores para nortear a pesquisa: Avaliações ex ante precedem o início do programa, ocorrendo em geral durante as fases de sua preparação e formulação. Também referidas com avaliações- diagnóstico, são realizadas para apoiar decisões finais da formulação, atendendo a um ou ao dois de seus objetivos: - produzir orientações, parâmetros e indicadores que se incorporam, ao projeto, melhorando seu desenho e suas estratégias metodológicas e de implementação; - fixar um produto de partida que permita comparações futuras (linha de base ou tempo zero). 2 O IBGE é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e é o responsável pelos levantamentos demográficos, pesquisas estatísticas sobre os mais variados temas (de meio ambiente à economia), manutenção de indicadores sobre o Brasil, e informações geográficas, além de ser também a fundação responsável pelo SIG (Sistema Geodésico) Brasileiro. Disponível em: . Acesso em 28 jan.2015 3 IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, desde maio de 1990. Todavia já recebeu a nomeação de Instituto de Pesquisa Econômico-Social Aplicada, em fevereiro de 1967, e foi novamente renomeado para Instituto de Planejamento Econômico e Social, em janeiro de 1969, até chegar a atual nomenclatura. O IPEA desde então vem desempenhado um papel estratégico na construção das políticas de Estado no Brasil, em especial no âmbito do planejamento das atividades econômicas. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2015 4 Lei nº 10.639/2003, ver Anexo I. 15 As avaliações ex post são feitas concomitantemente ou após a realização de programas (Cepal, 1998a: 16), também com duplo objetivo: - verificar os graus de eficiência e eficácia com que o programa está atendendo a seus objetivos; - avaliar a efetividade do programa, ou seja, seus resultados e avaliação de impactos e avaliação de processo. Quanto a natureza, as avaliações distinguem-se entre avaliação de resultados e avaliação de processo. (DRAIBE, 2001, p. 04 e 05) A pesquisa aqui proposta é do tipo ex post. Quanto à natureza, será avaliado o processo, pois o objetivo da mesma é analisar as estratégias que orientam a implementação Lei Nº 10.639/2003, exposto nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,5 constituída de “um conjunto de medidas e ações com objetivo de corrigir injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão social e a cidadania para todos no sistema educacional brasileiro” (BRASIL,2004, p.05). Também serão analisados os atores que colocam em prática ações para se efetivar esta política (professores e gestores), profissionais responsáveis pela capacitação dos atores, PCNP (Professor Coordenador do Núcleo Pedagógico) da Diretoria de Ensino de Franca. Draibe (2001), indica alguns direcionamentos que ajudam um pesquisador em políticas públicas a realizar análises de implementação com êxito. Ressaltando que mesmo sendo uma investigação com abordagem qualitativa é necessário ir além e explicar também as dialógicas internas de uma política pública. Nesse sentido, traz perguntas que devem ser respondidas pelo pesquisador como: o programa realizou os objetivos pretendidos? Atingiu os grupos-alvos que se pretendeu? Ocorreu a capacitação dos atores do programa? Com objetivo de responder aos questionamentos propostos pela pesquisadora Sônia Draibe (2001), citado em seu texto “Metodologia de Avaliação de Políticas Públicas” sobre como avaliar a implementação de uma política pública, a metodologia utilizada terá como referência a abordagem qualitativa de pesquisa em educação. Método que, a princípio, foi uma opção da Antropologia e da Sociologia, hoje tem grande abrangência no campo das Ciências Humanas em geral; e na área educacional, que constitui o cerne desta pesquisa. Os questionamentos também povoam a pesquisa, à medida que se adentra nos referencias teóricos. Estes, com base nos estudos culturais, avançam na reescrita da história africana e afro-brasileira, de valorização da cultura africana e da participação do negro na construção da identidade nacional. Investigação fundamentada nas “Diretrizes Curriculares 5 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, ver Anexo II. 16 Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” que, segundo Gomes (2012), indica que o projeto trabalhado tem êxito ou não na efetivação de práticas voltada para estudos das relações étnico-raciais. Para isso devem ser analisadas as seguintes indagações: Quais são as práticas pedagógicas na perspectiva da Lei n.º 10.639/03 realizadas pelas escolas indicadas pelos atores-chave? Quem as desenvolvem? Elas têm continuidade? Há participação da gestão do sistema e da gestão da escola no desenvolvimento de tais práticas? Como fica a participação da comunidade nesse processo? Há diálogo com os movimentos sociais e, principalmente, com o Movimento Negro? Essas experiências enraízam-se nas escolas passando a fazer parte do Projeto Político-Pedagógico a ponto de alcançar um grau de sustentabilidade? Ou elas oscilam de acordo com a presença ou não dos sujeitos que as desenvolvem? Quais são os avanços e os limites da Lei n.º 10.639/03 no interior das escolas públicas? (GOMES, 2012. P. 11). Questionamentos os quais se pretende responder através da pesquisa de campo. Com base na referência metodológica experiênciada por Nilma Lino Gomes, em sua pesquisa, intitulada “Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03”, (2012). Ademais, considerando como característica metodológica qualitativa o ambiente natural como fonte direta de dados, o seu caráter descritivo e o seu enfoque indutivo, Neves (1996) afirma que deste método faz parte: A obtenção de dados descritivos mediante contato direto e interativo do pesquisador com a situação objeto de estudo. Nas pesquisas qualitativas, é frequente que o pesquisador procure entender os fenômenos, segundo a perspectiva dos participantes da situação estudada e, a partir, dai situe sua interpretação dos fenômenos estudados. (NEVES, 1996, p.01) Ainda segundo este pesquisador, em uma investigação qualitativa existe três grupos que permitem recolha de dados: a observação, o inquérito que pode ser oral sobre forma de entrevista ou escrito com aplicação de questionário e, ainda, análise de documentos. Calado e Ferreira (2004-2005) esclarecem a despeito do propósito da investigação em educação, ser utilizado nas perspectivas de complementação de informações (obtidas por outros métodos), ou ser a metodologia central da pesquisa, (sendo os documentos o objeto de 17 estudo por si próprio). Ressaltando que a investigação proposta para este trabalho analisará fontes documentais: a Lei Nº 10. 639/2003, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), o currículo do estado de SP nas áreas de Ciências Humanas, História, Geografia, Filosofia, Sociologia e Arte e Língua Portuguesa na área de Linguagens Códigos e suas tecnologias, o PPP (Projeto Político Pedagógico) da escola e diários dos professores envolvidos com o projeto “Cidadania, Memórias e Tradições Afro-descendentes”, que levou a EE. Dr. Hélio Palermo, instituição de ensino fundamental e médio da cidade de Franca SP, a ganhar o prêmio “Educar para Igualdade Racial” 6, concedido pela CEERT em 2012, na categoria Gestão com projeto trabalhado no ensino médio. Vale ressaltar que o prêmio mencionado contempla exclusivamente o ensino médio, portanto séries referenciais para esta investigação. Contudo, esse objeto de pesquisa acaba tangenciando as séries do ensino fundamental II, visto que os estudantes do ensino médio, em sua maioria, cursaram as séries anteriores nesta mesma instituição. Sendo que muitos professores que ministram aulas no ensino médio são os mesmos que lecionam do 6º ao 9º ano do ensino fundamental II. Toda pesquisa investigativa em políticas públicas educacionais passa fundamentalmente pela coleta de dados, que Boni e Quaresma (2005) afirmam que se realiza em três momentos “a pesquisa bibliográfica, a observação em campo e a técnica de coletas de dados, através de entrevistas”. (p.69). Etapas pelas quais transitará esta pesquisa. A primeira busca bases teóricas de estudiosos, por meio de sua bibliografia, que defendem a reescrita da história afro-brasileira de forma positiva, valorizando a cultura africana e a participação do negro na construção da identidade nacional; analisando ainda o material de apoio (caderno do professor e do aluno7), material utilizado na rede, cujo processo analítico se construirá identificando neste material que Oliva (2007) considera primordial para a formação de uma cidadania livre e sem preconceito, que respeita a diversidade étnica e cultural caracterizando a identidade nacional. O material pesquisado se dará em função de ser o referencial teórico utilizado na rede pública estadual na cidade de Franca, SP, o qual possibilitará estudos sobre a temática proposta neste trabalho. 6 Publicação do prêmio à E.E. Hélio Palermo. Ver Anexo III. 7 Material de apoio do currículo é um conjunto de documentos dirigidos especialmente aos professores e alunos, organizados por disciplina/ série (ano) / bimestre. Neles, são apresentadas situações de aprendizagem para orientar o trabalho do professor no ensino dos conteúdos disciplinares específicos e a aprendizagem dos alunos. (Currículo de Ciências Humanas e suas tecnologias do Estado de São Paulo. SEE, 2010) 18 Enquanto a segunda está calcada na realização de entrevistas, importante recurso para a obtenção de informações objetivas e subjetivas, de como acontece a formação de professores e o grau de enraizamento da Lei nº 10.639/03, na escola conforme determina as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004). Enfim, as pesquisas qualitativas em Ciências Humanas trabalham com valores, crenças e práticas difíceis de serem quantificadas. Desse modo, a etapa de coleta e análise de dados em uma abordagem qualitativa configura-se de grande relevância para a validação do trabalho, ao passo que o torna mais palpável. Acentuando que o cerne desta investigação é analisar a efetivação da Lei nº 10.639/03 na EE. Prof. Hélio Palermo; o primeiro capítulo traz uma discussão sobre a formulação e implementação de políticas pública. Discorrendo sobre a dialógica entre a agenda, a institucionalização e a sua efetivação em um momento histórico, nacional e internacional que influenciaram na promulgação desta Lei e a importância da formação inicial e continuada dos profissionais da educação, principais implementadores da Lei. Discussão esta que permitirá aproximarmos do objeto de estudo, compreendendo as relações de poder que estão sempre presentes na elaboração e execução de uma política pública. Para analisar o processo de efetivação da Lei nº 10.639/03, enquanto política pública educacional, é necessário compreender o currículo em seu objetivo de forjar o indivíduo com determinado conhecimento para formar um cidadão ideal, de acordo com valores de uma sociedade, em determinado lugar e tempo histórico. Nesta conjuntura, o segundo capítulo traz uma discussão sobre a formulação e implementação do currículo em um jogo de força e poder, campo de luta no qual o currículo é sempre um processo inacabado, em construção, temática analisada por Candau (2014). De forma crítica e reflexiva também será analisado o currículo do Estado de São Paulo nas áreas de Ciências Humanas, História, Geografia, Filosofia, Sociologia e Arte e Língua Portuguesa na área de linguagem, códigos e suas tecnologias. Observando que os currículos analisados são para o ensino médio, séries as quais a pesquisa se direciona, apenas o currículo de História será analisado também no ensino fundamental II, por ter identificado nas entrevistas e roda de conversa com os alunos ser a disciplina em que mais se estuda questões sobre África, cultura africana e afro-brasileira. Por fim, o terceiro capítulo descreve as características físicas em que a pesquisa de campo foi realizada e revela a principal motivação da investigação: analisar a efetivação ou não da Lei nº10. 639/2003, no quotidiano escolar, os fatores e condições que propiciaram as 19 ações educativas voltadas para as relações étnico-raciais, ressaltando os entraves que comprometem estas práticas. Com a análise dos dados coletados através de observação, conversas informais e entrevistas, que, segundo Gomes (2012), são indicadores de ações determinadas pelas ”Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (BRASIL, 2004), foi possível traçar pontos que dificultam que professores e gestores implementem em suas escolas temáticas voltadas para educação da relações étnico-raciais. Através destes indicadores, urge uma ação de intervenção educacional, no sentido de que todos - independente de “raça”, cor, crença religiosa, classe social e cultural - possam estudar e conhecer sobre África, sua cultura e as novas identidades que foram forjadas no Atlântico Sul, com as novas relações formadas a partir do século XV na América, do branco europeu, o negro africano e o indígena nativo. Conteúdos que ajudaram os estudantes a se reconhecerem na formação identitária brasileira. Que os estudos africanos e afro-brasileiros possam fazer parte dos currículos e do material didático na educação formal, como já acontece com os estudos sobre a Europa e o seu povo. Conteúdos que precisam ser respeitados e trabalhados por professores capacitados. 20 CAPÍTULO 1 REFLEXÃO SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS E A LEI Nº 10.639/2003 Propõe-se no primeiro capítulo refletir sobre a formulação e implementação de políticas pública. A discussão realizada neste texto permitirá aproximar o objeto de estudo, que é investigar efetivação da Lei nº 10.639/03, através do projeto “Cidadania, Memórias e Tradições Afro-descendentes”, na E.E. Dr. Hélio Palermo, instituição de ensino fundamental e médio da cidade de Franca SP, lócus em que a pesquisa foi realizada e que levou a unidade escolar a ganhar o prêmio “Educar para Igualdade Racial”, concedido pela CEERT em 2012, fato que instigou esta pesquisa na busca por desvendar as práticas educativas que comprovem ou não a consolidação das determinações das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (BRASIL, 2004) Para compreender a importância de ações pedagógicas que abarcam estudos culturais de África e dos afro-brasileiros, é necessário conhecer o contexto nacional e internacional em uma conjuntura histórico-cultural e social em que a lei 10.639/03 foi gestada, além de analisar as condições governamentais para implementação da mesma. Assim como analisar o seu grau de efetivação. Analise proposta neste texto. 1.1. A lei Nº 10.639/2003: constituição e formulação na agenda A lei 10.639/03,8 sancionada pelo presidente Lula, que altera a lei nº 9.394/96, nos artigos 26 e 79, tornando obrigatória a inclusão no currículo oficial do ensino a temática História e Cultura Afro-brasileira, como podemos constatar: § 1º - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira. Esta lei também estabeleceu que o calendário escolar incluísse o dia 20 de novembro como “Dia nacional da Consciência Negra”. Em 10/3/2004, também são aprovadas por unanimidade pelo Conselho Nacional da Educação, as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais 8 Lei nº 10.639/2003, ver Anexo I. 21 e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. A institucionalização da Lei Nº 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares está relacionada ao ciclo de uma política pública que primeiro constitui a agenda-desenvolvimento para ocorrer a tomada de decisão e a sua formulação, na sequência acontece à implementação e avaliação. Para analisar políticas públicas, é necessário compreendê-las como um conjunto de elementos que se unem com objetivo de cumprir um fim: o bem-comum da população a quem se destinam; ou mesmo como um processo, objetivando uma finalidade. Nesta perspectiva, as políticas públicas são ações, metas e planos que os governos, nacionais, estaduais e municipais criam e articulam com o objetivo de equiparar e garantir direitos, assim como atender demandas e/ou necessidades de um povo. Nesse ínterim, segundo Frey (1997), os estudos metodológicos sobre políticas públicas avolumaram-se a partir da década 70 do século passado, com literatura de origem anglo- saxão; já no Brasil pesquisas com esta abordagem é ainda mais recente. Esse autor ressalta também que é de fundamental a importância para compreensão e análise de políticas públicas o domínio dos conceitos da policy analysis: policy politics, e polity, policy netwok, policy arena e policy cycle. De acordo com a literatura da ciência política a policy analysis se desdobra em dimensões. Utilizando conceitos em inglês Frey as define em: Polity' para denominar as instituições políticas, ‘politics' para os processos políticos e, por fim, ‘policy’ para os conteúdos da política: a dimensão institucional polity' se refere à ordem do sistema político, delineada pelo sistema jurídico, e à estrutura institucional do sistema político-administrativo; no quadro da dimensão processual politics' tem-se em vista o processo político, frequentemente de caráter conflituoso, no que diz respeito à imposição de objetivos, aos conteúdos e às decisões de distribuição; a dimensão material ‘policy' refere-se aos conteúdos concretos, isto é, à configuração dos programas políticos, aos problemas técnicos e ao conteúdo material das decisões políticas. (FREY, 1997, p.216 - 217). Todavia é necessário esclarecer que as dimensões citadas estão sempre entrelaçadas e influenciam-se mutuamente. Observando que: “As disputas políticas e as relações das forças de poder sempre deixarão suas marcas nos programas e projetos desenvolvidos e implementados” (FREY, 1997, p. 219). Compreendendo ainda que neste processo a policy networks favorece a integração, aproximação ou divergência entre os atores envolvidos, e que a policy arena constitui-se como processo de conflito, mas também de consenso. Para melhor compreensão do contexto histórico em que foi gestada a Lei nº 10.639/03, e da influência externa sobre a sua formulação, observaremos as transformações da primeira metade do século XX, como a Primeira e a Segunda Grandes Guerras Mundiais, a Revolução Socialista na Rússia, entre outros, que causaram grande repercussão no Brasil com greves, 22 movimentos liberais e a Semana de 22, que refletiram no âmbito escolar com formulação e reformulação de leis educacionais. Também na conjuntura da pós-Segunda Guerra Mundial, a qual o mundo repudiava as questões relacionadas a “raças” superiores e inferiores que levaram à morte de milhões de judeus em todo mundo; no Brasil também é repensada a questão de “raça” e há uma grande mobilização por parte da sociedade acadêmica e do movimento negro, a fim de desmistificar o “mito da democracia racial”, impulsionando reformas educacionais. Outro aspecto a ser salientado são as transformações culturais e identitárias que vêm ocorrendo na chamada “pós-modernidade”. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas Identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim a chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2006, p. 07). A argumentação de Hall, (2006) afirma que as identidades modernas vêm sendo descentralizadas, ou seja, fragmentadas, provocando diferentes modificações em estruturas políticas e sociais até então consolidadas. Entre os fatores que têm provocado tal processo de mudança, causando impacto sobre a identidade cultural, está a globalização, descrita por meio de três possíveis consequências: . As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do “pós- moderno global”. . As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização. . As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades - híbridas – estão tomando seu lugar. (HALL, 2006, p. 69). Nesta perspectiva de transformações, na modernidade tardia, segunda metade do século passado e início do século XXI, países como Estados Unidos da América e também europeus têm se deparado com uma nova forma de diáspora (que são migrações em grande número - sejam legais ou “ilegais”- para grandes centros ocidentais desenvolvidos, formando grupos étnicos minoritários), que resulta em uma pluralização entre culturas nacionais e novas identidades. Neste contexto de hibridismo cultural, as identidades oscilam entre a tradição e a tradução, ou seja, identidades não fixas estão em transição e ultrapassam as barreiras das fronteiras de seus próprios países em busca de melhores condições de sobrevivência. Assim, 23 levam com elas traços de suas culturas, tradições e linguagens; e concomitantemente são obrigadas a dialogar com as novas culturas que passam a fazer parte de suas vidas. A modernidade tardia, ao trazer essa nova forma de diáspora, viabilizou movimentos sociais de grande impacto, que ocorreram principalmente nos anos 60 e 70 do século XX como: o feminismo, as revoltas estudantis, os movimentos juvenis, as lutas pelos direitos civis e as ações contra a discriminação de raça, gênero e religião. Momento este que o mundo vivia a grande insegurança causada pela Guerra Fria e as pessoas assistiam pela televisão aos países africanos conquistarem sua independência e aos movimentos de guerrilha acontecendo na América Latina. Estas várias questões ocorridas no chamado “breve século XX”, assim identificada pelo historiador Eric Hobsbawm, irão propiciar uma série de transformações na chamada modernidade tardia, cujas consequências são modificações histórico-culturais de grande monta, provocando novas relações sociais, familiares e de gênero em todo mundo. No Brasil, viviam-se dias cruéis e repressivos da ditadura militar (1964-1985), em que toda e qualquer forma de liberdade de expressão passava pelo crivo ditatorial. Durante os anos de ditadura militar, sem liberdade de se organizarem, muitos negros ingressaram em entidades culturais e de lazer. Com a fundação do “Centro de Cultura e Arte”, em 1969, na cidade de São Paulo, muitos afro-brasileiros passaram a ver através da cultura novas possibilidades de transformações na busca por igualdade social e racial. Também a luta de outros povos negros que viviam sob formas políticas cruéis como o apartheid na África do Sul que, sobre a liderança de Nelson Mandela, colocou fim à última forma de segregação racial institucionalizada. Além da luta de outras lideranças africanas como Agostinho Neto e Samora Machel que influenciaram, nos anos de 1970, militantes negros brasileiros, em suas formações ideológicas e política, que sustentaram as lutas nacionais por igualdade de oportunidades entre os diferentes, como afirmam Albuquerque e Filho, (2006): Nessa mesma ocasião, as comunidades negras pobres de várias cidades do país vinham experimentando transformações importantes. Naqueles anos tensos e tumultuados, a juventude da periferia dos grandes centros passou a exibir novas formas de comportamento, de falar, de vestir e de protestar. Essas transformações refletiam o contato da juventude negra com questões que mais a interessavam no mundo contemporâneo. (ALBUQUERQUE E FILHO, 2006, p. 281-282) Neste momento os vários movimentos culturais que estavam ocorrendo em todo mundo e de maneira especial na Europa, nos Estados Unidos e em muitos países da América Latina, envolvendo jovens afro-descendentes que buscavam, principalmente através da 24 música, uma identidade de afirmação negra e de protesto contra as desigualdades raciais, muito influenciaram nas transformações de jovens negros brasileiros. A música negra estadunidense como a soul music, na voz estridente de James Brown, o funk, o estilo Black Power e o reggae jamaicano passam a ser incorporado por jovens negros no Brasil na década de 70 como formas de reverenciar e valorizar a beleza negra. Nesta conjuntura, em várias cidades brasileiras como Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro os bailes nos salões, as discotecas, as músicas estadunidenses e jamaicanas passaram a ser as preferidas dos brasileiros negros que dançavam, vibravam e viam nestes estilos musicais uma contra cultura, ou seja, uma forma de se opor à cultura eurocêntrica até então dominante. O reggae cantado por alguns jamaicanos e de maneira especial as canções que pregavam a liberdade e a emancipação intelectual do negro, na voz de Bob Marley, fez com que muitos afro-brasileiros adotassem o estilo dreadlocks ou simplesmente rastafári. No Brasil a década de 80 do século XX, foi um período crucial de organização de vários grupos sociais em defesa da redemocratização do país. Momento em que a comunidade negra mobiliza-se formando, a nível nacional, o Movimento Negro Unificado (MNU). Em 18 de junho de 1978, organizações negras uniram-se na realização de um grande ato público nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em protesto a morte do trabalhador negro Róbson Silveira da Luz, devido às torturas sofridas em uma delegacia de Guaínases em São Paulo, a expulsão de quatro atletas juvenis negros do clube Regatas Tietê e o assassinato de um operário negro por um policial, no bairro da lapa. Foi na realização desse ato que se criou o” Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial”; posteriormente abreviado para MNU. A luta dos negros a nível nacional e de forma organizada mostra-se clara neste momento; e passam a exigir políticas públicas educacionais de reparação às injustiças raciais brasileiras que, camufladas sobre o “mito da democracia racial”, continuam presentes no tecido social da nação. Nesse contexto político-social, surge em Franca, interior do estado de São Paulo, cidade na qual esta pesquisa foi realizada, o Movimento Negro Unificado Francano MONUF9, atuando de sua formação em 1980, com a realização do Segundo Encontro de Negros Francanos, realizado no Teatro Municipal de Franca “José Cyniro Goulart”, até por volta de 1987. Este grupo de negros francanos contribuiu de maneira eficaz para que houvesse transformações político-sociais, local e contínua, desenvolvendo esse trabalho através do 9 MONUF (Movimento Negro Francano). Teve grande atuação na cidade de Franca, SP, na década de 1980. 25 Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca CONDECON. Irene Sales de Souza (1988), que pesquisou o grupo por cerca de quatro anos, até 1987, constatou que este teve como fase de grande atuação os anos de 1982 a 1985, buscando e concretizando muito de seus ideais. Numa análise mais a nível macrosocial podemos dizer que o negro reflete o estágio de avanço do movimento negro nacional no sentido em que se autoafirmou por reivindicações anti-racistas e na consolidação da identidade racial e cultural do negro. Influiu no meio político local e nos meios de comunicação da cidade através da denúncia da discriminação, tanto que nos meios de comunicação fala-se com maior cuidado quando a notícia envolve pessoas negras, evitando-se transparecer o racismo. Abriu e conquistou espaço através da afirmação do negro como cidadão. (SOUZA, 1988, p.71). A pesquisadora Souza, (1988), considerou que o MONUF obteve grandes conquistas no processo de democratização local e nacional, porém o movimento não teve de fato um conteúdo popular e de massa, no entanto atuou em duas vertentes que se inserem no MNU (Movimento Negro Unificado) e que são legítimas; buscando ampliar esforços nas estruturas de poder da sociedade e lutando por soluções coletivas para os problemas da comunidade negra. Nessa lógica, o MONUF conectou-se ao MNU e na luta para obter da voz oficial brasileira o reconhecimento de que se vive em uma sociedade racista, logo necessita-se de medidas reparatórias às vítimas do racismo. Nesse contexto, vale ressaltar que durante centenas de anos, o ensino educacional no Brasil esteve voltado para atender às necessidades educacionais da população branca e economicamente dominante. Somente nos anos 80 do século passado, com a redemocratização pós Ditadura Militar e as pressões da comunidade negra, é que as questões antirracistas relacionadas às políticas de igualdade, reconhecimento e alteridade ganharam visibilidade. Em 1987, o então presidente da república José Sarney cria o Programa Nacional do Centenário da abolição da escravatura, este a ser executado durante o ano de 1988, constituindo momento propício para debater as relações raciais. Neste mesmo ano promulga- se a Constituição Federal, em 05 de outubro, que no plano formal traz avanços no que se refere à questão racial. Chamada “Constituição Cidadã”, institui um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, que é reforçado pelos princípios da prevalência dos direitos humanos e pelo repúdio ao racismo. Resultado das lutas sociais e da política do movimento negro pode-se destacar algumas conquistas 26 como: o reconhecimento das contribuições culturais dos diferentes segmentos étnicos que formam a população brasileira: a criminalização do racismo, o direito das comunidades remanescentes de quilombos ao reconhecimento da propriedade definitiva de suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos de propriedade, a sinalização da necessidade de um currículo escolar que reflita a pluralidade racial e a reconsideração da África na concepção da nacionalidade brasileira. Diante da mobilização que se fez em torno da constituinte e do centenário da abolição criou-se, em âmbito nacional, uma assessoria para assuntos afro-brasileiros e, posteriormente, em 22 de agosto de 1988, a Fundação Cultural Palmares. A Fundação Cultural Palmares – FCP – Tem por finalidade promover e preservar a cultura afro-brasileira. Preocupada com a igualdade racial e com a valorização das manifestações de matriz africana, a Palmares formula e implanta políticas públicas que potencializam a participação da população negra brasileira nos processos de desenvolvimento do País. Foi o primeiro órgão federal criado para promover a preservação, a proteção e a disseminação da cultura negra. (Ministério da Cultura - FCP - Fundação Cultural Palmares). 10 Nos anos 90 do século passado, vários acontecimentos ocorreram em âmbito nacional em especial no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003): a “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” em 20 de novembro de 1995, que destaca a abertura em relação ao tema, feita pelo chefe de Estado, quando o presidente reconhece publicamente a existência e a relevância do problema racial, bem como a necessidade de interlocução política com o Movimento Negro Brasileiro. Nesse contexto, cria-se através do decreto presidencial de 20 de novembro de 1995, o grupo de trabalho Interministerial de Valorização da População Negra. Na década de 1990, o MONUF não mais se reunia, mas diante de toda essa efervescência de debates e conquistas da população negra, muitos de seus membros continuaram ativos na participação pela causa do negro, através de eventos e discussões promovidas pelo poder público. Pensando no ciclo que constitui uma política pública: agenda-desenvolvimento, tomada de decisão para formulação, implementação e avaliação, a lei 10.639, sancionada pelo presidente Lula em 2003 e normatizada em 10/3/2004, pelo Conselho Nacional da Educação, aprovando as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, Rodrigues (2005) realiza 10 Disponível em: www.cultura.gov.br/cultura-afro. Acesso 10 jun 2015. https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=8&cad=rja&uact=8&ved=0CDIQFjAHahUKEwjzuOW1roXHAhVLf5AKHWALDq8&url=http%3A%2F%2Fwww.cultura.gov.br%2Fcultura-afro&ei=_Gi7VfPKKMv-wQTglrj4Cg&usg=AFQjCNHltpA3EwNH_HbzxIdQSBvxXggNug&sig2=HVqJKYX04zWFTPpuUb0rXA https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=8&cad=rja&uact=8&ved=0CDIQFjAHahUKEwjzuOW1roXHAhVLf5AKHWALDq8&url=http%3A%2F%2Fwww.cultura.gov.br%2Fcultura-afro&ei=_Gi7VfPKKMv-wQTglrj4Cg&usg=AFQjCNHltpA3EwNH_HbzxIdQSBvxXggNug&sig2=HVqJKYX04zWFTPpuUb0rXA http://www.cultura.gov.br/cultura-afro 27 uma interessante abordagem referente a esta legislação. A pesquisadora analisa a Lei nº 10.639/03 como parte do desdobramento das intensas discussões da sociedade civil brasileira, que acontece sobre as lideranças de ativistas do movimento negro e acadêmicos engajados, com as questões étnico-raciais. Segundo Rodrigues (2005), os debates em torno desta temática intensificaram-se no início de 2.000, devido ao processo de preparação para a “Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância Correlata”, que ocorreu em Durban África do Sul em 2001. A preparação do Brasil para participar da conferência em Durban desempenhou importante papel no sentido de eliminar a discriminação contra mulheres e minorias étnicas, objetivando equiparar brancos e negros para participarem da sociedade com igualdade de oportunidades. Para tanto, nesse momento o governo brasileiro assume publicamente, pela primeira vez, a existência da discriminação racial no Brasil, afirmando a necessidade nacional de buscar justas compensações para os afro-descendentes. A atuação de autoridades governamentais ficou visível no empenho e esforço de recursos do Itamaraty para que acontecesse a participação brasileira no evento. O Brasil fez-se presente na Conferência de Durban com uma grande delegação: o movimento negro enviou cerca de 200 ativistas, a delegação do governo marcou presença com 50 pessoas, incluindo representantes do governo e da sociedade civil, ressaltando ainda que a brasileira Edna Roland, ativista do movimento negro, foi escolhida para ser a relatora geral da Conferência. Após a Conferência de Durban, no Brasil, ocorreu considerável empenho do governo em propor ações com princípios de igualdade, inclusive racial, com foco nos direitos humanos. Entre as ações governamentais ligadas à educação pode-se citar a reserva de vagas nas universidades públicas para alunos pretos e pardos; programas de ampliação, acesso e permanência do negro no ensino superior, com programas de bolsas; além da promulgação da lei nº 10.639/03, que foi amplamente saudada pela maior parte da comunidade negra. A promulgação dessa lei foi ao encontro das antigas reivindicações do movimento negro, ao passo que esta já havia sido apresentada pela deputada Benedita da Silva, no momento de elaboração da atual LDB/96. Para Rodrigues (2005), a lei Nº 10.639/03 tem importância fundamental no resgate dos valores da cultura africana, afirmando que: Sua aprovação pode ser compreendida como um dos desdobramentos do Programa de Ação deliberada na III Conferência de Durban, conjugada ao trabalho e mobilização do movimento negro, que durante décadas vem desenvolvendo ações de 28 resgate e valorização da história da população negra, de sua cultura e identidade, ações que compreendem a atuação direta nas escolas, em parceria com secretarias de educação, com conselhos da comunidade negra, na elaboração de material didático e no fomento do debate sobre ação afirmativa. (p.86) Foi neste contexto de ações pós-Durban que alguns dos antigos participantes do MONUF reorganizaram-se para, assim como outros grupos, buscar através do poder público ações que viessem concretizar anseios e necessidades da comunidade negra francana. Nessa oportunidade voltaram a se reunir com o objetivo de modificar o Conselho Municipal da Comunidade Negra de 1986, no que dizia respeito à paridade do conselho. Os conselhos municipais, representados pelos vários seguimentos da sociedade, já eram muitos no final da década de 90 do século passado chegando nesse período a 27 mil, uma média de quase cinco por município, apenas 20 municípios não possuíam conselho. Porém, os conselhos específicos criados para o desenvolvimento de comunidades negras tornaram-se eficazes, em sua maioria, após a “Conferência de Durban” em 2001. A criação desses conselhos em vários municípios brasileiros foi um passo importante para se cobrar do governo o cumprimento do compromisso internacional, da implantação de políticas públicas voltadas especialmente para o combate à discriminação racial. Nesse sentido, os conselhos foram institucionalizados objetivando promover nos municípios essas políticas e, assim, assegurar condições de igualdade de direitos entre a população branca e negra, fortalecendo a sua participação plena na vida política, econômica, social e cultural. Esses conselhos passaram a apresentar novos canais de interlocução e parceria entre sociedade civil e Estado. Sua grande importância está em introduzir no aparelho do Estado não só reivindicações, mas também a implementação e a supervisão de políticas públicas que atendam aos anseios da comunidade negra. Aspecto também importante da atuação dos conselhos é a sua interlocução com a sociedade civil para promover a mobilização dos recursos humanos e materiais em organizações não- governamentais, mídia e setor privado em benefício de iniciativas para o combate a discriminação e o preconceito-racial. Acreditando na importância de um conselho que representasse a comunidade negra do município de Franca, não obstante, fosse ponte de interlocução com o poder público para se concretizar ideias contidas nas ações afirmativas, que já eram realidade em muitas cidades no pós-Durban, representantes da Comunidade Negra Francana, muitos dos quais ativistas do MONUF reuniram-se no final de 2002. Nesse momento estabeleceram algumas metas, entre as quais estava a formação do conselho que, apesar de existente desde 1986, foi modificado e em 22 de agosto de 2003 o projeto de Lei nº 6.009 criou o Conselho Municipal de 29 Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca (CONDECON), que em seu Art. 1º nos faz conhecer dos seus objetivos: Fica criado o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca- CONDECON, de caráter consultivo e deliberativo, objetivando resgatar o espaço de participação do negro no sentido de que sua raça, seus costumes, seus valores culturais e seus anseios sejam rigorosamente preservados, buscando políticas e programas para o fortalecimento de combate ao racismo e para a promoção da igualdade racial, rompendo com o preconceito, a discriminação e exclusão social. O movimento negro, desde o início, tem como prioridade a educação, pois vê neste processo uma forma do negro, através do conhecimento, equiparar-se ao branco na demanda trabalhista e social de oportunidades iguais entre os diferentes. Este objetivo levou o CONDECON a buscar meios legais de inserção de jovens negros francanos em faculdades locais, através do sistema de cotas, conforme determinava a Lei federal nº 10.558 de 13 de maio de 2002, que cria o Programa de Diversidade na Universidade com percentuais de reservas de vagas para negros dos cursos disponíveis. Com base neste marco legal, o CONDECON consegue, através da lei municipal nº 6.287/04, criar sistema de cotas para negros na Uni-Facef (Centro Universitário de Franca) e na FDF (Faculdade de Direito de Franca). Na luta por maior conscientização do ser negro e de valorização da cultura afro- brasileira a comunidade negra francana, por meio do CONDECON, usando da força do debate, mobilizou a sociedade. Ademais, consegue com a Lei nº 6.571, de 10 de maio de 2006, instituir o dia 20 de novembro feriado municipal, objetivando refletir e debater temáticas relacionadas à cultura afro-brasileira e prestar homenagens aos descendentes ou aos representantes da comunidade negra. Na área educacional esta conquista representou um grande passo para a comunidade negra francana, uma vez que os negros brasileiros se vêem em dolorosas situações de exclusão a que são impostos pela história de escravização a que foram submetidos. Cotidiano que não é diferente para os negros francanos descendentes de africanos e que buscam, através de políticas de ações afirmativas, verem reparadas as injustiças das quais são vítimas. Visão também defendida por Silvério (2005). É neste quadro que deve ser interpretada a exigência dos negros brasileiros, descendentes dos africanos que para cá foram trazidos escravizados, por reparações por políticas de ações afirmativas, por metas, tais como cotas nas universidades. Estas demandas têm de ser entendidas como indenizações devidas, pela sociedade, àqueles a quem ela tem impedido vida digna e saudável, trabalho, moradia, educação, respeito a suas raízes culturais, à sua religião. O pagamento da dívida precisa ser concretizado mediante políticas, organizadas em programas de ações, que 30 eliminem as diferenças sociais, valorizando as étnico-raciais e culturais. (SILVÈRIO. 2005, p.147). As reuniões do COMDECON continuam acontecendo semanalmente, as quartas feiras, 19 horas na Casa do Artista Francano Abdias do Nascimento, localizada no centro da cidade. Estas reuniões são abertas, ou seja, podem participar pessoas que não fazem parte do conselho, nestas reuniões discutem-se questões políticas, culturais e sociais, planejam e avaliam ações relacionadas à cultura afro-brasileira. Constitui também lócus especial de fortalecerem-se enquanto negro, além de buscarem formas de luta na construção de uma sociedade mais justa e de igualdade entre negros e não negros. Conhecer o envolvimento da comunidade negra francana nos vários seguimentos: sociais, políticos e educacionais ajudam a compreender a consciência sobre o ser negro na sociedade francana e como a lei 10.639/03 foi e continua sendo recebida e praticada nas escolas e vivenciada ou não pela comunidade escolar. A institucionalização da Lei Nº 10.639/2003, que alterou a LDB/96 instituindo a obrigatoriedade do ensino de história, cultura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e particulares de educação básica, é fruto das várias formas de resistência do negro africano, do afro-descendente e de acadêmicos engajados na luta por liberdade, por direitos de igualdade entre negros e não negros. Todavia este marco legal não acontece de forma isolada, mas como observa-se ao longo deste capítulo, está inserido em um contexto internacional de lutas contra a discriminação e o racismo. Perspectiva que Rocha (2006) discute em sua dissertação de mestrado. Permitindo melhor compreensão da influência dos organismos internacionais na institucionalização das políticas públicas compensatórias no Brasil. Por vieses econômicos, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), principais representantes da nova ordem econômica internacional contemporânea na defesa do sistema capitalista, têm tomado algumas medidas em relação à pobreza e aos grupos historicamente discriminados, com objetivo de minimizar a crise que tem vivido os países chamados periféricos, principalmente a partir dos anos 80 do século passado. Concomitantemente, organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a UNESCO11, apesar de serem fiéis aos princípios capitalistas, atuando em sintonia com a lógica do mercado, vem desempenhando importante influência na elaboração de 11 - UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Foi fundada logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1946. Tem sede em Paris e atua em 112 países. Objetivo é de contribuir para a paz e segurança no mundo, através, da ciência, da cultura e das comunicações. 31 políticas públicas nas mais diversas áreas sociais em todo mundo, inclusive no Brasil. Como propõe Rocha, (2006) ao detectar que há (...) o interesse dos organismos internacionais para com as políticas específicas para grupos historicamente discriminados e com a questão racial brasileira. Pelas mãos dos organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial, a preocupação se apresenta associada ao discurso do alívio à pobreza. Pelos organismos multilaterais, como ONU e UNESCO, pelo viés da fraternidade e convivência entre os povos. Mesmo considerando-se o trabalho diferenciado da UNESCO e da ONU, pode-se afirmar que a conjuntura atual de organização econômica mundial estabelece um clima favorável ao desenvolvimento de políticas compensatórias, focalizadas em grupos específicos. (ROCHA, 2006, p.52) Inserida nesta conjuntura internacional que as políticas sociais educacionais chegam ao Brasil e justificam as ações afirmativas de inclusão racial, como exposto neste documento proferido pela casa civil (2003): A Secretaria Especial terá como uma de suas temáticas as ações afirmativas de inclusão racial. Além da base constitucional que recebem, as ações afirmativas são previstas expressamente em vários tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil. Entre eles, merece destaque a Convenção Internacional sobre todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada em 1968, que assim dispõe, no item 1 do seu Art. 2º : 1. Os Estados-Partes condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados, e sem tardar, uma política de eliminação da discriminação racial em todas as suas formas e de promoção de entendimento entre todas as raças. (BRASIL, casa civil, e.m.i. nº 18 – ccivil/mpo, (2003). Ao analisar o contexto histórico-social em que a Lei Nº 10.639/2003 foi formulada, é possível observar que assim como qualquer outro programa, ação ou projeto, as políticas públicas ao serem gerenciadas, formuladas, implementadas e avaliadas por pessoas são gestadas e articuladas sobre a influência de poderes, de embates e conflitos, sejam eles, políticos, sociais ou econômicos. Neste ambiente Draibe (2001) nos diz que “... as políticas e os programas têm também carne e osso, melhor, têm corpo e alma”. (DRAIBE, 2001, p.03). Pois toda política ou programa ao serem elaborados por pessoas, sempre sofrem a influência do meio socioeconômico, cultural e político, seja macro ou micro. O terreno onde as políticas públicas se constituem são campos de discussões, em um jogo de poder que se constrói gradativamente. 1.2 A Lei Nº 10.639/2003 e a sua implementação 32 Neste texto trataremos das estratégias e estruturas utilizadas na efetivação da Lei Nº 10.639/03, os atores envolvidos, as parcerias realizadas, a capacitação dos sujeitos, a disponibilidade de material e as condições estruturais para que as ações sejam desenvolvidas. Nesta perspectiva, Draibe explica que na implementação de uma política pública inclui-se: “... tanto as atividades-meio, que viabilizam o desenvolvimento do programa, quanto a atividades-fim, ou execução propriamente dita, antes que se rotinize.” (DRAIBE, 2001, p.15). Ainda segundo a autora, quando se avalia a implementação de uma política pública de forma qualitativa se objetiva: As avaliações de processo, de natureza qualitativa, buscam identificar os fatores facilitadores e os obstáculos que operam ao longo da implementação e condicionam positiva ou negativamente o cumprimento das metas e objetivos. Tais fatores podem ser entendidos como condições institucionais e sociais dos resultados. (DRAIBE, 2001, p.16). Portanto, a questão primordial que norteia esta investigação é detectar no plano das ações o que tem garantido os sucessos e os fracassos na implementação das temáticas africanas e afro-brasileira, de acordo com as “Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. (BRASIL, 2004). As políticas públicas transitam necessariamente por diferentes fases: formulação da agenda (policy), implementação (politics) e avaliação (polity). Observando que ao analisar uma política pública, muitas vezes, pode se identificar a necessidade de reajustes. Em se tratando da Lei Nº 10.639/03 o historiador Oliva (2007) observa que mesmo com os avanços em leituras e pesquisas positivas, e utilização de mecanismos diversos para alargar o olhar sobre a África e os africanos, ainda persistem lacunas e silêncios a serem desvendados acerca destas questões. Sendo necessário não apenas analisar o processo de implementação da Lei, objeto desta investigação, mas também propor ações de intervenção, objetivando reajustes que possam valorizar os estudos africanos nas escolas brasileiras como um universo histórico- cultural, rico, diverso e complexo; e não como um continente vitimizado e marcado por estereótipos. Nesta perspectiva, Lima (2003) argumenta que: Ao mesmo tempo, é necessário despirmo-nos dos preconceitos etnocêntricos (olhar um povo ou etnia com valores de outro) – a África como lugar atrasado, inculto, selvagem – e deixar de ou supervalorizar o papel de vítima – do tráfico, do capitalismo, do neocolonialismo -, a atitude que alimente sentimentos de impotência e incapacidade. (...) Mas há também que (...) trazer essas áfricas para os espaços culturais e educativos, como já se tem feito, alias. Ler, mas também escutar, ver e participar (...). (Oliva, 2007, apud LIMA, 2003, p. 85) 33 Assim, o grande desafio hoje enfrentado pela sociedade brasileira na construção de uma identidade negra positiva e no desconstruir do mito da “democracia racial” é levar a discussão do ser negro, do pertencimento enquanto cidadão brasileiro para a formação de professores seja formação continuada ou em cursos de licenciatura. Para isto é urgente a reavaliação do currículo escolar e da formação de professores para que os mesmos possam privilegiar conteúdos e práticas que levam a uma reflexão mais ampla sobre raça negra, diversidade identitária e educação. Para melhor compreender o chamado “mito da democracia racial”, é necessário retomar o início do século XX, em que no Brasil era perceptível a dificuldade para a constituição de uma nação que se pensava a partir da superioridade e inferioridade das raças; justificado através do naturalismo biológico. Todavia, por volta de 1930, entre as várias transformações que estavam ocorrendo no Brasil, Gilberto Freyre, sociólogo brasileiro, pública, em 1933, uma de suas obras mais importante “Casa Grande e Senzala”, formalizando a concepção culturalista de valorização das três matrizes que constitui a nação brasileira, do branco europeu, o índio nativo e o negro africano. Através de uma releitura positiva do mestiço brasileiro, Freyre vai resgatar elementos culturais como o samba, o futebol e a mulata que se tornam símbolos nacionais. Ao relatar em sua obra a convivência harmoniosa entre brancos e negros, Freyre viabiliza a criação do chamado “mito da democracia racial”, pois reconhece elementos culturais de origem afro na formação da nacionalidade brasileira, contudo não menciona a desigualdade econômica entre brancos e negros, herança de mais de trezentos anos de escravização do negro deportado de África. Mesmo não tendo escrito ou falado de forma direta que o povo brasileiro vivia em uma democracia racial, foi através de sua obra que surgiu a ideia de que no Brasil não há racismo. O Mito da democracia racial é a ideia de que há no Brasil uma convivência pacífica das etnias, e que todos teriam chances iguais individualmente para alcançar o sucesso. Esta ideologia meritocrática nega toda a história de escravidão de nosso país. O paradigma do “mito da democracia racial” começa a ser desconstruído quando organismos internacionais como a UNESCO, com objetivo de compreender o modelo brasileiro de convivência racial harmônica, sistematiza um estudo sobre a temática. Encomendada esta investigação, em 1950 o sociólogo Florestan Fernandes desvenda a abordagem racial brasileira, observando-a partir do ângulo da desigualdade. Assim as falácias do mito são expostas, ao revelar ao invés de democracia racial a existência das marcas da 34 discriminação, ressaltando uma forma particular de racismo, preconceito velado encoberto sobre o manto da chamada “democracia racial”. As “Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (BRASIL, 2004) determinam como forma de desconstrução do mito da democracia racial: Reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira. E isto requer mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras. Requer também que se conheça a sua história e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros. (Brasil, 2004, p. 11-12) Este documento orienta ainda que cursos de formação abarquem todos os profissionais da área educacional e não apenas professores. E que devem ser introduzidos conteúdos como: (...) análises das relações sociais e raciais no Brasil; de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância, preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do ensino e aprendizagem da História e Cultura dos Afro-brasileiros e dos Africanos. (Brasil, 2004, p.23) Também determina sobre a formação de professores a: Inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da matriz curricular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos iniciais e finais da Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, como de processos de formação continuada de professores, inclusive de docentes no Ensino Superior. (Idem. p.23). Com a institucionalização da Lei nº 10.639 em 2003 e a sua normatização em 2004 com as “Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (BRASIL, 2004), o poder público federal, estadual e municipal intensificou os empreendimentos para que essa lei fosse implementada. Sobre estes aspectos, Bakke (2011), em sua tese de doutorado, afirma que após a promulgação da Lei 10.639/03 os governantes se empenharam em nortear: 35 Os caminhos a respeito de como fazer para implantar a Lei continuaram a ser trilhados. Essas ações foram desde a divulgação da Lei e distribuição das Diretrizes até a organização de seminários, fóruns, realização de cursos de formação de professores (presenciais e a distância), estímulo à produção e publicação de material didático referente ao conteúdo de história da áfrica e cultura afro-brasileira, entre outros. (BAKKE. 2011, P. 66) Em nível federal pode-se identificar, através do quadro abaixo, ações que visam à efetivação da Lei nº 10.639/03. QUADRO 01: Ações empreendidas pelo poder público federal com o objetivo de implementar a Lei nº 10.639/03. AÇÕES EMPREENDIDAS OBJETIVOS Criação da Secretaria de Educação Continuada Alfabetização, Diversidade. (SECAD) em 2004. Criar meios para implementar a Lei em âmbito nacional. Projeto a Cor da Cultura criado em 2004. Um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira; fruto de uma parceria entre o Canal Futura, a Petrobrás, o CIDAN - Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, o MEC, a Fundação Palmares, a TV Globo e a SEPPIR - Secretaria de políticas de promoção da igualdade racial. Formação de professores, bem como produzir e distribuir material didático e paradidático para trabalhar temas determinados nas “Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. (BRASIL, 2004). Programa Diversidade na Universidade. Criado em 2005 Publicar e estimular, produções referentes aos conteúdos da Lei nº 10.639/03. TV. Escola é o canal da educação. Televisão pública do Ministério da Educação destinada aos professores, educadores, alunos e a todos interessados em aprender. Passou a veicular programas voltados ao respeito da diversidade étnico- racial. Comissão Técnica de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-brasileiros, (CADARA) criado em 2005 é um órgão técnico vinculado ao MEC, de natureza consultiva e propositiva Assessorar o MEC nas questões sobre diversidade. Elaborando, avaliando e analisando políticas públicas educacionais voltadas para o cumprimento da Lei nº 10.639/03. Programa de Ações Afirmativas para populações negras nas instituições públicas de educação superior (UNIAFRO) criado em 2008 Fortalecer os Núcleos de Estudos Afro- brasleiros (NEABs). 36 Fonte: BAKKE,2011, p. 66- 70 O Estado brasileiro ao reconhecer a Lei 10639, o Parecer do Cne03/2004 e a resolução 01/2004, bem como a Lei 11645/2008 como instrumentos legais que orientam ampla e claramente as instituições educacionais quanto a suas atribuições, mobiliza os vários órgãos: UNESCO, o CONSED, a UNDIME, Ministérios, intelectuais, movimentos sociais e organizações da sociedade civil no sentido de reunir esforços para que os estudos voltados para a educação étnico-raciais sejam uma realidade nas escolas brasileiras. E as diferenças sejam vistas como uma riqueza e não como um pretexto para justificar as desigualdades. Após institucionalização da Lei nº10.639 de 09 de janeiro de 2003, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/96), no sentido de fazer cumprir a Lei o estado de São Paulo, assim como outros estados da federação empreende várias ações. Com o decreto nº 48.328 de 2003, o governo de SP institui Políticas de Ações Afirmativas, e a formação de professores fica a cargo da Secretaria de Educação que, em parceria com a Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- brasileira e Africana. Documento finalizado no Encontro Nacional realizado em Brasília em 1º de julho de 2008 No âmbito de todo o Ministério da Educação e nas gestões educacionais de municípios, estados e do DF, objetiva-se garantir condições adequadas para o pleno desenvolvimento da lei n. 10.639/2003 como política de Estado. Promover a valorização e o reconhecimento da diversidade étnico- racial na educação brasileira a partir do enfrentamento estratégico de culturas e práticas discriminatórias e racistas institucionalizadas presentes no cotidiano das escolas e nos sistemas de ensino que excluem e penalizam crianças, jovens e adultos negros e comprometem a garantia do direito à educação de qualidade de todos e todas. (Documento citado, 2008 p. 11) Pesquisa organizada por Nilma Lino Gomes apoiada e financiada pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e pela representação da UNESCO no Brasil Publicada em 2012 com o título : “Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03”. A pesquisa teve por objetivo identificar, mapear e analisar as iniciativas desenvolvidas pelas redes públicas de ensino básico e as práticas pedagógicas realizadas por escolas pertencentes às redes de ensino, municipais, estaduais e federais em todo país na perspectiva da Lei n.º 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e cultura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio do país. 37 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), inicia um programa de formação para professores do ciclo I, intitulado “São Paulo Educando Pela Diferença para Igualdade” 12 O programa visou promover a sensibilização dos educadores para a temática racial, através da exploração do conteúdo proposto, o qual foi composto por dois módulos, sendo cada um de 40 horas, totalizando o curso em 80 horas. O que vai ao encontro das ideias defendidas por, Tancredi: Os professores também aprendem - e aprendem muito - com as políticas públicas que chegam às escolas, Em função delas, as práticas precisam ser transformadas numa certa direção, e os professores acabam por alterar seu modo de agir para contemplar as mudanças pretendidas; destaca-se que essas mudanças não podem e não devem mudar radicalmente o fazer docente. As mudanças devem ser pensadas cuidadosamente, implementadas com critério, mantendo o núcleo válido da atuação, num constante experimentar, analisar, experimentar novamente. (TANCREDI, 2009, p.27). O curso ministrado pela UFSCar foi desenvolvido através de aulas presenciais e videoconferências com especialistas do assunto, sendo mestres e doutores. Os módulos trataram das temáticas, diversidade cultural e currículo: - A escola e a construção da identidade na diversidade, juventude, Ensino Médio e diversidade pedagógica de exclusão; - Diversidade cultural e currículo: a questão racial na prática educativa dos/as professores/as. O início do projeto ocorreu em 2004, sendo capacitados professores do ciclo I e do Ensino Médio. Primeiramente educadores da capital e expandindo para todo interior paulista. A Diretoria de ensino de Franca, na qual a pesquisa está sendo realizada, contou, no primeiro momento, com a participação de 30 professores da Educação Básica, fundamental I, e posteriormente em 2005 e 2006 com vários professores do fundamental II e Ensino Médio. Dando continuidade ao programa “São Paulo Educando Pela Diferença para Igualdade”, a UFSCar, em parceria com o governo federal e a Secretaria de Educação de SP, ofereceu o curso de pós-graduação Lato Sensu em estudos Culturais Afro-Brasileiros e Africanidades, realizado no período de março de 2006 a dezembro de 2007. A Secretaria do Estado de São Paulo realizou ainda em 2004: ... em parceria com o MEC/SECAD, o Fórum Estadual de Educação e Diversidade Étnico-racial, contando com a participação de educadores das redes pública estadual 12 Projeto: São Paulo Educando pela Diferença para Igualdade. Capacitação de professores da rede pública do Estado de São Paulo, em parceria com a UFSCar, ver Anexo I V. 38 e municipal de São Paulo. Realizou, ainda, em conjunto com o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de São Paulo, em novembro de 2005, o Seminário Diversidade Étnico-racial na Escola: Propostas e Desafios. (SÃO PAULO, 2012, p.37) Em 2008, também foi realizada a campanha “120 anos de abolição – Racismo: Se você não fala quem vai falar?”, com subsídio de videoconferências proferido por especialistas. Neste ano ocorreu também a reestruturação do “Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnicorracial do Estado de São Paulo”. No ano seguinte, em 2009, a Secretaria de Educação, em parceria com a Secretaria da Cultura, instituiu o Projeto “África em Nós e na Sala de Aula” e realizou o “I Seminário do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-racial do Estado de São Paulo”, no qual foi lançado o “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico- raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana”. No ano de 2010 A SEE realizou cursos de formação para professores coordenadores da oficina pedagógica das 91 diretorias de ensino em: História e cultura africana e afro- brasileira nos componentes curriculares de História, também o concurso “Escola faz Samba" e o no mês de novembro o seminário “Superação da discriminação racial no ambiente educacional”. A Secretaria da Educação como membro do Fórum Permanente da Educação da Diversidade Étnico-racial de São Paulo (FEDER/SP) incentiva os projetos descentralizados, (PRODESC) pelos quais as escolas formulam projetos sobre a temática afro-brasileira, indígena entre outros temas, dentro da perspectiva do currículo ou como temas transversais. Através deste projeto a EE. Prof. Hélio Palermo visitou o Museu afro em São Paulo em 2013. Dessa forma, a capacitação de professores constitui o princípio básico para que a Lei nº10. 639/03 possa, de fato, efetivar-se, pois é notável a distância entre o preceito legal e a realidade sócio-educacional; porque é na dinâmica social, no embate político e nas relações de poder que o currículo escolar constrói-se no cotidiano Para que o conteúdo da Lei nº 10.639/03 se efetive, é necessário também que o material didático utilizado em todos os graus de ensino traga visões positivas sobre o negro, a cultura africana e o afro-brasileiro, com reflexões claras e objetivas sobre a diversidade cultural, e que os profissionais da área educacional tenham postura ética independente de qual seja seu pertencimento étnico/racial. No município de Franca-SP, a Diretoria de Ensino vem desenvolvendo, junto às escolas e à comunidade, projetos referentes à cultura afro-brasileira em períodos que 39 antecedem a promulgação da Lei nº 10.639/03. A este exemplo pode-se citar a parceria entre a Diretoria de Ensino e o centro cultural de capoeira “Raízes do Brasil” que, na cidade de Franca, foi liderado pelo professor Roberto Didio da Silva, contra-mestre Chocolate, por vários anos, tendo iniciado atividades em Franca em 1993. Com objetivo de contribuir para a valorização e afirmação da cultura popular brasileira, através de estudo, pesquisa e ensino cultural brasileiro de origem africana. Esse grupo realizou projetos em várias escolas públicas estaduais francanas. Após a promulgação da Lei a Diretoria de Ensino de Franca intensificou as formas de capacitação dos profissionais da área de educação. Em agosto de 2003 nasce o Projeto “Identidade, Cidadania, Cultura Negra”, com objetivo de reconhecer: [...] o valor e a diversidade da herança cultural dos africanos e afrodescendentes e afirmamos a importância e a necessidade de assegurar sua total integração à vida social, econômica e política, visando facilitar sua plena participação em todos os níveis dos processos de tomada de decisão. (Artigo 32 – Relatório da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Conferência realizada em Durban, África do Sul, apud, OLIVEIRA, 2009, p. 1) Em maio de 2005, através do projeto “Identidade, Cidadania, Cultura Negra”13 idealizado pela Diretoria de Ensino de Franca em parceria com o grupo Raízes do Brasil, foram realizadas oficinas com a temática: “O jongo caxambu, e o Berimbau-passado e presente na cultura negra”. As oficinas foram realizadas em três dias, contabilizando 24 horas de atividades e direcionadas a professores de História, Arte e Língua Portuguesa, sendo aulas práticas orientadas pelo contra-mestre Chocolate, em que os educadores construíram berimbau, aprenderam danças e músicas de origem africana. Através do projeto “Identidade, Cidadania, Cultura Negra proposto pela Profª Ivani de Lourdes Marchesi de Oliveira Dirigente Regional de Ensino, em uma abordagem inter e transdisciplinar, capacitou professores de História, Geografia, Língua Portuguesa, Arte, Matemática, Ciências, e Educação Física. Conforme declara a pesquisadora Silva (2013) em sua tese de doutorado: Partindo das orientações recebidas em São Paulo, a Diretoria de Ensino de Franca inseriu desde 2004, o trabalho com a Lei 10.639/2003 e suas diretrizes. Isso se operacionalizou com a oferta de orientações técnicas oferecidas aos professores de História, Geografia, Língua Portuguesa, Artes, Ciências, Educação Física, Inglês e Matemática. (SILVA, 2013, p.98) 13 Detalhes sobre o projeto, ver anexo V. 40 As orientações direcionadas à capacitação de professores citadas por Silva (2013) aconteceram até 2007, pois no ano seguinte em 2008 a SEE implantou o “Programa São Paulo faz Escola”, que entre as várias ações elaborou novas propostas curriculares para toda a rede. O Programa propõe um currículo para os níveis de Ensino Fundamental Ciclo II e Médio. Cuidou-se para que os Currículos de História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Língua Portuguesa e Arte cumprissem a política educacional que reconhece a diversidade étnico-racial em correlação com a faixa etária e com situações específicas de cada nível de ensino. Produziram-se, ainda, videoconferências intituladas O mês da Consciência Negra e o Museu Afro Brasil e História e Cultura Africana e Afro-brasileira e a lei 10.639/03 e seu impacto na rede de Ensino. (SÃO PAULO. p.37 - 38) Em 2008 com objetivo de implementar as novas propostas curriculares do estado de São Paulo, as orientações técnicas promovidas pela diretoria de ensino de Franca passa a contar com material didático como: textos, indicações de filmes e sites para facilitar o trabalho dos professores. Os temas propostos para cada uma das disciplinas foram: > HISTÓRIA: Negro: História, Resistência e Valorização. > GEOGRAFIA: O Lugar de Vivência das Comunidades Remanescentes de Quilombos. > LÍNGUA PORTUGUESA: A expressão da etnia negra na Literatura brasileira. > ARTE: O Negro brasileiro nas Artes Plásticas. > MATEMÁTICA: Isonomia de Direitos: a discriminação racial nas mulheres negras é constante. > CIÊNCIAS: Saúde e Relações Raciais > EDUCAÇÃO FÍSICA: Racismo no Esporte e projeção da Cultura Negra. (OLIVEIRA, 2009, p. 6). Professores representantes de cada unidade escolar, que participavam das orientações tinham a função de multiplicadores junto a seus pares, para que em cada local de trabalho desenvolvessem atividades de acordo com as temáticas propostas e, em geral na semana de 20 de novembro, apresentavam com seus alunos os trabalhos desenvolvidos em todo ano letivo. Em 2009 foram distribuídas para todas as escolas da rede estadual, uma coletânea com as produções relacionadas ao projeto. As formações para os educadores da rede pública estadual de SP no município de Franca na perspectiva da Lei nº 10.639/03 são direcionadas por PCNP (Professor Coordenador do Núcleo Pedagógico) da área de Ciências Humanas: História, Geografia, Filosofia e Sociologia, desta Diretoria Michele Meletti de Sant’Ana Andi , formada em História, 35 anos, está no magistério a 14 anos e nesta função a 10 anos; Simone Aparecida de 41 Souza, 33 anos, formada em Filosofia e Sociologia, 10 anos no magistério e 03 nesta função; Fernanda Borges Neto, 38 anos, 08 anos no magistério e 04 nesta função. A fim de promover debate sobre os efeitos psicossociais do racismo, em 2010 a Diretoria de Ensino realizou capacitação com professores coordenadores das escolas de Ensino fundamental II e Ensino Médio; neste mesmo período foi trabalhado com professores da área de Humanas o projeto “Currículo de Ciências Humanas: articulando teoria e prática- História e Cultura Africana”. Entre 2011 e 2014, foi trabalhado o projeto “Cidadania, Memórias e Tradições Afrodescendentes: um olhar para a temática étnico- racial no Currículo de Ciências Humanas”, período em que foram capacitados professores de: História, Geografia, Filosofia e Sociologia. Pode-se citar ainda sobre as atividades propiciadas pela Diretoria de Ensino de Franca com a temática voltada para educação da cultura africana e afro-brasileira: a publicação do livro, “A Congada além dela mesma...”, o projeto PRODESC (projetos descentralizados), “Filosofia em Debate” que contemplam temáticas sobre racismo e sistema de cotas para negros nas universidades, além da realização de três colóquios, sendo dois deles com as temáticas: “Ensinar Ciências Humanas em tempos de diversidade” e “Identidade e diversidade no contexto das práticas pedagógicas”, permitiram apresentação de trabalhos e reflexões sobre as relações étnico-raciais. 42 CAPÍTULO 2 O ENSINO DE HISTÓRIA, CULTURA AFRICANA E AFRO- BRASILEIRA NO CURRÍCULO O segundo capítulo traz uma discussão sobre a formulação e implementação do currículo em um jogo de força e poder, campo de luta este em que o currículo é sempre um processo inacabado, composto de escolhas, visões, interpretações, concepções de alguém ou de um grupo de sujeitos que, em determinado espaço social e/ou cultural em tempos históricos diferentes, detém o poder de determinar prioridades de conteúdos e metodologias curriculares. Nesta perspectiva, para Silva (1996) O currículo é um dos locais privilegiados onde se entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso e regulação. É também no currículo que se condensam relações de poder que são cruciais para o processo de formação de subjetividades sociais. Em suma, currículo, poder e identidades sociais estão mutuamente implicados. O currículo corporifica relações sociais. (SILVA. 1996, p. 23) Portanto, os conteúdos selecionados, que podem ser eles: conceituais, procedimentais ou atitudinais ao serem implementados em uma unidade escolar sofrem transformações, adequações de acordo com a comunidade em que a instituição está inserida, há, ainda, a interferência da relação professor/aluno no processo de ensinar e aprender que dialoga com a formação dos profissionais da educação que ali trabalham. Considerando a importância destes fatores para compreensão da prática da Lei 10.639/03, serão analisados os currículos de História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Arte e Língua Portuguesa, do estado de SP, como estão inseridos nestes documentos os conteúdos determinados pelas “Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (BRASIL, 2004). 2. 1 A educação brasileira da constituição de 1988 a lei nº 10.639/2003 A educação nacional brasileira, por vários séculos, foi conduzida e tratada de forma homogênia sob o manto da chamada “democracia racial” de povo mestiço e igual em que toda diversidade nacional fora encoberta, sendo que a única diferença percebida era a econômica. As diferenças de “raça”, gênero e orientação sexual só passaram a ser discutidas de formas contundentes no final da década de 80 do século passado, a partir da rearticulação dos 43 movimentos sociais, em sua maioria, de caráter identitários como, por exemplo, o movimento negro. É importante ressaltar que o ensino universalista adotado no Brasil não leva em consideração a diversidade da constituição do povo brasileiro. Nesse ínterim, se faz necessária uma nova proposta educacional com um olhar que passa pela lógica da diversidade, na qual se constitui a nação brasileira. Observando que todo processo de ensino nacional, até as últimas décadas do século XX, foi pautado na hegemonia ocidental de dominação masculina, branca e heterossexual, o qual não levava em consideração a cultura e os valores indígenas e africanos que, juntamente com a cultura europeia, contribuíram para a formação identitária brasileira. Diante do panorama exposto, nota-se a presença de questões sérias e urgentes, frentes às quais a educação passa a ser sinônimo de desenvolvimento. Desse modo, institucionaliza- se no Brasil importantes leis como: a Constituição Federal de 1988 de caráter democrático e igualitário, e a Lei 10.639/03 que alterou a LDB/96 tornando obrigatória a reconstrução curricular, a fim de institucionalizar estudos afros nas escolas. Permitindo, assim, reconstruir a história do povo brasileiro a partir de uma nova historiografia que tem por objetivo reparar injustiças históricas cometidas anos a fios com o afro-brasileiro, mascarado na justificativa da democracia racial, como afirma Moya e Silvério. “É apenas com a aprovação da Lei 10.639 em 2003 que a LDB é alterada e passa a incorporar a diferença, ou seja, após quatro anos de aprovação da LDB é possível se pensar em uma lei que parte do reconhecimento da diferença e de sua afirmação e valorização no cotidiano escolar”. (MOYA e SILVÉRIO, 2010, p.58). Ao analisar a implementação das leis citadas no parágrafo anterior, é importante notar que a educação básica no Brasil - enquanto um direito social de todos os cidadãos - é recente. Isso se dá considerando que a história educacional brasileira, durante centenas de anos, foi voltada para uma minoria branca e economicamente elitizada. Processo que somente foi alterado com a Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96, a partir desse marco conquistas de direitos educacionais para todos foram institucionalizados. Todavia a existência das leis que amparam a educação no Brasil não é um sinônimo de eficácia, pois Luis, Silva e Pinheiro (2011) constataram em várias regiões da federação um considerável índice de analfabetismo. Assim expondo que o Estado não tem cumprido em sua totalidade com o que determina a Constituição Federal de 1988, de que é dever do mesmo a oferta obrigatória e gratuita do ensino fundamental, da educação infantil (para crianças de até 44 quatro anos de idade) e da oferta de ensino noturno regular. Salientando que a educação básica consiste na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Ensinos estes que devem ser oferecidos a todos brasileiros, através de um regime de colaboração entr