1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA ARTES VISUAIS ELISÂNGELA SENA DOS SANTOS A POÉTICA DE JOÃO GOMES Um Olhar a Partir da Sustentabilidade Bauru-SP 2017 2 Elisangela Sena dos Santos A POÉTICA DE JOÃO GOMES Um Olhar a Partir da Sustentabilidade Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora, como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharelado em Artes Visuais pela Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação (FAAC – UNESP). Orientadora: Prof. Dr.ª Joedy Luciana Barros Marins Bamonte. Bauru - SP 2017 3 Santos, Elisângela Sena dos. A Poética de João Gomes: Um olhar a Partir da Sustentabilidade / Elisângela Sena dos Santos, 2017 49 f. : il. Orientador: Joedy Luciana Barros Marins Bamonte Monografia (Graduação)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2017 1. Artesanato. 2. Artes Visuais. 3. Móveis artesanais. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Artes Visuais. II. Título. 4 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA ARTES VISUAIS ELISÂNGELA SENA DOS SANTOS BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________ Profª Drª Joedy Luciana Barros Marins Bamonte Orientador/UNESP-FAAC ___________________________________________________ Profª Drª Thaís Regina Ueno Yamada UNESP-FAAC ___________________________________________________ Prof. Dr. Sidney Tamai UNESP-FAAC MARÇO- 2017 ESTE TRABALHO DE GRADUAÇÃO FOI JULGADO ADEQUADO COMO PARTE DO REQUISITO PARA A OBTENÇÃO DO DIPLOMA DE “BACHAREL EM ARTES VISUAIS” APROVADO EM SUA FORMA FINAL PELO CONSELHO DE CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS - BACHARELADO Profª Drª. ________________________________ Coordenador(a) 5 Dedico este trabalho aos meus pais, e meus irmãos que tanto me apoiaram e me incentivaram nesse processo. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por ter me dado a honra de poder viver mais está incrível experiência. A minha família principalmente, sem a qual eu não seria quem eu sou e nem chegaria onde estou. A meu pai pelo carinho e atenção; à minha mãe minha melhor amiga, assistente nos trabalhos práticos, e meu porto seguro sempre quando precisei; a todos meus irmãos, por tornarem a minha vida mais divertida e colorida, a meus cunhados e sobrinhos, por me proporcionando momentos que guardo na lembrança. Agradeço também a minha amiga Cássia, Rose, Mariana e Jeferson que sempre estiveram nesses anos me proporcionando os melhores momentos e risadas que eu jamais teria tido, se não os tivesse conhecido. Aos meus colegas de sala que dividiram comigo felicidades, gargalhadas, frustrações, incertezas e arte. Obrigada pelo carinho com que sempre me trataram. Aos docentes do curso de Artes Visuais que modificaram meu olhar e expandiram meu universo, cada qual adicionando parte significativa na minha formação como artista e como indivíduo. E especialmente à minha professora e orientadora, Profa. Dra Joedy Luciana B. M. Bamonte por ter me aceitado como orientanda e ter sido tão paciente, amiga, e pessoa que admiro. Obrigada por todos terem se tornado parte da minha memória mais doce e colorida que eu poderia guardar para todo o sempre. 7 “Quem quer se tornar um artesão, tem que gostar do que faz e ter consciência de preservação.” João Gomes artesão. 8 RESUMO Esta pesquisa propõe refletir sobre como a madeira tem sido utilizada ao longo dos últ imos anos por artesãos, com o olhar voltado para a sustentabilidade e a importância da reutilização dessa matéria-prima de maneira próxima a sua condição natural, para a criação de objetos utilitários, funcionais e/ou ornamentais. Abordaremos essas questões, tomando como referência a produção de João Gomes e o processo criativo deste artista/artesão. Daremos enfoque para os trabalhos feitos em madeira, investigando as relações presentes entre as artes visuais e as principais características da obra de Gomes, destacando-se abordagens contemporâneas geradas em reflexões geradas no meio em que habitamos, onde o conceito de sustentabilidade se encontra com as artes visuais. PALAVRAS-CHAVE: artesanato, artes visuais, processos criativos, resíduos, móveis artesanais. 9 ABSTRACT This research proposes to reflect on how wood has been used in recent years by artisans, with a focus on sustainability and the importance of the reuse of this raw material in a way close to its natural condition, for the creation of utilitarian objects, Functional and / or ornamental. We will address these issues, taking as reference the production of João Gomes and the creative process of this artist / artisan. We will focus on the work done in wood, investigating the present relations between the visual arts and the main characteristics of the work of Gomes, highlighting contemporary approaches generated in reflections generated in the environment where we live, where the concept of sustainability meets the visual arts. Keywords: Crafts, Art, Creative Processes, Skin Scraps Of Wood, Handcrafted Furniture. 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1- João Gomes. Fonte acervo particular .................................................................. 16 Figura 2- João Gomes. Detalhe de mesa, a partir de sobras de madeira de construção. Acervo particular............................................................................................................................ 17 Figura 3- João Gomes. Detalhe de painel. Dragão Chinês, entalhado em baixo relevo; madeira de cedro rosa, 1996. Acervo particular .................................................................. 17 Figura 4- Raiz submersa do rio Tietê. Acervo particular ..................................................... 19 Figura 5- João Gomes. Fonte de raiz rio Tietê. Acervo particular ....................................... 19 Figura 6- João Gomes, rascunho, 2003. Acervo particular .................................................. 21 Figura 7- João Gomes, rascunho de desenho para máscara entalhada, 2003. Acervo particular............................................................................................................................ 21 Figura 8- João Gomes. Detalhe máscara entalhada a partir de rascunho, 2004. Acervo particular............................................................................................................................ 22 Figura 9- João Gomes. Baú textura natural. Acervo particular ............................................ 24 Figura 10- João Gomes. Detalhe de escultura. Vista da parte de trás. Acervo particular ...... 24 Figura 11- João Gomes. Detalhe de escultura. Vista lateralmente. Acervo particular ......... 24 Figura 12- João Gomes. Detalhe de escultura. Vista de frente. Acervo particular............... 24 Figura 13- João Gomes. Banco em encosto de galho de eucalipto, madeira de reflorestamento. Acervo particular ..................................................................................... 29 Figura 14- João Gomes. Banco canoa de madeira queimada. Acervo particular ................. 29 Figura 15- João Gomes. Detalhe hall de entrada, SESI Bauru. Acervo particular ............... 37 Figura 16- Figura 16. Monte de costaneira, resíduo descartado em serraria. Acervo Pessoal. .......................................................................................................................................... 38 Figura 17- João Gomes. Mesa de jantar, 1/2 tora. Acervo particular ................................... 43 Figura 18- Joaõ Gomes. Baú textura natural. Acervo particular ......................................... 44 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212670 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212671 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212671 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212672 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212672 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212673 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212674 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212675 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212676 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212676 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212677 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212677 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212678 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212679 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212680 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212681 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212682 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212682 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212683 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212684 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212685 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212685 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212686 file:///C:/Users/Usuario/Desktop/tcc%20elisangela%20a.docx%23_Toc476212687 11 TABELA Linha do tempo do Processo criativo de João Gomes ..............................................29 12 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 13 2 O ARTESÃO JOÃO GOMES 16 2.1 Processo Criativo 21 2.2 Fases da Obra de João Gomes 27 3 CONTEXTOS ABORDADOS A PARTIR DA OBRA DE JOÃO GOMES 31 3.1 Relação entre Artesanato, Arte Contemporânea e Tradição 31 3.2 A importância da sustentabilidade na obra do artesão 38 3.3 Formas e beleza a partir do orgânico 43 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 47 5 REFERÊNCIAS 49 13 1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa busca reflexões iniciadas antes mesmo do período do curso de Artes Visuais dentro da universidade, considerando-se referências e a importância do contexto pessoal durante a formação intelectual e sensibilização artística. Tendo como enfoque o fazer artesanal, testemunhado durante meu crescimento ao ver meu pai criar inúmeras peças artísticas e artesanais em madeira, as reflexões que geraram a presente pesquisa e favoreceram a aproximação entre a experiência estética intuitiva e o ensino sistematizado nas artes visuais. O foco do trabalho é a obra e o processo criativo de João Gomes, com questões voltadas ao desenvolvimento sustentável em nossa sociedade e degradação ambiental, assim como a quantidade de resíduos de árvores e galhos caídos nos espaços urbanos ou no campo e o que fazer com estas. O trabalho também se preocupou em como a arte pode se apropriar desses elementos para se manifestar, sendo uma materialidade potencial e contemporânea ligada às questões ecológicas em âmbito global. A compreensão acerca da problemática ambiental reflete um percurso que vai desde o tratamento da poluição até a interferência nos processos que produzem tal poluição. A conscientização em torno do problema ambiental leva ao debate e à reformulação dos comportamentos sociais. Manzini e Vezzoli (2002, p. 28) defendem que “[...] A sustentabilidade ambiental é um objetivo a ser atingido e não como hoje muitas vezes é entendido, uma direção a ser seguida.” A construção artesanal de objetos utilitários, estéticos e funcionais explora resíduos de madeiras, sob a perspectiva da sustentabilidade1. Em sua forma próxima ao natural, essa matéria-prima vem sendo fruída e utilizada ao longo dos últimos anos por criadores 1 FERREIRA; Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. 1 ed.São Paulo:Ed Nova Fronteira, 1986. “Sustentabilidade”: é a qualidade de sustentável. ( p. 1635) https://www.dicio.com.br; Dicionario Online de Português; Segundo o autor o significado de “Sustentabilidade” conceito que, relacionando aos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais, busca suprir as necessidades do presente sem afetar as gerações futuras. Qualidade ou propriedade do que é sustentável, do que é necessário à conservação da vida. https://www.dicio.com.br/sustentabilidade/ acesso em: 24/01/2017 14 artísticos, os quais se dedicam à transformação de árvores caídas ou desvitalizadas naturalmente pelo tempo ou pela ação do homem. A grande quantidade de madeira descartada atualmente é algo que chama a atenção de ambientalistas, artistas, artesãos, designers, e outros setores. São sobras da construção civil ou encontradas submersas em barragens de contenção, assim como restos de poda, troncos caídos pela ação da natureza, raízes e sementes que normalmente são descartados ou deixados se degradando ao tempo. Os profissionais mencionados apropriam-se dos materiais em sua forma pura, aliando-os a outros no desenvolvimento de suas obras e conferindo-lhes assim novos valores. Estes criadores fazem proposições, reinterpretam e redimensionam os resíduos naturais ao intervirem na matéria por meio de uma poética singular, seja ao se voltarem para a cultura de massa e/ou temas populares, ou para fazerem peças originais requintadas com um discurso ambiental atual. Sob essa perspectiva, o papel do artesão João Gomes é significativo para uma aproximação entre questões sustentáveis, a arte e o artesanato, por sua visão sensível à preservação do meio ambiente evidenciada na apropriação de resíduos orgânicos de maneira funcional e estética, adaptados a sua proposta artística. A necessidade de transformação da nossa sociedade representa uma prioridade atualmente, seja por meio da mudança de nossos hábitos e comportamentos ou do modelo de desenvolvimento que criamos e o que pretendemos deixar de herança para as futuras gerações. Precisamos pensar nos recursos naturais dos quais o planeta dispõe e em nossa capacidade de produzir de forma sustentável e com qualidade, alimentos, matérias-primas naturais e energia. Quanto a esta problemática, o artesão começou a mudar seu olhar, questionando-se quanto à quantidade de recursos disponíveis que eram descartados sem nenhum cuidado específico. Com um espírito inovador e inconformista começou a transformar tais materiais em móveis e objetos artesanais, a partir dos recursos disponíveis e de maneira intuitiva. Esta postura é afinada com os caminhos propostos no século XXI, buscando um modo de vida que preza pelo equilíbrio e equanimidade2. Gomes entende que a madeira derrubada nos leva a ver além de sua beleza e suas qualidades, variedades de texturas, formas e tonalidades distintas. E que a natureza nos 2 FERREIRA; Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. 1 ed.São Paulo:Ed Nova Fronteira, 1986. “Equanimidade”: constância, igualdade de temperamento, de ânimo, em qualquer circunstância. Tranquilidade de espírito, moderação, comedimento ( p. 276) 15 proporciona ótimos resultados na mescla entre a rusticidade do material e o requinte dos objetos utilitários e/ou estéticos dentro de uma visão mais contemporânea. Esta pesquisa visa demonstrar que o descarte de madeiras precisa ser revisto. O que muitas vezes é considerado como “lixo” por serrarias, indústrias moveleiras ou pela construção civil, pode ser transformado em objetos de arte. Para isso, basta que os profissionais envolvidos nesse processo proponham-se a oferecer “nova vida” ao que já não teria mais utilidade em nossa sociedade. Os resultados da pesquisa foram organizados em dois capítulos. O primeiro prioriza a compreensão do processo criativo de João Gomes, apresentando sua poética e principais características de sua obra, visualizadas nas diferentes fases pelas quais já passou no decorrer dos 32 anos de profissão do artista/artesão. O segundo capítulo concentra e esmiúça as características da obra de Gomes, tecendo considerações entre artesanato, forma, beleza e sustentabilidade. 16 2 O ARTESÃO JOÃO GOMES Quando pouco se falava em sustentabilidade, João Gomes. Já apurava seu olhar, incomodado com a quantidade de madeira que era desperdiçada. Essa visão o levou a perceber de forma intuitiva que poderia contribuir de alguma forma para minimizar o desperdício reutilizando essa madeira e seus resíduos, e transformar essa matéria-prima nas suas mais diversas formas e estruturas em objetos e peças de mobiliário. João Albano Gomes nasceu em 1945 na cidade de Itapajé, Estado do Ceará, vindo de uma família humilde e em sua maioria de artistas populares e artesãos. Mudou-se muito pequeno com seus pais para São Paulo, vindo a perder o convívio familiar e a vivência artística da sua família. Anos depois, o saber artesanal foi aos poucos aflorando por meio de Figura 1. João Gomes. Fonte acervo particular 17 um “encontro” entre a arte e o artesanato, suprindo suas necessidades econômicas. É casado, tem 72 anos e trabalha junto a sua esposa, filhos, genro e netos. Na década de 1980, partiu de São Paulo para Lins, uma pequena cidade no interior de São Paulo, a fim de trabalhar em uma construtora. Por anos trabalhou na construção civil como mestre de obras, onde começou a perceber o tamanho do desperdício de madeira. Assim resolve que era hora de fazer alguma coisa que pudesse contribuir, de forma consciente com o meio ambiente. Começa produzir peças com entalhes em madeira, além de também iniciar sua experimentação, ao fazer móveis com sobras e resíduos de construções. Nesse período, suas peças eram retas e convencionais, se comparadas ao que produz atualmente, mas seu trabalho em entalhe já despertava o interesse de vários clientes. Evidenciava-se ali o artesão. Sua nova forma de pensar e agir, seu pensamento de reciclar e Figura 2. João Gomes. Detalhe de mesa, a partir de sobras de madeira de construção. Acervo particular Figura 3. João Gomes. Detalhe de painel. Dragão Chinês, entalhado em baixo relevo; madeira de cedro rosa, 1996. Acervo particular 18 reutilizar materiais acabou por influenciar toda sua família, tal como os conceitos que recebeu espontaneamente de outras gerações. A nova investida abriu-lhe perspectivas estimulantes. João aprendeu a resgatar lembranças de sua história, projetando-as nas linhas e formas de móveis e objetos. Em meados de 1989 participou de sua primeira exposição na cidade de Lins e depois não parou mais de produzir. Suas peças começam a tomar corpo e tamanho e seus entalhes ganham maior realismo, em painéis gradativamente maiores. Desde esse período, sua sensibilidade para os valores de preservação ambiental despertaram-lhe uma consciência ecológica e sustentável manifesta cada vez que utilizava só o que o homem e a natureza desprezam. Em 1995, em busca de novas possibilidades, muda-se com a família para Goiânia- GO. Durante esse período, seu artesanato se torna mais técnico e apurado. Passa a participar da Associação dos Artesãos de Goiás, e a conviver diretamente com artesãos tradicionais que trabalhavam com os mais diversos tipos de materiais e matérias-primas. Nesse período, conheceu entalhadores de pedra sabão e também de concreto celular, escultores de madeira e ferro, aprendendo novas técnicas que vieram a agregar valores que podem ser visualizados até hoje em seu trabalho. Também passou a ser convidado a participar de eventos e exposições tanto no estado de São Paulo como em Goiás e Rio de Janeiro, tornando suas peças mais conhecidas. A partir de 1997, sua produção toma outro rumo, quando ele mudou com sua família para fazenda Santo Antonio, na cidade de Sabino, às margens do rio Tietê. Desde então, suas peças adquiriram um aspecto mais natural e orgânico. Observa-se uma história singular, interessante em cada peça, objeto ou móvel, aspectos comuns e em uma continuidade que aproximam as obras entre si. Troncos são transformados em objetos utilitários - cadeiras, poltronas, abajures, bancos – a partir de materiais que já tiveram suas matérias-primas povoando alguma floresta ou mata ciliar. Para compreender o processo criativo de Gomes, cita-se Ostrower, Criar significa poder compreender, e integrar o compreendimento em novo nível de consciência. Significa poder condensar o novo entendimento em termos de linguagem. Significa introduzir novas ordenações, formas. Assim, a criação depende tanto das convicções internas da pessoa, de suas motivações, quanto de sua capacidade de usar a linguagem no nível mais expressivo que puder alcançar. (OSTROWER, 1995, p.252). 19 Na poética de João Gomes, a beleza está diretamente vinculada à funcionalidade. Para ele, a utilidade deriva das características da madeira encontrada, conforme afirma Pareyson (2001, p. 54). “Como também há quem só encontre beleza relacionando-a, alguma funcionalidade.” (2001, p.54). Em meados de 2000, o artesão muda- se com a família para Bauru-SP e novamente suas peças sofrem modificação estética. Uma vez na cidade, novas mudanças ocorrem em seu trabalho, principalmente após estabelecer uma parceria com uma grande serraria, a “Faidiga Madeiras”. Com a proposta de reutilizar todo o material descartado por eles (tudo o que não é comercializado), a matéria-prima foi modificada e nas sobras dos cortes, outro material passou a ser disponibilizado, fazendo com que o artesão aprimorasse seu processo de reciclagem. João começa assim a produzir móveis e objetos a partir de materiais como galhos e troncos e materiais provenientes de podas, madeiras queimadas por raio, ou Figura 4. Raiz submersa do rio Tietê. Acervo particular Figura 5. João Gomes. Fonte de raiz rio Tietê. Acervo particular 20 destruídas pela ação do homem. Essa abordagem vem de acordo com o que Borges3 diz a respeito do artesanato: A produção artesanal está sintonizada com a noção contemporânea de sustentabilidade, que compreende os conceitos de ambientalmente responsável, economicamente inclusivo e socialmente justo, englobando ainda o que alguns entendem como o quarto pilar do desenvolvimento sustentável, que é a diversidade cultural. (BORGES, 2011, p. 217) Em Bauru, no ano de 2009, Gomes participa de feiras de artesanato como a UBÁ, exposições coletivas e mostras individuais que o levou ao “Revelando São Paulo”, considerado o maior evento de artesanato, o qual reúne a “elite” do artesanato tradicional do Estado de São Paulo. Mais que um evento, constitui uma vitrine das diversas manifestações da cultura do Estado de São Paulo, das quais o artesão, para ser aceito, tem que ter um artesanato tradicional. E a partir de então, João Gomes participou de todas as edições até 2016. Como a maioria dos artesãos, João trabalha em sua casa-ateliê, localizado em uma chácara na área urbana da cidade, cercado de árvores nativas, frutíferas e exóticas. Faz desse lugar seu refúgio e sua inspiração. Neste local encontramos o ateliê “Broto Novo”, onde ele e sua família produzem móveis e objetos rústicos e artesanais. Hoje, há mais de 32 anos de ter iniciado a busca por seu sonho, João mantém a proposta de obras artesanais, bem construídos, com desenho contemporâneo e regional, que proporciona o prazer estético agregado à funcionalidade. 3 Adélia Borges costuma se apresentar como jornalista especializada em design, ex -diretora do Museu da Casa Brasileira (MCB), Professora de história do design brasileiro na Fundação Armando Álvares Penteado. http://www.designbrasil.org.br/entre-aspas/adelia-borges/ Acesso em28/02/2017 21 2.1 Processo Criativo A sensibilidade e a capacidade de transformar pequenos galhos em esculturas, gamelas, luminárias e móveis utilitários ou funcionais é o diferencial do artesão. Essas características fazem com que reconheça, em muitas áreas rurais ou urbanas, o que muitos desprezam: troncos de árvore caídos ou galhos que se tornam lenha ou adubo para o solo. Mas nas mãos do artesão, tudo isso pode se transformar, como um tronco caído, por exemplo, transformado em um banco, em um objeto utilitário ou um objeto de decoração. O processo criativo de João Gomes vai além de sua criatividade. Isso vai depender muito do tipo de material que ele dispõe no momento de execução do objeto. João, às vezes, projeta suas peças em papel comum e com alguns riscos (como se fossem as “garatujas” infantis, o que geralmente só ele entende) traça o que o projeto está muito claro em seu pensamento. Isso pode ser traduzido nas palavras de Ostrower: “Criar é, basicamente, formar. E poder dar forma a algo novo. Em qualquer campo e atividade. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.” (OSTROWER, 1987, p. 9) Figura 6. João Gomes, rascunho, 2003. Acervo particular Figura 7. João Gomes, máscara entalhada, 2004. Acervo particular 22 O processo começa na hora em que João olha para madeira, que pode ser um tronco, uma tora ou uma raiz, partes mais utilizadas por ele; neste momento sua percepção começa a elaborar a melhor forma de aproveitamento possível para a matéria de que dispõe. Tendo Ostrower (1987) como referência, é possível entender este processo como sendo algo intuitivo, tornando-se consciente ao artista somente no decorrer do ato criativo, conforme podemos observar em citação abaixo: “As diversas decisões que surgem no trabalho e que determinam a configuração em vias a ser criada, não se reduzem as operações dirigidas pelo conhecimento. Intuitivos, esses processos se tornam conscientes a medida em que são expressos, na medida em que lhe damos uma forma. (OSTROWER, 1987, p. 10) João Gomes admite que cada projeto demanda um tempo específico, pois nem sempre dispõe da matéria-prima (madeira) com a qual idealizou uma determinada peça: às vezes, um galho, às vezes, um tronco com um desenho ou curvatura diferente. Então, o Figura 8. João Gomes. Detalhe banco jacaré sendo entalhado, 2004. Acervo particular 23 artesão espera pacientemente, “garimpa” em sua memória, ou no pátio (depósito que usa para armazenar as peças recolhidas) até que ache o que procura. Desta forma, nem sempre seu processo criativo vai de acordo com o pensamento prévio. Segundo Ostrower (1987), “O homem elabora seu potencial criador através do trabalho. [...] A criação se desdobra no trabalho porquanto este traz em si a necessidade que gera as possíveis soluções criativas”. (OSTROWER, 1987, p. 31) Cada peça de mobiliário, máscara ou outro objeto possui uma história singular, particular e João Gomes conhece todas elas: pode ser que ela (a matéria da obra) venha da poda, de algum lugar já com muitas histórias e foi transformada em uma escultura. O artesão consegue retirar significados de materiais descartados, objetos comuns considerados inúteis. Desloca o olhar para a arte como uma expressão autobiográfica, deixando suas marcas autorais. Objetos de seu cotidiano vinculam sua vivência, sua memória, estabelecendo relações entre arte e artesanato, e objetos, em palavras. Segundo Chiarelli (1999), [...] “é como resíduo que a arte neste século, em muitos casos, tem encontrado o seu sentido, seu único espaço de transcendência” (CHIARELLI 1999, p. 258) João Gomes busca novos materiais e diferentes maneiras de interpretá-los. Trabalha com a madeira na forma em que ela se encontra para que não perca sua referência, exemplo das peças carcomidas por brocas4, onde de forma consciente busca explorar as fissuras deixadas por esses parasitas, sendo uma validação da história escrita contada por ele em suas obras/objetos, sua poética visual nos apresenta beleza natural da obra nos deixando sensibilizados quando entendemos sua história, conforme apresentado na figura 9. 4 Broca de madeira: Nome comum a todos os insetos, ou às suas larvas e lagartas, que corroem ou perfuram a madeira e outras coisas; bicho (FERREIRA, 1999, p. 109) 24 A escultura é um claro exemplo, no qual o processo criativo vai além do visível em um primeiro momento, isso porque é um objeto com volume, tridimensional, precisa ser observada de frente, de trás, de cima e se possível por baixo, explorando todos seus lados. Para apreciá-la temos que andar a sua volta, mas quando falamos em esculturas feitas em madeira natural, o olhar “exercido” sobre a peça pode ser diferente. Quando o artesão produz uma escultura, em seu processo de criação pesa tudo isso. Uma característica única da escultura é que ela pode ter volume, pode se esculpida e Figura 9. João Gomes. Baú textura natural. Acervo particular Figura 12. Figura 9. João Gomes. Detalhe de escultura. Vista de frente. Acervo particular Figura 11. João Gomes. Detalhe de escultura. Vista lateralmente. Acervo particular Figura 10. João Gomes. Detalhe de escultura. Vista da parte de trás. Acervo particular 25 apresentar vários relevos. A melhor forma de fruição é fecharmos os olhos e imaginar pelo tato sua forma, como ela é, sua textura, seus contornos e nuances. O processo criativo baseia-se também na incorporação de novos elementos aos objetos, de modo direto ou indireto, remetendo-nos à consciência da sustentabilidade, evidenciando-nos a importância dessas obras e nos fazendo refletir sobre preservação ambiental. Com um olhar intuitivo ele identifica rapidamente a melhor forma de explorar a matéria-prima. É dessa forma que encontra, em suas origens e própria história, a poética necessária para sua produção artística. Segundo Ostrower (1987), “Como processos intuitivos, os processos de criação interligam-se intimamente com o nosso ser sensível. [...] no âmbito conceitual ou intelectual, a criação se articula principalmente através da sensibilidade” (OSTROWER 1987, p.12). Não há obra de arte que revele totalmente o aspecto da natureza, e a escultura é um bom exemplo disso: mesmo ela ficando praticamente intocável, ela apenas nos revela um leve aspecto da realidade, pois teoricamente, assim como todas as folhas de uma árvore teriam que ser iguais e não o são, duas esculturas advindas de um mesmo galho nunca serão iguais e às vezes nem semelhantes. Segundo Munari, (1993) “Essa diversidade é o signo da vida vivida, as estruturas internas adaptam-se e dão vidas a inúmeras formas diferentes todas da mesma família, mas diferentes” (MUNARI, 1993, p.117). Dessa maneira, João desenvolve seu processo criativo, de acordo com o que vai garimpando, coletando e resgatando. Hoje em dia, ele trabalha com galhos, toras, raízes, costaneiras e pranchas que geralmente abre num processo bem artesanal. Trabalha também com pranchas de madeira manufaturadas. Acrescenta ainda outros materiais, tais como vidro, ferro, fibras e o que mais achar que possa se encaixar em seu trabalho. O artesão mantém parcerias com artistas, arquitetos, decoradores e designers que ao projetarem espaços rústicos ou orgânicos colocam suas peças artesanais. A funcionalidade de suas peças está ligada a tudo isso, porém nada tem um objetivo fechado, concreto, ou uma finalidade específica; o que ele prega é o conceito de reciclagem, fundamental em seu 26 processo de criação. Em sua arte, emprega a valorização de conceitos e a preservação das características da matéria-prima, cuidado que faz com que suas peças se mantenham com aspecto orgânico e natural. O que também chama atenção no trabalho do artesão João Gomes, é o fato de ser realizado em família, como no princípio quando o mestre-artesão tinha seus aprendizes. Em todo o processo, assim, como cada peça executada, é pensada por ele e transmitida aos demais, como se fosse uma engrenagem, cada um contribui um pouquinho até que a peça seja finalizada. Enquanto ele pensa, risca e esboça seu pensamento direto na madeira, seus filhos entram em sintonia com seu pensamento, e então um o ajuda a cortar, o outro a lixar e assim por diante. Podemos entender essa relação entre o artesão e a família com a chamada tradição, onde as experiências são transmitidas oralmente, de geração em geração. Segundo Ribeiro (1983) “Na sociedade contemporânea, será tradicional a expressão de uma experiência peculiar a dado grupo humano, coletivamente aceita e reconhecida [...] O homem-artesão no meio urbano e suburbano porta saber e fazer tradicionais, simbólicos de seu meio, igualmente” ( RIBEIRO, 1983, p.134). 27 2.2 Fases da Obra de João Gomes As obras do artesão têm vários segmentos. Toda a produção é validada, pensada e produzida de forma a satisfazer primeiramente seus padrões estabelecidos. Tudo deve ser recuperado, madeiras e outros materiais devem se conectar. Suas obras vão desde utilitários como mesas e poltronas, até gamelas, esculturas e painéis. De maneira intuitiva, produz de acordo com a demanda de material disponível e de encomenda de clientes. O estudo observou um amadurecimento na obra do artesão com o passar do tempo, porém, sua postura acerca de suas opiniões permanece quase de maneira intacta. Suas convicções mantêm-se inalteradas, porém seu trabalho sofreu e sofre modificações em termos estruturais e estéticos ficando mais limpo e natural. Segundo Laraia, (2001) [...] processo cumulativo e o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Por isso, ele se torna herdeiro desse processo que é proveniente de experiências adquiridas ao longo de muitas gerações que o antecederam, desenvolvendo a partir daí valores próprios. (LARAIA, 2001, p. 49). Um olhar de Gomes, através do tempo, entende que a preservação é o caminho a seguir. Valoriza a natureza como um todo, desde suas partes mais desgastadas pelo tempo a partes inutilizáveis a olhos comuns, mas perfeitas para ele, concebendo com seu trabalho manual e artesanal. O estudo da produção empírica do artesão João Gomes mantém um dialogo entre a incorporação do artesanato como objeto, material, poesia visual, criatividade e sustentabilidade, cerne da sua produção. A intenção é despertar a consciência e a percepção para a realidade atrelada à vivência de conhecimentos adquiridos ao longo de seu próprio desenvolvimento enquanto indivíduo. Podemos acompanhar essa transformação numa linha do tempo realizada pela pesquisadora numa leitura que não pretende ser niveladora, mas com uma interpretação pessoal, identificar as fases de mudança da obra do artesão João Gomes. 28 LINHA DO TEMPO: PROCESSO CRIATIVO – JOÃO GOMES ANO PEÇA DESCRIÇÃO 1988 Aparador e espelho. João Gomes. Fonte: acervo particular Matéria prima advinda de restos de obras, madeiras retas, restos de caibros e vigas, o reaproveitamento dava-se através de objetos comuns, sua criatividade esforçava-se para dar ao objeto/móvel certa poética. Ao fazer curvas e adornos, experimenta modificar a matéria na busca de deixa-la mais romântica, natural, com encaixes precisos busca explorar da melhor forma o que tinha em mãos. 1995 João Gomes. Detalhe de painel. Dragão Chinês, entalhado em baixo relevo; madeira de cedro rosa, peça em madeira maciça, 1996. Acervo particular. Seus entalhes ficam cada vez mais técnicos, mais profundos, seus temas mais complexos, tais como o Dragão que faz desse tema uma série de cinco painéis, modificando seus tamanho e posições. Com relevos em planos diferentes onde o observador consegue entrar na obra. A peça é composta de duas partes. 1997 Poltronas em galhos e raízes naturais, João Gomes. Acervo particular Nessa fase, as peças de João são produzidas com resíduos de madeiras retiradas do rio Tietê, um processo que desperta no artesão, sua capacidade de deixar orgânico seu material, ele percebe as características da madeira, e extrai delas sua beleza. Ele explora as curvas e texturas da madeira, valorizando suas cores e fissuras. 29 LINHA DO TEMPO: PROCESSO CRIATIVO – JOÃO GOMES ANO PEÇA DESCRIÇÃO 2000 Banco Meteoro. João Gomes. Fonte: acervo particular Banco ocado em madeira eucalipto, o artesão mantém e se apropria definitivamente as linhas e curvas orgânicas existentes na matéria prima. A partir desse período suas peças tornam se mais naturais, artísticos, sustentáveis. Utiliza para sua obra madeiras de descarte, troncos de madeiras desvitalizados, e toras caídas, interferindo o mínimo possível na forma natural que a madeira trás. 2008 João Gomes. Banco de tora peça em madeira maciça, 2005. Acervo particular. Utiliza um tronco para o encosto, explora dele toda a sinuosidade presente, ao encaixar os pés não esconde nada. Deixando a peça orgânica evidencia a madeira e seus veios naturais. Exemplifica-se pelo o banco ao lado, momento atual do qual vivencia o artesão. 2014 Banco CANOA, João Gomes. Acervo particular Sua capacidade de deixar orgânico seu material é transmitida através da história de cada peça ou madeira, João percebe e se apropria das características da madeira, e extrai delas sua beleza. Ele explora as curvas e texturas da madeira, valorizando suas cores e fissuras. 30 Desde o dia de sua vinda para Bauru, o artesão mantém e se apropria definitivamente de todas as características que a madeira pode lhe oferecer, destacando-se linhas e curvas orgânicas existentes na matéria-prima. A partir desse período, suas peças tornam-se mais naturais, artísticas, sustentáveis. Utilizando para suas obras madeiras de descarte, troncos desvitalizados, toras caídas, interferindo o mínimo possível na forma natural que a madeira traz. E utilizando outros tipos de materiais também, tais como couro, fibras, metais, pedras e o que mais o artesão se interessar. 31 3 CONTEXTOS ABORDADOS A PARTIR DA OBRA DE JOÃO GOMES Com base no estudo da obra de João Gomes, serão pontuadas quatro características principais que a compõem: a presença do artesanato; a relação do artesanato com a arte contemporânea; a importância da sustentabilidade; a busca da beleza no vínculo com o orgânico. Para compreender cada uma dessas características, faremos algumas abordagens, contextualizando-as. 3.1 Relação entre Artesanato, Arte Contemporânea e Tradição O termo “artesanato” no ocidente surgiu com o desenvolvimento das cidades e esta associado ao fazer manual de pessoas que desempenhavam atividades como a de tecelões, seleiros, arquitetos, ferreiros, carpinteiros, dentre outras. Tratava-se de um fazer cheio de significados e relacionado a atender as necessidades coletivas como manifestação da cultura local. Sobre este assunto Barroso (2001) argumenta: O surgimento da atividade artesanal no ocidente está associada ao desenvolvimento das cidades e ao aparecimento de atividades urbanas necessárias à vida em coletividade, tais como os padeiros, ferreiros, carpinteiros, marceneiros, tecelões, seleiros, arquitetos, entre outros. Somente a partir do século XVIII é que surgiram as primeiras corporações de ofícios com regras e regulamentos rígidos, definindo os limites e atribuições do trabalho artesanal.”. (BARROSO, 2001, p. 07) A partir do desenvolvimento das cidades, o trabalho artesanal foi se tornando industrial, modificando a produção social da agricultura para indústria em trabalhos artesanais manufatureiros, tais como a fiação e a tecelagem. O artesão sempre foi livre em seu processo de trabalho, onde desenvolvia seus conhecimentos e habilidades. O trabalho artesanal não era apenas uma atividade útil e prazerosa, mas trazia uma grande satisfação. Desta forma os artesãos aperfeiçoavam a cada dia sua técnica, conforme afirma Argan (2010): 32 Nos países capitalistas, de economia altamente competitiva, tem-se o fenômeno já mencionado: busca de um coeficiente de qualidade estética na conformação, apresentação e confecção de produtos; larga utilização de fatores estéticos para a difusão dos produtos e o incremento do consumo (ARGAN, 1992, p. 511) Barroso (2001) apresenta a ideia de que, com o desenvolvimento da indústria, o artesanato passa aos poucos a sofrer um processo, do que chama de marginalização social, representando uma decadência ao setor. Sem espaço nos centros urbanos, as atividades ligadas ao fazer manufaturado se mantém nas zonas mais afastadas, uma vez que, essas áreas não tinham acesso aos bens e serviços produzidos pela indústria. No Brasil, o artesanato surgiu principalmente de vertentes culturais europeias, indígenas e negro-africanas. E ao se especificar, na mesma obra, as contribuições dos indígenas e dos negros com uma maior predominância, os indígenas foram incorporando referências e técnicas trazidas pelos imigrantes, gerando assim uma grande diversidade no artesanato brasileiro. O processo de colonização que houve, gerou uma hostilidade duradoura na história dos povos nativos e afrodescendentes, a respeito do contexto do qual se encontravam. Estes negros eram obrigados pelo sistema colonial a abandonar sua identidade cultural e de confecção de artesanatos para aprender novas técnicas europeias, tornando-se, muitos deles, mestres de determinados ofícios e peças fundamentais que mantinham esta nova sociedade que se formava. [...] índios e negros foram forçados a aprender técnicas artesanais dos europeus, indistintamente. Muitos deles, demonstrando habilidades manuais, foram recrutados como aprendizes e tornaram-se mestres de ofícios (ZANINI, 1983, p.1040). Quanto ao artesanato indígena, este é uma das primeiras manifestações com valores artísticos e estéticos em terras brasileiras. Os objetos produzidos em sua maioria tinham perfil utilitário para uso cotidiano, com padronagens étnicas e formais, com uma estética fundamentada no prazer visual e na beleza. O artesanato fez e faz parte da cultura tradicional dos povos, que desde suas origens reconstituem a época pré-industrial. 33 Segundo Ribeiro (1983), antropóloga e etnóloga brasileira, autoridade em cultura material dos povos indígenas do Brasil, há não muito, o artista era igualmente artesão, não se vexando os maiores dentre eles de produzir objetos utilitários. Há o exemplo, conhecido, de Benevenuto Cellini: o saleiro que fez para o rei Francisco I é contemporâneo de seus melhores trabalhos artísticos. E tanto estes quanto aquele hoje se acham em museus: ambos são expressões belas da arte de um mesmo criador. Era o século XVI, e só na idade industrial se produziu a cisão definitiva entre beleza e utilidade. (RIBEIRO, 1983, p.135). A principal função do artesanato tradicional na sociedade contemporânea é por em elevo o valor de todo o artesanato produzido na sociedade atual. Em uma sociedade em constante mudança, onde a globalização influência no nosso dia a dia e traz o desejo individual de estar sempre em mudança. A relação do artesanato com a tradição segundo Ribeiro (1983), “[...] faz com que muitas vezes grupos sociais que tiram do artesanato seus meios de existência sejam catalogados como partes de uma sociedade tradicional que se define por oposição a uma sociedade moderna”. (RIBEIRO 1983, P. 49). Barroso contextualiza que, “O artesanato popular tradicional é majoritariamente baseado na produção familiar ou de pequenos grupos vizinhos, o que possibilita e favorece a continuação de técnicas, processos e desenhos originais, expressivos da cultura local e representativos de suas tradições”. (BARROSO, 2001, p. 27). O artesanato tradicional segue seu processo de produção, em geral, sem muitas mudanças, refletindo, às vezes sua organização social. Normalmente resume traços de uma cultura em particular, originária às vezes de outros países e que ao se afirmarem no território, preservam seus usos e costumes mais característicos. Seu valor cultural e sua importância ocorrem pelo fato de ser mantenedora de um passado, de cuidar para que não se percam as histórias transmitidas de geração em geração, fazendo parte complementar e intrínseca dos usos e costumes de um povo ou grupo social. Ribeiro (1983) nos esclarece que, “[...] questionar a palavra “tradicional”, que habitualmente se traduz como antigo, velho exponenciando a longa idade de um saber coletivo como dado distintivo do conceito”. (RIBEIRO, 1983, p.133) 34 É nesse contexto que surge a importância de entender as atividades que surgem do artesanato, e que ao se unir à arte e ao trabalho manual, transformam-se em uma nova referência como resposta às nossas necessidades. O Conjunto de atividades poéticas, musicais, plásticas e expressivas que configuram o modo de ser e de viver do povo de um lugar. Quanto às diferenciações entre arte popular e artesanato, Barroso (2001) salienta que: “A arte popular diferencia-se do artesanato a partir do propósito de ambas as atividades. Enquanto o artista tem profundo compromisso com a originalidade, para o artesão esta é uma situação meramente eventual”. (BARROSO, 2001. p 21) Artesanato popular5 no sentido dicionarizado é um adjetivo que indica “do próprio do povo, ou feito por ele”. Simpático ao povo. Entre os seus vários significados, o termo menciona aquilo que resulta da população e aquilo que abrange a maioria das pessoas. A transmissão de conhecimentos de modo acelerado, a grande quantidade de informações, as diversas realidades nas quais há vivencia do artesão, são fatos sociais contemporâneos, que dificultam a considerar apenas o saber consolidado ao longo dos anos. O trabalho do artesão pode contar com a participação ativa de toda a família, sua comunidade e igualmente seu mestre-artesão desenvolve um papel importante na sociedade e em sua comunidade, que é a de prestigiar e transmitir sua arte. De acordo com Ribeiro e Alvim. [...] a importância do homem perante os membros de seu subsistema: o valor vem da auto-aceitação, da autovalorização. As comunidades respeitam seus mestres-artesãos [...] o trabalho se faz uma dignidade, e se transforma em arte. (RIBEIRO, apud ALVIM, et al., 1983, p. 138). João Gomes traz traços de sua cultura nos objetos que reproduz. São várias de suas tradições, tais como símbolos mágicos e crenças, que ficam marcadas em suas peças, favorecendo para que sua cultura, sua arte e seu artesanato tornem-se popular conscientemente ou não. Para Barroso (2001), o artista tem que dominar matéria assim como o artesão, [...] A obra de arte é peça única, tomada como referência (arquétipo) a ser reproduzida como artesanato. (BARROSO, 2001, p. 25) 5 Popular, do próprio do povo, ou feito por ele. Minidicionário da língua portuguesa 2001, p.554. 35 O artesanato é considerado como uma técnica de trabalho manual não industrializado, realizado por um artesão6, sem vínculo à produção em série, cuja finalidade pode ser tanto utilitária quanto artística. O conceito de artesanato descrito por Borges (2011), e dotado como definição de artesanato tratado pela UNESCO em 1997 nos diz que, Produtos artesanais são aqueles confeccionados por artesões, seja totalmente a mão, com o uso de ferramentas ou até mesmo por meios mecânicos, desde que a contribuição direta manual do artesão permaneça como o componente mais substancial do produto acabado. (BORGES, 2011, p. 21) No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, por exemplo, artesanal é: “adj. 2 g.”. Relativo à, ou próprio de artesão1, ou artesanato: obra artesanal.” Entende-se como atividade artesanal essencialmente um trabalho individual “embora a produção de alguns objetos possa exigir a intervenção de várias pessoas durante sua confecção” (Barroso 2001) E nem tudo que é feito manualmente pode ser considerado artesanato. Pois o homem produz diversos produtos que não se pode interpretar como artesanato. Podemos compreender como artesanato toda atividade produtiva de objetos e artefatos realizados manualmente, ou com a utilização de meios tradicionais ou rudimentares, com habilidade, destreza, apuro técnico, engenho e arte. (BARROSO. 2001. p3) A palavra “obra de arte” tem um sentido dicionarizado como: 1. Obra produzida segundo o conceito de arte, especialmente a que é tida de boa qualidade. 2. Objeto executado com perfeição, acabamento, gosto, senso estético. Considerando que arte e obra de arte são imputações culturais, geralmente divergentes e contrárias, e repetidas vezes se esperam exclusivas à sociedade, são capazes de adaptarem-se a algumas produções da Cultura, em que se vive como Arte. Segundo Coli (1981) 6 Artesão: [Do it. artigiano.] S.m. 1. Artista (4) que exerce uma atividade produtiva de caráter individual. 2. Indivíduo que exerce por conta própria uma arte, um ofício manual. [Fem.: artesã; pl.: artesãos]. (FERREIRA, 1999) 36 Para decidir o que é ou não arte, nossa cultura possui vários instrumentos específicos. Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, ao qual reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que proferem o crítico, o historiador da arte, o perito, o conservado de museu. São eles que conferem o estatuto da arte a um objeto. (COLI, 1981, p. 10.11) Para Coli (1981) “Dizer o que seja arte é coisa difícil [...]. Tantas e tão diferentes são as concepções sobre a natureza da arte”. (COLI, 1981, p. 7). O regulamento da arte não parte de uma significação abstrata, lógica ou teórica do conceito, mas de imputações feitas por instrumentos de nossa cultura, exaltando os objetos sobre o qual ela ocorre. “Nossa cultura prevê locais específicos onde a arte pode manifestar-se, quer dizer locais que também dão estatuto de arte a um objeto. [...] o estatuto da arte não parte de uma definição abstrata, lógica ou teórica, do conceito, mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura, dignificando os objetos sobre o qual ela recai” (COLI, 1981, p. 11). Se atentarmos ao fato de que toda arte vem de uma produção acompanhada de regras, entenderemos que a mimese não é a cópia de um modelo. Segundo Cauquelin [...] A arte é, então uma disposição (póiesis) acompanhada de regras. Produzir é “trazer à existência uma das coisas que são suscetíveis de ser ou não ser e cujo princípio de existência reside no artista”. (CAUQUELIN, 2005, p. 59) A compreensão numa perspectiva cultural da produção do trabalho artesanal requer um conhecimento, principalmente na realidade que lhe dá origem, para identificar lado a lado o processo de criação e suas mudanças; o porquê da dependência da realidade social. A primeira seria se há interação do artesanato tradicional com o artesanato urbano. Para Laraia, uma vez que o homem reflete o meio cultural em que foi socializado. [...] Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. (LARAIA, 2001, p. 24) O que se presencia atualmente é que ocorre uma revalorização, um resgate da tradicionalização do artesanato brasileiro, com artesões com visibilidade e ateliês abertos ao público. Existe na atualidade um estreitamento entre o artesão e o design, mantendo assim 37 uma interlocução e uma interação total entre arte, artesanato, sustentabilidade, arquitetura e moda juntamente a outras áreas. O artesanato, com finalidade comercial, representou a centralização e a divisão do trabalho, aumentando o rendimento e intensificando a produção. Atualmente, o artesanato esta na disputa por seu lugar ao sol, como arte, não apenas artesanato. Esta tendência pode ser verificada nas peças de Marta Medeiros7: encontramos em seus vestidos de alta costura a pureza das rendas artesanais, são incluídas peças artesanais tais como renda renascença, rendas de bilros, etc.; e nas obras de arte contemporâneas aonde o artesanato vem contribuído e crescendo de forma significativa. 7 Martha Medeiros é est ili sta , apaixonada pelo tra diciona l artesanato brasil eiro faz da renda fei ta à mão sua matér ia primordial , o uso da r enda produzida exclusiva mente para sua marca, por art esãs de comunidades do Nordeste do Bra sil , trabalha hoje em dia com mais de 450 mulheres . http://www.marthamedeiros.com.br /martha - medeiros/ acesso em 08/02/2017. Figura 13. João Gomes. Detalhe hall de entrada, SESI Bauru. Acervo particular. 2004 38 3.2 A importância da sustentabilidade na obra do artesão Com o respeito ao meio ambiente, o artesanato de maneira geral fortalece os vínculos entre os membros de uma comunidade, estabelecendo um modo de geração de renda consciente. Esse momento atual é considerado um momento de revalorização do homem como criador, sendo o artesanato sustentável o responsável por restabelecer elos entre o homem e a natureza. Assim também é João Gomes, um homem que vê nos recursos naturais uma potencialidade poética que o inspira em suas criações, como forma de se reconectar a natureza estabelecendo diálogos com as questões sustentáveis e devolvendo estes materiais ao mercado, como produtos alternativos com identidade singular. É preciso estimular o trabalho artesanal de maneira consciente, tanto do ponto de vista ecológico, com o emprego de técnicas, materiais e instrumentos que respeitem o meio- ambiente, e de modo cultural, com incentivo aos processos que motivem, conservem e valorizem o conhecimento do grupo, sua história e sua identidade. Essas duas exigências, Figura 14. Monte de costaneira, resíduo descartado em serraria. Acervo Pessoal.2015 39 nos levam a uma terceira, que é a valorização do papel social do artesanato. Segundo Borges (2011) “Se a contemporaneidade diluiu as fronteiras entre áreas do conhecimento e atividades em geral, o fez ainda naquelas que, por natureza, têm múltiplas facetas, como o artesanato.” (BORGES, 2011, p. 26) No princípio de forma intuitiva, porém persistente e amparado com os parcos recursos econômicos e de ferramentas a qual dispunha, cavou novas possibilidades no trato com a madeira. Ao longo do tempo, essa profunda relação “Homem, Matéria e Criação” foi se constituindo e se firmando em uma trajetória coerente com um discurso criativo afinado com os caminhos propostos pela contemporaneidade, quanto à sustentabilidade e a um modo de vida que busca o equilíbrio e equanimidade. O artesanato sustentável propõe reflexão, com objetivos ambientais e econômicos, gerando um aumento do bem-estar social, propondo maior valor de responsabilidade, afim de não prejudicar o equilíbrio ambiental atual e garantir este equilíbrio as gerações futuras. Na visão de João Gomes o desperdício de madeira começa exatamente na hora da derrubada, pois para as serrarias, a parte importante da árvore é seu tronco sarado, livre de galhos e fissuras. Quando pensamos em sustentabilidade seguimos pelo princípio que Manzini e Vezzoli (2002), afirmam que cada pessoa tem direito ao mesmo espaço ambiental. O espaço ambiental é a quantidade de energia, água, território e matéria-prima não renováveis que pode ser usados de maneira sustentável. Indica quanto uma pessoa, uma nação ou um continente dispõe para viver, produzir e consumir sem superar os limites da sustentabilidade. (MANZINI &VEZZOLI, 2002, p. 28) Gomes ao transformar esta matéria-prima em uma peça de artesanato, preservando suas formas e detalhes faz de sua atividade artesanal e artística ser vista como muito particular Borges (2011) cita que, A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas características distintas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas, criativas, de caráter cultural e simbólicas e significativas do ponto de vista social. (BORGES, 2011, p. 21) 40 João Gomes coleta toras, galhos e raízes, resíduos que são levados a seu ateliê. Além do conceito de reciclagem, fundamental no processo de criação dos móveis e objetos, sua arte emprega a valorização e preservação das características da matéria prima. Este cuidado faz com que até mesmo os produtos utilizados nas etapas de acabamento sejam na medida do possível, naturais. A distribuição do produto e seu uso também são preocupações que povoam a mente desse profissional, assim como o seu descarte, pois uma vez que seu objeto é bem orgânico s ele pode voltar para o meio natural do qual era antes. Em cada uma dessas etapas, há um cuidado com os impactos ambientais produtos possam ser gerados. De maneira inconsciente e intuitiva percebe-se no artesão um olhar preocupado em ser ecológico e sustentável. Segundo Kazazian (2005) [...] a interdependência é um precioso revelador de sentido e direção, que se trate da biosfera ou de organizações humanas: qualquer fenômeno repercute no conjunto, que, por sua vez, mais ou menos tarde e de forma mais ou menos intensa, acaba repercutindo na fonte do fenômeno (KAZAZIAN, 2005, p. 34 a 35) O que nos leva a compreender é que tudo está conectado, não se pode desprezar os aspectos sociais envolvidos na produção de produtos. Não basta estudar novas tecnologias que impactem menos o meio ambiente, é necessário estudar as pessoas envolvidas no ciclo de vida do produto. O seu estudo mostra como essas pessoas estão em interdependência, onde cada decisão individual pode impactar no coletivo. Ou seja, além dos aspectos já considerados tradicionalmente, os aspectos ambientais, sociais e econômicos são tão importantes quantos todos os outros. Um móvel ou uma escultura concebida ou realizada através de madeira de descarte torna-se orgânica naturalmente, através do processo de resgate pelo qual passou a peça. Uma vez que o que era lixo pode ser transformado em luxo, e assim é criada e executada de tal modo como na natureza, respeitando suas formas de maneira geral, ela cresce e se desenvolve segundo sua estrutura particular, resultando o objeto no limite das suas condições ambientais, agregando valores. Segundo Barroso (2001) 41 “O principal valor agregado de um produto resultante de uma atividade manual é o tempo e a paciência empregadas em sua confecção, sendo irrelevante ou secundário seu valor cultural. (BARROSO, 2001, p. 4). O desenvolvimento sustentável em nossa sociedade atual agrega temas complexos como a degradação ambiental, as mudanças climáticas e a diminuição drástica da biodiversidade, levando-nos a pensar na maneira como o homem habita, produz e descarta no meio em que vive. A conscientização sobre os problemas ambientais nos leva a reorientação de novos comportamentos sociais. De acordo com Manzini e Vezzoli (2002) A conscientização acerca do problema ambiental seguiu um percurso que vai do tratamento da poluição à interferência nos processos que geram tal poluição, ao redesenho dos produtos num processo que se faz necessário. (MANZINI &VEZZOLI, 2002, p. 19) Incorporando novos elementos a seus objetos, de modo direto ou indireto, e remetendo-nos à consciência da sustentabilidade, Gomes coloca em evidencia a importância de suas obras, fazendo- nos refletir sobre preservação ambiental. Gerando dessa forma o “artesanato sustentável”, ressaltando que historicamente essas práticas dos artesãos estão ligadas ao reaproveitamento de materiais locais, da reciclagem como um todo, Segundo Borges (2011) “muito antes que essas noções estivessem difundidas na sociedade como um todo. Pela proximidade entre a coleta da matéria-prima- seja ela natural, seja resultante de resíduos” (BORGES, 2011, p.217). Atualmente, sua produção artesanal está em sintonia com a noção contemporânea de sustentabilidade, em que se divide em quatro pilares. São esses: conceitos de ambientais responsáveis, socialmente justos e economicamente inclusivos, e de desenvolvimento sustentável. De acordo com Borges (2011), esses conceitos juntos geram a diversidade cultural. O artesanato sustentável propõe uma reflexão com objetivos ambientais e econômicos, gerando um aumento do bem-estar social. Propondo maior valor de responsabilidade, a fim 42 de não prejudicar o equilíbrio ambiental atual e garantir este equilíbrio às gerações futuras, levando-nos a pensar, num primeiro momento, na maneira como construímos nossa sociedade pautada no consumo, a produção a partir do esgotamento dos recursos naturais e o descarte de resíduos de forma inadequada. Para Manzini e Vezzoli (2002) O próprio tema da sustentabilidade é o primeiro dos novos valores universais em potencial. E nos propõe, de fato, o valor da responsabilidade nos confrontos das gerações futuras e, consequentemente, o objetivo de não prejudicar os equilíbrios ambientais em que a nossa vida e a esperança futura de vida na terra baseiam. (MANZINI &VEZZOLI, 2002, p. 57) O termo eco compreende de modo geral uma predisposição, que visa considerar todos os aspectos de impacto referentes ao meio ambiente. Temos, por outro lado a dilatação da problemática ambiental e a sua inclinação da problemática em questão. Termos como ecologia 8 possuem várias conexões, tais como a escolha de materiais de baixo impacto ambiental e menos poluente, produção sustentável ou resíduo reciclado, que podem ser novamente usados com outras funções. 8 Ecologia: sf. Biol. Estudo das relações entre os seres vivos e o meio onde vivem, bem como de suas recíprocas influências. (FERREIRA, 1999, p. 249). 43 3.3 Formas e beleza a partir do orgânico João ao destacar a beleza do objeto único artesanal, a qualidade e o conforto das peças produzidas, nos pede para atentarmos a sua forma. O reconhecimento de valores culturais nos processos criativos é uma forma de perceber a arte como uma referência, contextualizando ideias, a partir de matérias-primas cedidas pela natureza. Essa compreensão, numa perspectiva cultural da produção do artesanato requer uma noção, principalmente na realidade que lhe dá origem, para identificar através do processo de criação e suas mudanças, o porquê da dependência da realidade cultural, Ostrower (1987) define que cultura; [...] são as formas materiais e espirituais com que os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e cuja experiência coletiva pode ser transmitida através de vias simbólicas para a geração seguinte. (OSTROWER, 1987, p. 13) Figura 15. João Gomes. Mesa de jantar, 1/2 tora. Acervo particular 44 As matérias-primas com que João se propõe a transformar - no caso a madeira em especial - possuem uma forma pré-estabelecida, pronta, mas que nem sempre consegue suprir sozinhas as necessidades que o artesão define, e nesse momento ele precisa agir com sensibilidade, para que a forma permaneça inalterada, porem com características também do artesão. As texturas, assim como a forma, são fortes características exploradas nas obras. A sensação que ela provoca no espectador, gera sensações diversas. A sensibilidade com que o artesão se apropria disso a seu favor, faz que ela seja enriquecedora, demonstrando sua sensibilidade ao recuperar e imortalizar uma matéria-prima com textura estranha num primeiro momento. A sensação ao tocar um objeto como esse é inimaginável e depende da sensibilidade de quem irá tocar ou acariciar o objeto ou peça em questão. Dondis (1997) nos esclarece que A textura é o elemento visual que com frequência serve de substituto para as qualidades de outro sentido, o tato. Na verdade, porém, podemos apreciar e reconhecer a textura tanto através do tato quanto da visão, ou ainda mediante uma combinação de ambos. É possível que uma textura não apresente qualidades táteis, mas apenas óticas, como no caso das linhas de uma página impressa, dos padrões de um determinado tecido ou dos traços superpostos de um esboço. (DONDIS, 1997, p. 70-71) Figura 16. João Gomes. Baú textura natural. Acervo particular 2012. 45 As formas sinuosas intrigam a imaginação, de como seria o material antes da intervenção do homem, e do próprio artesão, qual seria as outras possibilidades de uso. Segundo Ostrower (1987) [...] ao formularmos a ideia de imaginação criativa, vinculamos a especificidade de uma matéria, de ser uma imaginação especifica. Haveria uma imaginação artística, uma imaginação cientifica, tecnológica, artesanal, e assim por diante. (OSTROWER, 1987, p. 32) As propostas envolvem possibilidades reais, existentes na madeira, que tendem a ser adequadas para cada tipo de acabamento, a resistência que pode surgir no momento do fazer, como destacar uma fissura que não era visível. Essas são questões que devem ser imaginadas para um fazer concreto. Para Ostrower (1987) A forma é o modo por que se relacionam os fenômenos, é o modo como se configuram certas relações dentro de um contexto [...] a forma é estrutura e ordenação, todo fazer abrange a forma em seu “como fazer”. Para nós não há, nem o existir em si, que não tenha uma medida de ordenação. (OSTROWER, 1987, p. 79) O artesanato pode ter uma intenção desde estética, por exemplo, num quadro decorativo; ritual, tal como uma máscara utilitária como um banco ou uma mesa. A sua elaboração ajusta com a arte. Coli (1981). Diz que ”É possível dizer, então, que arte é certas manifestações da atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo”. (COLI, 1981, p. 8) Para um bom resultado estético, a forma das coisas que conta e corresponde, ao conteúdo significativo das coisas. Para Pareyson, (1997) [...] arte e utilidade, beleza e funcionalidade nascem juntas, inseparáveis e coossenciais, e a mesma arte que desempenha uma função utilitária, e a própria finalidade econômica transparece de uma pura forma. (PAREYSON, 1997, p. 54) 46 Observamos que quando João Gomes pensa em resultado estético, seu conceito visualiza beleza e harmonia, numa percepção geradora de prazer, uma tradução de seu estado de equilíbrio que teve ao realizar a obra. Para Pareysson (1997) [...] quem quiser penetrar no significado de uma imagem artística deve dar se conta de seu intento de fidelização, ou de deformação [...] somente aprofundando esta referência poder-se á penetrar no mundo de uma obra de arte. (PAREYSON, 1997, p. 79) Suas formas orgânicas são capazes de passar uma sensação tátil, através da incorporação de suas técnicas artesanais, tal como uma experiência enriquecedora, como se ao tocar ou olhar seus trabalhos, automaticamente gerasse um resgate de uma lembrança ou memória esquecida. Colocada sob o signo da arte, o indivíduo se torna vontade e iniciativa, assumindo inteiramente uma direção artística, trás para si uma disposição formal, para Pareysson (1997) [...] tornando-se seu ato, ou seu melhor, gesto: a pessoa torna-se gesto do fazer, modo de formar, estilo [...] se a arte não tem outro conteúdo que não a própria pessoa [...] bem se pode dizer que a obra, a que o processo artístico leva a cabo, é a própria pessoa do artista encarnada completamente num objeto fisico e real, que é, justamente, a obra (PAREYSON, 1997, p. 107) Para João, arte é a possibilidade de produzir um objeto novo, com significados e expressão, e que quando exposto como obra de arte, possa expressar à cultura, a estética, e que coloque a prova a consciência humana. Figura 17. Banco de tronco de eucalipto. Acervo particular 47 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O desenvolvimento do olhar, sobre a incorporação do artesanato na contemporaneidade, como elemento aglutinante da história de conteúdos da cultura brasileira pode, a princípio, parecer desconectado com a realidade sustentável no qual a humanidade se encontra. No entanto, ao se deslocar o olhar para o histórico da arte no Brasil, verifica-se que o artesanato sempre esteve presente. Produzindo principalmente pelas camadas populares como forma de manifestação artística pautada nas tradições manuais das culturas que são parte da civilização brasileira, tornou-se um dos principais influenciadores. Tornando-se o principal influenciador de cuja poética se entrelaça com a vivência de saberes. Sua reflexão tendo como enfoque o fazer artesanal, realmente se mostra ligada quanto às questões voltadas ao desenvolvimento sustentável em nossa sociedade e degradação ambiental, assim como na utilização de resíduos de árvores e galhos caídos nos espaços urbanos ou no campo. Seu trabalho preocupa-se em como a arte se apropria desses elementos para se manifestar, sendo uma materialidade potencial e contemporânea ligada às questões ecológicas em âmbito global. Sua produção utiliza resíduos variados, sua parceria com a Secretaria do Meio Ambiente de Bauru, sustenta sua proposta de sustentabilidade ambiental. Durante a pesquisa foi possível entender a história de vida de João Gomes vinculada ao fazer artesanal, e compreendemos como ele enquanto artesão tradicional aplica e transmite, em seu trabalho, valores, técnicas, e signos amadurecidos e benquistos na sociedade a que pertence. Também percebemos o quanto a sua compreensão acerca dos problemas ambientais reflete em sua criação, desde o momento em que resgata a matérias-primas ate a finalização de sua obra, de forma. Compreendemos João Gomes como um artista dinâmico, ligado com as questões de seu tempo, com um discurso politicamente correto quanto às questões ambientais aplicando essa postura em sua pratica cotidiana enquanto artesão e artista. Com intenso conhecimento do meio em que se encontra, e com intimidade e domínio sobre os materiais que esse meio oferece, transforma com propriedade essa matéria-prima em objetos artesanais, testemunhando em sua obra o próprio meio em que se encontra. Nesta perspectiva, seu papel é significante para o desenvolvimento sustentável de sua arte, por sua visão sensível as questões ambientais e por sua apropriação de resíduos 48 orgânicos transformando-os em objetos funcionais e estéticos, adaptados a sua proposta artística. João Gomes entende que nos resíduos de madeira, seja ela qual for o leva a ver além de sua beleza e suas qualidades, variedades de texturas, formas e tonalidades distintas. E que a natureza nos proporciona ótimos resultados na mescla entre a rusticidade da madeira e o requinte dos objetos utilitários e/ou estéticos dentro de uma visão mais contemporânea. Mostra disso é que realizará, mês de março de 2017, uma exposição de suas obras, feitas a partir de seu olhar sobre as questões da perspectiva de sustentabilidade, na Pinacoteca Municipal “Casa Ponce”, onde trará uma reflexão sobre as artes visuais e o meio ambiente toda a poética de suas obras. “Alinhavos, madeira, linha e poesia”. Este trabalho serviu para que eu pudesse entender melhor essas relações dentro do trabalho, de João Gomes uma vez que me encontro inserida dentro de todo este processo. Sob ótica da obra de João Gomes, podemos concluir que as artes visuais e o artesanato tem sua parcela significativa de contribuição para o desenvolvimento sustentável. Isso porque estas através de suas características estéticas, utilitárias e funcionais, podem apontar soluções e influenciar novas visões de mundo. 49 5 REFERÊNCIAS ARGAN, C. G. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BARROSO, E. N. O que é Artesanato. Rio de Janeiro: Editora Record, v. Modulo 1, 2001. BORGES, A. Design+Artesanato: O Caminho Brasileiro. São Paulo: Ed. Terceiro Nome, 2011. CAUQUELIN, A. Arte Contemporânea: Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CAUQUELIN, A. Teorias das Artes. São Paulo: Martins fontes, 2005. CHIARELLI, T. Arte Internacional Brasileira. 2ª ed. ed. São Paulo: Lemos Editorial, 1999. COLI, J. O Que É Arte. 3ª Edição. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. DONDIS, D. A. A Sintaxe Da Linguagem Visual. 2. ed. ed. 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