Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp Instituto de Artes Edson Tadeu de Queiroz Pinheiro Harmônica cromática: sua escrita em formações orquestrais nas obras de Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnattali e César Guerra-Peixe São Paulo, SP 2018 Edson Tadeu de Queiroz Pinheiro Harmônica cromática: sua escrita em formações orquestrais nas obras de Heitor Villa- Lobos, Radamés Gnattali e César Guerra-Peixe Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da Unesp – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - como exigência final para a obtenção do título de Mestre em Música. Orientador: Prof. Dr. Lutero Rodrigues São Paulo, SP 2018 Ficha Catalográfica Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP P654h Pinheiro, Edson Tadeu de Queiroz, 1976- Harmônica cromática : sua escrita em formações orquestrais nas obras de Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnattali e César Guerra- Peixe / Edson Tadeu de Queiroz Pinheiro. - São Paulo, 2018. 188 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Lutero Rodrigues. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Villa-Lobos, Heitor – 1887-1959. 2. Gaita de boca. 3. Música Orquestral. 4. Música brasileira. I. Rodrigues, Lutero. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 788.82 Folha de Aprovação Edson Tadeu de Queiroz Pinheiro Harmônica cromática: sua escrita em formações orquestrais nas obras de Heitor Villa- Lobos, Radamés Gnattali e César Guerra-Peixe Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música no Curso de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – Unesp, com a Área de concentração em Musicologia, pela seguinte banca examinadora: __________________________________________ Prof. Dr. Lutero Rodrigues Departamento de Música/IA – Unesp – Orientador – Presidente da banca ________________________________________ Prof. Dr. Rodolfo Nogueira Coelho de Souza Filosofia, Ciências Humanas e Letras/USP ________________________________________ Profa. Dra. Graziela Bortz Departamento de Música/IA – Unesp Local e data de aprovação: São Paulo, 27 de Agosto de 2018 Resumo: A harmônica de boca, ou simplesmente gaita de boca, é um instrumento muito difundido em todo o mundo, e cada vez mais representativo em diversos gêneros musicais. Com o advento de seu modelo cromático com chave, surgido na primeira metade do Século XX, ela passa a inserir as salas de concerto com peças escritas exclusivamente para a harmônica cromática em formações orquestrais. No Brasil, três importantes compositores se destacam com as respectivas obras: Heitor Villa-Lobos e o Concerto para harmônica; Radamés Gnattali e o Concertino para harmônica e orquestra; e César Guerra-Peixe e a Suíte Quatro Coisas. Este trabalho tem o objetivo de analisar minuciosamente essas três obras relacionando as respectivas linguagens dos compositores à escrita idiomática do instrumento. Para conseguir essa meta foi necessário fazer uma contextualização histórica e organológica do instrumento, e uma breve síntese dos aspectos históricos e processuais dos compositores. No final do trabalho foram traçados pontos em comum, e que se diferenciam em suas respectivas linguagens, tendo como enfoque principal a harmônica cromática. Palavras-chaves Harmônica cromática. Música orquestral. Música brasileira. Abstract The harmonica, or mouth organ, is an instrument very widespread in the world, and increasingly representative in diverse musical genres. With the advent of its chromatic model, which emerged in the first half of the 20th century, it began to include concert halls with pieces written exclusively for the chromatic harmonica in orchestral formations. In Brazil, three important composers stand out with the respective works: Heitor Villa-Lobos and Harmonica concerto; Radamés Gnattali and the Concertino for harmonica and orchestra; and César Guerra-Peixe and the Quatro Coisas Suíte. This research has the objective of analyzing these three works in detail, relating the respective languages of the composers relating to the idiomatic writing of the instrument. To achieve this goal, it was necessary to make a historical and organological contextualization of the instrument, and a brief synthesis of the historical and procedural aspects of the composers. At the end of the research, common points were drawn, which differ in their respective languages, with the main focus being the chromatic harmonic. Keywords Chromatic harmonic. Orchestral music. Brazilian music. Agradecimentos Agradeço ao professor Lutero Rodrigues por acreditar profundamente em meu trabalho e em minha pessoa, à CAPES, que auxiliou muito ao financiar a bolsa de estudos, à professora Margarete Arroyo, pela compreensão na Pós-Graduação. Aos professores Alexandre Rosa e Graziela Bortz por importantes considerações e paciência, e aos professores Rodolfo Coelho de Souza, Heloísa Duarte Valente e Dorotéa Kerr pela prontidão e consideração a este trabalho. Ao CDM – OSESP e ao Museu Villa-Lobos por valiosos documentos. Ao José Staneck por também conceder materiais importantes. Aos meus pais Antonio Avelino Pinheiro e Benedita de Queiroz, aos meus familiares, Antonio Carlos de Queiroz Pinheiro e Sílvia; Maria de Lourdes Pinheiro, Maria Conceição dos Santos e Antonio Ernani dos Santos, Izilda Domingues e José Alves, por estarem sempre presentes. Aos amigos Sérgio Leal, Márcio Siqueira, Alessandro Ferreira, Tchelo Nunes, Tiago Souza, Yara Silva, Rodolfo Kienen Dias, Clara Machado e Paula Leme de Souza. Ao Espaço Cultural Tendal da Lapa, à Orquestra Paulista de Gaitas: Luiz Aude, Geraldo de Oliveira, Ivo Henriques, Afonso Meireles, Elço Bianchini, Benedito Atanásio e Marcos Nakamori; à Orquestra Harmônicas de Curitiba: Ronald Silva e Ulysses Cazzalas e ao Quarteto Pererê. Em memória dos meus pais Antonio Avelino Pinheiro e Benedita de Queiroz Sumário Introdução 08 CAPÍTULO 1 – A harmônica de boca 11 1.1 A harmônica de boca: suas origens 12 1.2 Os primeiros grandes solistas e as primeiras peças de concerto 14 1.3 A gaita no Brasil, os grandes solistas e as primeiras peças escritas por compositores brasileiros 15 1.4 A estrutura da harmônica cromática e as técnicas de sopro 17 CAPÍTULO 2 – Heitor Villa-Lobos 23 2.1 Breve panorama histórico de suas fases produtivas iniciais 24 2.2 O neoclassicismo e suas influências 29 2.3 O último período composicional e a encomenda de um concerto para harmônica 35 2.4. Concerto para harmônica e orquestra 38 2.4.1 Primeiro Movimento: Allegro Moderato – aspectos gerais e temáticos 38 2.4.2 Segundo Movimento: Andante 72 2.4.3 Terceiro Movimento: Allegro 79 CAPÍTULO 3 – Radamés Gnattali 96 3.1 Breve panorama histórico de sua produção 97 3.2 Concertino para harmônica e orquestra 101 3.3 Allegro moderato 102 3.4 Lento e expressivo 110 3.5 Marcado 114 CAPÍTULO 4 – César Guerra-Peixe 118 4.1 Breve panorama histórico de suas duas primeiras fases produtivas 119 4.2 Fase Nacionalista 125 4.3 Fase da Síntese Nacional 131 4.4 Melos e Harmonia Acústica 137 4.5 Quatro Coisas 149 4.5.1 Prelúdio 150 4.5.2 Movimentação 155 4.5.3 Interlúdio 159 4.5.4 Caboclo de Pena 163 Conclusões 171 Referências Bibliográficas 174 Partituras 180 Discografia 181 Anexo I – Correspondências entre John Sebastian e Villa-Lobos 182 Anexo II – Guerra-Peixe – Quatro Coisas – Partituras 187 08 Introdução A harmônica, ou seu termo mais popular, gaita, é um instrumento muito popular, e difundido em muitos países; no entanto, ela é muito mais conhecida no âmbito da música popular ou folclórica, além do blues norte-americano e o rock. Isso se deve muito ao fato de existirem muitos modelos e alguns extremamente baratos, mas desde o início do Século XX, um determinado modelo com a possibilidade de atingir um fácil cromatismo com um novo recurso mecânico, possibilitou a sua entrada para a música erudita executada em salas de concertos. A partir de então, alguns solistas se destacaram dentro deste cenário, e começaram a fazer encomendas a diversos compositores contemporâneos, criando-se assim um repertório com um catálogo expressivo, passando por estéticas diversas ao longo do Século XX, e inclusive criando-se alguns centros importantes de referência como Trossingen na Alemanha , onde há cursos desde a educação infantil até o nível superior dedicado ao instrumento. No entanto, poucos estudos acadêmicos se dedicaram ao instrumento na área musicológica, existindo mais pesquisas na área da acústica. O objetivo deste trabalho é suprir essa lacuna, uma vez que a harmônica também é muito difundida no país, além de já existir uma quantidade significativa de obras escritas especificamente para este modelo cromático. Dentro desse panorama, três importantes compositores brasileiros: Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnattali e César Guerra-Peixe escreveram obras para este instrumento, inclusive adquirindo relevância no cenário da música de concerto internacional. Pretendemos investigar mais detalhadamente essas três respectivas obras: Concerto para harmônica de Heitor Villa-Lobos; Concertino para harmônica e orquestra de Radamés Gnattali e Quatro Coisas (suíte em sua versão para orquestra de cordas) de César Guerra-Peixe, descrevendo seus processos e seus meandros técnicos e associarmos suas escritas ao instrumento. Esses compositores deixaram um forte legado para a música erudita brasileira. Além de produzirem obras significativas, criaram uma linguagem própria, dialogando com questões populares, mas simultaneamente às mais diversas vertentes contemporâneas de seus tempos. Assim sendo, e tendo em vista a harmônica cromática, nos instigou como e por que as suas respectivas linguagens musicais se adequam ou não ao instrumento. Para tanto, foi necessário fazer uma explicação organológica sobre a harmônica, as suas origens, como ela se transformou em um instrumento cromático e a sua inserção na salas de concertos. Existem poucos livros e artigos específicos sobre o assunto, portanto, precisamos nos 09 apoiar em manuais organológicos, métodos e artigos de imprensa. O pesquisador norte- americano Kim Field fez uma longa investigação sobre a sua trajetória, desde as suas origens na Ásia e como ela se desenvolveu na Europa, até a sua inserção na América e outros continentes. O manual organológico organizado por Julien Jenkins e o artigo escrito por Andrew Cronshaw também foi muito útil para a sua compreensão histórica e funcional. Também será exposto todo o seu funcionamento, as principais possibilidades de execução e como se consegue sons simultâneos. Algumas contextulizações sobre os intérpretes também foram consideradas. Houve também a necessidade de buscar um apoio teórico que conseguisse ligar as técnicas composicionais, sejam elas quais fossem, com as possibilidades de execução, e desta forma ter uma visão mais aprofundada das interações possíveis. Os conceitos expostos por Wallace Berry em seu livro Structural Functions in Music foram muito importantes, principalmente no aspecto sobre textura, pois justamente pelo fato da harmônica conseguir executar diversos tipos de sons simultâneos, as possibilidades de combinações composicionais se expandem. Em consequência disso, mas também pelo fato de ainda ser uma literatura pertinente ao estudo da composição, autores como: Rudolph Reti, Charles Rosen, Stefan Kostka, James Hepokoski, Warren Darcy e Pierre Boulez foram muito importantes para a elucidação da análise no âmbito estrutural musical. O estudo também se pautou em uma breve contextualização sobre a inserção da harmônica no Brasil, seus principais expoentes e as primeiras obras para concerto, no entanto, existem poucos documentos acessíveis, sendo valiosa a colaboração do Museu Villa-Lobos e do Centro de Documentação Musical da OSESP ao fornecerem documentos para consulta; assim como as digitalizações feitas por José Staneck, o acervo de Radamés Gnattali conservado por Nelly Gnattali e os arquivos da Orquestra Acadêmica da Unesp. Tendo em vista as premissas estéticas desses compositores, levantou-se um breve panorama histórico de cada um relacionando as suas obras mais relevantes aos respectivos movimentos, e tentando relacionar aos problemas e às controvérsias do início até a metade do Século XX. Para tanto, historiadores e musicólogos como: Richard Taruskin, Robert Morgan, Arnold Whittall e Scott Messing deram uma visão sobre os fatos artísticos do Século XX, fundamental para ponderar e refletir sobre o neoclassicismo, o movimento que une esses compositores, mas de maneira diversa. Ao mesmo tempo, para fazer um contraponto com as tendências do estrangeiro, José Maria Neves e Mario de Andrade foram importantes para se ter uma visão em perspectiva, ponderando o fluxo e o refluxo das tendências históricas e 10 culturais e a relativização entre técnica e estética. A teoria das tópicas é outra corrente analítica que faz um contraponto ao pensamento estruturalista-formalista dos autores citados anteriormente. Tendo em consideração que um dos fundamentos do neoclassicismo é a retomada do Século XVIII, certas premissas ficaram implícitas, ou colocadas em segundo plano pela ótica analítica mais convencional. Leonard Ratner, Kofi Agawu, e Danuta Mirka, estabelecem critérios claros sobre a ideia do significado na música setecentista, que guardadas as devidas proporções, e sabendo-se aplicar os seus conceitos, tornaram-se extremamente pertinentes à analise. Os autores específicos sobre os compositores também foram fundamentais, pois neles nos apoiamos tanto para a revisão bibliográfica quanto para possíveis comparações contextuais. Sobre Villa-Lobos: Paulo Renato Guérios, Paulo de Tarso Salles, José Ivo da Silva, além de autores mais conhecidos como: Lisa Peppercorn e Gerard Béhague que auxiliaram a criar uma baliza entre os momentos históricos, suas técnicas e o amálgama entre as estéticas. A respeito de Radamés Gnattali podemos destacar: Valdinha Barbosa, Anne Marie Devos e Aluisio Didier e Luciano Lima, Ana Cielo Guerra que fazem um panorama histórico sobre o compositor; e Eduardo Lobo, que faz um recorte analítico importante. Sobre este autor fomos mais concisos, aproximando-o mais diretamente de Villa-Lobos por se tratar de dois concertos. Ana Claudia Assis e Flávia Pereira Botelho realizaram importantes estudos sobre Guerra-Peixe, considerando aspectos históricos e analíticos, além de Randolf Miguel, Ernani Aguiar, Nelson Salomé de Oliveira, Clayton Vetromilla, Margareth Milani e Ernesto Hartmann que também fizeram ponderações importantes a respeito de sua obra. O seu curriculum Vitae e sua Apostila de composição também foram fundamentais, no entanto, não tivemos acesso direto, assim como a publicações de jornais. Nesses casos, referenciamos cada autor que interpreta esses documentos conforme o contexto. Melos e Harmonia Acústica é outra obra de referência importante que pudemos observar com maior detalhe. Desta maneira, associada ao nosso enfoque analítico, foi possível criar uma referência para os seus respectivos procedimentos, e tecer pontos de tangência entre esses compositores. Todos esses fundamentos teóricos aparecem de acordo com o momento, e retornam de acordo com a necessidade. 11 CAPÍTULO 1 – A harmônica de boca 12 1.1 A harmônica de boca: suas origens A harmônica de boca1 (também conhecida em algumas regiões do Brasil como "gaita de boca"; "realejo" nas regiões norte e nordeste; "harmônica de beiços" em Portugal) é um instrumento aerofone de palheta livre. Provavelmente surgido na Ásia Oriental, cerca de 4.500 A.C., os instrumentos de palheta livre são uma adaptação de uma lingueta de latão elástico chamada dan moi. Essas linguetas também são utilizadas na harpa de boca (berimbau de boca, guimbarda) instrumento de armação em arco apoiada entre os lábios, porém tocadas pelo dedo. No artigo escrito por Andrew Cronshaw no Manual Ilustrado dos Instrumentos Musicais ele explica: “Se a lingueta do dan moi vietnamita é curvada ligeiramente, de forma que sua posição de repouso não fique mais no plano da armação, é possível ativá-la sem tanger, simplesmente soprando ou sugando (dependendo da forma que ela é tangida), para produzir uma nota fixa, sem decaimento. O instrumento dessa forma foi transformado de um 'idiofone tangido', em um de palheta livre. Ao contrário das palhetas simples e duplas, o som de uma palheta livre é produzido pela própria vibração da palheta” (CRONSHAW, 2009:185). Ou seja, diferentemente das palhetas simples e duplas (tal como no clarinete e oboé) o som de uma palheta livre é produzido pela própria vibração da palheta, a boca não entra em contato com ela; a sensibilidade dessa lingueta é tão latente, que o simples ato de soprar ou aspirar próximo dessa estrutura metálica é suficiente para soar uma nota sem deixar cair a sua afinação. Outra vertente da origem dos instrumentos de palheta livre é o sheng chinês, que significa “voz sublime”. Tubos de bambu dispostos paralelamente são reunidos em um único bocal. Cada tubo contém uma palheta de bambu, e que posteriormente foi substituída por uma de metal elástico semelhante ao dan moi; em cada tubo há um orifício que o instrumentista pode cobrir ou descobrir com os dedos, podendo assim reproduzir notas melódicas ou em conjunto realizando alguns acordes. 1 Neste trabalho utilizaremos os termos harmônica, gaita, ou ainda, harmônica cromática por serem os termos mais comuns relacionados especificamente ao instrumento o qual os compositores escreveram as respectivas obras. 13 Por esse mesmo bocal é possível tanto soprar ou aspirar, e até mesmo alterar a frequência da nota por meio de bends2. Houve muitas variações desse instrumento, seja na própria China, Japão e Tailândia. Ao longo dos séculos esses instrumentos são dominados pelos Persas, migram para a Europa e por volta do Séc XVIII chegam até mesmo à Rússia, conforme pode ser verificado no livro de Kim Field, Harmonicas, harps, and heavy breathears. The evolution of the people's instrument. (FIELD, 2000: 22-23). Este autor ainda cita o musicólogo James Howarth ao contextualizar a evolução dos instrumentos de palheta livre, pois pelo fato desses instrumentos terem sofrido muitas variações na própria Europa, não se sabe ao certo se eles são um sheng melhorado ou uma guimbarda soprada. Não há indícios claros, mas é provável que, em 1821, Christian Buschman, um afinador de órgãos, organizou um conjunto simples de palhetas livres dispostas lado a lado em uma chapa de metal arranjados cromaticamente. Ainda em Field (2000), percebemos a evolução do instrumento ao citar outro construtor de instrumentos da região da Boêmia chamado Richter. Este construtor organizou um instrumento somente com dez palhetas sopradas, e mais dez palhetas aspiradas dispostas em um corpo de madeira com canais para separar os pares de palhetas. As variações desses instrumentos se tornarão a configuração padrão da aura, aeolina, mundaeolina, ou mundharmonika, (harmônica de boca), (FIELD, 2000:25), (MICHELS, 2003:59). Para melhorarem seu sustento de vida, os construtores de relógio da região da Floresta Negra começaram a construir harmônicas à maneira de Buschman, e um determinado relojoeiro chamado Matthias Hohner fundou sua fábrica em 1857. A companhia Hohner se tornou a grande fabricante de harmônicas já no final do Séc. XIX, e uma grande multinacional em todo o Séc. XX. No entanto, naquela época, a harmônica diatônica ainda era limitada, podendo realizar somente melodias simples e folclóricas, pois não tinha a extensão cromática, e ainda não se conhecia técnicas avançadas de cromatização3. Atentos a isso a Hohner conseguiu desenvolver 2 Bend- do inglês- dobrar,curvar. Técnica que consiste em baixar uma frequência comprimindo o ar pela garganta e a boca até atingir a palheta; consegue-se tal efeito mudando determinados formantes vocálicos durante a emissão da nota, seja ela soprada ou aspirada. 3 Além da técnica do bends descrita anteriormente, há uma outra técnica de sopro utilizada na harmônica diatônica chamada overblow, e consiste em modificar a embocadura ao se assoprar uma nota de tal maneira que a respectiva palheta assoprada interage com a respectiva palheta que pode ser aspirada e localizada no mesmo orifício, mas que não está de fato aspirada. Ao alterar-se o fluxo de ar desse modo, atinge-se uma nota mais aguda e que não está na afinação natural diatônica. Consegue-se, assim, praticamente toda a gama cromática em uma harmônica diatônica. Por se tratar de um modo de tocar que ainda exige muita perícia, e considerada avançada mesmo nos dias atuais e não dominada por todos que tocam este tipo de gaita, pode-se considerá-la como uma técnica expandida deste tipo de harmônica. 14 um instrumento como é descrito por Field: “ Em 1924, Hohner introduziu uma gaita de dez orifícios, uma gaita cromática baseada no modo de disposição Richter, mas este projeto logo foi substituído por uma de doze orifícios, modelo de três oitavas que interrompe a escala no início de cada oitava. Tinha duas palhetas afinadas em um semitom de distância – por exemplo C e C# - montadas em uma estrutura de madeira em forma de pente. Os instrumentistas podiam alcançar todas as notas da escala cromática empurrando um botão com uma mola fixa a uma chave para alternar entre as palhetas. Para manter o instrumento o mais vedado possível, as palhetas foram cobertas com válvulas de couro. Em meados da década de 30, Hohner divulgou uma harmônica cromática de dezesseis orifícios, a 64 Chromonica, e adicionava mais uma escala uma oitava abaixo. Agora, armado com um instrumento totalmente cromático, os instrumentistas começaram a aplicá-lo no repertório clássico e do jazz.” (FIELD, 2000: 28). Este instrumento, explicado dentro do respectivo contexto histórico por Field, é a essência da estrutura da harmônica de boca cromática até hoje. Ainda explicaremos melhor todo o seu sistema de construção e disposição de notas. 1.2 Os Primeiros grandes solistas e as primeiras peças de concerto Ainda na década de 1930, nos Estados Unidos, surgem os primeiros grandes intérpretes deste instrumento vindos de shows de vaudeville. Na década de 1940 destacam-se dois grandes gaitistas4: Larry Adler e John Sebastian. Estes dois harmonicistas vão fazer as primeiras transcrições de música erudita e interpretá-las com orquestra sinfônica. Larry Adler, então, faz as primeiras encomendas para diversos compositores como Cyrill Scott, Jean Berger e Graham Whettam. (ADLER, 1984:171). Em 1942, o compositor francês Darius Milhaud (1982) escreveu a Suíte Inglesa para Harmônica e Orquestra. No entanto, Milhaud, achando que nunca mais encontraria um intérprete como ele, acabou escrevendo uma versão para violino e orquestra, e estreada em 1945, pelo violinista Zino Francescati com a Orquestra da Philadelphia sob regência de Eugene Ormandy. Somente em 1947 Larry Adler estrearia a versão para harmônica na Salle Playel, em Paris; e apenas em 1969, ele gravaria com a Royal Philharmonic sob direção de Morton Gould. (MILHAUD,1982:1). Adler ainda encomenda obras para outros compositores como Malcolm Arnold, Joaquín Rodrigo, Vaughan Williams e Aram Khatchaturian. John Sebastian faz sua estreia com 4Atualmente ambos os termos gaitista e harmonicista são utilizados para se referir a quem toca o instrumento, seja o modelo diatônico ou cromático; no entanto a última palavra ainda não se encontra nas últimas edições dos dicionários brasileiros Aurélio e Houaiss tendo como referência a edição de 2007; portanto, ela ainda é um neologismo, mas por ser de uso corrente adotaremos as duas possibilidades. 15 orquestra sinfônica em 1941 com a Orquestra da Philadelphia sob regência de Eugene Ormandy. Sebastian também compreendeu que a gaita não tinha um repertório próprio e começou a fazer encomendas a diversos compositores contemporâneos. George Kleinsinger's escreveu Street Corner Concerto, estreada em 1947 pela Filarmônica de Nova York. Vários compositores escreveram para Sebastian, entre eles, Norman Dello Joio, Alan Hovhaness, Frank Lewin, Henry Cowell, Luciano Chailly, Alexander Tcherepnin e Heitor Villa-Lobos. (FIELD, 2000:291). Em 1955, Villa-Lobos escreve o Concerto para harmônica e orquestra, com dedicatória a John Sebastian, obra estreada em 27 de outubro de 1959 com a Kol Israel Orchestra em Jerusalém, sob regência de Georg Singer. A estreia norte-americana ocorreu em 1961, tendo também Sebastian como solista; e em 1964, houve a estreia sul-americana, em Belo Horizonte, no Festival Villa-Lobos com a Orquestra Mineira de Concertos Sinfônicos. O solista foi Aluisio Rocha, sob regência de Sebastião Viana, conforme consta no catálogo de obras de Villa-Lobos (VILLA-LOBOS, 1989: 75-6). Outros importantes intérpretes posteriores como : Tommy Reilly, George Fields, Stan Harper, Cham-Ber Huang, Robert Bonfiglio e Gianluca Littera também seguiram o mesmo caminho e encomendaram obras para vários compositores como: Gordon Jacob, John Corigliano e Enio Morricone. Além da harmônica diatônica e cromática, como já descrito anteriormente, outros modelos foram criados pela mesma fabricante alemã, destacando-se dois específicos tipos: a harmônica baixo e a harmônica de acordes. Com esses modelos, mais as gaitas diatônicas e cromáticas, começam a surgir grupos específicos e até mesmo orquestras somente com harmônicas, destacando-se o conjunto norte- americano Harmonica Rascals liderado pelo gaitista Borrah Minevitch. No âmbito do jazz e da música popular outros importantes solistas também marcam a história da harmônica como: Jean “Toots” Thielemans, Stevie Wonder e Howard Levy, além de toda a tradição do blues norte-americano. 1.3 A gaita no Brasil, os grandes solistas e as primeiras peças escritas por compositores brasileiros Os livros e estudos sobre a história da harmônica no Brasil são quase inexistentes, 16 praticamente não há publicação sobre esse assunto, os documentos principais são periódicos e métodos de estudo do instrumento. A referência mais antiga sobre gaita no Brasil é o relato de Pero Vaz de Caminha sobre o gaiteiro que acompanhou as armadas de Pedro Álvares Cabral, mas neste caso tratava-se de uma gaita-de-foles (MAGALHÃES, 2010: 19). Mario de Andrade em Música Doce Música, faz uma breve citação sobre gaita ao referir-se ao berimbau de boca (harpa de boca, guimbarda) (ANDRADE, 1976:103). Como já foi dito anteriormente, a Hohner se transformou em uma grande multinacional, e expandiu suas fábricas para praticamente todos os continentes, inclusive América do Sul. Na década de 1920, a Hohner enviou vários representantes ao Brasil para divulgar a harmônica de boca como cita o periódico Seleções do Rider's Digest : “ Na década de 20, a Hohner enviou vários representantes ao Brasil, a fim de popularizar a gaita-de-bôca. O sucesso foi tão grande que companhias locais começaram a fabricar o instrumento a fim de atender à crescente demanda. O maior fabricante, até hoje, é a Alfredo Hering S.A. de Blumenau, Santa Catarina. Em 1926, um certo Professor Charles, formou na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, uma banda de gaitas-de-bôca composta de 300 alunos do Ginásio São Luís Gonzaga. Um membro dessa banda era Eduardo Nadruz, verdadeiro artista da harmônica, que ficaria famoso como “ Edu da gaita ''. Conhecido principalmente pela sua execução do Moto Perpétuo, de Paganini.” (GASKIL, 1968: 78-82). Eduardo Nadruz, o “ Edu da gaita”, foi o primeiro grande intérprete deste instrumento no Brasil, porém ele só consegue sua primeira harmônica cromática em 1939, e a partir de então começa a se apresentar na rádio Mayrink Veiga (EDÚ DA GAITA, 2000); e é justamente a ele que o compositor Radamés Gnattali dedica seu Concertino para harmônica e orquestra composta em 1956. A obra foi estreada em 1958 com a Orquestra Sinfônica Brasileira no Teatro Municipal do Rio de Janeiro; interpretada pelo próprio Edu sob regência de Radamés Gnattali, houve uma gravação na mesma ocasião (GNATTALI, 1958). Em 1987, o compositor César Guerra-Peixe dedica a obra Quatro Coisas originalmente escrita para gaita e piano ao gaitista Rildo Hora. No entanto, a partitura publicada pela Edição Opus vinculada à editora Irmãos Vitale apresenta a obra como sendo escrita para flauta e piano. Em 1991, houve a primeira audição no XII Panorama da Música Brasileira Atual por Rildo Hora e Misael Hora; e ainda no mesmo ano, a parte para piano foi transcrita para cordas podendo ter qualquer instrumento melódico como solista. A versão para orquestra de cordas também foi estreada pelo gaitista Rildo Hora com a orquestra da Uni-Rio, sob regência de Ernani Aguiar (GUERRA-PEIXE, 2008). Além destas peças que são o nosso objeto de estudo, outras também foram escritas. O 17 próprio Radamés Gnattali escreveu mais duas obras para harmônica e orquestra: Canção e dança, para harmônica e orquestra de cordas; e Concerto nº 2 para harmônica e orquestra (BARBOSA & DEVOS, 1984). Harmonicistas como Ronald Silva e José Staneck fizeram importantes contribuições e também estrearam obras de compositores relevantes como: Sergio de Vasconcellos-Corrêa, Hans-Joachim Koellreutter, Harry Crowl e Aluisio Didier, além de transcrições também feitas para a harmônica. Assim como nos Estados Unidos e Europa, no Brasil também houve um desenvolvimento de grupos de harmônicas, destacando-se principalmente a Orquestra Harmônicas de Curitiba concebida por Ronald Silva, e posteriormente a Orquestra Paulista de Gaitas. Estes mesmos gaitistas também exercem um grande papel na música popular brasileira, e outros importantes nomes podem ser colocados em evidência como: Maurício Einhorn, Omar Izar, Clayber de Souza, Jehovah Tavares e Gabriel Grossi. Na música popular, a harmônica diatônica também se destaca no cenário do blues com os nomes de Flávio Guimarães e Jefferson Gonçalves. Conforme dito anteriormente, há poucos estudos acadêmicos sobre este assunto, principalmente no âmbito brasileiro. Ainda é necessário muita pesquisa, pois entre a década de 50 e 70, a harmônica teve forte influência sobre os jovens, pois existiram diversos programas de calouros em rádios e televisões com a participação de muitos gaitistas amadores, até mesmo a tal ponto de existir programas semanais dedicados somente à gaita. No entanto nomes de destaque dessa época como: Nelson Barbosa, Zezinho de Lima Ulysses Cazallas permanecem desconhecidos para um público mais amplo, pois bastante material se perdeu em incêndios ocorridos em várias emissoras, restando apenas arquivos pessoais nem sempre acessíveis. Faz-se necessário, portanto, que outros pesquisadores abordem o instrumento sob outros enfoques, sejam eles históricos, organológicos, estéticos ou educacionais. Durante a sequência deste trabalho ainda retornaremos para algumas questões históricas específicas, envolvendo os respectivos gaitistas brasileiros a quem foram dedicadas as obras analisadas. 1.4 A Estrutura da harmônica cromática e as técnicas de sopro A harmônica cromática é a justaposição de duas harmônicas diatônicas afinadas cada 18 uma em um semitom de distância e articuladas por uma chave lateral5. É um instrumento musical temperado de afinação fixa, semelhante ao acordeão e ao piano, não reproduzindo a diferença entre os intervalos diatônicos e cromáticos, podendo produzir notas enarmônicas. Por causa de sua construção, em que há a interrupção da escala no início de cada oitava, aparecem repetições de determinadas notas, conseguindo-se assim uma simetria nas três oitavas, tornando igual a maneira de tocar em toda a sua tessitura. Trata-se de um instrumento de sopro, cujo som é obtido tanto ao soprar quanto ao aspirar, o que o diferencia dos demais. Pela execução consecutiva de expiração e aspiração obtém-se uma escala diatônica, e ao apertar a chave lateral, obtém-se notas cromáticas. Com a exata alternância de sopros e aspirações, com chave solta e apertada, obtém-se uma escala cromática. A ilustração extraída do autor italiano Luigi Oreste Anzaghi (1952) (Fig. 1.1), mostra nos pentagramas superiores as notas sopradas com chave solta e apertada (soffiate senza registro, con registro); nos pentagramas inferiores, as notas aspiradas com chave solta e apertada (aspirate senza registro, con registro). A combinação de todas essas possibilidades, nas três oitavas, produz um total de 48 notas ou vozes6. Figura 1.1: Esquema Musical da harmônica cromática 48 vozes, três oitavas, e o modo de obter todos os sons, sejam naturais ou cromáticos (ANZAGHI, 1952: 22). 5Esta chave lateral é acoplada a uma lâmina que se movimenta no interior da harmônica. Outro termo para esta peça é variador ou registro. 6 A palavra “vozes” é muito utilizada no Brasil para designar a quantidade de palhetas dispostas em uma harmônica diatônica ou cromática em sua afinação natural; correspondendo, desta forma, ao número total de notas possíveis de se tocar sem a necessidade de utilizar outras técnicas de extração de nota, como bends e overblow, já explicados anteriormente. 19 Após esta visualização, é possível perceber que a gaita de boca pode ser executada de diversas maneiras: sejam notas individuais, privilegiando o aspecto melódico; ou simultâneas, priorizando o aspecto harmônico. Para compreender essas possibilidades, é necessário conhecer as duas principais técnicas de embocadura: o “sopro de bico” e as “notas cobertas”. A primeira, consiste em unir os lábios tal como em um assobio, e ao soprar ou aspirar cada um dos orifícios, escuta-se notas individualizadas, podendo-se fazer melodias. A segunda, consiste em cobrir 2 ou 3 orifícios com a língua no lado esquerdo da boca, e com o lado direito, sopra-se ou aspira-se o instrumento também ouvindo notas individuais. A diferença é que com esta última técnica, ao se descobrir o lado esquerdo, é possível ouvir acordes. Esta última técnica é muito importante, pois dela derivam outras que possibilitam executar determinados intervalos. Os principais são: terças, sextas, oitavas, acordes, e solo com acompanhamento simultâneo. Alguns outros intervalos também são possíveis, tais como: segundas, quartas, quintas, trítonos, e sétimas, mas não aparecem com tanta abundância quanto os primeiros, sendo historicamente menos utilizados. A seguir, os intervalos de terça (Fig. 1.2); sexta (Fig. 1.3); oitavas (Fig. 1.4), quintas e quartas, quarta aumentada e quinta diminuta (Fig. 1.5); e acordes com quatro notas (Fig. 1.6) na harmônica de três oitavas, ou 48 vozes, que serão úteis para apreender os procedimentos seguintes. Figura 1.2: intervalos de terça Figura 1.3: intervalos de sexta Figura 1.4: Intervalos de oitava 20 Figura 1.5: Intervalos de quintas, quartas aumentadas, quartas e quintas diminutas Figura 1.6: Acordes de quatro notas em uma oitava Conforme pode-se ver nas figuras, os intervalos de terça são completamente passíveis de serem invertidos em sextas, o mesmo acontece entre quartas e quintas, e entre quartas aumentadas e quintas diminutas. O intervalo de oitava é o mais abrangente, podendo-se executar uma escala completa em oitavas em toda a tessitura da harmônica. O mesmo ocorre na última figura em que os acordes também são passíveis de serem invertidos em várias posições. Pode-se perceber, assim, que há muitas possibilidades harmônicas dependendo de como se combinar intervalos e acordes. Ainda é possível a execução de clusters ao acionar-se a chave lateral até metade do seu curso, desta forma, obtém-se as notas naturais, e ao mesmo tempo, as notas exatamente um semitom acima das mesmas notas tocadas, sejam sopradas ou aspiradas. Fizemos essa explanação histórica e organológica sobre a harmônica cromática para contextualizar e circunstanciá-la em relação às obras estudadas. Ainda existem outros recursos timbrísticos como a utilização de técnicas de extração de notas como bends já explicado anteriormente, e que empregados na harmônica cromática altera a afinação natural do instrumento, podendo-se atingir notas além da afinação temperada; e o uso da mão e a língua, que combinadas com as embocaduras e formas de extração de notas mostradas anteriormente podem produzir diversos efeitos, criando-se assim texturas musicais originais. Outro conceito necessário para analisarmos as obras é justamente sobre textura em música, e para tanto 21 podemos citar Wallace Berry7 em seu livro Structural Functions in Music: “ Textura é concebida como elemento de estrutura modelada musicalmente (determinado, condicionado) pelo número de voz ou número de vozes e outros componentes projetando os materiais musicais no meio sonoro, e ( quando existem dois ou mais componentes) pelas interrelações e interações entre eles” (BERRY, 1987: 191). Esta definição é muito importante, pois como já explicamos, a harmônica tem a capacidade de soar notas simultâneas, daí também a origem de seu nome, podendo-se escutar determinados intervalos e acordes; desta maneira consegue-se também movimentos paralelos, obtendo-se melodias com esses mesmos intervalos e acordes e até mesmo pequenas polifonias, ou ainda, uma melodia acompanhada por acordes. Isto acontece porque na embocadura das “notas cobertas”, em que a língua cobre determinadas notas para executar os intervalos citados, é possível também aumentar ou diminuir o alcance da língua, aproximando-a ou afastando-a dos orifícios, obtendo-se pequenos movimentos contrários ou oblíquos. Com estas características, a possibilidade de interações e interrelações texturais, seja em seu próprio meio sonoro, ou com o meio orquestral aumenta significativamente, pois pode-se criar composições a partir da sua própria natureza harmônica, seja projetando-a simultaneamente por meio de intervalos ou acordes, ou linearmente com melodias. Estas possibilidades de embocaduras já foram amplamente usadas por compositores e gaitistas como: Gordon Jacob, Malcolm Arnold, Rene Giessen e Yasuo Watani, além de Larry Adler e Tommy Reilly. Para esclarecer melhor, os exemplos seguintes (Fig. 1.7) e (Fig. 1.8) ilustram respectivamente uma textura homofônica com uma pequena valsa, e uma textura polifônica em uma pequena invenção. Fig. 1.7: Textura homofônica (ANZAGUI, 1952: 58). 7 Texture is conceived as that element of musical structure shaped (determined, conditioned) by the voice or number of voices and other components projecting the musical materials in the sounding medium, and (when there two or more components) by the interrelations and interactions among them. 22 Fig. 1.8: Textura polifônica (TADEU, 2018) Com esse conhecimento poderemos apreender e perceber melhor os procedimentos dos compositores analisados, este capítulo, com as respectivas figuras apresentadas e ligadas ao conceito de textura será recorrente nos capítulos seguintes, pois torna-se mais fácil compreender a interação entre as possibilidades da harmônica e a linguagem dos compositores. A próxima figura (Fig. 1.9) mostra uma harmônica cromática de doze orifícios com extensão de três oitavas, e na parte inferior outra de dezesseis orifícios e quatro oitavas: Fig. 1.9: Harmônica cromática de três oitavas e quatro oitavas (ANZAGUI, 1952: 2) 23 CAPÍTULO 2 – Heitor Villa-Lobos 24 2.1 Breve panorama histórico de suas fases produtivas iniciais Há divergências entre vários autores sobre o início da última fase criativa de Villa- Lobos. Liza Peppercorn divide em quatro fases, e sugere 1945, ano em que o compositor se insere no cenário norte-americano e também realiza atividades na Europa e dentro do próprio Brasil, como o início de sua última fase (PEPPERCORN, 1992: 68-69). Behágue a divide em três, considerando como a última os anos 30 e 50 sem maiores renovações de linguagem (BÉHAGUE, 1994: 104). Salles, por sua vez, considera o ano de 1948 como grande divisor ao se referir sobre o diagnóstico de sua doença, e desta forma tendo que se comprometer com diversas encomendas e apresentações para garantir seu tratamento (SALLES, 2009: 14). Discutir periodizações em história sempre pode causar divergências, pois um fato nunca é isolado totalmente, outros fatores podem contribuir para a sua percepção, e quando o autor é Villa-Lobos, cuja produção é vastíssima, com uma vasta fonte documental e bibliográfica, basear-se exclusivamente nestas periodizações nem sempre traz uma compreensão mais aprofundada. Acrecente-se a tudo isso a redatação das suas obras, o que torna a pesquisa mais complexa. As fases sugeridas por Peppercorn (1992) e Salles (2009) são mais pertinentes à nossa pesquisa tanto pelo fato de a encomenda ser feita por um gaitista norte-americano, ou seja, a partir do contato com os Estados Unidos, quanto pelo fato de já nesse momento Villa- Lobos realmente precisar bancar o custo do seu tratamento de saúde com diversas encomendas. Outro fator importante é o advento do neoclassicismo musical, um movimento que começa a ocorrer nos anos 20, ao mesmo tempo em que Villa-Lobos compunha em um estilo considerado modernista nacionalista. Desta forma, não descartamos as considerações de Béhague, pois de uma certa maneira essas fases se tangenciam em certos momentos. Portanto, é necessário voltarmos para o seu período inicial para termos uma visão melhor da sua evolução enquanto compositor. Como colocam Guérios em Heitor Vila-Lobos (2003) e Salles em Villa-Lobos: Processos composicionais (2009) é notório o conhecimento que se tem da influência exercida pelo Cours de Composition Musicale do compositor francês Vincent D'Indy no período inicial de sua carreira. Essa influência é perceptível em obras como: Naufrágio de Kleonicos (1916), poema sinfônico cujo excerto O canto do cisne negro demonstra sensível semelhança estética com o Le Cygne, excerto do Carnaval des animaux (1886) de Camille Saint-Saëns. (GUÉRIOS, 2003: 105). 25 No entanto, Salles complementa com uma pequena análise demonstrando a diferenciação entre ambas ao constatar que, na melodia de O canto do cisne negro determinadas notas ressoam sobre um arpejo de uma escala pentatônica, e assim, estas notas da melodia funcionam como uma outra maneira de reapresentar o material arpejado (SALLES, 2009: 20). Ao contrário de Saint-Saëns, que se orienta por um caminho ainda no âmbito tonal, nesta obra de Villa-Lobos já podemos perceber um embrião dos seus processos de compor: o ostinato e o uso da escala pentatônica sem um direcionamento tonal funcional clássico, além do aspecto intrínsecamente reverberante. É também notável a influência de Wagner e Puccini como já descreveu Mariz (MARIZ, 2000: 141), e alguns aspectos harmônicos, principalmente de Wagner, ainda vão ressoar em sua obra em questões cadenciais (SALLES, 2009: 144). Outra influência crucial é o compositor Claude Debussy que surge em diversas obras. Em Danças características africanas (1917), por exemplo, Villa-Lobos aplica a escala de tons inteiros, além da série de cantigas infantis compiladas na primeira Prole do Bebê (1918), onde também se percebe a sua influência mas com soluções texturais bem originais como já apontou Botti (2003). Obras que começam a se distinguir por elementos nacionais, e também demonstram que o compositor estava atento ao que acontecia em seu redor e já conhecia as ideias mais avançadas de seu tempo. (GUÉRIOS, 2003: 106). Em 1916, ele compõe a sua Sinfonia nº1 ainda com influências “conservadoras” de D'Indy, no entanto, como relata Guérios ao descrever uma crítica do jornal O Paiz sobre a execução de dois movimentos, o público refletiu uma indecisão com as suas “audácias harmônicas”. (GUÉRIOS, 2003: 224). Ainda no mesmo ano ele compõe o Quarteto nº3, também com influência de D'Indy e César Franck, em que o compositor se vale do caráter cíclico para o tratamento temático. Nesse quarteto, como analisa Salles, já existem também elementos que vão caracterizar muito a sua obra posterior como o uso de ostinatos; composição por camadas; acentuações rítmicas deslocadas em pontos imprevisíveis; temas curtos à base de fragmentos motívicos e com desenvolvimento contínuo à maneira de Haydn; organização harmônica em torno de eixos de simetria; a evocação do canto do sabiá da mata na Recapitulação do 1º movimento (SALLES, 2012: 14). O mesmo autor atesta que ainda não está evidente o caráter nacional que vai aparecer posteriormente em suas obras mais célebres. É interessante verificar a possibilidade de mudança de percepção entre as estéticas e os 26 procedimentos composicionais. Ao se relacionar esses novos recursos com a escola francesa, ainda tem-se uma percepção de transição entre o século XIX e XX, no entanto, quando esses procedimentos são assumidos com uma outra forma de dar continuidade ao discurso, esses mesmos recursos adquirem outro sentido em relação à música moderna, uma vez que são esses recursos em si mesmos que engendram a composição. Quando posteriormente o ideal de equilíbrio e clareza volta à tona, mais uma vez uma nova percepção é lançada sobre esses mesmos procedimentos, mas em meio às formas clássicas. Nos anos 1920 e 1921, Villa-Lobos ainda apresenta outras obras como: Lenda do Caboclo, Viola, Sertão no estio, A fiandeira e Quarteto simbólico. Obras de cárater francamente mais moderna, algumas ainda com inspirações em Debussy, outras já com a influência nacional, além dos Choros nº1 em que se denota claramente a influência dos chorões cariocas. (GUÉRIOS, 2003: 119). Em sequência acontece A Semana de Arte Moderna e Villa-Lobos é o único compositor convidado a participar. Naquele momento, ele já era um artista maduro e com um certo destaque, e que havia composto muitas obras experimentando desde a escola francesa mais antiga até o debussismo e incorporando os elementos nacionais. Posteriormente, o próprio Mário de Andrade (1972) no famoso livro Aspectos da música brasileira enfatiza o caráter nacionalista o qual Villa-Lobos já se encontrava vinculado Guérios ainda coloca o fato da possibilidade de se fazer música nacional ainda como apenas uma entre as tantas possíveis, e de fato, Villa-Lobos já as havia experimentado, no entanto o autor considera que foi em sua primeira viagem a Paris onde ele de fato se transformou em um compositor nacional. (GUÉRIOS, 2003: 128). Villa-Lobos chega a Paris em 1923, e após um ano de estadia, em abril de 1924 apresenta as suas Danças características africanas e o Trio para oboé, clarinete e fagote, obra oficialmente datada de 1921, e além de outras incluídas por outros intérpretes. Um mês depois apresenta Nonetto. Impressão rápida de todo o Brasil. Segundo Guérios, o Trio só poderia ter sido escrito em Paris após o seu primeiro contato com a obra de Stravinsky pois como o próprio autor diz: “ ênfase em breves motivos que são rítmicos e não melódicos, inconstância de ritmos, com um resultado absolutamente oposto ao obtido com músicas que utilizam as técnicas impressionistas de Debussy” (GUÉRIOS, 2003: 137). Carlos Kater chega a fazer um inventário sobre esses elementos para demonstrar que ele compôs o Nonneto em Paris e não no Rio (KATER, 1991: 63). No entanto, Manoel Corrêa do Lago, em pesquisa no acervo Janocopoulos na Uni-Rio ainda encontra uma cópia de um manuscrito de Villa-Lobos sobre obra de Stravinsky datada de 1920 (LAGO, 1999). Como 27 vimos anteriormente em Salles na análise sobre o Quarteto nº3, Villa-Lobos já agenciava recursos semelhantes para compor suas obras. Em julho de 1924, o escritor e musicólogo Boris de Schloezer escreve uma crítica na Revue Musicale apontando as similaridades entre o Nonneto e a estética de Stravinsky. Guérios ainda comenta a questão das redatações, explicando que por esse motivo esse escritor acabou criando comparações que geraram diversas controvérsias sobre a real origem de suas obras, as quais ainda persistem até hoje. Villa-Lobos porém, sempre negou a influência de Stravinsky, mas em depoimento a Sergio Milliet, na Carta de Paris publicada na revista Ariel em novembro de 1926, ele declara o grande impacto que o compositor russo exerceu sobre ele. Assim como também é notória a entrevista dada a Manuel Bandeira logo após a sua volta ao Brasil em 1924 (GUÉRIOS, 2003: 139-140). Com certeza assistir Le Sacre du printemps deve ter lhe causado um forte impacto, mas é possível fazer uma especulação talvez ainda não dita. Como vimos anteriormente, Villa-Lobos já agenciava recursos composicionais semelhantes, além de existir documentos que comprovam o seu contato com a música de Stravinsky. No entanto, o que pode mais ter lhe impressionado seja o fato destes mesmos recursos serem capazes de articular um discurso musical por si mesmos, sem a necessidade de utilizar formas estanques ou processos convencionais como a sonata, ou procedimentos clássicos de variação, além de ser totalmente desnecessária a sintaxe tonal tradicional. Outra questão importante ainda não mencionada é a expectativa do ambiente francês pelo desejo da influência do folclore, do exótico e da música popular colocada abertamente por Darius Milhaud, o que também causou reflexões em Villa- Lobos (GUÉRIOS, 2003: 133). Portanto, após esse contato com tudo o que o ambiente parisiense lhe proporcionou, e com a forte percepção que a sintaxe stravinskiana lhe causou em poder haver uma nova forma de compor a partir de uma concepção autônoma (aliás, talvez seja essa a grande contribuição de Stravinsky: criar uma linguagem própria sem a necessidade de recorrer aos grandes cânones fazendo uma forte ruptura com a tradição); Villa-Lobos, por sua vez, sem abandonar aquelas determinadas características já desenvolvidas em obras anteriores cria um amálgama dos elementos ameríndios e urbanos a partir da sua própria concepção, o que vai gerar obras muito originais, como por exemplo todo o ciclo dos Choros e consolidando-o como um compositor moderno nacionalista. Desta maneira, compreende-se que ele não somente faz uma síntese da sintaxe stravinskiana, mas cria um estilo muito próprio. Atualmente existem amplos estudos de importantes pesquisadores como Salles (2009) Silva (2008), Botti (2003) e outros que elencam as semelhanças e diferenças entre ambos os 28 compositores, seja no plano melódico, harmônico e formal, colocando em relevo a sua maneira intrínseca de articular o discurso, seja em sobreposições ou justaposições dos materiais. Mesmo sendo verdade as redatações, e até mesmo algumas citações de fragmentos de obras de Stravinsky como é possível verificar no próprio Nonneto, e colocado como uma forma de se fazer propaganda da sua própria obra, uma vez que o compositor russo era o mais aclamado no momento, ainda é possível uma outra especulação. Villa-Lobos, ao longo de sua formação, ainda vem de uma longa tradição em que uma composição musical também é a arte do que se fazer com todos os materiais musicais, isso foi muito forte até o fim do século XVIII e o início do século XIX. Durante o século XIX essa noção começa a mudar com a ideia do subjetivismo e da expressão dos sentimentos em melodias originais com formas mais abertas e que vão caracterizar o romantismo. Ao se valer de certos fragmentos stravinskianos, o compositor de certo modo ainda dá continuidade à aquela tradição, ou seja, ainda pode ser colocada como uma estratégia composicional previsível e legítima, e não apenas considerada como uma mera imitação ou cópia. No entanto, no Choros nº 10, ao citar o tema Rasga Coração de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense, o compositor, em 1953, sofreu um processo de plágio por ter utilizado essa melodia (GUÉRIOS, 2003: 236), o que também demonstra a mudança da noção de propriedade artística intelectual que ocorreu durante o século XX. Em 1926 ele retorna a Paris e permanece até 1930, durante esse período edita e promove concertos com obras suas como: Choros nº2,nº3,nº4, nº7, nº8 e nº10; algumas das Serestas, Rudepoema; Prole do Bebê nº2, Amazonas entre outras, tornando-o muito conhecido pelo público parisiense. Como ainda diz Guérios: “No final da década de 1920, Villa-Lobos agenciava materiais das mais diversas naturezas e origens – sons, técnicas de composição, imaginários sociais -,que, mediados por uma linguagem própria do compositor, resultaram na composição de uma nova realidade musical, uma música nacional brasileira” (GUÉRIOS, 2003: 161). Desta forma podemos ver não somente uma estética consolidada de um compositor, mas já se pode perceber a direção que a música brasileira vai tomar. Ainda em 1928, Mario de Andrade (1972) vai publicar o Ensaio sobre a música brasileira, livro essencial que se tornará o grande guia dos compositores brasileiros e influenciaria toda uma geração na década seguinte. Mas o próprio Mário de Andrade tinha consciência daquele momento, e ao estabelecer critérios para distinguir o período anterior do nacionalismo, ele também sabia que esses mesmos critérios não eram suficientes para compreender qualquer momento histórico 29 como ele próprio diz: “(…) se tratava de estabelecer um critério geral e transcendente si referindo à entidade envolutiva brasileira. Mas um critério assim é ineficaz para julgar qualquer momento histórico. Porque transcende dele. E porque as tendências históricas é que dão a forma que as ideias normativas revestem” (ANDRADE, 1972: 50). Mário de Andrade compreendia bem que naquele momento era necessário fazer uma clara separação de épocas, mas ao mesmo tempo já previa que este critério (no caso específico a distinção entre uma música brasileira de caráter internacional e uma outra música também brasileira mas com caráter nacional em um pensamento propriamente dito brasileiro) não era capaz de fazer um julgamento histórico uma vez que transcende dele, ou seja, ele próprio se reconhecia como um ator social daquele momento, inserido nele, e também compreendia que as tendências são transitórias e podem mudar conforme o contexto. Esta consideração é muito importante para termos uma perspectiva diferente das tendências históricas futuras, como elas vão se materializar artisticamente e entender as suas próprias contradições. 2.2 O neoclassicismo e suas influências Como vimos anteriormente, Villa-Lobos chega em Paris em 1923. Em Julho de 1924, Boris de Schloezer escreve uma primeira crítica sobre ele, no entanto, um ano antes, em fevereiro de 1923, cinco meses antes de Villa-Lobos chegar à Paris, este mesmo crítico escreve um ensaio na mesma revista Revue Musicale associando pela primeira vez o nome de Stravinsky ao neoclassicismo, e relaciona este movimento a um estilo que remete aos antigos clássicos da tradição pré-beethoveniana (MESSING, 1996: 129). Neste mesmo artigo ele também anuncia os dois pólos da música moderna: Arnold Schoenberg e Igor Stravinsky. Messing ainda distingue os dois ao comentar: “Schoenberg o expressionista, cujas obras nascem de uma personalidade profunda, e não inteiramente de uma emoção saudável; e Stravinsky, o neoclássico, cuja música anti-wagneriana era pura, graciosa e até mesmo sanitária por comparação” (MESSING, 1996: 129-130). O mesmo autor ainda coloca a questão do acirramento que o nacionalismo chegou em fins dos anos 1920 na Europa, e a sua capacidade em se identificar com o neoclassicismo por causa de determinados valores culturais que podiam se associar facilmente: simplicidade, objetividade, pureza e claridade, mesmo que isso se transformasse em uma vaga retórica com atributos quantificáveis. Apesar desta consideração pejorativa, após a segunda guerra o termo 30 adquire outro valor ao se associar com as obras de Stravinsky (MESSING, 1996: 129). Schloezer em outro artigo descreve Pulcinella (1920), considerada a primeira obra neoclássica um tipo de pastiche, pois trata-se de uma reescrita de uma obra de Pergolesi, mas não um pastiche qualquer, na medida em que há um emprego renovado dos procedimentos clássicos, da escrita contrapontística, e que vão aparecer de maneira mais orgânica em obras como: Symphonies d' instruments à vent, Concertino e Octeto. (MESSING, 1996: 132). Para Robert Morgan, tendo em consideração as reflexões sobre Stravinsky, ele então afirma: “o ponto para Stravinsky não foi retornar ao passado mas revitalizar certas hipóteses básicas da composição tradicional de uma maneira consistente com a prática rítmica e harmônica contemporânea” (MORGAN, 1991: 172). Pulcinella tem um inconfundível sabor de século XVIII mas com as típicas características Stravinskianas: uso de ostinatos, vozes internas criando harmonias mais dissonantes, frases encurtadas ou estendidas para produzir mais irregularidades rítmicas (MORGAN, 1991: 171). Essas obras citadas acima vão exercer uma grande influência nos compositores dos anos 1920 e 1930, inclusive o grupo dos seis e até mesmo em alguns traços da música do pós-guerra na segunda escola vienense. Morgan8 ainda faz outro esclarecimento importante: “ o termo 'neoclássico' é algo enganoso, no entanto, talvez Stravinsky tenha até sido mais profundamente atraído para o período barroco do que naqueles de Haydn e Mozart e o final do século XVIII, e alguns comentaristas até preferem o termo neobarroco. Mas, de fato, o “retorno ao passado” de Stravinsky não estava realmente amarrado a nenhum período estilístico, e eventualmente abrangia praticamente todos os períodos da Música Ocidental” (MORGAN, 1991: 172-173). Essas contextualizações ajudam a compreender o período em que Villa-Lobos estava quando retornou da Europa pela segunda vez. Sem conseguir o retorno financeiro desejado, ele pretendia voltar para lá mais uma vez, e muito provavelmente deveria estar informado sobre as tendências que ocorriam no momento. No ano de 1930, ele começa a compor alguns movimentos do ciclo das Bachianas Brasileiras, projeto constituído por nove suítes e com títulos da tradição barroca e subtítulos da tradição brasileira. Para tanto, ele fez uma série de transcrições das obras de Bach com o intuito de familiarizar-se com as técnicas e o estilo do compositor germânico. Nóbrega afirma que o compositor fez diversas transcrições de fugas, prelúdios e tocatas de Bach para várias formações instrumentais (NÓBREGA, 1971: 17-18). 8 The term “neo-classical” is somewhat misleading, however, for Stravinsky drew perhaps even more heavily on musical characteristics of the Baroque period than those of Haydn, Mozart, and the late eighteenth century; and some commentators even prefer the designation “neo-baroque”. But in fact, Stravinsky's “return to the past” was not actually tied to any given stylistic period, and eventually encompassed virtually every period of Western music. 31 Conforme vimos nos autores citados acima, a definição neoclassicismo não é precisa, acarreta uma série de possibilidades de significações, desde as mais pejorativas, como a ideia de pastiche, vaga retórica, ou algo arcaico até a ideia de pureza, objetividade e precisão. O próprio grito de guerra que ficou amplamente conhecido: “de volta à Bach” também carrega certa ambiguidade. Mas, como ainda afirma Arnold Whittall, esta volta à Bach é muito mais uma força de reação contra um anti-romantismo ou anti-expressionismo, no entanto sem eliminar a expressividade, mas refiná-la, do que especificamente utilizar procedimentos que sejam mais próximos do barroco ou clássico (WHITTALL, 2001: 1). Retomando a citação anterior feita por Morgan (1991), podemos especular o projeto das Bachianas sob uma outra perspectiva. Villa-Lobos, a partir de certos elementos barrocos e das expressões musicais brasileiras cria um outro tipo de amálgama sob uma outra base estética, e não se trata de um retorno ao passado, ou mero conservadorismo, pois ao fundir esses elementos ele inventa um novo tipo de imaginário social que nunca existiu, feito com elementos de uma tradição europeia mais distante e a música brasileira. A questão do folclóre também é envolvida em muita controvésia a respeito de suas origens, no entanto, a famosa frase: “o folclore sou eu” dá uma ideia de que ele estava mais se importando com a invenção de uma nova música refinada ao seu modo do que realmente basear sua estética a partir de princípios etnomusicológicos como Bartók, por exemplo, fez. Guérios ainda contextualiza o momento da criação do Guia prático ao discorrer sobre as divergências das fontes folclóricas utilizadas (GUÉRIOS, 2003: 188- 190). Sobre os procedimentos da tradição barroca Villa-Lobos compõe quatro fugas em todo o ciclo, o que talvez mais seja fiel ao modelo barroco, outras associações são feitas livremente, no entanto, como exemplo, a fuga do segundo movimento da nona Bachiana tem uma base métrica em 11/8 que jamais poderia ser pensada no século XVIII, o que mostra sua intenção em fundir elementos da tradição e da modernidade sob uma “aura brasileira” imaginada pelo compositor. Isto muito provavelmente só seria possível com essa premissa neoclássica conforme Morgan (1991), ao refletir sobre Stravinsky observou: uma criação com a intenção muito mais voltada em abranger toda a música ocidental de maneira livre. Por isso, talvez não seja coincidência Villa-Lobos associar a música de Bach vinda “do infinito astral para se infiltrar na terra como música folclórica” (GUÉRIOS, 2003: 168). Estas afirmações eloquentes seriam apenas mais uma maneira de propagar a sua obra conforme os desejos da tendência daquele momento histórico. Com mais detalhes, Botti elenca uma série de diferenças entre a abordagem villa-lobiana e bachiana (BOTTI, 2003: 76-80). 32 Determinados musicólogos mais atuais como Richard Taruskin vão criticar esse tipo de atitude dos compositores neoclássicos por se tratar de: “uma tendenciosa viagem para onde nós nunca fomos” (TARUSKIN, 1993: 283-286). No entanto, este mesmo autor posteriormente vai discorrer amplamente ao comentar sobre os pastiches do classicismo feitos no século XVIII, seja por Mozart ao parodiar Handel, ou Tchaikovsky ao orquestrar peças de Mozart, e ele próprio ainda vai considerar que a história da música do século XX só é distinta do século anterior não no final do século XIX, mas nos anos 1920 com o maneirismo do secúlo XVIII. (TARUSKIN, 2009: 447-493). Isto porque o objetivismo e a clareza reagiam contra toda a forma de sentimentalismo, seja ela pós-wagneriana, impressionista e poderíamos até mesmo incluir o primitivismo do primeiro Stravinsky; e também porque conseguiu fornecer uma sintaxe baseada no retorno de certos procedimentos tradicionais, como a escrita contrapontística e o uso de formas clássicas, mas assimilando certos procedimentos da contemporaneidade como dissonâncias em momentos não previsíveis, politonalidade e irregularidades rítmicas, servindo assim como base de linguagem para toda uma geração de compositores. Inclusive José Maria Neves (2008) também pondera o neoclassicismo ao afirmar que o nacionalismo musical brasileiro, ao querer fugir dos processos pós-românticos, também incorpora as técnicas contemporâneas, e até mesmo fórmulas de escolas nacionais húngaras e espanholas, e nos anos 1930 começava a tender para o neoclassicismo como se verá em obras de Villa-Lobos e nos discípulos de Mario de Andrade. Neves ainda constata que ao se dar mais valor às estruturas e técnicas importadas da Europa do que no material folclórico escolhido, criam-se obras incoerentes, pois acaba-se percebendo um resultado muito semelhante entre composições de outros países, algo que o nacionalismo brasileiro baseado nas premissas de Mario de Andrade não queria (NEVES, 2008: 73-74). Whittall9, por sua vez, em uma visão mais recente ainda faz outra ponderação: “ o advento da sensibilidade pós-moderna a partir dos anos 1970 tornou possível ver o neoclassicismo não como regressivo ou nostálgico mas como expressão de uma multiplicidade distintamente contemporânea de consciência. Portanto, é difícil e até mesmo artificial ver neoclassicismo e pós-modernidade como separados exceto pelo período da Primeira Guerra Mundial até os anos 1950” (WHITTALL, 2001:1). Com todas essas afirmações dos últimos autores citados, podemos verificar que não só o 9 The advent of postmodern sensibilites since the 1970s has made it possible to see neo-classicism not as regressive or nostalgic but as expressing a distinctly contemporary multiplicity of awareness. It is therefore difficulty and even artificial to regard neo-classicism and postmodernism as separate except in historical sequence, with the former the prefered term for the period from World War I to the 1950s. 33 termo neoclássico é controverso, mas a sua percepção e julgamento também, uma vez que muda conforme as tendências históricas e de acordo com determinados valores ou a ideologia em determinadas épocas. Se considerarmos a visão de Taruskin (1993, 2009), o neoclassicismo por vezes pode ser anacrônico ou afirmativo, isso se tivermos em mente as datas dos dois textos, Neves (2008) verifica incongruência entre material e procedimentos, pois os compositores brasileiros se valem de recursos os quais nem sempre sabiam usar muito bem; enquanto Whittall (2001) analisa como um movimento que conseguiu uma multiplicidade de expressões muito distintas. A afirmação desse autor é compreensível, pois pelo fato dessa estética ser capaz de envolver procedimentos tanto da tradição quanto da modernidade, a pluraridade artística se amplia muito; e sem nos esquecermos de Mário de Andrade (1972), que já alertava para a efemeridade das tendências, e a necessidade de um critério para incluir as obras musicais e seus movimentos em uma perspectiva mais abrangente de tal forma que possa compreender melhor o período em questão. Ainda o próprio Mário de Andrade (1976), ao avaliar a reação anti-wagneriana, diz que a evolução em arte não se realiza tecnicamente e idealmente da mesma forma. Nas palavras dele: “A evolução técnica se dá pelo desenvolvimento, ao passo que a evolução estética se dá pela reação. Si as formas vivem e crescem por constante soma e ajuntamento, o espírito se desenvolve na perpétua revolta”. (ANDRADE, 1976: 50). Ou seja, não é possível um paralelismo integral entre a técnica e um determinado ideal sempre de maneira linear. Outras tendências no século XX como a vanguarda dos anos 1950 e 1960 vão realizar esse ideal, inclusive negando todo um passado, unindo a revolta tanto na técnica quanto na estética, mas ao mesmo tempo as tendências neoclássicas ainda se mantém em paralelo, e posteriormente historiadores e musicólogos vão lançar um outro olhar para essa corrente estética, seja para afirmar que foi a partir dos anos 1920 que se iniciou de fato a música do Século XX, ou para dar um outro julgamento de valor tendo em conta a relação social daquela contemporaneidade e o reflexo que ela causou tempos depois. A ponderação de Whittall (2001) talvez seja mais pertinente não só ao projeto das Bachianas, mas ao neoclassicismo villa-lobiano como um todo, pois a partir de uma visão muito pessoal tanto sobre técnicas, sejam tradicionais ou pessoais, quanto a um folclorismo, seja baseado em fontes reais ou não, Villa-Lobos consegue expressar um anseio da sua contemporaneidade, e faz uma música nova não tanto na criação de uma sintaxe ou na 34 exploração dos elementos sonoros em si mesmos, mas na concepção de um novo imaginário. Isso talvez só seria possível com as premissas neoclássicas, mesmo havendo controvérsias. Whittall10 ainda faz mais uma observação sobre Stravinsky que julgamos importante: “... para Stravinsky, o mais fundamental de todas as convenções não era o nexo de características formais e estilísticas da música europeia de Bach à Beethoven, mas a preferência básica para muita música do Século XIX na Rússia e em outros lugares, para uma consistente coloração da tonalidade diatônica com a cromática, frequentemente inflexões octatônicas. Esta preferência não somente cria ligações entre Stravinsky, Debussy, Bartók e muitas outras grandes figuras do Século XX: ela também ajuda a criar importantes associações entre as várias fases de uma carreira em que recorrer às predileções nas suas origens russas foi constantemente e engenhosamente repensadas, mas nunca totalmente rejeitadas, mesmo em suas mais inequívocas obras modernistas após os anos 1918” (WHITTALL, 1999: 116). Esta afirmação deste autor também pode se estender a Villa-Lobos, pois como já afirmamos anteriormente, ele manteve certas características que permeiam mais ou menos as suas obras desde o início de sua carreira, seja pelo aspecto técnico ou na apresentação do caráter nacional, e do mesmo modo que o autor liga esses compositores citados pelas mesmas afinidades estilísticas, o mesmo ocorre em Villa-Lobos. O fato das tendências estéticas mudarem não apaga certos procedimentos técnicos, ele ainda utiliza recursos que já havia usado em outras obras, e também de maneira original, e mesmo em sua última fase, quando já não usa mais elementos folclóricos, ainda percebe-se uma composição cuja a estruturação continua a manter certos procedimentos, sejam eles melódicos, harmônicos ou formais, mas sem a “aura brasileira” ou, como prefere Neves: “o caráter nacional se mantém, mesmo não havendo preocupação nacionalista direta, pois o vocabulário sonoro do compositor ainda carrega essas características” (NEVES, 2008: 84). O projeto das Bachianas Brasileiras vai de 1930 até 1945, a sua pretensão de retorno à Europa não deu certo, no entanto, a revolução de 1930 acabou levando-o a aderir ao regime de Vargas e em fevereiro de 1932, Anísio Teixeira, Secretário de Educação convida Villa-Lobos para chefiar o Serviço de Música e Canto Orfeônico da capital da República (GUÉRIOS, 2003: 178). Em setembro de 1933, esse departamento se torna parte integrante ao Departamento de Educação do Distrito Federal – a Superintendência de Educação Musical e 10 (…) for Stravinsky, the most fundamental of all conventions was not the nexus of stylistic and formal characteristics of European music from Bach to Beethoven but the preference, basic to much nineteenth- century music in Russia and elsewhere, for the consistent colouring of diatonic tonality with cromatic, often octatonic inflexions. This preference not only creates links between Stravinsky, Debussy, Bartók, and many other major twentieth-century figures: it alo helps to create important associations between the various phases of a career whose recourse to its generative Russian predilections was constantly and resourcefully rethought, but never totally rejected,even in his most unambiguously modernist works of the years after 1918. 35 Artística (Sema) a qual permanecerá até 1937. Durante este período a sua produção se volta principalmente para a área da educação, criando o Guia prático, publicação de um repertório mínimo de canções que pudessem ser utilizadas pelos professores de canto orfeônico (GUÉRIOS, 2003: 187). Em 1942, cria-se o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, o qual ele dirigiria até o fim de sua vida (GUÉRIOS, 2003: 198). 2.3 O último período composicional e a encomenda de um concerto para harmônica Desde 1941, organismos oficiais norte-americanos como o Pan American Union dirigido pelo musicólogo Charles Seeger, tentaram de diversas maneiras levar Villa-Lobos aos Estados Unidos. Durante três anos aconteceram diversas negociações para levá-lo como parte da “política da boa vizinhança” implementada pelo governo Roosevelt (GUÉRIOS, 2003: 198). Em abril de 1944, após meses de tratativas, ele recebe um convite formal para apresentar obras suas, e em novembro do mesmo ano ele dirige a Jassen Symphony Orchestra em Los Angeles, outros concertos acontecem no mesmo período em NovaYork, Chicago, Boston e Filadélfia. (SILVA, 2008: 26-28). Após esse primeiro contato, a partir de 1945 até 1959, Villa-Lobos recebe uma série de encomendas de vários países, principalmente Estados Unidos, algumas obras são comissionadas por fundações culturais e orquestras sinfônicas, outras são encomendadas pelos próprios intérpretes. Silva faz um grande quadro sobre todas essas obras neste período e tece comentários a seu respeito (SILVA, 2008: 29-36). Entre as obras de destaque temos: Sinfonia nº7 (1945) entre outras sinfonias; a “aventura musical” Magdalena (1947); Fantasia Concertante para piano, clarineta e fagote (1953); os poemas sinfônicos Erosão (1950) e Gênesis (1954); e os respectivos concertos: Concerto para violão e orquestra (1951) dedicado a André Segóvia; Concerto para harpa e orquestra (1955) para Nicanor Zabaleta, e o Concerto para harmônica e orquestra (1955) para John Sebastian. Como vimos no primeiro capítulo, a harmônica cromática não tinha um repertório próprio consolidado. Larry Adler e John Sebastian se tornam os primeiros intérpretes a realizar encomendas para o instrumento. Os principais documentos sobre a relação entre Sebastian e Villa-Lobos se baseiam em correspondências trocadas entre eles no período de 1947 e 1956 e se encontram no Museu Villa-Lobos (1989), nelas podemos ver como se deu as negociações sobre a encomenda. 36 Na primeira correspondência de Sebastian a Villa-Lobos o instrumentista comenta o último encontro com o compositor acontecido um ano antes; a gravação de O canto do cisne negro (Villa-Lobos dá uma partitura a Sebastian); e o desejo de que algum dia Villa-Lobos escreva um concerto para harmônica e orquestra dedicada a ele. (Correspondência de John Sebastian a Villa-Lobos. Nova York, 28 de outubro de 1947). As duas correspondências seguintes foram escritas em 1955, o conteúdo delas concentra- se na tratativa da encomenda : tempo de duração (entre 15 e 20 minutos), total liberdade de escolha formal ao compositor (...) “A forma da obra será completamente de sua decisão e julgamento musical” (…); exclusividade de direitos de execução da obra ao intérprete por 2 anos, e a forma de pagamento. Por se tratar de uma encomenda não comissionada por nenhuma fundação cultural, Sebastian acertou pagar diretamente a Villa-Lobos a quantia de $2,000.00 (dois mil dólares), metade do pagamento feito antecipadamente, a outra metade após a entrega da parte para harmônica e a partitura completa com harmônica e orquestra. (Correspondências de John Sebastian a Villa-Lobos. Nova York, 22 de janeiro de 1955, 19 de fevereiro de 1955). Em uma última carta de 1956, Sebastian comenta a possibilidade de tocar o concerto com a Filarmônica de Berlim no ano seguinte e neste período gravá-la para a gravadora DECCA. (Correspondência de John Sebastian a Villa-Lobos. Nova York, 26 de julho de 1956). Apesar de não haver conteúdo técnico sobre a escrita para a harmônica nestas correspondências, fica muito claro que Sebastian deu total liberdade de pensamento musical ao compositor. A afirmação feita pelo gaitista especificamente sobre a forma da obra ajuda a esvaziar interpretações de que o compositor, em sua última fase criativa, ao adotar formas mais ligados à tradição (sinfonias, concertos, quartetos de cordas, poemas sinfônico e ópera), tenha adotado uma escrita mais conservadora meramente para agradar aos intérpretes, como alega por exemplo Liza Peppercorn (PEPPERCORN, 1992: 135). Mesmo ao adotar formas da tradição, como veremos adiante, esse processo não vai acontecer de maneira convencional. Há controvérsias sobre essa encomenda. Em sua autobiografia, Larry Adler comenta que ao encontrar Villa-Lobos no New York City Center, este havia prometido a ele um concerto, e na ocasião, Adler lhe explicou os problemas para a escrita da harmônica cromática. No entanto, após um determinado tempo, Adler toma conhecimento que Villa-Lobos escreveu um concerto para John Sebastian. Ao se reencontrarem novamente, na Salle Gavaeu em Paris, Larry Adler pergunta por que escreveu um concerto para outro gaitista, e Villa responde que esperou pelo “dinheiro”. Adler ainda comenta que não havia percebido que 37 Villa-Lobos queria uma encomenda, pois já havia feito para vários compositores, entre eles, Khatchaturian, no final deste relato Adler ainda sugere que talvez Villa-Lobos compusesse um outro concerto para ele mas Villa morreu antes. Não foram encontrados documentos no acervo do Museu Villa-Lobos que pudessem confirmar esta hipótese, e as datas nesta autobiografia de Adler são imprecisas (ADLER, 1984: 177). Outra controvésia baseia-se entre Villa-Lobos e Edu da Gaita em fato relatado por Aluízio Falcão, jornalista e produtor cultural, diretor da gravadora Eldorado e impresso no encarte do CD EDÚ da GAITA, compilação dos LPs EDÚ da GAITA Vol I e II. lançado em LP em 1979 e posteriormente em CD em 1995. Neste encarte o jornalista narra a seguinte ocasião após Edu ter executado o Moto Perpetuo de Paganini: “Villa-Lobos, em 1956 extasiado com interpretação do 'Moto perpétuo', pediu a Edu um tema para escrever uma peça erudita. O intérprete imediatamente passou às mãos do maestro o tema. 'Uma gaita sobe o morro', do qual surgiu, meses depois, um concerto gravado nos Estados Unidos por Larry Adler e estranhamente assinado por Villa-Lobos. Apropriação indébita ou consequência do proverbial 'desligamento' do maestro ? O gaúcho Edu respondeu mineiramente que, hoje, prefere a segunda hipótese. (EDÚ DA GAITA 1995). Conforme as explicações anteriores, baseadas nas correspondências entre Villa-Lobos e Sebastian, o desejo deste gaitista já era latente em 1947 em sua primeira carta, e em 1955 inicia-se as negociações da encomenda, e uma das condições era a exclusividade do concerto ao intérprete por dois anos, portanto outro gaitista só poderia executá-la a partir de 1957; ainda em 1956 Sebastian diz a Villa-Lobos sobre a possibilidade de gravar o concerto com a Filarmônica de Berlim, além da outra controvérsia com Larry Adler, o que torna difícil acreditar em uma gravação feita por Adler neste período de tempo. Outro dado importante é a data oficial de estreia: 27 de outubro de 1959 feita por Sebastian com a Kol Israel Orchestra sob regência de George Singer. Sobre o tema Uma gaita sobe o morro e os temas utilizados no concerto não encontramos semelhanças significativas. Acreditamos mais em um mal entendido entre compositor e intérprete uma vez que Villa- Lobos prometeu uma peça a Edú do que uma apropriação indébita. Após essa breve contextualização sobre a trajetória do compositor em seu início de carreira, o contexto do neoclassicismo e suas premissas estéticas, o seu último período criativo e as circunstâncias em que ocorreram a encomenda, podemos analisar a obra com mais profundidade. 38 2.4 Concerto para harmônica e orquestra A análise baseou-se em duas fontes documentais: a primeira trata-se de um fac-símile do manuscrito autógrafo que se encontra no centro de documentação da OSESP com carimbo da American Music Publishers Inc. Ainda na mesma chancela encontra-se anotada a data de 1955, mesma data que consta no cabeçalho da partitura com caligrafia de Villa-Lobos. Nesta fonte encontram-se dez ossias11 ao longo dos três movimentos. Essa escrita alternativa é necessária, pois diversos acordes escritos para a a harmônica não são possíveis de se tocar conforme ilustrado nas figuras do capítulo 1. É perceptível que trata-se da mesma caligrafia, apesar de também ser óbvio que foi colocado posteriormente, pois as marcas de caneta diferem bastante; nestas ossias constata-se um acabamento mais rústico o que revela que foram escritas de maneira improvisada. Mesmo com essas alterações, alguns acordes ou intervalos ainda são impossíveis de se tocar no instrumento. No entanto, no terceiro movimento encontram-se ossias desnecessárias, pois os acordes originalmente escritos são possíveis de se tocar. A segunda fonte é uma digitalização do manuscrito autógrafo do acervo do Museu Vila- Lobos. Neste documento a partitura está com o acabamento original sem alterações, rasuras ou marcas de editora e com a mesma data no cabeçalho: 1955. Estas escritas alternativas são importantes para a análise da obra, pois nestas modificações é claramente perceptível a necessidade de adaptação de sua linguagem conforme a circunstância. Outras três fontes auxiliares também foram utilizadas: a redução para harmônica e piano, a parte solista para harmônica, e uma outra parte solista para harmônica realizada pelos editores com o acréscimo das ossias. Como também mostramos nas correspondências entre Sebastian e Villa-Lobos a respeito das tratativas da encomenda, não há especificações técnicas sobre a escrita do instrumento; no entanto, Peppercorn (1992) relata uma reunião entre a autora, compositor, intérprete e suas respectivas esposas na residência de Sebastian. Nesse encontro informal ela conta que Vila- Lobos escrevia sobre a partitura do concerto, ao mesmo tempo que tocava piano de maneira 11O dicionário Grove's dá o seguinte significado para este termo: Ossia (It.: 'alternativamente'; originalmente osia 'ou seja'). Uma palavra usada em partituras musicais – e também, mais raramente oppure (particularmente em Verdi), overo ou ovvero (literalmente ' ou amplamente') – indicar uma alternativa para uma passagem. Isto ocorre em diversas circunstâncias diferentes; (i) versões simplificadas, particularmente na música para piano do século XIX; (ii) embelezar versões, particularmente no bel canto da música vocal; (iii) partituras didáticas, leituras a partir de outras fontes ou interpretações alternativas da mesma fonte; (iv) mudanças feitas para acomodar uma música para um instrumento com tessitura reduzida, se um piano com teclado de extensão menor, ou um oboé, por exemplo, tocando música para violino; (v) orquestração alternativa para uma orquestra menor ou maior do que aquela originalmente pretendida. 39 descontraída, podemos deduzir que muito provavelmente fazia as devidas correções, mas algumas delas ainda permaneceram impróprias para o instrumento (PEPPERCORN, 1992). A instrumentação é constituída por: uma flauta, um clarinete, um oboé, um fagote, duas trompas, um trombone, tímpanos, uma harpa, uma celesta e cordas. Toda a partitura é escrita na armadura de Dó Maior, somente o clarinete e as duas trompas são transpostas. Os acidentes são sempre ocorrentes sem mudança de armadura de clave. O concerto é composto por três movimentos: Allegro moderato, em forma sonata; Andante, movimento lento em uma forma tipo ária da capo; Allegro, em uma forma livre de último movimento, além da cadenza que existe no meio. Foram extraídos sete exemplos do primeiro movimento, dois do segundo e cinco do terceiro que demonstram a interação entre a linguagem do compositor e o instrumento solista. 2.4.1 Primeiro Movimento: Allegro moderato –- aspectos gerais e temáticos O primeiro movimento é composto por uma introdução de sete compassos. Logo em seguida inicia-se uma seção expositiva que nós chamaremos de seção A, apresentando dois temas A e B que vão do compasso 8 ao 41, (a princípio não tratamos aqui de formas tonais clássicas, mas apenas uma maneira de diferenciar as partes). Na seção expositiva, Villa-Lobos procede se valendo de recursos imitativos e variando os dois temas apresentados. Do compasso 8 ao 33 a harmonia caminha de maneira quase estável alterando poucas notas em relação ao tema no modo de Lá eólio. Ao iniciar o tema B no compasso 34 inicia-se um aumento das dissonâncias tanto na parte da harmônica quanto no acompanhamento, persistindo com oscilações de tensão durante o desenvolvimento até chegar ao compasso 103 quando há uma diminuição dessas dissonâncias e da quantidade de instrumentos. A partir do compasso 106 inicia-se uma recapitulação das ideias apresentadas. A seguir os dois temas principais (Fig. 2.1 e Fig. 2.2): 40 Fig. 2.1: Tema A, Seção Expositiva. Fig. 2.2: Tema B, Seção Expositiva. Tanto o tema A quanto o tema B possuem três motivos. A relação intervalar por quartas em ambos os temas é muito próxima com pequenos ajustes de figuração. Ao descrever os procedimentos temáticos do período clássico Rudolph Reti considera que a construção da forma temática a partir da mistura de dois temas anteriores é um dos recursos favoritos para os compositores deste mesmo período, pois com esta técnica a composição adquire uma base altamente consistente (RETI, 1951: 25). Isso é compreensível, pois a partir de dois materiais temáticos, características de um pode estar submergido no outro, o que reforça tanto o grau de coesão quanto sutilmente oferece diversidade à composição, e nestes temas percebe-se claramente que um pode ter surgido do outro. Ao rearticular esses motivos internos justapondo, sobrepondo, invertendo-os, e tendo em conta o intervalo de quarta como base, ele consegue tanto conduzir a melodia dando continuidade ao discurso quanto criar uma base harmônica, e desta maneira atinge-se também uma construção sólida semelhante às estruturas clássicas. Reti ao esclarecer as transformações temáticas de Brahms na Sinfonia nº2 observa a 41 maneira como os temas estão fundidos um no outro, e ao destacarmos certas notas, ou aparece o primeiro tema ou o segundo (RETI, 1951: 81). No entanto em Vila-Lobos o que percebemos não é tanto uma fusão, mas sim uma montagem temática feita com essas justaposições dos motivos, o que denota uma sutil adequação entre os procedimentos clássicos e modernos. Essas relações são muito trabalhadas neste movimento assim como em todo o concerto. 1º Trecho: Introdução ao início da exposição A Introdução inicia com a superposição dos temas: o tema B nos 1º e 2º violinos, enquanto o motivo (b) e (a) do tema A é tocado por violoncelos, fagote e trombone; flautas e oboés repetem insistentemente o motivo (c) 3 do tema A; violas, trompas e clarinete fazem o motivo (c) do tema A. A partir do terceiro tempo do compasso 2 há uma série de alternâncias na apresentação desses temas: violas assumem o tema em uníssono com 2º violinos, clarinete e 2º trompa, enquanto 1º violinos fazem uma nota sustentada em mínima pontuada ligada a uma semibreve; no compasso 4, 1º violinos tocam uma variação do motivo (c 3) anteriormente realizado por flauta e oboé, neste momento, estes instrumentos ficam em pausa; os 1º violinos iniciam o compasso 5 com o motivo (c 3) (desta vez da mesma maneira insistente como oboé e flauta no início) enquanto oboé e clarinete assumem o tema B; durante o compasso 6 o motivo (c 3) volta para flauta e oboé mas transposto uma quarta acima, 1º e 2º violinos apresentam novamente o tema B, violoncelos e contrabaixos tocam uma variação do motivo (a) do tema A e (c 1) do tema B. Toda essa rotatividade temática se sucede de maneira fragmentária e justaposta, ao mesmo tempo em que há superposição dos temas alternados. Isso resulta em uma grande massa orquestral que gira em torno dela mesma, com momentos mais ou menos densos. Com este procedimento gera-se um ostinato que vai atingir um ponto culminante de grande adensamento orquestral com o motivo (c) do tema A superposto ao motivo (c 1) do tema B no compasso 7. Logo após, ocorre um súbito corte com ataque dos tímpanos com a nota Lá e inicia-se então a exposição linear do tema A pela harmônica acompanhada pelas cordas, que fazem um sforzato e um pianíssimo súbito; harpa e tímpanos também fazem o acompanhamento em uma textura homofônica. Todo esse material é diatônico dentro do modo de Lá eólio. Esse contraste textural é muito significativo, pois os motivos que estavam fragmentados na introdução vão aparecer linearmente na harmônica acompanhados pelas cordas, harpa e 42 pontuado pelos tímpanos. Os violoncelos e contrabaixos perfazem a linha inferior, no entanto não há uma cadência tonal, mas um salto de terça a conduz para a nota Lá . Note-se que a linha sinuosa da gaita com o respectivo acompanhamento em compasso 7/4 denota um claro estilo arioso. A ilustração (Fig. 2.3) mostra os dois últimos compassos da introdução e os quatro primeiros da exposição. Fig. 2.3: Do fim da introdução ao início da exposição 43 O que podemos chamar de “cadência” resulta muito mais do contraste promovido por um ritmo textural e de uma