BRUNO PEREIRA SYMPHONY OF EROTIC ICONS: Erotismo e o corpo masculino na fotografia de Alair Gomes ASSIS 2017 BRUNO PEREIRA SYMPHONY OF EROTIC ICONS: Erotismo e o corpo masculino na fotografia de Alair Gomes Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área do conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientador: Fernando Silva Teixeira Filho Bolsista: Capes ASSIS 2017 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp P436s Pereira, Bruno Symphony of Erotics Icons: erotismo e o corpo masculino na fotografia de Alair Gomes / Bruno Pereira. Assis, 2017. 198 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Fernando Silva Teixeira Filho 1. Gomes, Alair de Oliveira, 1921-1992. 2. Fotografia. 3. Erotismo. 4. Homem na arte. 5. Masculinidade. I. Título. CDD 155.632 AGRADECIMENTOS Agradecer é uma forma de tecer uma cartografia de todos encontros que se somaram à composição dessa investigação. Encontros que se deram muito além da pesquisa e tornaram menos árida a solidão requerida à escrita, pois, foram muitas as amizades intercessoras, essas alianças no estranhar-se, que se fizeram presentes nesse percurso. Assim, agradeço: À Fernando Silva Teixeira Filho, o orientador desta pesquisa, que desde a graduação é uma importante referência na minha trajetória pessoal e acadêmica. Durante uma conversa em 2013, quando era seu estagiário, mencionou o nome de Alair Gomes. Mesmo sem saber, suscitou em mim o desejo de realizar esta investigação. Agradeço por todo aprendizado e pela liberdade com a qual permitiu à condução dessa pesquisa. Às professoras Angela Donini e Dolores Galindo pelas contribuições na banca de qualificação e defesa, por questões que ainda me fazem pensar e que as levarei comigo em outras incursões. À Roberta Stubs e Leonardo Lemos por terem aceito fazer parte da banca como suplentes. À Juliana Cristina Bessa, que de “colega do grupo de orientação” se tornou uma grande amiga, agradeço por todos os encontros, por toda a conversação diária, enfim, por termos compartilhado esse processo conjuntamente. E à Maria Rita, sua companheira, por ter nos “aturado”. Ao Leonardo Moreira Vieira, pela amizade, pela escuta, mesmo em meus momentos mais “monotemáticos”, por sempre acreditar em mim, muito obrigado! À Melina Garcia Gorjon, por todas as conversas em que só nós nos entendemos e por nossa amizade ser um espaço onde podemos compartilhar nossas inquietações sobre a vida e a arte. À Danielly Mezzari, Fabio Morelli e Adriana Sales, depois daqueles dias em Salvador, para “desfazermos gênero”, um afeto inexplicável floresceu no encontro com vocês. Obrigado por tudo, sempre que estou com vocês, dá vontade de "me perder numa roda de bamba e não, e nunca mais voltar". Ao Tom Rodrigues, querido, pelas trocas intelectuais e pela alegria de ter sua amizade. Luciana Ferrari Gouvêa, tantas histórias, incrível pensar que estamos juntos nessa também. Obrigado também por você e à Giovana, sua companheira, terem me recebido em sua casa. À Carolina Villanova Heguedusch, pela amizade, por todos bons encontros em Assis. À Franciele Castilho dos Reis, por todos esses anos de amizade, por ter me recebido em sua casa no Rio de Janeiro. Não importa onde estiver, sempre vou querer saber onde anda você. Ao Walter, por todo o apoio no início desse processo, por todos aqueles dias nos quais compartilhávamos tudo e compartilhamos a nossa vida. Ao João Paulo Zanette, Marcos Francisco D'Andrea e a todas/os funcionárias/os da seção técnica de pós-graduação. Ao Auro Mitsuyoshi Sakuraba e a todas/os funcionárias/os da Biblioteca “Acácio José Santa Rosa” da Unesp – Assis. À Lorrane Sezinando e a todas/os funcionários/as da Seção de Iconografia da Fundação Biblioteca Nacional. Um agradecimento especial à Luciana Muniz, pela disponibilidade com a qual recebeu minha pesquisa desde o início, por todas suas contribuições inestimáveis, pela paixão compartilhada por Alair Gomes. Aos Colegas da Pós-Graduação em Psicologia da Unesp – Assis. Em especial, Elisa Mariana e Sara Mexko. Agradeço também aos professores da Pós-Graduação em Psicologia da Unesp – Assis, em especial, ao professor Gustavo Henrique Dionísio, por ter aceito fazer a arguição do meu projeto de pesquisa na disciplina Seminário de Pesquisa em Psicologia I e ao professor Wiliam Siqueira Peres, pela presença sempre provocadora e ao aprendizado difícil de nomear. No percurso dessa pesquisa – entre viagens por Assis, Londrina, Campinas e São Carlos – realizei alguns cursos importantes para essa investigação. Assim, agradeço aos professores e colegas – em especial, Juciellen Ribeiro, Louyse Gerardo, Mariana Hertel e Marília Murgo – do curso de Especialização em Fotografia: práxis e discurso fotográfico da Universidade Estadual de Londrina. Ao professor Luiz Orlandi pela “disciplina” sobre o Mil Platôs, realizada na Universidade Estadual de Campinas, e aos professores Jorge Leite Junior e Richard Miskolci pelo curso Sociologia das Diferenças, realizado na Universidade Federal de São Carlos. Não menos importante, agradeço aos familiares, que de alguma forma contribuíram para a realização desta pesquisa. Em especial, agradeço à minha mãe, Mara Adriana Guarnieri, e minha avó, Iraide Girotto Guarnieri, que sem o incentivo, apoio e todos os esforços, chegar até aqui, certamente, teria sido muito mais difícil. Muito obrigado por tudo, sempre! Por fim, agradeço à CAPES pelo financiamento desta pesquisa pelo período de um ano. PEREIRA, Bruno. Symphony of Erotic Icons: Erotismo e o corpo masculino na fotografia de Alair Gomes. 2017. f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis, 2017. RESUMO A partir dos estudos queer, busquei investigar a obra Symphony of Erotic Icons do fotógrafo brasileiro Alair Gomes (1921-1992). Engenheiro de formação, Alair transitou por diversos campos, como a escrita de diários íntimos, a Filosofia da Ciência e a crítica de arte, entre outros, tendo seu encontro com a fotografia se dado somente na década de 1960. O foco de seu trabalho fotográfico é o corpo masculino, sendo considerado o precursor na abordagem do homoerotismo na fotografia brasileira. Embora tenha se dedicado ao trabalho com a fotografia por mais de duas décadas, constituindo uma obra de dimensões exorbitantes, com 15 mil fotos e 150 mil negativos, Alair fez parte de um rol de artistas cuja invisibilidade impediu que ele se tornasse contemporâneo de seu próprio tempo. A escolha de Alair nesta pesquisa justifica-se pela relevância deste artista na fotografia, mas também por contemplar temas importantes para a Psicologia, tais como o corpo e o erotismo, em especial o masculino, foco desta investigação. O objetivo geral dessa pesquisa foi explorar como se dão os processos de construção do erotismo e das corporalidades masculinas na Symphony of Erotic Icons e cartografar os elementos de uma possível dissidência em relação à heterossexualidade compulsória vigente na época. Realizada nas décadas de 1960 e 1970, a Sinfonia é um conjunto de 1.767 fotos de nus masculinos. Alair dividiu a sequência em 5 partes: Allegro, Andantino, Andante, Adágio e Finale. Sua motivação para criação da Sinfonia é o fascínio com o corpo masculino, sendo a obra, em sua visão, uma forma de homenageá-lo. O título e a forma como nomeou cada uma de suas partes faz uma alusão à linguagem musical. Contudo, com tal associação, que poderia ser entendida com o intuito de enobrecer a sequência, dando-lhe um caráter de grandeza, Alair não pretende obnubilar o caráter erótico da Sinfonia, muitas vezes, associado à pornografia. Como também o fez em relação ao cinema, como evidenciado em seus escritos sobre a obra, tal aproximação têm o objetivo de estruturar a imensa quantidade de imagens que compõe a Sinfonia. Ao trabalhar com múltiplas imagens, seu desejo é contrapor-se à tradição pictórica que marcou a história da fotografia, conferindo a imagem única, tal como ocorre na pintura, um destino comum na tradição fotográfica. O grande acúmulo de imagens torna a fruição da obra extenuante e esse era mesmo um dos objetivos de Alair, fazer da Sinfonia uma espécie de teste para o espectador, ver quem atravessava. Alair propõe uma experiência com o corpo masculino que desata os códigos e convenções tradicionalmente associados à masculinidade como signos de virilidade, dominância, violência. Performances masculinas que não se contrapõe, nem obliteram a feminilidade. Mais do que nunca, necessitamos de masculinidades não hegemônicas, não virulentas. A obra de Alair Gomes é uma aliada nesse processo e pode nos ajudar nas reinvenções da cartografia do presente. Assim, essa pesquisa buscou somar-se aos esforços de ativação de sua obra, em detrimento daqueles que buscam anestesiar as potencialidades de reinvenção das masculinidades convocadas pela Sinfonia. Palavras-Chave: Symphony of Erotic Icons; Alair Gomes; Fotografia; Erotismo; Corpo Masculino PEREIRA, Bruno. Symphony of Erotic Icons: Eroticism and the male body in the Alair Gomes' photography. 2017. f. Dissertation (Masters Degree in Psychology). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2017. ABSTRACT From the Queer studies, I sought to investigate the work of the Brazilian photographer Alair Gomes’ Symphony of Erotic Icons. Graduated in Engineering, Alair transited through several fields, such as the writing of private diaries, the Philosophy of Science and art criticism, among others, having his encounter with photography only in the 1960s. The focus of his photographic work Is the male body, being considered the precursor in the approach of the homoerotism in Brazilian photography. Even when he had dedicated in the working with photography for more than two decades, constituting a work of exorbitant dimensions, with 15,000 photos and 150,000 negatives, Alair was part of a group of artists whose invisibility prevented him from becoming contemporary of his own time. Alair's choice in this research is justified by the relevance of this artist in photography, but also by contemplating important themes for Psychology, such as the body and eroticism, especially the masculine one, the focus of this research. The general objective of this research was to explore the processes of construction of eroticism and male corporalities in the Symphony of Erotic Icons and to cartograph the elements of a possible dissent in relation to the compulsory heterosexuality in force at the time. Created in the 1960s and 1970s, the Symphony is a collection of 1,767 male nude photos. Alair divided the sequence into 5 parts: Allegro, Andantino, Andante, Adágio and Finale. His motivation for the creation of the Symphony is the fascination with the masculine body and his work, in his vision, is a homage to the subject. The title and the way he named each of its parts alludes to the musical language. However, with such an association, which could be understood in order to ennoble the sequence, giving it a character of grandeur, Alair does not pretend to obscure the erotic character of the Symphony, often associated with pornography. As he also did in relation to cinema, as evidenced in his writings on the work, such an approximation has the purpose of structuring the immense amount of images that composes the Symphony. In the working with multiple images, his desire is to counteract the pictorial tradition that marked the history of photography, giving the unique image, as it happens in painting, a common destination in the photographic tradition. The great accumulation of images makes the enjoyment of the work strenuous and this was one of Alair's goals, making the Symphony a kind of test for the spectator, to see who was crossing. Alair proposes an experience with the male body that unties the codes and conventions traditionally associated with masculinity as signs of virility, dominance, violence. Masculine performances that do not oppose or obliterate femininity. More than ever, we need masculinities that are not hegemonic, not virulent. The work of Alair Gomes is an ally in this process and can help us in the reinventions of the cartography of the present. Thus, this research sought to add to the efforts to activate his work, in the detriment of those who seek to anesthetize the potential of reinventing the masculinities that his work calls. Keywords: Symphony of Erotic Icons; Alair Gomes; Photography; Eroticism; Male Body Lista de Figuras Figura 1 Alair e Clio Faria de Oliveira Gomes. .......................................................... 25 Figura 2 Self (Alair Gomes) circa 193-. ..................................................................... 25 Figura 3 Aíla de Oliveira Gomes, Alair Gomes e Edith Pinto .................................... 25 Figura 4. Propaganda da Kodak, publicada em O Globo, no ano de 1939. .............. 27 Figura 5 Capa da segunda edição da Revista MAGOG ............................................ 30 Figura 6 Diário íntimo EX-ALTO I, [198-]. .................................................................. 34 Figura 7 Foto de Alair de Oliveira Gomes ................................................................. 39 Figura 8 Propagandas de cursos de Alair Gomes publicadas no Jornal do Brasil .... 41 Figura 9 Roberto Burle Marx. 1970. Fotografia de Alair Gomes................................ 50 Figura 10 Fotografias de Alair Gomes no Sítio Santo Antônio da Bica ..................... 50 Figura 11 Alair Gomes, em 1984, ao chegar no MAM, RJ, ....................................... 53 Figura 12 Rubens e José Wilker. .............................................................................. 54 Figura 13 Feira Hippie – Praça da República, São Paulo [1969].. ............................ 57 Figura 14. Externas: Urbano. Morro da Penha, Rio de Janeiro. Circa: 1969. ........... 59 Figura 15 Externas: Urbano. Penha, Rio de Janeiro. 1968. ...................................... 60 Figura 16 Alair Gomes na revista Gay Sunshine – Journal of Gay Liberation. .......... 61 Figura 17 Cópias-contato da série Carnaval (1968-1978). ........................................ 63 Figura 18. Fragmentos da série Beach. (1975-1980) ................................................ 65 Figura 19. Foto retirada da série Beach. (1975-1980)l .............................................. 66 Figura 20. Exposição As artes no Shopping, 1980. ................................................... 89 Figura 21 Beach Triptych nº 3 [anos 1980] .............................................................. 90 Figura 22. Sem Título, 1970/1980. nitrato de prata s/ papel fotográfico .................... 91 Figura 23 e 24. Fotografias de José Medeiros. Excursão do Flamengo pela Europa, 1951 e Ensaio fotográfico. 1950. ............................................................................... 92 Figura 25. Sonatina, Four Feet n. 39 (c. 1980).......................................................... 94 Figura 26 Foto retirada da série Beach. Rio de Janeiro. (1975-1980) ....................... 96 Figura 27 Foto retirada da série Beach. Rio de Janeiro. (1975-1980) ....................... 96 Figura 28 Hermafrodita de Félix Nadar, 1860. ........................................................ 106 Figura 29. Beach Triptych nº10 [anos 1980]. .......................................................... 122 Figura 30 Passagem (1979) de Celeida Tostes. Fotografia de Henry Stahl.. ......... 126 Figura 31 A não-história de um chofer, 1975. ........................................................ 128 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203067 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203068 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203069 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203072 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203074 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203075 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203076 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203078 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203083 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203084 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203086 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203090 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203091 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203092 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203094 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203095 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203096 Figura 32. Exposição Percursos. Sala de exibição.. ............................................... 131 Figura 33. Home, 196- Circa. .................................................................................. 136 Figura 34. A new sentimental Journey. 1983. ......................................................... 139 Figura 35 A new sentimental journey. Alair Gomes, 1983.. ..................................... 139 Figura 36 e 37 – Fragmentos de Finale, SEI. ......................................................... 145 Figura 38 Detalhe de uma das imagens de Allegro. SEI. ........................................ 146 Figura 39. Fragmento de Andante. SEI. .................................................................. 147 Figura 40 Fragmentos de Adágio. SEI.. .................................................................. 155 Figura 41 Fragmento de Adágio. SEI. ..................................................................... 163 Figura 42 Fragmentos de Adágio. SEI.. .................................................................. 165 Figura 44 Fragmentos de Finale. SEI.. .................................................................... 173 Figura 45 Fragmentos de Finale. SEI. ..................................................................... 176 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203099 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203100 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203101 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203104 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203105 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203106 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203107 file:///C:/Users/brunp/Documents/Agenda/FINAL/Final/BRUNO%20PEREIRA.docx%23_Toc474203108 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 14 Um cartógrafo nos arquivos da Biblioteca Nacional ............................................................ 16 1. LOCA-LIZANDO Alair de Oliveira Gomes ........................................................................ 23 Primeiros trajetos .................................................................................................................. 24 O encontro com a fotografia: Corpo masculino e as irisações no desejo na paisagem contracultural ........................................................................................................................ 45 Quando Alair Gomes morrer... ............................................................................................. 68 2. NOTAS PARA UMA CARTOGRAFIA DA OBRA DE ALAIR GOMES ........................ 76 Estranhando a recepção de Alair Gomes .............................................................................. 82 3. IMAGENS PERFORMATIVAS OU COMO FAZER COISAS COM IMAGENS ......... 103 Pensando a fotografia com Judith Butler ............................................................................ 113 3. OPUS 3 – SYMPHONY OF EROTIC ICONS .................................................................. 119 Para além do instante decisivo: fotografia e o trabalho com múltiplas imagens ................ 126 Davi está nu: Fotografia, erotismo e o corpo masculino .................................................... 134 O que pode uma sinfonia visual? ........................................................................................ 141 RESISTIR AO PRESENTE ................................................................................................... 178 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 183 ANEXO .................................................................................................................................. 197 Alair Gomes: List of sequential photographic work .......................................................... 198 ANEXO B .......................................................................................................................... 199 13 Eu quis muito fazer a sinfonia como uma espécie de teste para o espectador, ver quem atravessava… Alair Gomes 14 APRESENTAÇÃO A sugestão de narrar minha trajetória, de contar como cheguei até esta pesquisa, inicialmente, pareceu-me uma tarefa simples1. Mas, quando me lancei na escrita do porquê de “Alair Gomes” fui surpreendido com a sensação de um não saber. Meu encontro com Alair se deu “por acaso”. Em 2013, quando estava no último ano da graduação em Psicologia e era estagiário do Clinic@rte2, Fernando Silva Teixeira Filho, supervisor do estágio e o orientador desta pesquisa, comentou a possibilidade de um projeto coletivo para investigar a obra de Alair3. A notícia, dita rapidamente durante uma das supervisões, não chamou à atenção de mais ninguém, com exceção da minha, que logo pensei ser uma oportunidade para a realização de um projeto para o mestrado. A fotografia, naquele momento, além de praticá-la de forma amadora, era um assunto frequente nas discussões com algumas amigas, em especial, Franciele Castilho dos Reis e Melina Garcia Gorjon. E o nome de Alair não me era estranho, mesmo que não lembrasse como o conheci. Somado meu interesse pela fotografia, desde o ingresso na graduação, me envolvi no campo de estudos de Gênero e Sexualidade, com especial atenção, aos Estudos Queer. Logo no primeiro ano, participei do II Seminário Pensando os Gêneros: Desterritorializando as normatividades "acáYalla", onde encontrei-me pela primeira vez com todo um vocabulário – novo, estranho e potente – oriundo das problematizações queer. Alguns nomes como o de Judith Butler, pareciam colados a 1 A sugestão foi realizada por Angela Donini e Dolores Galindo durante o exame de qualificação. 2 O Clinic@rte é um projeto de estágio e extensão, financiado pela Pró-Reitoria de Extensão, e é desenvolvido junto ao Departamento de Psicologia Clínica da UNESP e a ênfase Políticas Públicas e Clínica Crítica, do campus da UNESP de Assis. O projeto realiza atendimentos clínicos individuais de pessoas cujo sofrimento esteja ligado à discriminação frente às orientações sexuais (BESSA et al, 2011). 3 O projeto coletivo, por razões que não cabem ser mencionadas, ainda não se concretizou. Porém, permitiu ao Fernando Silva Teixeira Filho conhecer Luciana Muniz, a responsável pela Coleção Alair Gomes na Fundação Biblioteca Nacional. Luciana é uma figura importante para esta pesquisa e, assim, gostaria de reforçar meu agradecimento a ela. Desde as primeiras aproximações, Luciana tem sido muito receptiva em relação a minha pesquisa, até mesmo dispondo-se a ler a primeira versão do projeto de pesquisa, criada após o ingresso na pós-graduação. Também, por facilitar o acesso a Coleção Alair Gomes, esclarecendo informações quanto as burocracias necessárias, e a disponibilidade com que respondeu, em diversos momentos, a dúvidas e questões sobre Alair e seu acervo. Ainda, por meio da FBN, Luciana doou para a Biblioteca "Acácio José Santa Rosa” da Unesp, campus Assis, um catálogo, de difícil acesso, de uma exposição dedicada a obra de Alair, realizada em Paris (GOMES, 2001), além da doação de um catálogo da exposição Alair Gomes, muito prazer, , da qual foi curadora, realizada na FBN, em 2016. 15 boca de todas e todos mobilizando aquelas discussões, instigando-me a conhece-la e, dias após o encerramento do evento, comprei seu livro mais conhecido, e o único traduzido ao português até então, Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão das Identidades (BUTLER, 2003). O li rapidamente, mesmo que boa parte do texto me parecesse ininteligível, mas recebi com prazer a estranheza daquelas palavras, apenas aguçando meu desejo em compreendê-las. É importante dizer que esses encontros foram possibilitados, porque o curso de Psicologia da Unesp, campus Assis, é um espaço privilegiado para essas discussões. E isso se dá, em grande medida, por conta de dois professores desta instituição, o já mencionado, Fernando Silva Teixeira Filho, e Wiliam Siqueira Peres, que depois de realizar a disciplina Psicologia, Gêneros e Processos de Subjetivação, comecei a “persegui-lo” em diversos cursos que ofertava na Pós-Graduação em Psicologia. Nesse sentido, o pouco que sabia sobre Alair pareceu-me uma pista suficiente que me permitiria aliar tanto meu desejo pela fotografia quanto pelo campo de estudos queer. Com escassas informações sobre a obra de Alair, escrevi um projeto com um título aparentemente complicado, “Heterotopias do (In)desejável”, já que sempre obrigava-me a explica-lo. Inicialmente, desejava estudar a série Finestra4. É comum fabular-se hipóteses e repostas aos projetos criados mesmo antes de sua execução. Contudo, em meu caso, quando deparei-me com o acervo de Alair na Fundação Biblioteca Nacional (FBN), entendi que não sabia o que me esperava. Nesse sentido, a escolha por estudar a série Finestra se deu mais por um desconhecimento do que um conhecimento da obra de Alair, por aquilo que me foi permitido conhecer, em pesquisas preliminares, já que há tão pouco material dedicado ao seu trabalho. Quase todos os textos sobre Alair mencionam a Symphony of Erotic Icons, mas foi somente em sua presença que compreendi a experiência que Alair propõe com esta obra. A série nunca foi exibida integralmente ao público e não há nenhum escrito que se atenha a sua análise, ou mais do que isso, que busque evidenciar a proposta de experimentação empreendida por Alair. A surpresa com a constatação do silêncio que circunscreve a Sinfonia, uma obra sem precedentes na história da fotografia e 4 A coleção de imagens, criada por Alair, dedicada ao corpo jovem e masculino foi dividida pelo fotógrafo em três grandes categorias. Entre elas encontra-se Finestra e esta engloba três subdivisões: A window in rio, The course of the sun e The no-story of a driver. Embora não aterei minha atenção sobre estas composições, de forma minuciosa, em alguns capítulos apresentarei alguns aspectos destas, bem como, de outras obras de Alair. 16 arte brasileira, foi o que me convocou a realizar uma mudança no percurso desta investigação e dedicar-me ao desafio de escrever sobre a Sinfonia. Em Lygia chamando, Suely Rolnik (2007, p. 236) pergunta-nos: “[...] como reativar nos dias de hoje a potência política inerente à ação artística, seu poder de instaurar possíveis?”. Essa questão, ao aliar uma pergunta importante tanto para arte quanto para psicologia, ajuda-me a compreender o meu desejo em trabalhar com a obra de Alair. Acredito que ele oferece algumas pistas para responder esta questão. A escrita deste trabalho busca somar-se aos esforços de ativação de sua obra. Alair também está chamando... Um cartógrafo nos arquivos da Biblioteca Nacional Quando estive na Fundação Biblioteca Nacional (FBN), em setembro de 2015, para conhecer o acervo de Alair Gomes, mesmo que não fosse a primeira vez que eu tenha estado ali, ainda me impressionava a suntuosidade de sua arquitetura. Localizada na Praça da Cinelândia5, na Avenida Rio Branco, ao seu redor estão o Museu Nacional de Belas Artes e o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O luxuoso conjunto arquitetônico pode nos mostrar que as artes, em certo sentido, são importantes dispositivos de poder. Conforme o pensador decolonial Walter Mignolo (2015), o vocábulo grego museion, derivado da palavra musa, significa “lugar de estudo” e remete-nos à figura de Mnemósine, deusa da memória. O autor entende que a relação entre espaço museístico e lugares de saber é decisiva na construção da identidade da civilização Ocidental tal como hoje a conhecemos, sendo os museus, locais onde foram implantados, organizados e apresentados os arquivos Ocidentais como espaços de conhecimento. A Biblioteca, que teve como gérmen de sua criação um terremoto em Lisboa em 17556, fez parte de vários brasis: um Brasil Colônia, um Império e um República. Porém, destes, a priori, seu objetivo não seria contar a história daqueles que venceram? Assim, a FBN não escapa dessa relação, afinal, “as monarquias se apresentavam a partir de suas livrarias, como se a cultura projetada nesses acervos 5 Ironicamente, a Cinelândia, no começo do século XX, era um ponto de pegação “gay” (GREEN,2000). 6 Para conhecer mais a história de uma das maiores bibliotecas do planeta, veja o livro A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil (2002) de Lilia Moritz Schwarcz, Angela Marques da Costa e Paulo Cesar de Azevedo. 17 projetasse a própria cultura dos soberanos” (SCHWARCZ, 2002, p.71). Já na segunda metade do século XIX, o conceito de biblioteca nacional estaria vinculado à ideia de um espaço de preservação da memória documental de um país. (CORRÊA, 2007, p.122). Quem fará parte do arquivo da nação? Quais histórias poderão ser contadas, vistas? E quais serão silenciadas e invisibilizadas nesse dispositivo? A memória é um território em disputa. Nesse sentido, num primeiro momento, me estranhou o fato do acervo de Alair Gomes estar em posse da Seção de Iconografia da FBN. Não porque a instituição não teria capacidade para bem gestar a obra de Alair7. O estranhamento se deu pela Biblioteca Nacional abrigar as grandes narrativas da história de nosso país. É incomum pensar uma obra de caráter não convencional estar entre os primeiros mapas confeccionados pelos cartógrafos portugueses no correr da colonização; ou, entre as gravuras e desenhos dos integrantes da Missão Artística Francesa, como o ilustre Jean Baptiste Debret; ou ainda, entre os "Photographos da Casa Imperial", como Augusto Stahl, Alberto Henschel, ou da Marinha Real, como Marc Ferrez8. Esse estranhamento talvez tenha se dado por certa ingenuidade, de minha parte, ainda pautada em binarismos, os quais busco me desvencilhar, mas com Foucault (1988), me lembro que os silêncios e o invisível fazem parte dos mesmos arquivos, da mesma produção discursiva Nas consultas ao acervo de Alair, da mesa em que costumava me debruçar sob seu trabalho, podia mirar o retrato de D. Pedro II, realizado pelo fotógrafo Joaquim Insley Pacheco, como se o olhar soberano, de alguma forma, ainda pairasse sobre aquele espaço. Sua presença ali não é sem razão. Como afirma Lilia Moritz Schwarcz (1998), em As Barbas do Imperador, Dom Pedro II foi o primeiro fotógrafo brasileiro, mas também o primeiro soberano-fotógrafo do mundo. Não só possuiu o daguerreotipo9, apenas alguns meses após a invenção da fotografia em 1839, na França, como também foi uma figura importante da divulgação desta nova tecnologia aqui no Brasil, tendo criado já em 1951 o título de Fotógrafo da Casa Imperial, por 7 Ao contrário, Luciana Muniz, atual responsável pela Coleção Alair Gomes, tem sido uma figura importante na divulgação do trabalho do artista, além da nítida paixão por Alair, que extrapola suas relações profissionais. 8 Sobre a seção de iconografia da FBN, veja SANTOS, Renata; RIBEIRO, Marcus Venicio; LYRA, Maria de Lourdes Vianna. O Acervo Iconográfico da Biblioteca Nacional: Estudos de Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010. 9 Antigo aparelho fotográfico inventado por Daguerre 1787-1851, físico e pintor francês, que fixava as imagens obtidas na câmara escura numa folha de prata sobre uma placa de cobre. 18 exemplo10. Além de aliar-se à “modernidade”, viu na imagem fotográfica uma forma eficiente de divulgar sua imagem num país de dimensões continentais. Mas também, como disse, aquela já foi sua Biblioteca. Segundo Augusto (1995, p.9), a Biblioteca de “Pedro” “possui valiosas obras em seus arcanos, inclusive uma bíblia de Gutemberg, mas nunca chegou a dispor de um "inferno", como a de Paris”, ao contrário, “o que de seu acervo, por algum tipo de pudor, é mantido fora do alcance público, faz jus, no máximo, a um ‘purgatório’ [...] Que anônimas titilações porno-eróticas afinal compõem o "purgatório" da Biblioteca Nacional? ”. Assim, se o olhar soberano pode causar incomodo, em certo sentido, não seria Alair que hoje assombraria o Imperador? Numa alusão ao trabalho de Rolnik (2008), poderíamos dizer que a memória do corpo contamina a Biblioteca Nacional. Nos dias de hoje, vivemos noutra situação, por exemplo, segundo Corrêa (2007, p.122), “a normativa do depósito legal, que determina a entrega de um exemplar de cada obra editada no país à Biblioteca Nacional” faz com que “uma obra pertencer àquele acervo deixa de ser uma escolha despótica e discriminante do príncipe e de seus prepostos e se transmuda um ritual burocrático estatal, neste sentido, republicano e democrático”. Desde 1994, os arquivos de Alair Gomes integram o acervo de iconografia da Fundação Biblioteca Nacional. Não que a recepção de Alair na FBN tenha sido sem contratempos, como afirmou o colecionador de arte Gilberto Chateaubriand, amigo de Alair, numa entrevista à Folha de São Paulo, que caso “não fossem os esforços do Paulo Herkenhoff, que era o diretor da Biblioteca Nacional na época, o material provavelmente nem teria sido aceito lá". (CHATEAUBRIAND apud ASSEF, 2001, s.n). Segundo Santos (2006, p.287), “foi ideia de Bentes doar o legado artístico de Alair para a Biblioteca Nacional, protegendo a sua obra de deterioração e do esquecimento ao fazê-la integrar o acervo da principal instituição nacional ligada à memória iconográfica do país”, assim, “a doação da obra de Alair à Biblioteca Nacional passa a ser um marco imprescindível para a efetiva inserção de seu nome na História oficial das imagens no Brasil”. 10 Por exemplo, no Livro de Receitas e Despesas da Casa Imperial, Dom Pedro II gastou, no período entre 1848 a 1867, dezoito contos e 796 mil-réis com fotografias e 22 contos e 528 mil-réis com álbuns comprados de outros fotógrafos. Mesmo que esses números nos soem estranhos, eles correspondem a trinta vezes mais do que o imperador teria como orçamento do ano de 1846. Para saber mais sobre a relação de D. Pedro II e a fotografia, consulte SCHWARCZ, 1988. 19 O destino da obra de Alair já era uma preocupação do fotógrafo no final da década de 1970, quando escreveu uma carta, na qual, perguntava à Mr. Sam Wagstaff11 se aceitaria examinar sua série Symphony of Erotic Icons com a finalidade de aceitá-la em seu acervo. O intuito era “a de preservação da obra no futuro. Considero que, como um todo, meu trabalho tem caráter experimental, e que pelo menos em função desse caráter deve ser preservado integralmente na forma que para ele desenvolvi” (GOMES, 1979, s.n). Cuidados estes, já antecedidos na própria produção das imagens da série, reveladas por meio de estritos procedimentos para que as fotografias tivessem longa duração (GOMES, 1975, s.n). Alair também cogitou doar sua obra para outras instituições como o International Museum of Photography, do qual era membro desde 1978, o New York Cultural Center ou “qualquer outro museu ou fundação de boa categoria nos USA ou Europa”. E caso, nenhuma instituição aceitasse sua obra, a mesma deveria ser doada para o Kinsey Institute for Sexual Research da Universidade de Indiana. Embora não fosse uma instituição voltada as artes, o fotógrafo acreditava que o Kinsey Institute ofereceria possibilidades de preservação de sua obra. Segundo Santos (2006, p.239), no dia 4 de agosto de 1983, Alair registrou seu testamento em cartório. Seus bens materiais – entre eles seu apartamento em Ipanema e sua biblioteca – foram deixados à sua irmã, mas seu espólio artístico, que inclui toda sua obra literária e fotográfica, bem como os direitos autorais das mesmas, foi doado a dois homens relativamente desconhecidos em sua biografia: Lawrence Christy III, residente em Berkeley, e Antônio Jordão Motta Vecchiatti, residente em Nova York12. E em 1989, Alair também envia uma relação de toda sua obra a Harry Ransom Humanities Research Center13 da Universidade do Texas, como uma 11 Sam Wagstaff ficou conhecido por seu relacionamento amoroso com Robert Mapplethorpe, mas também sua posição como mentor do fotógrafo. Wagstaff, além de curador, foi um eminente colecionador de fotografias. Morreu de Aids em 1987 (GEFTER, 2010, p.193). 12 Sobre o primeiro, Santos afirma, por meio de uma entrevista com Fábio Settimi, que Lawrence Christy III era professor de literatura e teria mantido correspondência com Alair por alguns anos. Sobre o segundo, Santos nada menciona e também pouco encontrei, com exceção de uma menção no site do Pan American Musical Art Research (PAMAR), na qual, a fundadora da instituição, Polly Ferman, faz uma dedicatória a Antônio Jordão Motta Vecchiatti, por conta da First Annual Latin American Cultural Week, realizada em 2006 na cidade de Nova York. Além de dedicar o encontro a sua memória, ressaltando o compromisso que mantiveram com a música da América Latina, Ferman apenas diz que Antônio Jordão foi um brasileiro que nasceu em 1962 e faleceu em Nova York em 1986. A segunda e última menção que encontrei a Antônio Jordão é do próprio Alair. Ele dedica A new sentimental journey: “To Antônio Jordão and to all those that in the present hard times became victims of their devotion”. Disponível em: http://www.pamar.org/lacwnyc_06 13 Para maiores informações, veja o site da instituição http://www.hrc.utexas.edu/; http://www.pamar.org/lacwnyc_06 http://www.hrc.utexas.edu/ 20 tentativa de doar e preservar sua obra, pois a instituição possui um dos maiores acervos de fotografia do mundo. Alair talvez não pudesse imaginar que sua obra enfim permaneceria apenas pouco mais de dez quilômetros, tão próximo de Ipanema, donde viveu boa parte de sua vida, na biblioteca em que quando jovem devorava autores como Rimbaud e D. H Lawrence. Por que o artista não cogitou, na época, doar suas obras a uma instituição brasileira? Isto pode ser explicado pelos mesmos motivos, nos quais, a parte significativa dos escritos de Alair é redigida na língua inglesa? Após a morte do fotógrafo, Aíla de Oliveira Gomes, sua irmã, escreveu um pequeno livro intitulado Alair de Oliveira Gomes: 1921-1992: relevant data concerning his intellectual life, onde afirma que seu trabalho A New Sentimental Journey é escrito na língua inglesa, pois, “por óbvios motivos ele nunca concebeu a possibilidade de publicá-lo em seu próprio pais” (GOMES, 1995, s.n, tradução nossa). Luciana Muniz (apud MARTÍ, 2012, s.n) aponta que Alair “sentia exilado em seu próprio país” e Alexandre Santos (2015, p.17) afirma que a escrita talvez tenha sido “a primeira fuga possível [...] inaugurando um exílio voluntário de expressão pessoal”. Quais são os esses “motivos óbvios”, mencionados por Aíla, que inviabilizaram seu desejo de publicar seus trabalhos no Brasil? Estes “motivos óbvios” são também as razões da sensação de exílio, sentida por Alair, que Muniz afirma? Ainda, o exílio seria tão voluntário como Santos coloca? Podemos entender este exílio de forma análoga também ao território institucional da arte, já que nos parece que este espaço não estava pronto para recebê-lo. No presente, temos condições para a reativação de sua obra? Mesmo em meio a certo ostracismo, em relação a sua obra fotográfica, Alair não deixou de preocupar-se na preservação de sua obra, mas também, se esta, devido a “motivos óbvios” seria considerada “arte”. Ainda assim, algumas vezes sentia-se “conformado com a possibilidade de a Sinfonia ser preservada apenas como um exemplo de exotismo erótico-obsessivo sem cidadania no processo artístico” (GOMES, 1975, p.4). Alair Gomes foi um artista brilhante, mas invisibilizado na cartografia dominante, tendo sido “re-descoberto” recentemente por conta de uma grande exposição na Fundação Cartier Bresson em 2001. Para Joaquim Paiva, “"dá uma certa vergonha ver que o trabalho dele, que foi tão rejeitado no Brasil, durante tanto tempo, precisou ganhar uma exposição de grande porte na França para poder provar que é bom" (PAIVA apud ASSEF, 2001, s.n). Ainda, para Santos (2006, p.viii), “como 21 diversos fotógrafos que se dedicaram à representação do desejo homoerótico ao longo da história da fotografia, Alair atuou de modo silencioso e quase sempre nas bordas do sistema das artes”. Isto não o impediu, entretanto, de criar sua obra. Essas questões também são importantes para psicologia, que por sua vez, historicamente, alocou a todas e todos, também excluídos dos sistemas das artes, a uma posição incomoda nos manuais de psicopatologia. Em contraposição a certas psicologias, que conforme Peres (2014, p.340), ao invés de potencializar, “enfraquecem as expressões de existências que criam novas possibilidades de vida, impondo a todo custo classificações, diagnósticos, tratamentos e curas das dissidências às normas e padrões estabelecidos como regimes de verdades", uma psicologia crítica às normas e convenções culturais exige atenção ao invisível, exige repensar uma epistemologia que tende a conferir valor somente aos cânones oficiais da teoria psicológica, em especial, no caso desta pesquisa, em detrimento de fontes artísticas, culturais, classificadas como secundárias ou menos concretas. Pois, dessa maneira, a epistemologia hegemônica na psicologia tenderá a criar “violências epistemológicas”, ou seja, as construções de pesquisas dentro das quais certas experiências sociais se tornam invisíveis, secundárias ou sem importância (SPIVAK, 2009). Ou quando trazidas ao discurso, analisadas a partir de uma ótica de patologização dos sujeitos que não se conformam ao sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais (BUTLER, 2003). Deste modo, acredito ser necessário trazer para as discussões da psicologia, as experiências que foram invisibilizadas na construção da epistemologia psicológica hegemônica. O processo de criação artística contribui ao se encontrar com a psicologia, quando ambos estão, ou deveriam estar, contra o processo de serialização da subjetividade. Permitindo, assim, uma singularização existencial que está relacionada a partir de “um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos” (GUATTARI e ROLNIK, 1999, p. 17). Assim, conforme os apontamentos de Peres et al. (2014), em relação a insurgência de provocações queer à Psicologia, entendo que as fotografias de Alair Gomes permitem-nos ir contra esse movimento. Nessa investigação, buscarei lançar um olhar não-heteronormativo para a série Symphony of Erotic Icons do fotógrafo Alair Gomes (1921-1992). A Sinfonia é um conjunto de 1767 fotografias de nus masculinos e é dividida em cinco partes: 22 Allegro, Andantino, Andante, Adágio e Finale. O objetivo geral dessa pesquisa é investigar como se dão os processos de construção do erotismo e das corporalidades masculinas na obra de Alair Gomes e pesquisar os elementos de uma possível dissidência queer em relação a heterossexualidade compulsória que se impunha naquele contexto. No capítulo 1, Loca-lizando Alair Gomes, buscarei traçar os aspectos da vida e do pensamento produzido por Alair Gomes. Minha preocupação, assim, será pelas fugas e rupturas que Alair agenciou, onde me interessará mais apontar a impossibilidade de uma narrativa, na qual diferentes vias de entrada/saída são possíveis, do que apresentar minha cartografia como uma possibilidade única de leitura. No capítulo 2, Notas para uma cartografia da obra de Alair Gomes, problematizarei como a arte não está alheia à heteronormatividade e estranharei alguns casos que caracterizam a recepção de Alair Gomes. Ao recusar os marcos normativos que tem orientado a historiografia de arte moderna e contemporânea, oferecerei uma pista de como abordar a obra de Alair, por meio da série Sonatinas, Four Feet, para além de categorias que reduzem sua obra a vieses patológicos e identitários. No capítulo 3, Imagens performativas ou como fazer coisas com imagens, intento compreender o que está em jogo nas disputas imagéticas nas relações entre poder e o campo visual. Assim, por meio de um diálogo com Judith Butler, procurarei demonstrar como a lógica performativa está envolvida com a fotografia, fazendo desta uma tecnologia de gênero (DE LAURETIS, 1994) e um importante vetor nas regulações de gênero e sexualidade. Uma discussão que acredito ser necessária a psicologia, pois, além mesmo das questões de gênero e sexualidade, tenho como objetivo destacar como as imagens atuam nos modos de subjetivação. Por fim, no capítulo 4, Opus 3, Symphony of Erotic Icons, inicialmente, buscarei delinear alguns pontos para compreensão da série: o trabalho de Alair com múltiplas imagens, suas concepções do nu erótico envolvendo o corpo masculino, bem como, as referências de Alair na criação da Sinfonia. Para assim, problematizar como o corpo masculino é apresentado em sua obra. 23 1. LOCA-LIZANDO 14 Alair de Oliveira Gomes, mais conhecido como Alair Gomes, dedicou sua vida à busca desinibida do prazer, como uma ética do desejo enquanto motor não somente para a criação de sua obra, mas também enquanto um processo inventivo de estilização de si em detrimento das demandas sociais que esterilizam as diferenças. Quando conheci Luciana Muniz e fui recebido com um "Bruno, seja bem-vindo ao Planeta Alair"15, do mesmo modo, início este capítulo com o mesmo desejo de dar- lhes boas-vindas, como um convite a permitir-se adentrar a vida de Alair. Nesse sentido, apresento uma cartografia de um planeta, como disse Luciana, ainda por ser desbravado16, mesmo que desbravar, soe um tanto quanto colonizador. Ao me deparar com a história de Alair Gomes, muitas vezes, senti que estava diante de muitas vidas, elementos contrastantes, como oximoros que fazem parte de um mesmo percurso. Mas, ao invés de buscar homogeneizar sua vida numa narrativa coerente, meu interesse reside, exatamente, nas incoerências, na multiplicidade de espaços em que Alair habitou e, principalmente, pelas rupturas e linhas de fuga que o artista criou para si. Com o título desse capítulo quero dizer que desejo realizar uma “loca-lização” de Alair Gomes. Loca-lizar é um conceito da antropóloga estadunidense, de origem colombiana, Márcia Ochoa (2004). Loca, nos países latino- americanos é uma palavra utilizada pelas comunidades dissidentes da heterossexualidade, esta pode ser entendida como o eixo centralizador do qual se 14 A assinatura de Alair foi retirada de seu currículo, disponível no site dedicado a memória da Escola de Artes Visuais Parque da Lage (EAV), pois, como discutirei a seguir, Alair foi professor desta instituição. Disponível em: http://acervo.memorialage.com.br/xmlui/handle/123456789/1272. Acesso em: 18 de dezembro de 2016. 15 Correspondência pessoal via facebook. Mensagem recebida em 21/10/14. 16 Consultei todo material que tive acesso, nesses dois anos, para dar língua as afecções com as quais me encontrava, como diz Rolnik (2011), e assim, se tornaram elementos com os quais, agora, teço esta cartografia: textos sobre Alair Gomes, em especial a tese de doutorado Alexandre Santos (2006), a única no Brasil sobre Alair, além de dissertações, artigos científicos, matérias em revistas voltadas a fotografia, ou não, sobre Alair. Visita a mostras, catálogos de exposições, filmes documentários, a entrevista de Alair com Joaquim Paiva. Também a consulta in loco ao acervo de Alair na FBN, no qual pude ler textos de Alair sobre diversos temas e conhecer parte de seu trabalho fotográfico, como a Symphony of Erotic Icons, The course of the Sun, Beach Trypchs, Sonatinas, Four Feet, entre outras, como as fotos de carnaval, registros de espetáculos teatrais, fotos de seus familiares, bem como outros materiais, como os belos cartões-postais que colecionava nas viagens em que realizou. Também, fiz uma pesquisa no site da Hemereoteca Brasileira Digital da FBN, uma base de dados com jornais brasileiros digitalizados, onde busquei as palavras-chave “Alair Gomes” e “Alair de Oliveira Gomes” nos jornais publicados no estado do Rio de Janeiro entre 1921-1995 (Ano em que Alair nasceu e três anos após sua morte). http://acervo.memorialage.com.br/xmlui/handle/123456789/1272 24 organizam as diferenças, para se referir às bichas, assim como Brasil se usa a “bicha louca” (PELÚCIO, 2012, p.412). Cabe ressaltar, que no caso dessa investigação, o loca não se refere a uma leitura que sugere que Alair se situe por meio desta identificação, o que quero dizer é que loca-lizar será a forma como vejo minha posição corporizada de investigador, do corpo como o método, de como me guiarei no encontro com sua obra, criando territórios sem com isso abrir mão do estranhamento, como condição do desentranhamento de aberturas e fugas que esta loca-lização me propicia. Entendo a loca-lização, nesse sentido, como um guia que permeará esta cartografia. Não terei como intuito fazer um mapa da vida de Alair, nem mesmo buscar a essência perdida nos escombros de uma vida que não pode ser contada. Ao invés disso, com as limitações gerativas desta narrativa, intento traçar linhas que apontem as entradas e suas inúmeras saídas, de uma vida/obra que desafia qualquer traçado que reduza a multiplicidade alariana ao se portar como a tentativa de uma visão única, com contornos delimitados, do que seja Alair, já que “a biografia é uma forma, a vida é um fluxo” (COELHO E CAVALCANTI, 2001, p.136, tradução nossa). Primeiros trajetos A vida de Alair Gomes desafia todas as sínteses (COELHO; CAVALCANTI, 2001). Alair transitou em diversos espaços, da escrita à engenharia, da filosofia e ciência à fotografia, espaços estes que, se muitas vezes podem parecer paradoxais, indicam sua capacidade de estar em constante processo de (re)invenção de si. Alair nasceu no dia 20 de dezembro de 1921, na cidade de Valença, no sul do estado do Rio de Janeiro. Logo quando pequeno se mudou com sua família para o Rio de Janeiro, naquele momento a capital da República, onde permaneceria toda sua vida. Cresceu numa “típica e pequena família nuclear de classe média” e católica, composta pelo seu pai Sebastião Alves Gomes, funcionário público, sua mãe Clio Faria de Oliveira Gomes, dona de casa, e por sua irmã Aíla de Oliveira Gomes (Fig. 1-3), cinco anos mais velha, que nos anos seguintes seguiria a carreira de professora de língua inglesa e literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro e se destacaria como respeitada tradutora de poesia e literatura, tendo ganhado os prêmios Jabuti e APCA por suas traduções de Emily Dickinson e de Hopkins, respectivamente (SANTOS, 2006, p.67-8). Mesmo que a família não fosse composta de artistas, nem mesmo de intelectuais, concordo com Santos (2006, p.67) de que “havia ali o embrião necessário 25 Figura 3 Aíla de Oliveira Gomes, Alair Gomes e Edith Pinto Autoria desconhecida, s/d Coleção Alair Gomes Fundação Biblioteca Nacional Figura 1 Alair e Clio Faria de Oliveira Gomes. Coleção Alair Gomes. Fundação Biblioteca Nacional Figura 2 Self, circa 193-. :Coleção Alair Gomes. Fundação Biblioteca Nacional. 26 para o desenvolvimento de aptidões artísticas pelos dois filhos do casal”. Na infância, Alair transitou pelo violino, porém, com a ausência de posses de sua família, não pôde dar continuidade aos estudos (SANTOS, 2006). Como veremos, a música será uma constante em sua vida, um elemento importante para compreender sua obra, e que aparece nos títulos das obras sobre as quais teceremos análises aqui nesta dissertação, a saber: “Sinfonia...” e “Sonatinas...”. Os primeiros contatos com a fotografia também se deram na infância. Como Alair conta, numa entrevista a Joaquim Paiva17, que desde criança praticou fotografia esporadicamente (GOMES, 1983/2014). Por volta dos oito anos, Alair se inscreveu e se classificou em primeiro lugar em um concurso infantil de fotografia, patrocinado pela Kodak, que tinha como prêmio uma quantia em dinheiro (SANTOS, 2006). Se escrever está longe de ser sinônimo de ser escritor, poderíamos dizer o mesmo da fotografia. Conforme Rouillé (2009), neste período a fotografia era compreendida majoritariamente como um documento, e como aponta Sontag (2004, p.67), os amadores também podiam desfruta-la de acordo com o aperfeiçoamento da tecnologia fotográfica que pode ser exemplificado na famosa campanha publicitária, de 1888, da primeira Kodak: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”. Ou seja, qualquer um poderia maneja-la com a promessa de que “a foto sairia sem nenhum erro”. A fotografia tinha um valor utilitário e era alvo privilegiado das famílias. Entendo que Alair usufruía da fotografia neste contexto. Como o próprio Alair afirma, embora fotografasse, “nunca com a pretensão de fazer fotografia sistematicamente” (GOMES, 1983/2014, s.n). As considerações de Sontag (2004, p.19), podem ser utilizadas para compreender o uso da fotografia no âmbito familiar, quando a autora cita um estudo sociológico realizado na França que demonstrava que a maioria das casas tem uma câmera, mas as casas que possuíam crianças têm uma probabilidade duas vezes maior de terem ao menos uma câmera, já que “não tirar fotos dos filhos, sobretudo quando pequenos, é sinal de indiferença paterna” (Fig. 4). A foto de Alair retratava a parada de Sete de Setembro e segundo o depoimento de Aíla para Santos (2006, p.72-3), “a foto nada tinha de especial, a não ser o fato de haver sido muito bem 17 Joaquim Paiva é diplomata, fotógrafo e colecionador de fotografia, proprietário de um considerável acervo de imagens de fotógrafos brasileiros e estrangeiros, ligados à fotografia moderna e contemporânea. Traduziu o livro Ensaios sobre fotografia, de Susan Sontag, publicado pela Editora Arbor, em 1981. Conheceu Alair Gomes na década de 1980, incorporando o trabalho do artista à sua coleção e tornando-se um dos primeiros divulgadores da sua obra no país e no mundo. 27 enquadrada, em se tratando de uma criança de apenas oito anos”. Se esse episódio pode ser encarado como uma das primeiras incursões de Alair na fotografia, ele não nos diz muita coisa além disso, há não ser como desde pequeno Alair possuía experiências com diversas linguagens, que podem aguçar o desejo, mas não são determinantes. Figura 4. Propaganda da Kodak, publicada em O Globo, no ano de 1939. Fonte: (UMA KODAK, 1939, p.4). Nos anos 1920, quando Alair ganhou o concurso de fotografia, podemos entender esse momento num contexto em que as famílias já vinham de um processo de reformulação radical, em que, “essa unidade claustrofóbica, a família nuclear, era talhada de um bloco familiar muito maior, a fotografia se desenvolvia para celebrar, e reafirmar simbolicamente, a continuidade ameaçada e a decrescente amplitude da vida familiar” (SONTAG, 2004, p.19). Nesse sentido, não me espanta que a foto com que Alair ganhou o concurso infantil de fotografia aos oito anos tenha sido de um desfile cívico-militar de Sete de Setembro, e suponho que o assistiu com sua família, católica, considerando sua pouca idade. Afinal, mesmo nos dias atuais, não existem elementos que pareçam andar tão juntos no Brasil como Família, Militarismo e Religião. Podemos dizer que, inicialmente, Alair não conseguiu escapar dessas relações, tendo seguido carreira na engenharia, como quem segue os passos do pai, 28 assim como sua irmã, na carreira de professora, desejo não realizado de sua mãe18, cada qual seguindo scripts pré-determinados, não só familiares, como também das expectativas sociais de profissões adequadas a homens e mulheres. Assim, em 1944, Alair se formou em Engenharia Civil e Elétrica pela Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, atualmente a Universidade Federal do Rio de Janeiro, e no ano seguinte foi nomeado engenheiro da Estrada de Ferro Central do Brasil. Porém, a atuação como Engenheiro duraria apenas poucos anos. Em um texto intitulado “São Francisco e a futura exposição”, publicado no Diário de Notícias, escrito quando tinha dezesseis anos, Alair (1938) realizou uma descrição da cidade de São Francisco por conta da Golden Gate Internacional Exposition, em comemoração às recém-inauguradas pontes de São Francisco. É interessante perceber, como já na adolescência, Alair nutria uma admiração pelos Estados Unidos. O próprio Alair se definia como sempre tendo sido um americanófilo (GOMES, 1983/2014). Nesta matéria, mesmo sem ainda conhecer o país, narra a cidade como se fizesse parte daquele território e encerra seu texto com a frase, do poeta britânico Rudyard Kipling, "San Francisco só tem um defeito - é uma cidade difícil de se deixar". Essa atitude de grande identificação com os Estados Unidos é perceptível na adoção do inglês nos seus escritos, desde os diários aos textos filosóficos. Como dito, para Luciana Muniz (apud MARTÍ, 2012, s.n), Alair “sentia-se exilado em seu próprio país” e para Santos (2015, p.17) a escrita talvez tenha sido “a primeira fuga possível [...] inaugurando um exílio voluntário de expressão pessoal”, mesmo que possamos questionar o quanto voluntário um exílio possa ser. Rolnik (2011, p.16), entende que no caso do exílio, “tão ou mais importante do que permitir o afastamento concreto da situação nefasta, sua face visível, o que aí se opera 18 Conforme Santos (2006, p.68-9), mesmo que não tenha seguido a carreira no magistério, Clio vinha de uma família de professores, mas com a morte de seus pais, foi criada por suas tias que não puderam propiciar uma formação para seguir a tradição familiar no magistério. Ainda assim, segundo Santos, Aíla afirma que sua mãe possuía grande admiração pelas artes e sensibilidade estética apurada. Por exemplo, encontrei na revista O Tico-Tico na edição de dezembro de 1926, os nomes de Alair Gomes e de sua irmã, Aíla Gomes, na seção Grande Concurso de Natal d'O TICO-TICO (1926). Nesta seção, as crianças deveriam decifrar charadas propostas pelo editorial da revista. Em um pais no qual em 1920 possuía uma taxa de analfabetismo de 71,2% da população (BRASIL, 1920, v. IV, 4ª parte), o fato de crianças como Alair e Aíla, com 5 e 10 anos, em 1926, respectivamente, corresponderem-se com uma revista infantil, mesmo que, provavelmente, apoiados por seus pais, não era algo comum para a maioria da população. O acesso à educação é um fator que deveria ser considerado básico, mas que fizerem de Alair e Aíla uma exceção, graças aos esforços de sua mãe que, embora, como dito, não seguiu a carreira no magistério, certamente não deixou de fomentar o interesse pelas letras em seus filhos. 29 micropoliticamente é um exilio numa língua adotiva que acolhe o corpo vibrátil19 e a expressão daquilo que o atravessa”. O que fez com que Alair se sentisse exilado em seu próprio país? Ilhado na sua diferença? Sua “americanofilia" parece se encontrar com a evocação da liberdade, ainda mais, tratando-se de São Francisco, a cidade em que as pessoas vestem flores em sua cabeça, como diz a canção de McKenzie, cidade que seria no século XX um epicentro de inúmeras transformações nas gramáticas do desejo. Nessa época, Alair já se sentia “diferente”. Como afirma, seu desejo pelo corpo masculino é algo antigo, ele conta sobre um evento na escola primária com um menino de nome Aécio, quando “um dia esse menino brigou com outro e se feriu. E na hora em que eu o vi ferido, o tipo de sentimento – eu me lembro da visão que tive dele – que isso provocou em mim era obviamente um sentimento amoroso e erótico” (GOMES, 1983/2014). Mesmo sem ter a consciência desse fascínio, essa sensação, como diz, foi uma constante em sua vida. Segundo Alair, daí veio à necessidade de fixar tais experiências, que o levaram inicialmente a tentativas na escrita, na pintura e desenho, e, posteriormente, à fotografia. Ou seja, sua relação com as artes se deu a partir da necessidade de encontrar expressões que pudessem dar corpo às sensações que o afectavam. Alair vivia numa época em que não dispunha de aparatos de expressão de seu desejo como algo permitido, inteligível. Nesse sentido, o desejo pode ser encarado como algo ameaçador, mas ao invés disso, ele manteve-se vulnerável às forças que o afectavam e criou um modo de cartografar as sensações que o corpo masculino lhe causava, sensações estas ignoradas na cartografia dominante. Esse desejo não se deu sem conflitos, ainda mais, levando em conta o quanto a religião católica era presente em sua vida. Numa entrevista que Alair concedeu ao jornal A 19 Corpo vibrátil é um conceito criado por Suely Rolnik (2002) e é recorrente em seu trabalho. Ainda que numa entrevista recente (ROLNIK, 2016), a autora afirme se desvincular desse conceito, procurando pensá-lo em termos de "o corpo que sabe" ou de inconsciente colonial. Esse conceito, em constante mutação, contudo, relaciona-se as sensações que nos afetam, mas que não conseguimos situar na cartografia daquilo que nos é cognoscível. A afecção é aquilo que pode um corpo, diz respeito a quais encontros ele é capaz. A impossibilidade no reconhecimento da sensação que afetou o corpo gera um mal-estar, um estranhamento. Por isso, lidar com as sensações não tem conexão com o ato de interpretar, pois a interpretação está relacionada com decifrar o mundo a partir de repertórios dos quais já dispomos. Acolher as sensações nos convoca a criação, mesmo que isso não signifique dispensar dimensões outras de nossa subjetividade, como a percepção. Mas o corpo vibrátil seria esse esforço de sustentar as desestabilizações provocadas pelas sensações em direção a inventividade em detrimento da acomodação naquilo que já está estabelecido. Essa proposta vai ao encontro dos estudos queer, pois, estes têm o estranhamento como mobilizador do pensamento, da produção de subjetividade. 30 Manhã, em 1946, sobre a primeira edição da revista literária Magog (Fig. 5)20, que criou com seus amigos Marcos Konder Reis, José Francisco Coelho e Atalá Marques Porto, podemos perceber o quanto a religiosidade era importante para o Alair dos anos 1940. Alair e seus amigos, dizem que a revista pode ser representada por três palavras: "Ciel, amour, liberté". Ao ser perguntado sobre quais os deveres do escritor e as finalidades da obra poética, Alair responde: “Só há um dever no mundo: é o dever religioso” (GOMES, 1946, p.4). Figura 5 Capa da segunda edição da Revista MAGOG. Fonte: (ESSA ESTRANHA, 1946, p.4) 20 No material pesquisado, não encontrei muitas referências em relação a revista literária Magog. Porém, além da entrevista citada e da capa da segunda edição da MAGOG, encontrei um texto de Antônio Cândido, no qual o crítico literário refere-se a revista. Cândido (1946, p.4) escreve que depois do desaparecimento da Revista do Brasil, dirigida por Octavio Tarquinho de Souza, os leitores brasileiros haviam ficado sem revistas literárias de alto nível, com exceção de pequenas "erupções das revistas de moços". E no contexto de uma mudança deste cenário, que o autor menciona o surgimento da revista Magog, bem como, as publicações Provincia de S.Pedro, no Rio Grande do Sul; Edificio, em Belo Horizonte; e Joaquim, no Paraná. Em sua perspectiva, "são revistas intensamente 'literárias' - revistas em que a paixão reponta a cada linha e cujos escritores parecem capazes de matar por causa de literatura ou dos problemas que julgam vitais". Dentre elas, Magog é "a mais sofisticada e sob uma rebeldia aparentemente conformada [...] Na grande cidade em que funciona, as gerações passadas já derrubaram os tabus acadêmicos e os jovens podem se espraiar à vontade. Estes cultivam o mistério e o "essencial", transcrevendo generosamente coisas de Chestov, Octavio de Faria, coisas sobre Kirkegaard, Leon Bloy, Nietszche, etc. Basta isto para definir lhes a atmosfera. Das três revistas é a menos original e mais estandardizada. Herda, simplesmente, certos padrões largamente cultivados pela "intelligentsia" espiritualista e dramática de alguns anos atrás. Não de menos, é extremamente simpática e dotada de um belo impulso de fé na arte e nos valores de espírito" (CANDIDO, 1946, p.4). 31 Contudo, na pesquisa de Alexandre Santos (2015) sobre o diário Drôle de Foi (Estranha Fé)21, escrito entre 1942-1947, podemos perceber elementos dissonantes com sua declaração pública na entrevista ao Jornal A Manhã. Não porque se contradizem, mas porque demonstram certo conflito de Alair com a religião, como, por exemplo, quando afirma que gostaria de um Deus com quem “inteiro” pudesse conversar (SANTOS, 2015). Outra afirmação mais contundente desta tensão pode ser vista quando Alair escreve que: A carne é coisa a que não se renúncia. Deve-se arriscar o corpo também e não apenas o espírito. Não me importa o que acontecer, tudo será apenas “conseqüência”. [...] A preferência pelo Cristo pode ser um dom especial, uma Graça para certos “puros” que não deveriam mesmo viver “no mundo”, mas para os que se sentirem atraídos pelo mundo, não há sentido algum na renúncia ao mundo (sic). [...] Para mim, e para todos aqueles a quem “tudo é permitido” [...], qualquer escolha “definitiva” seria artificial e estúpida, e qualquer nova atração pode ser mais viva e mais intensa que a atração que nos prendia antes – seja mesmo esta uma “profunda” vida cristã. (GOMES, idem, p. 83-5 apud SANTOS, 2015, p.11). Segundo Santos (2015) o Drôle de Foi é o prenúncio, mesmo que silencioso, do que veríamos na década de 1960 com a contracultura. Outras ideias de Alair como as de que “o sexo não é um aparelho para uso doméstico” tem, de fato, muita sintonia com as questões suscitadas com a Revolução Sexual ou com o Desbunde, como conhecido à brasileira (GOMES, 1942-47, p. 84 apud SANTOS, 2015, p.18). Drôle de Foi nos dá respostas que nos fazem compreender o porquê de Alair sentir que só é permitido mostrar-se de forma incompleta diante de Deus. Em 1946, conforme o relato de sua irmã (GOMES, s/a), Alair sofreu uma crise depressiva, citando seus termos, que culminou no abandono das atividades como engenheiro em 1948. Segundo Coelho e Cavalcanti (2001), de acordo com seus amigos, a origem de sua depressão é a inconsistência da relação entre sua homossexualidade e a ortodoxia católica, sendo esta sua grande ruptura radical, rompendo com a religião e a engenharia. 21 GOMES, Alair de Oliveira. Drôle de foi. Rio de Janeiro: Acervo Alair Gomes, Biblioteca Nacional, 1942-47. (Inédito). 32 Mesmo que, em certo sentido, elementos da religiosidade permanecerão presentes nas suas obras fotográficas 25 anos depois22. Como podemos imaginar, segundo Santos (2015), abandonar a carreira na engenharia não foi uma decisão tranquila, já que além de lhe conferir prestígio, seria uma fonte financeira segura. A partir daí, dedicar-se-ia à pesquisa não formal, inicialmente, no campo da filosofia da natureza, sobrevivendo num campo incerto, onde ofertava aulas particulares de matemática e física. Também trabalhou por um curto período no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)23, ainda transitou pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde lecionava matemática e física, além de prestar serviços ocasionais no campo técnico e intelectual. Mesmo que Alair se dedicasse de forma intensa nos projetos em que se envolveu, Alair nunca se fixaria, exclusivamente, em um mesmo “emprego” ou atividade. Ainda que permanecesse na atuação em diversos campos como a escrita, o pensamento científico e, posteriormente, a crítica de arte e a fotografia, isso não significou, necessariamente, o abandono de uma área para dedicar-se a outra, de forma que, por exemplo, em um mesmo ano, ele poderia apresentar um trabalho em um congresso científico, realizar uma exposição de fotografias, publicar um texto na área de crítica de arte, e ao mesmo tempo, continuar com seus projetos na fotografia, com seus estudos, com a escrita de diários. A multiplicidade de Alair é perceptível na forma como foi apresentado nos jornais: pesquisador da percepção visual e fotogramas, fotógrafo, especialista em psicofisiologia, ou ainda, como professor e crítico de arte, só para citar alguns casos (CORREIO DA MANHÃ, 1969a, p.3; CORREIO DA MANHÃ, 1969b, p.18; TRIBUNA DE IMPRENSA, 1977) 22 Por exemplo, o escritor crítico de arte, e amigo de Alair, Walmir Ayala (1976), em sua coluna no Diário de Notícias, comentou que Alair Gomes passou a Semana Santa, de 1976, em Saquarema, fotografando o surf e a procissão de Sexta-Feira da Paixão. Esses aspectos, a princípio contraditórios, atravessam sua obra, como pode-se ver também nos Trípticos. Os trípticos são elementos recorrentes na arte sacra, mas Alair os erotiza ao inserir os corpos masculinos em suas composições. 23 O curto período que Alair trabalhou no IBGE justifica-se por seu envolvimento num escândalo de corrupção. Conforme uma reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 26 de abril de 1961, Jurandir Pires Ferreira, na época o presidente do IBGE, criou uma comissão, da qual Alair fazia parte, para aquisição do UNIVAC-1 105, o primeiro computador comercializado em grande escala, e que no momento valia quase 3 milhões de dólares. Porém, Ferreira havia fraudado o valor das comissões, superfaturando-as, além de não submeter o contrato à aprovação do Tribunal de Contas da União. Assim, Ferreira e todos os membros da comissão foram investigados, tendo repercussão em todo o país, devido aos altos custos de um computador na época. Em entrevista ao Jornal do Brasil, Alair afirmou que estava dedicado aos estudos da cibernética aplicada a biologia, mas que nunca vira um computador eletrônico. Segundo matéria de Guimarães (1961), no jornal Tribuna de Imprensa, ao perceber as intenções do presidente do IBGE, Alair pediu demissão. 33 A partir do início dos anos 1950, quando estava com 33 anos, na cidade de Cabo Frio, Alair iniciou os chamados Journals, pequenos cadernos com espirais, todos escritos em inglês, com exceção de Ex Alto de 1980, escrito em português, mas que Alair não considerava um Journal (Fig. 6). Os Journals, num total de dez, foram escritos entre 1954 até 1962 e entre 1980 até 1992, compõe o que Alair intitulou de Intimate Writtings (SANTOS, 2006). Com os Diários Eróticos, Alair afirma que possuía "uma grande ambição literária”, mas que até aquela época, não sabia se havia sido bem-sucedida ou não. Como veremos, esses questionamentos acerca de seu talento ou não, ou da qualidade ou não de seus escritos, também ocorrerá com a fotografia (GOMES, 1983/2014). Sobre os diários eróticos, ele afirma que se tratam de: Uma descrição minuciosa de cada encontro com um rapaz, que era amante meu. No início foi assim. E quando a coisa entrou em fase de problema e de crise e quando, além dele, eu comecei a fazer sexo com outros também – o que eu já fazia antes -, quando passou dentro de mim o desejo de […] por ele, eu também passei a registrar os outros. De qualquer maneira, esse primeiro constituiu o assunto central de um volume verdadeiramente caudaloso do Diário Erótico. Esse caso teve a duração de três anos, e praticamente todos os meus encontros estão registrados, com detalhes, no Diário Erótico, principalmente no que se refere a parte erótica mesmo. Era óbvio – e aí a minha inclinação irresistível a imagem – porque, mais do que despertar um sentimento, já devia existir a descrição do corpo. Uma coisa que passou muito pela minha fotografia. Eu me lembro que tenho muitas descrições de pelos sobre coxa, de pelos em torno do umbigo, de pelos entre peitorais, de peitos, de como o olhar se dirigia, inclusive mesmo aspectos de membro genital…[...]Depois de mais de dez anos de diário erótico contínuo e obsessivo, eu comecei a ficar com muito medo de ser impossível continuar indefinidamente a descrição desse gênero de experiência. Não que em mim o interesse fosse diminuir. Eu sempre tive uma crença no erótico nesse sentido. Para mim, em princípio não se exaure, não pode se exaurir. Em última análise, eu creio que isso representa a natureza de todos os seres humanos. Se em grande parte dos seres humanos parece que o erótico está exaurido, isso se deve a razões contrárias ao processo, a fatores que agem muito poderosamente contra a perenidade do interesse pelo erótico. (GOMES, 1983/2014, s.n). Concomitante à escrita dos Journals, nesse período, Alair se dedicou à pesquisa e em 1953 escreveu The movements of living beings, o qual enviou a diversos intelectuais com os quais iniciaria um diálogo. Entre eles, para citar alguns 34 Figura 6 Diário íntimo EX-ALTO I, [198-]. Coleção Alair Gomes. Fundação Biblioteca Nacional. 35 exemplos, J. C. Eccles24, neurofisiologista da The Australia National University, ganhador do Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1963, que, segundo Aíla, sempre o encorajava (“...you are very modest”); o físico estadunidense Richard Feynman, do California Institute of Technology, também ganhador do Nobel de Física em 1965; além do linguista Roman Jakobson25, que enviou uma carta ao Guggenheim, na qual insistiu na necessidade de Alair Gomes na instituição e afirmou que “I have rarely met a scholar of such brilliant and creative spirit, such multifarious erudition such a fortunate combination of sober criticism”. Ainda, segundo Aíla, a parapsicologia desenvolvida por Alair também foi muito bem apreciada pelo escritor inglês Aldous Huxley26 (GOMES, s/a, s/p). Mesmo com a favorável recepção de The movements of living beings, segundo Aíla, o trabalho foi considerado longo demais para um artigo e curto demais para um livro. Mas Alair publicou, posteriormente, uma versão em português de O movimento dos seres vivos na Revista Brasileira de Filosofia, nos números de out./dez. de 1955 e jan./mar. 1956. Em um de seus estudos, ele vai se questionar como o artista, levando em conta seus ideais de liberdade, pôde engolir a pílula preparada pelos sucessores de Descartes. A pílula, parece referir-se à soma, à droga que as personagens de Huxley (1932), em Admirável Mundo Novo, tomavam para afastar quaisquer sensações que os tirassem da robotização de suas vidas. Para Alair, os sucessores de Descartes, como Locke, Newton e Laplace, são os responsáveis pela corrente concepção de objetividade científica, vigente ainda nos anos 1970, momento em que faz essas afirmações (GOMES, 1975/1995). O incômodo de Alair se dá, pois, suas preocupações tanto na ciência quanto na arte estão ligadas à ideia de liberdade27. O dualismo em Descartes consistia em duas partes distintas, segundo Alair, o res cogitans e a res extensas, que interagiam entre si. A primeira, exclusiva nos homens, englobaria as percepções, pensamentos, sonhos, emoções, etc., a segunda, o corpo, o organismo humano, mas também o universo exterior, sendo este último 24 Convidado por Eccles, Alair iria para Roma, em 1964, para apresentar The Brain-Consciousness Problem in Contemporary Scientific Research em um congresso científico. Desse encontro resultou a publicação do livro Brain and Conscious Experience, em 1966. com edição de John Eccles. O artigo de Alair é citado no livro Le Paradigme perdu: la nature humaine (1973) de Edgar Morin. 25 A correnpondência entre Alair Gomes e Roman Jakobson encontra-se disponível no Institute Archives and Special Collections do Massaschussetts Institute of Technology (MIT). Fonte: https://libraries.mit.edu/archives/research/collections/collections-mc/mc72.html. 26 Na Coleção Alair Gomes da FBN, encontra-se uma carta de Aldous Huxley para Alair Gomes escrita em 1958. Na época, Huxley realizava uma viagem no Brasil. 27 Alair (1965), discute essa questão no texto O conceito de Liberdade na Ciência Contemporânea, publicado na edição de número 30 da revista Cadernos Brasileiros. 36 entendido enquanto passível de mensuração, enquanto a natureza mental não o seria. Na leitura de Descartes, Alair afirma que este entende a interação entre estas dimensões, porque o que estava fora afetaria o cogitante, uma vez que o universo externo é por ele percebido. E por outro lado, o cogitante age no mundo, e no corpo, por meio da vontade, já que, Descartes, como religioso, com sua fé católica, acreditava no livre-arbítrio. Para Alair, os cartesianos citados, ignoraram a dimensão da liberdade ou do livre-arbítrio para consideraram apenas as dimensões mensuráveis da natureza, ou seja, a res extensas. Cabe ressaltar que se nesse momento recorro a Descartes, apenas o utilizo como um personagem conceitual. Não tenho interesse em afirmar se a leitura que Alair realiza da obra do filósofo, ou de outros autores citados por ele, são coerentes ou não com as propostas destes, o que pretendo, ao trazer as concepções sobre a ortodoxia científica que Alair contesta, é apresentar como sua preocupação com a liberdade em detrimento das vertentes na ciência que considerava deterministas estão relacionadas com seu trabalho na arte, tanto que as considerações agora citadas são resultado de um curso de arte moderna no séc. XX. Como direi logo a seguir, Alair traçava inúmeros paralelos entre arte e ciência, como por exemplo, pela noção de abstração que, em sua visão, é utilizada tanto em experimentos científicos como na literatura. Em certo sentido, essas questões, parecem também estar no cerne de sua produção fotográfica. Alair percorre diversas correntes científicas, como as de Laplace e sua formulação determinista do Universo, que ficou conhecida como determinismo materialista, a partir do que afirma que “para os cientistas cartesianos, os seres humanos são thinking robots – mas o pensar desses robôs não passa de um epifenômeno” (GOMES, 1975/1995, p.25). Alair entende que esse pensamento sofreria abalos com a teoria da relatividade, de Albert Einstein, a Teoria dos quanta de energia, de Max Planck, e o Princípio da indeterminação microfísica, de Heisenberg, mas que, porém, os três séculos de dogmatismo científico fizeram com que as considerações de que apenas o extenso é eficaz, já que passível de mensuração, e nossa vida mental não poderia, assim, guiar nossos comportamentos28. Alair afirma que o trabalho de Freud também reagia a ortodoxia científica, por afirmar a influência de fatores volitivos na consciência, mas que o 28 Veja, por exemplo, o artigo Demolição do reducionismo, no qual Alair (1977) critica as tentativas de reduzir toda experiência consciente à fisiologia cerebral. 37 psicanalista foi tímido quando afirmou que sua teoria, no futuro, poderia ser dispensada em decorrência dos avanços na fisiologia nervosa. Em contraponto a Freud, aponta as obras de Pavlov, na reflexologia, e de Watson, com o behaviorismo; e compreende que até o estruturalismo, como o caso de Lacan, veio apenas para somar-se nessa vertente de ortodoxia científica, pois, Ele tornou-se outra forma extrema de reducionismo. Não explicita a estrutura básica a que pretende tudo reduzir, mas é declarada a tentativa de reduzir o significado motivador, que controla os comportamentos humanos, a estruturas apriorísticas, de todo independentes daqueles significados, e que teria total influência determinista na vida mental, ou no comportamento humano (GOMES, 1975/1995, p.28). Por fim, ainda cita Skinner com a psicologia estímulo-resposta, situando-o ao lado de Pavlov e Watson, no que entende como escolas psicológicas que reduzem o homem em um ser automático cujos comportamentos podem ser dirigidos, e conclui que “não pode haver melhor arma para os totalitarismos que uma psicologia assim” onde “essa imagem pavorosa do ser humano como robô obriga-nos a concluir que eles mesmos, os gênios da ciência, são robôs” (GOMES, 1975/1995, p.29). Mesmo com as críticas à ciência, Alair não a recusava, ao contrário, buscava um meio de problematizar o determinismo e as modulações da subjetividade. Seu interesse acerca das concepções de liberdade, nesse sentido, encontra-se com a arte, pois acreditava que a arte funciona não só como espelho de seu tempo como também a antena de um futuro próximo (GOMES, 1975/1995). Uma das aproximações entre arte e ciência, na sua concepção, se daria por meio da abstração. Alair entende por abstração, "a exclusão de influências menos significativas sobre um certo fenômeno" e "um fator na constituição dos objetos como unidades significativas na consciência" (GOMES, 1960, p.7). Nos experimentos científicos, Alair afirma que pretendem, já que ele se inclui no fazer científico, revelar características que não são comumente apreendidas pelos leigos. O mesmo ocorreria na arte, e toma como exemplo Gustav Flaubert, quando este repele interferências indesejáveis afim de dedicar-se às circunstâncias particulares em torno de Ema Bovary, na qual a envolve numa tessitura sútil de circunstâncias, quase como induzindo-a em sua liberdade, bem como, no emprego que ela faz dessa liberdade para responder aos desafios de seu tempo. Contudo, Alair ressalta os perigos dessa 38 abordagem no caso da ciência, quando esta se vale da abstração, e com isso força a pesquisa em uma direção particular, já que ele entende que o cientista também orienta a experiência que realiza. Ele cita, por exemplo, o caso da biologia que ao estudar a particularização de fenômenos pode deixar de considerar o organismo como um todo, "no qual o seu caráter de ser vivo se torna aparente" (GOMES, 1960, p.7). Mas essa particularização, mesmo com seus riscos, se realizada de forma ética, poderia trazer benefícios para o conhecimento. Ele cita como exemplo a radioastronomia, com seus “aparelhos incrivelmente sensíveis, tais como o maser, entram seletivamente os sinais mais débeis e aparentemente insuspeitáveis de um intricadíssimo conjunto de sinais muito mais fortes e óbvios” (GOMES, 1960, p.7). Alair afirma que certos casos, como o da radioastronomia, há uma sensibilidade proustiana em que é possível perceber o campo problemático da abstração e as sensibilidades aguçadas. Ele se refere a famosa passagem das madeleines em Proust, e como este foi capaz, a partir de um fato irrelevante para boa parte das pessoas, tornar essa experiência algo da maior importância ao “atribuir significação tão profunda a sentimento ou recordações de aspecto tão trivial, assim também apenas o especialista mais avançado em cosmologia e em eletrônica pode fazer derivar teorias sobre o cosmos dos mais fracos sinais de rádio”, assim, para Alair, “o que tanto Proust quanto os radiocosmologistas tiverem de fazer foi dar toda a atenção a sinais que só eles percebiam ser especialmente significativos, proteger estes sinais de influências estranhas e, praticamente, abstrair o resto do mundo” (GOMES, 1960, p.7). Alair (1960) entende que artistas e cientistas são “especialistas”, cuja sensibilidade aguçada os permitem perceber traços ou fatos irrelevantes aos leigos, mas que também, por que sabem criar condições que revelarão estes traços ou fatos percebidos. Como veremos, em certo sentido, Alair fez da sua fotografia um experimento. Dedicou-se ao registro do corpo masculino, priorizando o erotismo sútil envolto nas relações entre jovens garotos que frequentavam a praia de Ipanema e “isolou” seu tema de fatores que considerou “adversos” ao seu “estudo” do corpo masculino jovem e belo. Os estudos de Alair prosperariam quando Eccles veio ao Brasil em 1958, por conta de um congresso, e o neurofisiologista o apresentou ao Dr. Carlos Chagas Filho, na época o diretor do Instituto de Biofísica da Universidade do Brasil, que o convidaria a integrar a equipe do instituto, provavelmente para dar aulas, segundo Santos (2006). Encontrei no Jornal Diário de Notícias (1961, p.8) a divulgação de um curso de 39 extensão universitária sobre “Teorias Modernas da Biologia (Filosofia para as Ciências da Vida) do Dr. Alair Gomes no Instituto de Biofísica da Faculdade Nacional de Medicina”, mesmo quando, na verdade, Alair não fosse doutor. O fato de Alair não possuir pós-graduação também foi um dos fatores que o atrapalhavam para conseguir financiamentos e de seguir com suas pesquisas. Porém, mesmo assim, graças a uma carta de indicação do Dr. Carlos Chagas Filho, um importante médico, reconhecido internacionalmente, conseguiu uma bolsa Guggenheim no campo de estudos History of Science and Technology na categoria Latin America & Caribbean, o que lhe permitiu viver nos Estados Unidos por um ano para realizar suas pesquisas (Fig. 7)29. Segundo Alair (1983/2014), o Guggenheim oferece uma bolsa livre, onde permite o beneficiado escolher qual instituição pretende se vincular. Alair escolheu ficar agregado a Universidade de Yale, onde permaneceu por seis meses do um ano em que viveu nos Estados Unidos. Era uma oportunidade incrível para alguém que sempre ansiou em conhecer os Estados Unidos. Além das expectativas em relação à “experiência erótica americana”, que ficariam, contudo, somente nas expectativas. Conforme Alair, a maioria destas experiências foi visual, nos refeitórios e na famosa piscina da Yale, já que essa questão, segundo ele, era extremamente difícil por lá. Figura 7 Foto de Alair de Oliveira Gomes no site do John Simon Memorial Foundation. Autoria não identificada, circa 1960-1. Alair começou a deixar de produzir e alegava que seu baixo rendimento se dava à “abstinência sexual” que vivia. Após seis meses na Yale, se mudou para Nova 29 Fonte: www.gf.org/fellows/all-fellows/alair-de-oliveira-gomes 40 York, onde, ao menos o encontro com a arte lhe tiraria do marasmo da pacata New Haven. Alair, a partir daí, começou a questionar-se se os Estados Unidos era o melhor lugar para sua pesquisa, já que além da esterilidade erótica na sua relação com os estadunidenses e sua solidão, seus trabalhos não estavam sendo bem recebidos naquele país (SANTOS, 2006). Assim, volta ao Brasil, onde acreditava poder melhor realizar seu trabalho, além da presença das amizades que povoavam sua vida com bons encontros. Santos (2006, p.116), conta que Alair adorava visitar seus amigos, mas que seu apartamento, na rua Francisco Otaviano, aos sábados à noite, era um local de uma festiva aglutinação de pessoas. Paulo Franco, amigo de Alair, contou que conheceu Clarice Lispector ali30. Na volta ao Brasil, Alair manteve-se ainda por muitos anos com trabalhos na área de filosofia da ciência. Além dos trabalhos The moviments of live beings e Humanism and Mysticism nos anos 1950, escreve Work in Progress em 1983.Também apresentou trabalhos em congressos, como A morte do neurônio, em 1973, no Congresso de Gerontopsiquiatria da Associação Brasileira de Psiquiatria, em colaboração com o Prof. Carlos Chagas, onde defendiam, por exemplo, que a atividade criadora persiste mesmo em idades bastantes avançadas e utilizam como exemplo as obras de Michelangelo, Ticiano, André Gide, Bertrand- Russel, Picasso e Goethe (A MORTE, 1973). 30 Algumas das fotos mais conhecidas de Clarice são de autoria de Alair Gomes. Porém, além da menção de Paulo Franco, não encontrei indícios de que tenha havido uma relação de amizade entre Alair e Clarice. O que talvez mais os aproximem seja o autor de Crônica de uma casa assassinada, Lúcio Cardoso. Lúcio (1912-1968), amigo de Alair, foi um escritor, dramaturgo e poeta brasileiro. Na Fundação Casa Rui Barbosa, onde encontra-se o todo o acervo de Lúcio Cardoso, constam, por exemplo, 11 cartões postais enviados por Alair de Nova Iorque, Roma, Siena e Berlim, entre outubro de 1962 a março de 1968, meses antes da morte de Lúcio em setembro. Mas a amizade entre ambos parece ser mais antiga, já que na segunda edição da revista criado por Alair, a Magog, nos anos 1940, Lúcio publicou, naquele número, um texto intitulado "Carta aberta a uma personagem" (A MANHÃ, 1946, p.8). Alair (1973), além de ter feito a foto da capa de alguns de seus livros, também escreveu em sua homenagem um texto intitulado "Lúcio, o visual". Acredito que Lúcio possa ter apresentado Clarice a Alair, pois, além da sabida amizade entre Clarice e Lúcio, as fotos que Alair realizou de Clarice datam apenas um ano após a morte de Lúcio. Benjamin Moser (2014), em Clarice, biografia da escritora, narra a longa relação de amizade entre Clarice e Lúcio, por quem Clarice se apaixonou intensamente. Mas, como também é conhecido do público, Lúcio era homossexual e mesmo que Clarice tenha afirmado tentar "salvá-lo", conforme Moser, a relação nunca se concretizou nesse sentido. Em Clarice, Moser (2014) ressalta elementos da escrita de Lúcio que parecem sintonizar-se com os próprios escritos de Alair nos anos 1940, assim não é de se estranhar que Lúcio tenha publicado na Magog. Além do homoerotismo, ambos tinham em comum o catolicismo, pois, Lúcio era associado a escritores surgidos nos anos 1930 que eram tidos como "católicos", assim como, por exemplo, também era o caso de Octávio de Faria, que também publicou um texto nesse número da Magog. Para Moser (2014, s.n), a Igreja prometia redenção "àqueles que se curvavam à consciência do pecado". E esses escritores não viam a arte como meio de abordar questões sociais ou de refinamento da língua nacional, mas sim, "buscavam ser salvos por meio da arte. Escrever era para eles um exercício mais espiritual do que intelectual". Ou seja, apontamentos que vão muito ao encontro dos já mencionados por Candido (1946). 41 Nesse retorno, Alair começa a atuar como crítico de arte, de forma mais constante, já que antes da viagem aos Estados Unidos, Alair publicou algumas matérias em jornais em que realiza comentários críticos sobre a Bienal de São Paulo, que frequentava com assiduidade, dedicando-lhe também nos anos seguintes mais alguns textos (GOMES, 1959, 1961, 1968, 1976, 1977, 1986). Alair também escreveu sobre a obra de vários artistas, como por exemplo, Ione Saldanha, Amélia Toledo, Glauco Rodrigues, Farnese de Andrade, Lucio Cardoso, Ana Miguel e Maurício Bentes (GOMES, 1964, 1965/2012, 1970a, 1970b, 1972, 1973, 1980, 1989, 1990). A partir desses trabalhos, Alair tornou-se membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, Rio de Janeiro, e membro da Associação de Críticos de Arte de Paris. Conforme Santos (2006), este movimento pode ser visto como uma continuação do percurso iniciado na revista Magog em 1946, além do fato que Alair, nos últimos dez anos, vinha dedicando-se aos Intimate Writtings. Além da crítica de arte, Alair ofereceu inúmeros cursos sobre história da arte moderna e contemporânea, fotografia e cinema (Fig. 8). No final da década de 1970, Alair foi professor da Escola de Artes Visuais Parque da Lage (EAV), na gestão de Rubens Gerchman, seu fundador, onde ofereceu cursos como Fotografia: Arte, documento ou denúncia, ao lado de Walter Firmo. Conhecida desde o final da década de 1960, por ter sido palco de filmes como Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha e Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Figura 8 Propagandas de cursos de Alair Gomes publicadas no Jornal do Brasil Fonte: (JORNAL DO BRASIL, 1980, p.6; JORNAL DO BRASIL, 1980, p.5) 42 Andrade, a EAV foi e é um espaço para formação de artistas, curadores e pesquisadores interessados em arte. Além de ter sido, na década de 1970, um epicentro cultural que mobilizou o Rio de Janeiro, no qual nomes como – Mario Pedrosa, Lina Bo Bardi, Roberto Magalhães, Celeida Tostes e Paulo Herkenhoff, entre outros – passaram por lá31. Em 1979, Alair também foi professor na Oficina de Escultura do Museu do Ingá32. Em um depoimento para o documentário de Luiz Carlos Lacerda (2003), dedicado à Alair, Maurício Bentes conta um pouco do trabalho de Alair na Oficina, local onde o conheceu: “Ele fazia um trabalho, na oficina de escultura dos discípulos de Haroldo Barroso [...] que era exatamente de ser um analista de cada artista”, Alair “praticamente deitava cada um num divã e começava a conversar sobre a obra e ficava relacionando com os problemas analíticos de cada um. Isso era na verdade o fundamento de todo nosso processo criativo lá e todo nosso processo de aprendizado”. Esse processe tinha como objetivo chegar “a uma linguagem individual muito trabalhando esse conceito analítico para colocar esse eu, colocar esse interno mesmo, pra fora. Sem nenhuma interferência exterior”. O breve comentário de Bentes não oferece maiores informações sobre essa estratégia utilizada por Alair no trabalho com os artistas, mas é interessante observar esta relação, se é que posso chamá-la assim, entre Arte e Clínica apontada por Bentes. Um de seus cursos, em 1975, na Galeria Eucatexpo, resultou no livro Reviravoltas na arte do século XX, organizado 3 anos após sua morte. Conforme Aíla Gomes (1995), o livro é resultado de anotações e slides de 16 palestras, proferidas por Alair, que foram encontradas nos cadernos de Alair e continham o roteiro do curso, escrito de forma apressada e em inglês, como de costume. O livro é profícuo no sentido de podemos perceber as concepções, os pensamentos e referências de/sobre 31 Para saber mais sobre a EAV, veja o livro de Lisette Lagnado (2015), O que é uma escola livre? ou acesse o próprio site da instituição http://eavparquelage.rj.gov.br. 32 Desse encontro com a escultura, em 1988, Alair também teve uma experiência com curadoria. Ele organizou uma exposição, na Casa de Cultura Laura Alvim, de três jovens artistas na época: Maurício Bentes, Marcello Corrêa do Lago e Luiz Pizzarro. Segundo Ayala, (1988, p.10): “Os citados, investigando no campo da escultura, ou melhor da tridimensionalidade, estão rotulados como participantes da Geração 80. A pesquisa mais consistente, em termos objetuais, é de Maurício Bentes, que em poucos anos avançou consideravelmente no panorama local, quer pela intensa imaginação quanto pela capacidade de trabalho. Pizzarro apresentou-se mais freqüentemente como pintor, embora sua pintura revelasse preocupações com volume inerentes à problemática da escultura. Marcello Corrêa Lago é oriundo da Oficina de Escultura do Ingá (Niterói) e tem o menor currículo do trio. Uma exposição de grande interesse, principalmente pela curadoria do crítico Alair Gomes, o que é credencial positiva". Essa exposição gerou, ao que tudo indica, o único registro audiovisual de Alair. Pois, foi gravado um documentário, acerca da exposição, intitulado 3x3: 3 Artistas, 3 Dimensões: Marcelo Lago, Maurício Bentes, Luiz Pizarro, no qual, consta um depoimento de Alair Gomes. 43 arte Arte que Alair possuía na década de 1970, mesmo período em que realizava a Symphony of Erotic Icons. Alair afirma no livro que "estamos vivendo numa época radical de mudança de comportamentos [...]