unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP JASSYARA CONRADO LIRA DA FONSECA IMAGENS DA DIFERENÇA: o espaço em The Great Gatsby Araraquara – SP 2012 JASSYARA CONRADO LIRA DA FONSECA IMAGENS DA DIFERENÇA: o espaço em The Great Gatsby Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Câmpus de Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários Orientador: Prof. Dr. Márcio Thamos Linha de Pesquisa: Relações Intersemióticas Bolsa: CNPq Araraquara - SP 2012 JASSYARA CONRADO LIRA DA FONSECA IMAGENS DA DIFERENÇA: o espaço em The great Gatsby Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Câmpus de Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários Orientador: Prof. Dr. Márcio Thamos Linha de Pesquisa: Relações Intersemióticas Bolsa: CNPq Data de aprovação: 25/05/2012 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Márcio Thamos UNESP/FCL/Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta UNESP/IBILCE/São José do Rio Preto Membro Titular: Prof. Dr. Ricardo Maria dos Santos UNESP/FCL/Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À Luísa e Nina, pela doce curiosidade com que sondaram este trabalho. Agradecimentos A Deus, que sempre me livra das mais profundas angústias. À minha mãe Suely, por ter me assegurado, com liberdade, respeito, e bom senso, em todas as minhas escolhas. E a quem eu devo as mais importantes lições. À minha irmã Janaína por ser muito mais do que uma generosa irmã mais velha, por ser também minha inseparável e mais fiel amiga. E ao meu cunhado Gerson que me acolheu em sua casa com enorme carinho e cujo interesse por meus projetos me comove sinceramente. Ao meu irmão Flávio que sempre incentivou meus sonhos e desejos, tanto me influenciou e mesmo estando longe, esteve constantemente presente. E à minha cunhadinha Carolina, que ao lado dele, torce por mim. À Rose, cujo tempero e cuidado tantas vezes me valeram o dia. Aos meus tios Raul e Sônia, pela torcida e constante incentivo. E a todos os meus primos, pelas afinidades que nos unem e pelas diferenças que nos divertem. Aos meus amigos Ricardo, Michele e Beatriz, pelo enorme privilégio de tê-los ao meu lado. À Magda, William, Flávia, Guilherme, Rodrigo, Karina e Miguel, que se tornaram a minha família em Araraquara. Ao Brunno por suas entusiasmadas leituras e, principalmente, pela forma paciente e carinhosa com que me acompanha na fase final desta pesquisa. Aos professores Luiz Gonzaga Marchezan, Ricardo dos Santos e Sérgio Motta que integraram a banca de qualificação e/ou defesa e contribuíram para este trabalho com uma leitura atenta e experiente. Ao CNPq pelo apoio financeiro concedido à pesquisa desde outubro de 2010. Por último, mas muito especialmente, ao meu querido orientador, Márcio Thamos, por ter aceito com paciência meus limites, ter me dado valorosos exemplos profissionais e por me ajudar a descobrir novos interesses e possibilidades. Desolado! a palavra soa como um dobre, Tangendo-me de ti de volta à solidão! Adeus! A fantasia é véu que não encobre Tanto como se diz, duende da ilusão. Adeus! Adeus! Teu salmo agora tristemente Vai-se perder no campo, e além, no rio silente, Nas faldas da montanha, até ser sepultado Sob o vale deserto: Foi só uma visão ou um sonho acordado? A música se foi – durmo ou estou desperto? (Ode ao rouxinol, John Keats) Resumo O romance The Great Gatsby pode ser visto como uma crônica da década de 1920, por contar com diversas marcas desse momento da história norte-americana. Francis Scott Fitzgerald, seu autor, é considerado o porta-voz dessa geração. Uma geração que passava por transformações drásticas na economia e na sociedade, causadas por uma guerra recém-terminada. Para aqueles afetados diretamente pela crise, esse período foi de extrema privação. Para outros, como Jay Gatsby, o protagonista do romance, esse momento histórico possibilitou um acúmulo vertiginoso de riquezas. A composição das personagens e dos cenários que as separam na história é diretamente influenciada por esses efeitos do pós-guerra. Nessa atmosfera, o narrador Nick Carraway, a única personagem que transita por todos os espaços, desenvolve sua história. A proposta deste estudo foi analisar os espaços que o leitor apreende pela narrativa de Nick, divididos em dois grandes grupos: público e privado. Uma vez que a espacialização é fundamental para apreciação da obra, por também refletir as personagens, foram buscadas imagens que apresentassem a estratificação da sociedade e que fossem observáveis na superfície da narrativa ou de maneira mais profunda e simbólica. As análises ressaltaram questões sobre espaço/ambientação, respaldadas em leituras de Bachelard e Osman Lins, bem como guiou-se nos conceitos de carnavalização propostos por Bakhtin para o estudo comparado das personagens Gatsby e Trimalquião. Palavras-chave: Literatura americana; espaço; ambientação; década de 1920. Abstract The novel The Great Gatsby can be seen as a chronicle of the 1920s, by narrating on various aspects of this moment in American history. And Francis Scott Fitzgerald, its author, is considered the spokesperson of this generation. A generation that was undergoing drastic transformations in the economy and society, caused by a war recently ended. For those affected directly by the crisis this time was of extreme deprivation. For others, like the protagonist of the novel, this historic moment caused a dizzying accumulation of wealth. The composition of characters and the scenarios that separate them respond to these post war effects. In such atmosphere the narrator, Nick Carraway, the only character who transits for all the spaces, develops his story. This study proposal was the analysis of the spaces the reader grasps by the narrative of Nick, spaces divided into two large groups: public and private. Whereas spatialization is fundamental for appraising the piece, once it reflects the characters, this research has sought for images which present the stratification of society, observable on the surface of the narrative or in a deeper symbolic way. The analyses emphasized the aspects about space/ambiance, assured in readings of Bachelard and Osman Lins and it also was guided by carnavalization concepts proposed by Bakhtin for the comparative studies of Gatsby and Trimalchio characters. Keywords: North America literature; space; ambiance; the 1920s. Lista de imagens Figura 1 – There´s no way like the American way (1937) 17 Figura 2 – Mapa da região de Long Island (1917) 57 SUMÁRIO 1 Introdução 12 1.1 Fitzgerald e a Era do Jazz 14 1.2 The Great Gatsby e a década de 1920 16 1.3 A análise dos espaços em The Great Gatsby 18 2. Fundamentos teóricos para a análise de The Great Gatsby 21 2.1 Um estudo sobre o espaço literário 21 2.2 Conceitos importantes 22 2.2.1 Espaço e ambientação 23 2.2.2 Espaço Psicológico 25 2.2.3 Atmosfera 26 2.2.4 Carnavalização 28 2.3 A atmosfera nas casas em The Great Gatsby 30 3. Nick Carraway em seus caminhos por Long Island 33 3.1 A narração de Nick Carraway 33 3.2 O percurso espacial de Nick Carraway 41 3.2.1 Nick Carraway é recebido em East Egg 43 3.2.2 The Ashes Valley e Myrtle Wilson 45 3.2.3 West Egg ao lado de Jay Gatsby 46 3.2.4 Quando East e West Egg se misturam 47 4. A geografia em The Great Gatsby 55 4.1 As marcas da diferença 58 4.1.1 Nova York 60 4.2.2 East Egg 62 4.2.3 O caminho do meio 67 4.2.4 West Egg 70 5. Imagens da intimidade 76 5.1 A importância das casas na criação dos espaços íntimos 76 5.2 Imagens particulares da intimidade 80 5.2.1 Daisy e Tom Buchana: o casarão em East Egg 81 5.2.2. Myrtle Wilson e Tom Buchanan: o apartamento em Nova York 87 5.2.3 A oficina de George Wilson e the valley of ashes 90 5.2.4 Nick Carraway: a pequena casa vizinha à mansão Gatsby 93 5.2.5 A colossal mansão de Jay Gatsby 96 6 Trimalchio: a primeira versão de The Great Gatsby 111 6.1 Petrônio e Satíricon 112 6.2 A aproximação entre The Great Gatsby e “O Banquete de Trimalquião” 114 6.2.1 A festa como tema em The Great Gatsby 114 6.2.2. Tempo e espaço 116 6.2.3 – Trimalquião e Gatsby 118 6.3. Espaços Carnavalizados 122 6.3.1. As festas de Gatsby e “O Banquete de Trimalquião” 122 6.4. A morte dos anfitriões 130 7. Considerações finais 133 8. Referências Bibliográficas 137 1. Introdução Eis aqui uma nova geração que, ao tornar-se adulta, encontrou todos os Deuses mortos, todas as guerras terminadas, toda a fé do homem abalada. (Fitzgerald em Este Lado do Paraíso, 2004). A efervescência dos anos 1920 testemunha a história de Jay Gatsby. Um mundo preenchido por excentricidades e extravagâncias em que viveu esse exemplar representante da “Era do Jazz”. Um homem que para recuperar o amor de sua namorada da juventude, dedica cinco anos de sua vida a fazer fortuna, o que acreditava necessário para reconquistar Daisy. Nunca chegando a desistir, nem mesmo quando ela se casa, nem mesmo quando percebe que a mulher com quem sonhou por tanto tempo jamais existiu. A capacidade de Gatsby de manter, ingenuamente, uma ilusão em relação à perfeição de Daisy alimenta sua busca obstinada e, por fim, autodestrutiva, para retomar esse romance. O livro que rendeu mais fama a Francis Scott Fitzgerald – The Great Gatsby – revela-nos a frenética vida levada pelos americanos de Long Island na década em questão. Os anos 20 foram marcados por características muito específicas, facilmente observáveis na moda, nas danças, tipos de comida e bebida e, principalmente, na música. A década de 20 ficou conhecida, nos Estados Unidos, como a “Era do Jazz”, e a cadência que regia o estilo de vida dessa geração assemelhou-se muito ao ritmo ouvido e dançado nos salões de baile. Fitzgerald conquistou a imaginação e o gosto da época a que ele tão bem representou, mas se tivesse apenas descrito os anos 20 − e mesmo que o tivesse feito com maestria − sua obra teria ficado presa à década. Erza Pound escreve em seu “ABC da Literatura” a respeito dos clássicos: “Ele é um clássico devido a uma certa juventude eterna e irreprimível”. (2001, p.22) Essa característica pode ser atribuída a The Great Gatsby, pois esse é um romance que não envelhece, e o ar jovial que consegue manter garante-lhe a boa aceitação dos mais variados públicos, nas mais variadas épocas. Tal momento histórico – ou podemos considerar da mesma forma toda a década de 1920 – foi uma época onde indulgência, despreocupação e irresponsabilidade marcaram o estilo de vida das pessoas, em especial dos jovens. Contraditoriamente, esse período também ficou conhecido como a Era das Proibições, devido à Lei Seca1, essa proibição justifica a ênfase dada ao assunto no romance. A era também assistiu ao culto 1 Proibição nacional da venda de álcool instituída por meio da 18ª Emenda à Constituição dos EUA, proposta pelo Senado em 18 de dezembro de 1917 e revogada em 5 de janeiro de 1933. ao dólar e ao poder, para uma enorme maioria, o homem valia aquilo que possuía, seus bens eram a medida de seu êxito e a população americana idolatrava o êxito. De forma geral a sociedade se escandalizava com as novas liberdades concedidas, em especial às mulheres. As tradições religiosas e culturais, o apego a um tradicional nome de família ainda tinham importância para grande parte da sociedade. Mas em cidades mais avançadas econômica e culturalmente, muitos desses costumes haviam mudado, e em busca de prazer e diversão vários atos considerados libidinosos passaram a ser ordinariamente praticados. Como comprova-se no texto a seguir: Escrevia o New York Times, em sua seção de modas, em julho de 1920: ‘A mulher americana reduziu o comprimento de sua saia até um ponto que vai além de qualquer limite imposto pela decência. [...] O Catholic Telegraph, de Cincinnati, mostrava-se indignado: ‘A música é sensual, o abraço dos pares − com a jovem quase despida − é absolutamente indecente. Quanto aos movimentos, são tais que não podem ser descritos, se quiser ser fiel na descrição, num jornal de família. Basta dizer que há certas casas apropriadas para tais danças; mas essas casas foram fechadas pela polícia’. (SILVEIRA, 1987, p.9) Contrariando a Lei Seca e intensificando o tráfico de bebidas – o que ocasionou o enriquecimento súbito de muitos empresários americanos – as pessoas se embriagavam de maneira ensandecida. Também as mulheres, para quem as convenções sociais demandavam um comportamento mais contido, bebiam muito em todas as festas e refeições. Esse tipo de conduta era extremamente mal vista pelo americano médio, de famílias aristocráticas do meio oeste, de onde saíram as principais personagens dessa trama. Mas já na costa leste, esses valores se afrouxavam e fazia-se vista grossa ao consumo ilegal de bebida alcoólica. Grande parte da trama associa-se ao tema, seja como ilustração para as cenas das festas realizadas na mansão de Gatsby, seja de maneira mais profunda, mostrando que a economia emergente dependia em muito do tráfico. As pessoas viviam em um ritmo turbulento e frenético, as diferenças entre classes eram grandes e evidentes, poucas pessoas experimentaram os sabores dessa época. A década também assistiu ao emergir do crime organizado e da corrupção. Os privilégios de algumas classes sociais estão representados de maneira alegórica no romance, assim como outras características muito específicas dos anos 1920. 1.1. Fitzgerald e a Era do Jazz A produção ficcional dos Estados Unidos na década de 1920 mostrou-se apta a transmitir o sentir e os costumes típicos dessa geração. A literatura americana do pós- guerra contribuiu num sentido de unificação do povo com sua contemporaneidade pois durante muito tempo – como aconteceu com outros países colonizados – a literatura mais valorizada era a europeia, todavia a atenção da população voltou-se para a produção local. No entanto, além dos temas inspirados pela guerra, no qual se destaca, por exemplo, Hemingway, cresceu um movimento sofisticado e altamente urbano. O teatro e a literatura do chamado alto modernismo, período que se inicia por volta de 1920 e vai até o final da Segunda Guerra – contando com nomes como Faulkner, T. S. Elliot, Ezra Pound e Tennesse Williams – trataram de maneira ousada questões de fundo sexual, social e econômico, usando de uma liberdade de expressão até então nova para o público de língua inglesa, mudando os rumos da literatura americana do século XX e influenciando artistas mais jovens. A carreira de Francis Scott Fitzgerald, considerado o mais ruidoso expoente dessa nova geração de intelectuais (MIZENER, 1963), inicia-se com esse novo movimento fortalecendo-se com a publicação de The Great Gatsby em 1925, um grande marco literário da década. A vida do autor coincide com esse período entre guerras o qual ele parece personificar. Com a publicação de The Great Gatsby, o autor pôde experimentar as glórias e privilégios do sucesso, todavia foi um sucesso bastante efêmero. E por mais que se tente escapar de análises literárias emparelhadas com a vida pessoal do autor, a maneira como viveu, seus dramas e insucessos, foram tão abertos à publicação que acabam tornando-se, pelo menos, referenciáveis. Ele chegou a afirmar, em entrevista, confundir a própria vida, e a de sua esposa Zelda, com a das personagens de seus romances (MEYERS, 1996). Por ter vivido de forma extremamente intensa os anos mais frenéticos da história americana, ele se faz testemunha dessa época e a descreve e proclama tornando-se um reconhecido ícone para toda uma geração. More than any other writer of these times, Fitzgerald had the sense of living in history. He tried hard to catch the color of every passing year: its distinct slangs, its dances steps, its songs, its favorite quarterbacks2, and the sort of clothes and emotions its people wore. (KAZIN, 1966, p.150) 3 O romance atingiu, na época de sua publicação, aceitação popular de maneira quase unânime, isso se deu, principalmente, em razão do momento histórico pelo qual passava o povo americano. O fim da guerra, a economia em crise, a confusão dos valores sociais e morais fizeram com que a juventude se sentisse perdida e apática. A guerra causou uma conscientização a respeito da efemeridade da vida, e então, um desejo frenético de diversão. Essas reações populares foram transpostas pelo autor, que da mesma forma que muitos jovens de sua geração, se divertiu de maneira inconsequente. Fitzgerald centralizava seus romances em locais populares entre a alta sociedade, cidades como Nova York e Long Island ou transatlânticos luxuosos frequentemente ambientavam suas histórias. The Great Gatsby se passa quase que totalmente em Long Island, com jovens belas e exóticas, muito álcool, jazz e elegância. Na década de 20, Nova York começava a exercer uma fascinação rival da de Londres ou de Paris; a tornar-se um centro dos mais ricos em arte, em modas, em bem viver, uma dessas raras e inesquecíveis cidades onde se sente bater o pulso do mundo. (NABUCO, 1967, p.149, grifo nosso.) O editor de toda carreira de Fitzgerald, Max Perkins, mandou-lhe uma carta ao ler The Great Gatsby pela primeira vez. Um texto entusiasmado, otimista e repleto de elogios. Outras cartas igualmente entusiastas foram escritas por amigos intelectuais, escritores famosos – como Gertrude Stein – que acreditavam assistir ao florescer de um artista mais que brilhante. Algo assim jamais se repetiu na vida do autor, mesmo tendo escrito outros romances e vários contos, muitos deles admiráveis, nunca mais foi lido da mesma forma. Na citação transcrita abaixo tem-se fragmentos da carta de Max Perkins ao jovem escritor, após o primeiro contato com o texto que tornou-se o romance The Great Gatsby: 2 Posição de jogador no futebol americano. 3 “Mais do que qualquer escritor dessa década, Fitzgerald tinha a consciência de viver na história. Ele tentou arduamente capturar a cor de cada ano que passava: suas gírias típicas, seus passos de dança, suas canções, seus quarterbacks favoritos, e o tipo de roupas e emoções que as pessoas vestiam.” As traduções apresentadas em nota neste estudo, quando não mencionada a fonte, são de responsabilidade da autora. Nas citações de O Grande Gatsby, foi utilizada a tradução de Brenno Silveira (1980). Acho que você tem todo o direito de se orgulhar desse livro. É extraordinário, porque transmite todos os tipos de reflexão e estado de ânimo. Você usou justamente, a maneira certa para fazê-lo, empregando um narrador que é mais um espectador do que ator: isso coloca o leitor num nível de observação superior ao das personagens e a uma distância que permite uma visão abrangente do assunto. De nenhum modo sua ironia poderia funcionar tão eficientemente, a singularidade da condição humana num vasto universo indiferente. [...] Uma vez você me disse que não era um escritor inato. Meu Deus! Você dominou inteiramente o ofício, é claro, mas precisou, para isso, muito mais do que habilidade. (MEYERS, 1996, p.142) A década de 20 foi para os Estados Unidos uma era de cores e ritmos intensos, na qual a imagem buscada deveria combinar com esse frenesi. Fitzgerald conseguiu captar essas cores e reproduzir esses ritmos. Assim como reproduziu as emoções e sentimentos dessa geração, transpôs o American dream para o seu romance. 1.2. The Great Gatsby e a década de 1920 O romance mais conhecido de Fitzgerald faz uma crítica a um aspecto que integra o chamado American dream – o consumo desenfreado. A personagem que dá o nome ao livro é a própria imagem do consumismo. A guerra mudou a organização das classes sociais do país e ao mesmo tempo em que gerou muita miséria, fortaleceu uma classe que teve seu poder de compra aumentado e valorizado no mercado: os emergentes. Essa nova configuração transformou a sociedade dos Estados Unidos e colocou a aristocracia em posição defensiva frente às mudanças. Na figura4 a seguir vê-se a discrepância advinda da guerra e as enormes diferenças geradas, que brutalmente afastava uma classe da outra. O outdoor mostra uma propaganda do governo – exaltando o estilo de vida americano – em contraste com uma fila que se formou na frente do cartaz, um aglomerado de pessoas que esperava pela distribuição de pão. 4 Margaret Bourke-White, para a revista Life, 1937. A crítica do autor aparece em outros romances posteriores ao The Great Gatsby, como também norteou seu primeiro livro, This side of paradise5, quando o protagonista Amory Blaine é impedido de cortejar uma garota por não pertencer à mesma classe social que ela, e é a própria Rosalind Connage que deixa o romantismo de lado, preterindo Amory em favor de Dawson Ryder, pertencente a uma família aristocrática, com quem decide se casar. O protagonista de This side of paradise passa o resto de sua vida acadêmica em uma busca errante e irresponsável por uma carreira que conferisse sentido a sua própria existência, ao final do romance, ao pegar uma carona com um pai de um colega de Princeton fala sobre sonhos utópicos que essa sociedade de consumo procura embutir na cabeça de outros jovens estudantes como ele. O romance Tender is the night6 também dá destaque ao recorrente assunto. Há uma cena em que o autor descreve uma tarde de compras em que se reúnem as personagens Nicole Diver – mulher muito rica casada com o médico Dick Diver – e a jovem atriz Rosemary Hoyt, que de origem simples, vê-se, subitamente, parte do recente sucesso dos filmes de Hollywood e pertencente a crescente classe de emergentes sociais americana. A moça tem nessa tarde ao lado de Nicole uma aula de consumo, por duas páginas Fitzgerald enumera a lista de compras da Sra. Diver que contrasta com um rol de quatro ou cinco itens adquiridos pela jovem atriz. A descrição é dividida em duas partes sendo a primeira o percurso que as mulheres fazem por várias lojas a fim de 5 Este lado do paraíso. 6 Suave é a noite. concluir a extensa lista, a segunda parte elenca todos os funcionários que estiveram envolvidos nessas transações, mostrando a clara diferença e consequente afastamento das pessoas que integravam distintas classes sociais. O estilo de vida das gerações que viveram a Era do Jazz é frequentemente retratado na obra do autor, e assim como Amory Blaine e Rosemary foram fascinados por ele, também Jay Gatsby encantou-se com a maneira glamourosa que viviam as pessoas abastadas em sua época. Em The Great Gatsby a imagem da riqueza e das belezas que ela pode adquirir é personificada em Daisy, presentes em suas roupas, em sua casa e até mesmo em sua voz. Essa imagem torna-se o obsessivo objetivo de vida do protagonista e da mesma forma que o guia e o incentiva a ascensão, o confunde turvando-lhe a visão e o impedindo de desvencilhar-se do passado. Jay Gatsby consegue tornar-se um homem rico, porém seu poder é limitado já que esse dinheiro, conhecido naquele país como “dinheiro novo”, não tem o mesmo valor que o acumulado pela aristocracia. Como se pode comprovar no seguinte comentário de Donaldson (2001) sobre o protagonista de Fitzgerald: “Gatsby has all the money he could possibly need, and ostentatiously presents it for public view, but has not acquired the manners and social stature that come with inherited wealth.” (p.203)7 De maneira coerente com a atmosfera retratada no romance Gatsby consegue para si uma carreira promissora – que envolve diferentes negócios, mas que a história não deixa suficientemente claro quais são e de que forma se dão – como apenas um passo para concretização de seu maior ideal: reconquistar Daisy Fay (agora Buchanan). A falta dela em sua vida anula o valor de toda a sua riqueza, que só estaria completa quando os olhos encantadores de sua amada estivessem contemplando-a ao lado dele. Essa obsessão que move o protagonista no sentido de mudar a sua história, construir para si uma personagem feita de seus sonhos de garoto, é a mesma que o faz jamais desistir de reviver sua história com Daisy. O apego obstinado ao passado o impede de vivenciar plenamente o presente e o leva ao final trágico. 1.3 A análise do espaço em The Great Gatsby A leitura do romance de Fitzgerald possibilita várias impressões, reações e possíveis ideias de análise. Nesse trabalho o foco direciona-se ao espaço, fazendo isso 7 “Gatsby tem todo o dinheiro do qual poderia necessitar e faz disso ostentação pública, mas não adquiriu as boas maneiras e a posição social que derivam de uma riqueza herdada.” de maneira que também outras questões bastante relevantes sejam consideradas a fim de que resultados mais abrangentes sejam alcançados. Uma análise do espaço na obra permite a abordagem de variados temas que extrapolam barreiras geográficas − fictícias ou reais. Em The Great Gatsby a divisão da sociedade em três diferentes classes é representada e exemplificada por meio de personagens bastante estereotipados e por uma distribuição espacial quase determinista. As mulheres de East Egg, representantes da alta sociedade são belas, elegantes e interesseiras. As pessoas de West Egg, na qual o melhor exemplo seria o próprio Gatsby são exageradas ao ponto de tornarem-se artificiais e deselegantes. E há ainda aquelas outras pessoas, cuja miséria inconteste as afastam drasticamente das demais personagens da história. Nessa obra os cenários são construídos levando-se em conta a recém-terminada guerra e os efeitos deixados na sociedade, principalmente os econômicos. Interessa observar a divisão que o autor faz dessa população em bairros que variavam em razão de situação financeira e tradição. Assim como os bairros, de maneira mais específica e pontual as casas importam para a análise do romance, elas também carregam muitas informações que atuam na caracterização das personagens. The Great Gatsby é famoso por fazer uma crítica da alta sociedade norte- americana, de seus valores e desejos, e por criar um romance rico em imagens muito significativas de sua contemporaneidade, cuja sociedade está representada nas festas de Gatsby por personagens que tomam parte nelas sem o mínimo de timidez e chegando às margens do ridículo em suas exposições públicas. Considerando tais festas como um aspecto essencial da obra, uma análise em paralelo com a obra de Petrônio, Satíricon, especificamente no episódio “O Banquete de Trimalquião”, dá ao estudo de The Great Gatsby outra dimensão. Possibilitando, dessa forma, uma aproximação com os estudos clássicos revelando as influências que a literatura antiga, muito frequentemente, exerce sobre escritores modernos. A ambientação presente nas festas oferecidas por Gatsby é tão importante para o romance quanto a das casas das personagens, porque na dimensão do espaço não limitado há uma constante mistura de vazio e euforia. É natural que o ambiente de uma festa seja repleto de música, vozes e movimentos, todavia essa organização espacial que caracteriza a festa contrasta com o vazio enfrentado pelo protagonista e anfitrião que vivencia intensa solidão ao observar seus jardins e até mesmo o interior de sua casa desvendado por descuidados desconhecidos. Todos os espaços apresentados no romance são vistos através do narrador Nick Carraway, que ocupa posição estratégica na obra por relacionar-se com as demais personagens. É através de Nick que os cenários são alcançados e a partir deles, possibilidades de reflexão são criadas. Partindo do espaço esse estudo busca extrapolar barreiras previamente determinadas, de maneira a acrescentar aos estudos sobre o autor e ilustrar as multiplicidades de seu texto. 2. Fundamentos teóricos para a análise de The Great Gatsby (...) alma e espírito são indispensáveis para estudar os fenômenos da imagem poética. (BACHELARD, p.186) 2.1. Um estudo sobre o espaço literário Em uma narrativa literária, tanto quanto outros elementos, o espaço tem um caráter essencial, pois conduz o leitor ao entendimento e apreciação da obra como um objeto inteiro. Há uma profunda relação de dependência entre as personagens e os cenários em que estão inseridas. Para o estudo do romance The Great Gatsby a análise do espaço é valiosa, as ações das personagens e até mesmo características que lhes são intrínsecas dependem do posicionamento espacial delas. Há uma variedade de imagens criadas por Fitzgerald na elaboração dos cenários que são simbólicas e sensoriais. Cabe ao leitor descobrir, ou decidir, quais ingredientes são mais representativos e a função que cada um tem na construção do espaço romanesco, que para Lins não deve ser dissociado da noção de tempo: Não só espaço e tempo, quando nos debruçamos sobre a narrativa, são indissociáveis. A narrativa é um objeto compacto e inextrincável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outros. Pode-se, apesar de tudo, isolar artificialmente um de seus aspectos e estudá-lo – não, compreende-se, como se os demais aspectos inexistissem, mas projetando-o sobre eles: neste sentido, é viável aprofundar, numa obra literária, a compreensão de seu espaço ou de seu tempo, ou, de um modo mais exato, do tratamento concedido, aí, ao espaço ou ao tempo: que função desempenham, qual a sua importância e como os introduz o narrador. (1976, p.63-64) Em The Great Gatsby, o conjunto de referências discursivas que compõe espaço e tempo mistura elementos reais e itens ficcionais, conferindo ao texto literário o efeito de real (BARROS, 1994) pretendido. A história se passa em duas cidades – Nova York e Long Island – mas há nessas cidades regiões criadas pelo autor, bairros que separam as pessoas em função de posição social e situação financeira. Portanto é interessante observar também como os cenários e os objetos de cena existem com a finalidade de caracterizar tais classes sociais e participar na composição do perfil das personagens, sendo assim, elas se relacionam com esses espaços e não apenas os utilizam como pano de fundo. A ação das personagens, a maneira como interagem com os cenários que as cercam, ajuda a delinear o espaço que a princípio pode parecer muito vasto, e por isso, impessoal. Já no início do romance o narrador apresenta ao leitor os lugares que configuram a disposição espacial dessa história, situando primeiro, a si mesmo, o que mais à frente explica as relações que desenvolve com as outras personagens da história. Ao se mudar para a costa leste do país Nick Carraway comenta a estranha formação de terra com a qual se deparou e que veio a habitar: It was a matter of chance that I should have rented a house in one of the strangest communities in North America. It was on that slender riotous island which extends itself due east of New York – and where there are, among other natural curiosities, two unusual formations of land. Twenty miles from the city a pair of enormous eggs, identical in contour and separated by a courtesy bay, jut out into the domesticated body of salty water in the Western hemisphere, the great wet barnyard of Long Island Sound.(FITZGERALD, 1994, p.11)8 Não apenas espaço e tempo se relacionam na elaboração de um romance, como espaço e personagens estabelecem relações indissociáveis. É nessa confluência de elementos que a narrativa se constrói em toda sua complexidade e inteireza. Para esse trabalho separá-los seria se não inviável ao menos limitante. Em The Great Gatsby esses itens se relacionam e apresentam-se ao leitor por intermédio do narrador. 2.2. Conceitos importantes Essa pesquisa tem nas obras de Osman Lins (1976) e Gaston Bachelard (1984) a teoria basilar para conceituação do espaço no romance corpus The Great Gatsby, delas concebendo alguns conceitos específicos que serão colocados em destaque nesse estudo. Outras importantes obras teóricas apresentadas nas referências desse trabalho complementam a pesquisa em suas mais variadas necessidades. O texto do romance é 8 Deve-se apenas ao acaso o haver eu alugado uma casa numa das mais estranhas comunidades da América do Norte. Achava-se ela situada na comprida e turbulenta ilha que se estende a leste de Nova York – e onde há, entre outras curiosidades naturais, duas características topográficas nada comuns. A vinte milhas da cidade, um par de ovos enormes, de contornos idênticos e separados apenas por uma gentil baía, se lançam sobre a mais domesticada massa de água salgada do hemisfério Norte, o grande pátio líquido do estreito de Long Island. (FITZGERALD, 1980, p.8) utilizado em análise no original (1994) e todas as traduções, desse texto apresentadas em nota de rodapé são de Brenno Silveira (1980). 2.2.1 - Espaço e Ambientação De acordo com Osman Lins a ambientação é derivada de mecanismos utilizados pelo autor que provocam na narrativa uma sensação de determinado ambiente. A maneira como esses mecanismos são utilizados, a força que exercem na narrativa e o modo como se relacionam com as personagens criam diferentes ambientes, na medida do desejo e da necessidade do autor. Diferencia-se, assim, do espaço, segundo o mesmo teórico, por que: “Para a aferição do espaço levamos a nossa experiência do mundo, para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se certo conhecimento da arte da narrativa.” (1976, p. 77). A maneira mais simples de diferenciar espaço de ambientação é observando que o primeiro é denotado, utiliza dados da realidade mesmo que em função de criar uma natureza simbólica. Já o segundo conceito é conotado, depende da atenção do leitor para com o texto e da intenção e do talento do artista na elaboração da narrativa. Segundo Lins, a ambientação ainda se subdivide em três categorias: a franca é apresentada pelo próprio narrador, que obrigatoriamente não é personagem da obra, enquanto a reflexa, ao contrário, independe do narrador, devendo ser percebida através da personagem. E a terceira, que mais interessa a esse estudo, é a dissimulada, que: “exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace entre o espaço e a ação.” (p.83) [...] “atos da personagem, nesse tipo de ambientação, vão surgir no que a cerca, como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos”. (LINS, 1976, p.84) O conceito de ambientação dissimulada funciona em The Great Gatsby para qualquer uma das personagens descritas. Dois casos podem ser citados a título de exemplo: cenas de Daisy Buchanan e Myrtle Wilson, ambas na posição de anfitriã em uma pequena reunião. Dessas mulheres, da maneira como se vestem e como organizam a casa, é possível obter importantes informações que servirão ao leitor até o final da história. The only completely stationary object in the room was an enormous couch on which two young women were buoyed up as though upon an anchored balloon. They were both in white and their dresses were rippling and fluttering as if they had just been blown back in after a short flight around the house. I must have stood for a few moments listening to the whip and snap of the curtains and the groan of a picture on the wall. Then there was a boom as Tom Buchanan shut the rear windows and the caught wind died out about the room, and curtains and the rugs and the two young women ballooned slowly to the floor. (FITZGERALD, 1994, p.14) 9 Mrs. Wilson had changed her costume sometime before, and was now attired in an elaborate afternoon dress of cream-colored chiffon, which gave out a continual rustle as she swept about the room. With the influence of the dress her personality had also undergone a change. The intense vitality that had been so remarkable in the garage was converted into impressive hauteur. Her laughter, her gestures, her assertions became more violently affected moment by moment, and as she expanded the room grew smaller around her, until she seemed to be revolving on a noisy, creaking pivot through the smoky air. (FITZGERALD, 1994, p.36-37) 10 A forma como Daisy e Myrtle são descritas nessas cenas explicita as diferenças existentes entre elas. Os vestidos que usam, os objetos que decoram suas casas, a forma como interagem com eles e até mesmo a reação física que têm frente à ação do clima, as afastam drasticamente. Nessas duas cenas elas estão separadas pela baía em bairros distintos – o que representa a separação delas em diferentes classes sociais – mas a mais importante diferenciação existente entre elas está na posição que ocupam na vida de Tom Buchanan. Ao casar com Tom, Daisy não ascende socialmente. Deixa a casa luxuosa de seus pais, para viver, ao lado do marido, uma vida nômade, mas não menos luxuosa. Ela cumpre as funções de esposa e mãe, aquilo que era esperado de uma mulher na época. De acordo com a própria Daisy, uma mulher deveria ser “bela e tola”. Claro que ela diz isso com ironia, uma vez que tem um vantajoso casamento com Tom, cabe-lhe ser tola e 9 O único objeto completamente imóvel no salão era um enorme divã, sobre o qual duas jovens mulheres flutuavam como se estivessem em um balão ancorado. Trajavam ambas de branco, e seus vestidos ondulavam e adejavam como se elas tivessem acabado de pousar ali, após um breve voo em torno da casa. Creio que fiquei um momento a ouvir o vergastar do vento de encontro às cortinas e o gemido de um quadro na parede. Ouviu-se então uma batida, quando Tom Buchanan fechou as portas envidraçadas de trás, e o vento, aprisionado, se extinguiu pela sala, enquanto as cortinas, os tapetes e as duas mulheres, flutuantes, pousaram, lentamente, no chão. (FITZGERALD, 1980, p.11) 10 A Sra. Wilson trocara, pouco antes, de roupa, trajando agora um complicado vestido de tarde, de chiffon cor de creme, que farfalhava incessantemente, enquanto ela se movia pela sala. Com a influência do vestido, sua personalidade também sofrera uma transformação. Sua intensa vitalidade, tão perceptível na garagem, convertera-se em impressionante altivez. Seu riso, seu gesto, suas asserções tornavam-se; de momento a momento, cada vez mais afetados, de tal modo que, à medida que ela se expandia, a sala se tornava menor em torno dela, até que, finalmente, ela parecia estar a girar em redor de um eixo barulhento e rangente, em meio do ar esfumaçado. (FITZGERALD, 1980, p.29) aceitar os casos extraconjugais e a personalidade bruta do marido. Nessa cena observa- se como a presença dela, e de sua amiga, integram o cenário e contribuem na construção de uma imagem geral. Como se Daisy e Jordan constituíssem, naquele ambiente, ao lado dos demais objetos, um quadro bem elaborado e têm a própria imagem coisificada. Myrtle, que por sua vez, fizera um mau casamento, considerando a situação financeira do marido, George Wilson, aproveita-se dos luxos que o amante lhe confere para ter a sofisticação e elegância com a qual sempre sonhou. Observa-se no pequeno espaço e em seu traje que ela deseja ter muito mais coisas do que as que podem caber em sua vida. O fato curioso aqui é que ambos os estilos de vida são patrocinados pelo mesmo homem, que tendo a elegante e bem educada mulher em casa, aproxima-se da mulher vulgar e cheia de vitalidade para viver uma história passional. Seja como for, as duas personagens refletem-se nas escolhas que fazem para seus trajes e para móveis e objetos de suas casas. 2.2.2 - Espaço Psicológico Ora, como deveremos entender, numa narrativa, o espaço? Onde, por exemplo, acaba a personagem e começa o seu espaço? A separação começa a apresentar dificuldades quando nos ocorre que mesmo a personagem é espaço; e que também suas recordações e até visões de um futuro feliz, a vitória, a fortuna, flutuam em algo que, simetricamente ao tempo psicológico, designaríamos como espaço psicológico. (LINS, 1976, p.69) O conceito de espaço psicológico apesar de pouco desenvolvido por Lins, possibilita enxergar determinados aspectos de The Great Gatsby. A casa do protagonista é uma projeção feita por ele, durante os anos que o separaram de Daisy, sobre o quê poderia agradá-la. Assim acontece também na casa de Nick, forma-se uma atmosfera de suspensão que paulatinamente dá lugar à alegria do primeiro encontro. Nesse momento, o que acontecia no exterior, a chuva torrencial que caía, nada alteraria aquele dia de felicidade para o protagonista. Todo sonho de Gatsby com Daisy foi uma construção de espaço e tempo psicológicos. Ainda segundo Lins (1976) existe uma outra categoria na qual o espaço pode ser classificado – espaço social – que nessa obra é influenciado diretamente pelo momento histórico e posição geográfica. Ambos os elementos implicam na elaboração desses cenários que são tão caracterizados pelas personagens que vivem neles quanto atuam na caracterização de seus habitantes. Assim, A categoria das edificações existentes no local onde vive ou se move a personagem pode indicar o seu espaço social; (...) Tanto pode o espaço social ser uma época de opressão como grau de civilização de uma determinada área geográfica. Outras tantas manifestações de tal conceito podem ser identificadas na classe a que pertence a personagem e na qual ela age: a festa, a peste ou a subversão da ordem (manifestações de rua, revolta armada). (LINS, 1976, p.75) Em The Great Gatsby espaço físico – aquilo que é denotado, Long Island e Nova York – relaciona-se com os cenários criados pelo autor e que dividem as personagens em diferentes esferas da sociedade (East Egg, West Egg e the Ashes Valley). Essas personagens, ocupando diferentes posições e movimentando-se entre os variados lugares, colaboram na composição de novos espaços então denominados psicológicos, onde se misturam os elementos anteriores com suas características mais íntimas. Dessa forma, o autor obtém do espaço aquilo que desejar, podendo criar ambientes opressores, solitários, festivos ou confortáveis em função do que cada cena necessita. Portanto é possível ver que o espaço social diferencia-se do psicológico, embora se relacionem intimamente na realização do espaço como um todo na narrativa. Pode-se pensar na estratificação social existente no romance de Fitzgerald como um exemplo de espaço social, mas a obra perderia se dentro de cada esfera social o foco não estivesse orientado a personagens complexas, que se locomovem pelos diversos espaços apresentando os cenários de maior abrangência – a cidade de Nova York e os bairros – que integram o espaço social, para atingir os locais mais íntimos e onde se deixam refletir – suas casas – e onde dão forma ao espaço psicológico. 2.2.3. Atmosfera A atmosfera é criada quase sempre a partir do espaço e em função dele. Tem um caráter abstrato, visto que deriva dos sentimentos das personagens ou das reações sensoriais que são capazes de criar. Ela envolve as pessoas ou pode ser trazida por uma nova personagem que adentra determinado espaço. O teórico no trecho abaixo aponta para a importância dos elementos sensórios para a criação de desejada atmosfera. Não deve o estudioso do espaço, na obra de ficção, ater-se apenas à sua visualidade, mas observar em que proporção os demais sentidos interferem. Quaisquer que sejam os seus limites, um lugar tende a adquirir em nosso espírito mais corpo na medida em que evoca sensações. (LINS, 1976, P.92) Justamente através das sensações geradas na leitura é que o leitor fará as melhores e maiores descobertas sobre a obra, o autor deixa indícios para que o leitor perceba a atmosfera, que funciona mais como uma sensação concedida ao leitor pelo autor e permeia todos os outros itens da narrativa. A partir do momento que a atmosfera está estabelecida, torna-se capaz de mudar o curso do enredo, alterar o ritmo da narrativa ou modificar o ânimo das personagens, e a partir daí gerar sensações e criar uma expectativa no que há por vir. As cenas transpostas a seguir exemplificam a importância da atmosfera na composição de um cenário completo. An hour later the front door opened nervously, and Gatsby, in a white flannel suit, silver shirt, and gold-colored tie, hurried in. He was pale, and there were dark signs of sleeplessness beneath his eyes. (FITZGERALD, 1994, p.91)11 […] She turned her head as there was a light dignified knocking at the door. I went out and opened it. Gatsby, pale as death, with his hands plunged like weights in his coat pockets, was standing in a puddle of water glaring tragically into my eyes. (FITZGERALD, 1994, p.93)12 […] But there was a changing in Gatsby that was simply confounding. He literally glowed; without a word or a gesture of exultation a new well- being radiated from him and filled the little room. (FITZGERALD, 1994, p.96) 13 Essa cena acontece na casa de Nick Carraway – mostra a progressão do tempo e como ele interfere na atitude de Gatsby, à medida que a hora de Daisy chegar se aproxima, nas cinco páginas em que a cena é descrita o tempo passa e acalma, ao final, 11 Uma hora mais tarde, a porta da frente abriu-se nervosamente, e Gatsby, com um costume branco de flanela, camisa de seda e gravata de um tom dourado, entrou apressado. Estava pálido e suas olheiras revelavam longas horas de insônia. (FITZGERALD, 1980, p.73) 12 Ela voltou a cabeça, ao ouvir, na porta, uma batida delicada, discreta. Fui abrir. Gatsby, pálido como um fantasma, as mãos enfiadas como chumbo no bolso do paletó, estava de pé numa poça d’água, a fitar-me tragicamente os olhos. (FITZGERALD, 1980, p.75) 13 Mas havia, em Gatsby, uma transformação simplesmente espantosa. Ele, literalmente, resplandecia; sem que proferisse uma palavra ou tivesse um gesto de exultação, um novo bem-estar irradiava dele e enchia a pequena sala. (FITZGERALD, 1980, p.78) os sentimentos exaltados do protagonista –, trata-se do primeiro encontro de Gatsby e Daisy após cinco anos de separação, ele se veste de maneira tão ostensiva que seus excessos tiram o efeito de luxo e sofisticação pretendidos inicialmente. O protagonista está ansioso e tenso, não pôde dormir devido à excitação que sentia com a proximidade do reencontro e a falta de sono gera transformações no humor dele, está irritadiço. Angustia-se com medo de que Daisy não compareça, ao vê-la chegando deixa a sala e encena uma chegada de surpresa, mas seu nervosismo é tão grande que é incapaz de agir naturalmente. Ele que tantas vezes deve ter sonhado, imaginando a maneira que se comportaria, ensaiando frases bem acabadas para dizer-lhe, é vencido pela tensão e a princípio não consegue aproveitar o reencontro com Daisy. Feitas as dispensáveis apresentações, Nick os deixa sozinhos por um momento e ao final de alguns minutos, retorna, discretamente, nota então, a grande mudança que a atmosfera inicial sofreu. 2.2.4. Carnavalização Por um instante as pessoas se veem fora das condições habituais da vida, como na praça pública carnavalesca ou no inferno, e então se revela outro sentido – mais autêntico – delas mesmas e das relações entre elas. (BAKHTIN, 1981, p. 125) Outro conceito teórico utilizado nessa pesquisa, no capítulo dedicado ao estudo comparado de The Great Gatsby e “O Banquete de Trimalquião” é o de carnavalização. Conceito proposto pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin em seu livro Problemas da Poética de Dostoiévski (1981). Nele, Bakhtin apresenta o tema do carnaval, afirmando que uma de suas manifestações mais antigas se deu nos primórdios da Idade Média, sobre uma representação religiosa (uma procissão), relatada por Orderico Vital, um historiador do século XI. O autor, no entanto alerta para o fato do termo “carnaval” não ser mencionado nos relatos medievais. O tema é desenvolvido pelo filósofo por meio da análise da obra de Rabelais, onde aparece a carnavalização do inferno. A interpretação do texto rabelaisiano como carnavalesco confirma-se na lógica das permutações – inversão de papéis – característica mais imediatamente ligada ao conceito. Mais adiante, Bakhtin passa a analisar duas obras do escritor russo Fiódor Dostoiévski: O Jogador e Memórias do Subsolo. E da seguinte forma utiliza o espetáculo do carnaval para criar conceitos passíveis de interpretar a literatura. O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto elas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual14, e em certo sentido uma “vida às avessas”, um mundo invertido. (BAKHTIN, 1981, p.105) De acordo com o teórico no primeiro autor o riso – característico dessa inversão de papéis num espetáculo e do inacabamento dos diálogos – se dá de maneira estridente, enquanto no romancista russo acontece através da função do cômico-sério e do riso reduzido. Ele também difere entre riso exterior e interior, sendo os dois exemplos encontrados nas obras mencionadas acima, respectivamente. Nessa pesquisa temos exemplos das duas manifestações propostas do espetáculo carnavalesco: enquanto em Satíricon tem-se um espetáculo público – no jantar oferecido por Trimalquião – com caráter cômico marcado e explícito, o espetáculo oferecido por Gatsby aos seus convidados esconde um riso, que mesmo velado não deixa de aparecer nos comentários maledicentes dos frequentadores de seus bailes. Interessa, portanto, para esse estudo observar não apenas a característica carnavalizada das personagens, como observar a construção do espaço das festas sob a ótica carnavalesca. Bakhtin inclusive trata da sátira menipéia em sua obra, citando o Satíricon como exemplo e analisando mais largamente o texto Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, satírico que viveu na Grécia no século II d. C. A composição de personagens por meio de pares de opostos também integra a carnavalização, Bakhtin mais uma vez, cita um exemplo do escritor Dostoiévski para ilustrar a composição de um herói que vai de miserável a milionário da noite para o dia, na obra O Idiota. Nesse romance ainda tem-se a ridicularização do herói que tido como tolo quando pobre é “aceito” como muito esperto após o enriquecimento, caso semelhante ao de Trimalquião e de Gatsby. Na citação abaixo Discini (2010, p.84) faz um resumo das duas manifestações do carnaval explicitadas por Bakhtin: Fica registrada a carnavalização como movimento de desestabilização, subversão e ruptura em relação ao “mundo oficial”, seja este pensado como antagônico ao grotesco criado pela cultura popular da Idade Média e Renascimento, seja este pensado como modo de presença que aspira à transparência e à representação da realidade como sentido acabado, uno e estável, o que é incompatível com a polifonia. 14 Grifos do autor. Os exemplos literários utilizados por Bakhtin não limitam a utilização dos conceitos explicitados, apenas ilustram seus conceitos e indicam possibilidades variadas. O carnaval pode ser observado em suas diferentes manifestações como marca de efeito de sentido em um texto. Buscar esses efeitos causadores de riso contido ou estridente, esses pares de opostos que marcam “encontros entre contrários” e inversões de papéis mostram a pluralidade dos textos que aqui são analisados em paralelo. 2.3. A Atmosfera nas casas em The Great Gatsby As personagens em The Great Gatsby estão sempre participando de alguma reunião social, há sempre uma festa, um jantar ou um chá como pano de fundo, mas importa muito para esse estudo a atmosfera criada na ou para a intimidade. Os cenários perdem o caráter de amplidão quando se focalizam nos relacionamentos, e quando o clima é de tensão – como acontece no Hotel Plaza quando Tom descobre sobre a infidelidade da esposa – as paredes se tornam opressoras e contribuem para a criação de um cenário fidedigno. Já as casas oferecem muitas imagens da intimidade, nelas as personagens agem de maneira mais autêntica e livre, agindo ou reagindo com maior naturalidade frente às ações de outras personagens. Segundo Bachelard, os espaços físicos refletem a alma das pessoas inseridas neles. O autor diz que a alma humana tem tantas camadas quanto uma casa − pensando num estilo arquitetônico não comum no Brasil no qual as casas têm porões e sótãos. Nas casas em The Great Gatsby é possível enxergar a proposta de Bachelard, cada cômodo, cada gaveta, cada caixa guarda expressões muito íntimas e particulares de quem os organiza. Para essa análise, as casas possuem uma importância ímpar na caracterização das personagens, e a seguinte citação de Osman Lins vem ao encontro das ideias expostas nesse estudo: “Se há o espaço que nos fala sobre a personagem, há também o que lhe fala, o que a influencia. Sua função caracterizadora é quase sempre limitada e a influência que exerce restringe-se por vezes ao psicológico (...)” (LINS, 1976, p.99). Gatsby stood in the centre of the crimson carpet and gazed around with fascinated eyes. Daisy watched him and laughed, her sweet, exciting laugh; a tiny gust of powder rose from her bosom into the air. (FITZGERALD, 1994, p.121)15 […] Gatsby and I in turn leaned down and took the small reluctant hand. Afterward he kept looking at the child with surprise. I don’t think he had ever really believed in its existence before. (FITZGERALD, 1994, p.123)16 […] ‘Have you got your stables here?’ asked Gatsby with an effort. […] Gatsby turned to me rigidly: ‘I can’t say anything in this house, old sport.’ (FITZGERALD, 1994, p. 126) 17 Estar na casa de Daisy e de Tom Buchanan era inimaginável para Gatsby. Aquela afronta que sua amada desejava fazer ao marido – pois ela aproveita a ausência de Tom e diz a ele que o ama, Nick e Jordan também ouvem a declaração – testando a paciência do marido de maneira vulgar e vingativa escapava da compreensão de Gatsby e causava-lhe tremendo desconforto, fazendo com que se sentisse em desvantagem naquele espaço. Além disso, havia a indesejável presença de Pammy (filha do casal Buchanan) que jamais pertenceria a seu absurdo sonho. De todos os desagradáveis sentimentos que aquela casa lhe trazia, o mais pungente deles, o que mais o intimidava, era a inveja que sentia daquela vida e da história que fora construída naquele lar. De acordo com Bachelard, as imagens de uma casa revelam detalhes da alma de quem a habita: “Examinada nos horizontes teóricos mais complexos, parece que a imagem da casa se transforma na topografia do nosso íntimo.” (1984, p.196) Esse estudo procura, exatamente, constatar essas imagens da intimidade no capítulo dedicado às casas das personagens. Assim como mostra o autor, pode-se constatar que as casas no romance de Fitzgerald revelam, e às vezes tentam ocultar, detalhes privados das personagens. As casas são em essência imagens acabadas da intimidade. 15 Gatsby estava de pé ao centro do tapete carmesim e olhava em torno com olhos fascinados. Daisy observava-o e ria, com o seu riso doce, excitante; uma lufada quase imperceptível de pó-de-arroz vinha de seu seio, impregnando o ar. (FITZGERALD, 1980, p.100) 16 Gatsby e eu, cada um por sua vez, nos inclinamos e apertamos a mãozinha relutante. Depois, ele pôs-se a fitar a criança, surpreso. Não creio que ele jamais tivesse acreditado antes em sua existência. (FITZGERALD, 1980, p.101) 17 – Seus estábulos se encontram aqui? – perguntou, com esforço, Gatsby. (p.104) [...] Gatsby voltou-se para mim, rígido: – Não consigo dizer coisa alguma nesta casa, meu velho. (FITZGERALD, 1980, p.104) O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes exercitando-nos mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É o corpo e é a alma. É o primeiro mundo do ser humano. (BACHELARD, 1984, p.201) A passagem do tempo importa muito para a compreensão da história do protagonista, sua relação tão intensa com o passado o atormenta durante toda a narração, sua casa representa um rompimento com o passado de pobreza, mas contraditoriamente, é sua garantia (ou ele pensa ser) de conexão com seu romance com Daisy. Ter sua propriedade em frente à dela permite-lhe uma constante vigília, todavia, além disso, ele esperava que aquela recém adquirida mansão convencesse sua amada de seu sucesso e servisse como um convite a uma vida conjugal. Um estudo sobre o espaço faz uso de elementos concretos ligados ao espaço físico/geográfico e de outros esperados da sensibilidade do leitor: “A imaginação põe um estímulo em todos os nossos sentidos. A atenção imaginante prepara nossos sentidos para o instantâneo”. (BACHELARD, 1984, p.253) A leitura de um romance não deve ater-se a elementos teóricos que a justifiquem perante um leitor mais experiente, deve sim fazer com que qualquer pessoa exerça a imaginação e preencha os espaços da sua própria existência com novas cores e sensações. A grandeza de uma obra literária se dá através de efeitos estilísticos que permitem que o leitor estabeleça um pacto com a obra, como afirma Bachelard no trecho abaixo é preciso se permitir “viver” a história que se contempla. A imensidão foi aumentada pela contemplação. E a atitude contemplativa é um tamanho valor humano que dá uma imensidão que um psicólogo teria toda a razão em declarar efêmera e particular. Mas os poemas são realidades humanas; não basta referir-se a ‘impressões’ para explicá-las. É preciso vivê-las em sua imensidão poética. (1984, p.334) Há na escrita de Fitzgerald para The Great Gatsby uma concisão que demanda contemplação. O espaço é ornado de muitos símbolos, diferentes sensações e belas imagens, que adquirem maior proporção à medida que o olhar se atém aos detalhes. Não é possível apreender a riqueza significativa de uma imagem literária sem conceder a ela tempo e esforço contemplativos. 3. Nick Carraway em seus caminhos por Long Island I am still a little afraid of missing something if I forgot that, as my father snobbishly suggested, and I snobbishly repeat, a sense of the fundamental decencies is parceled out unequally at birth.18 (FITZGERALD, 1994, p.7) 3.1. A narrativa de Nick Carraway A escolha de Fitzgerald por um narrador-personagem confere ao romance um tom de realidade muito particular e ainda assim garante a subjetividade característica a esse tipo de narrador. Deriva da movimentação de Nick Carraway e das relações estabelecidas entre ele e as demais personagens, o reconhecimento do espaço e de informações sobre o enredo, o caminho feito pelo leitor por todos os cenários depende do percurso espacial apresentado pelo narrador. Já na primeira página do romance, Nick justifica sua posição de narrador, revelando a qualidade de discrição que tem e que o transforma, usualmente, em confidente das pessoas. Exibe essa característica pessoal relatando uma conversa que há muito tempo teve com seu pai: “‘Whenever you feel like criticizing anyone’, he told me, ‘just remember that all people in this world haven’t had the advantages that you’ve had.’” 19(p.7) E a seguir, Nick descreve a si mesmo, antecipando o fato de que toda a narrativa é passada pelo filtro de seu particular julgamento, assim como pelo filtro do tempo, que descolore as nuances naturais da história dando lugar às memórias carregadas de impressões pessoais. Mesmo afirmando não ter por costume julgar – “I’m inclined to reserve all judgments, a habit that has opened up many curious natures to me […]” (FITZGERALD, 1994, p.7)20 – deixa claro sua opinião sobre as pessoas ao narrar a história de Jay Gatsby. A atenção dada por Nick a particularidades da narrativa e às personagens específicas determina o rumo que a história tomará. O fato de o narrador reservar para si 18 Tenho ainda certo receio de perder alguma coisa, se esquecer que, como meu pai pretensiosamente sugeria, e eu, pretensiosamente, repetia, um certo senso de decência fundamental é concedido, ao homem, desigualmente, ao nascer. (FITZGERALD, 1980, p.6) 19 Sempre que você tiver vontade de criticar alguém se lembre de que criatura nenhuma neste mundo teve as vantagens de que você desfrutou. 20 “(...) sinto-me inclinado a guardar para mim todos os meus juízos, hábito esse que fez com que muitas naturezas curiosas se abrissem comigo (...)” (FITZGERALD, 1953, p.5). seus juízos de valor permite que as outras personagens se aproximem dele sem receio e que ajam de maneira sincera e natural quando em sua companhia. Isto possibilita ao narrador tomar conhecimento de suas ações e até de seus pensamentos e desejos, e então revelá-los na narrativa que tece. Além de traçar um perfil de cada personagem de maneira intimista, Nick também mostra, através de descrições, aquilo que é óbvio, que está estampado na aparência, nas roupas e nos cenários. A todo o momento ele descreve ao leitor as pessoas que encontra e as cenas que observa por seus caminhos, fazendo com que esse leitor confie nele. Os limites da sua tolerância e até mesmo o fato de julgar o comportamento das outras personagens garantem traços de realidade e confiabilidade ao narrador. O tipo de personagem que Nick Carraway é – observador e reservado – permite que conte a história desse verão de uma posição legítima, já que participa da maioria das cenas que narra, e assim, as descreve em detalhes característicos de sua personalidade cuidadosa e atenta. Narrar e descrever são duas operações similares, no sentido de que ambas se traduzem por uma sequência de palavras (sucessão temporal do discurso), mas o seu objeto é diferente: a narração restitui a sucessão igualmente temporal dos acontecimentos, a descrição representa objetos simultâneos e justapostos no espaço. (BOURNEUF; OUELLET, 1976, p.141) Nick Carraway elege os espaços sobre os quais irá criar uma descrição, escolhendo também a ênfase que colocará na apresentação de cada um deles. É por meio desse narrador que os espaços e ambientes (LINS, 1976) são diferenciados e recebem determinado grau de importância: “(...) a ambientação revela complexidade e engenho na medida em que o narrador, recusando a descrição pura e simples, tece ordenadamente o espaço, personagem e ação.” (p.85) É ele quem reúne espaço, tempo, enredo e personagem de maneira coesa e organiza as ideias, determinando, desta maneira, o percurso que será feito pelo leitor. O narrador muda-se para a costa leste do país em busca de trabalho, ele havia voltado da guerra e toda a nação estava vivendo sob uma atmosfera de luto e ansiedade. Apesar dessa crise, Nick achava-se cheio de esperanças, tinha a intenção de lidar com títulos e não havia no país, melhor lugar para isso do que Nova York. Assim, aluga uma casa em West Egg e posteriormente conhece e torna-se amigo de seu vizinho. Nick morava na parte desprestigiada da ilha, no entanto, Gatsby também escolheu aquela ponta para fixar sua majestosa residência; mais tarde saberemos se tratar de sua vontade de estar perto de Daisy Buchanan, de contemplá-la, ainda que à distância. A casa do casal Buchanan situava-se exatamente do lado contrário da baía, e olhando-a de sua propriedade, Gatsby era capaz de enxergar-lhe a luz do ancoradouro. Na cena transcrita abaixo, Nick apresenta o protagonista da história, no momento em que o vê pela primeira vez, revelando a estranheza que seu gesto lhe causou. Um importante símbolo do romance é referenciado aqui pela primeira vez, a luz verde no ancoradouro da casa de Daisy. […] for he gave me a sudden intimation that he was content to be alone – he stretched out his arms toward the dark water in a curious way, and, far as I was from him, I could have sworn he was trembling.21 Involuntarily I glanced seaward – and distinguished nothing except a single green light, minute and far away, that might have been the end of a dock. When I looked once more for Gatsby he had vanished, and I was alone again in the unquiet darkness. (FITZGERALD, 1994, p.28) 22 É interessante a maneira como esse narrador é construído, mesmo sendo personagem da trama é capaz de dar ao leitor informações muito precisas de personalidades, sensações e sentimentos das outras personagens. Ao “jurar” que Gatsby estava “tremendo”, Nick antecipa a importância daquela luz para onde seu vizinho direciona, muito significativamente, seus braços. Através da narração de Nick conhecem-se os cenários ficcionais, aqueles criados pelo autor a fim de ambientar as relações entre as personagens, como suas casas, por exemplo. Transita-se por West Egg, East Egg e the Valley of Ashes. Todavia também se observam cenários de existência concreta, real, aqueles que podem ser encontrados em qualquer mapa geográfico da região de Long Island. Essa mistura de elementos garantem veridicção (GREIMAS) à trama: “A criação de ilusões referenciais percebe- se, serve sempre para produzir efeitos de sentido de ‘verdade’.” (GREIMAS, 2008, p.531) As personagens se deslocam por espaços reconhecíveis da cidade de Nova York, 21 Grifo nosso. 22 [...] ele, subitamente, me deu a impressão de que se sentia contente de estar sozinho: estendeu os braços, de maneira curiosa, em direção da água escura e, apesar de me encontrar bastante distante dele, poderia jurar que ele se achava trêmulo. Involuntariamente, olhei em direção do mar e não distingui coisa alguma, exceto uma única luz verde, minúscula e distante, que bem poderia ser a extremidade de um ancoradouro. Quando tornei a olhar para Gatsby, ele havia desaparecido, e eu estava de novo sozinho na inquieta escuridão. (FITZGERALD, 1980, p 22) ligados de uma forma ou de outra à realidade exterior: como na cena abaixo em que Nick descreve seus passeios por uma Nova York real. I took dinner usually at the Yale Club – for some reason it was the gloomiest event of my day – and then I went upstairs to the library and studied investments and securities for a conscious hour. There were generally a few rioters around, but they never came into the library, so it was a good place to work. After that, if the night was mellow, I strolled down Madison Avenue past the old Murray Hill Hotel, and over 33rd Street to the Pennsylvania Station. I began to like New York, the racy, adventurous feel of it at night, and the satisfaction that the constant flicker of men and women and machines gives to the restless eyes.23 (FITZGERALD, 1994, p.67) Assim como os espaços são mostrados através dos caminhos percorridos por Nick, as personagens também são apresentadas por meio dos diálogos que têm com o narrador, ou em sua presença, e pela observação atenta e curiosa que ele faz delas. De todas as personagens a que mais clama por atenção é Gatsby, e o protagonista desperta o interesse e a cisma de seu vizinho, que fornece informações ao leitor. Em vários momentos, Nick deixa nas entrelinhas ou mesmo explicitamente, a natureza dos negócios de Gatsby. As discrepâncias nas histórias narradas a ele pelo próprio protagonista começam a surgir, no entanto o que realmente importa é que ele conseguiu sua ascensão e construiu para si o tipo de imagem que sempre desejou ter. Essa imagem do self-made man, essa capacidade de ascender socialmente, metaforiza no romance o “sonho americano”. Na realidade, o talento para se autodefinir e atingir seus objetivos materiais, tão rapidamente, tão jovem, é o que torna “grande”, qualidade a que o título do romance faz menção. Bloom (2003) afirma que Nick Carraway “funciona como um contraste dramático, recalcitrante e atônito” em relação a Gatsby, a seu esplendor e seu sonho. E que ele também representa um herói em busca de grandeza, porém incapaz de enxergar- se como agente nessa história, um tanto ofuscado pelo brilho que pensa possuir seu amigo. Ainda sobre a obra e seu protagonista o autor afirma: 23 Jantava, habitualmente, no Yale Club – o que, por alguma razão, constituía a hora mais melancólica do meu dia – e, depois, subia à biblioteca e estudava conscienciosamente, havia sempre por lá uns poucos sujeitos turbulentos, mas eles jamais iam à biblioteca, de modo que aquele era um bom lugar para trabalhar. Depois disso, se a noite era suave, eu subia a pé a Madison Avenue, indo além do velho Murray Hilton Hotel e Rua 33, rumo da Pennsylvania Station. Comecei a gostar de Nova York, da picante e aventurosa sensação que ela produzia à noite, e da satisfação que o incessante desfile de homens, mulheres e máquinas causa aos olhos inquietos. (FITZGERALD, 1980, p.51) [...] Nick Carraway descreve a personalidade de Gatsby como “uma série ininterrupta de gestos bem-sucedidos.” O fato de existir algo a mais em Gatsby, nem tanto o sonho do valor, mas o valor do sonho é o que fascina Nick – e o leitor. Gatsby é um filho de Deus, autoconcebido. Busca o que todos os norte-americanos monomaníacos – fictícios ou reais – têm buscado: riqueza, amor, lar, um lugar na sociedade. Jay Gatsby é um dos poemas platônicos dos nossos tempos, uma das palavras falhas, dos sons teimosos que insistem em prosseguir. (2003, p.657) Curiosamente, conseguindo construir a fortuna e a fama desejada, Gatsby parecia sempre insatisfeito. Organizava grandes festas, mas por algum estranho motivo, nunca participava delas. Nos trechos que seguem toma-se consciência da solidão de Gatsby que, mesmo tendo a casa repleta de convidados sente-se sozinho, parecendo preferir a solidão à companhia daquelas pessoas, com as quais não compartilha nenhum interesse, nem mesmo o de se divertir, a função que ali desejava ter era apenas a de anfitrião e que aquilo lhe trouxesse fama. Nick observa essa estranha atitude e a aponta na cena abaixo: The nature of Mr. Tostoff’s composition eluded me, because just as it began my eyes fell on Gatsby, standing alone on the marble steps and looking from one group to another with approving eyes. (FITZGERALD, 1994, p.57)24 […] The large room was full of people. (FITZGERALD, 1994, p.58)25 […] I turned away and across the lawn toward home. I glanced back once. A wafer of a moon was shining over Gatsby’s house, making the night fine as before, and surviving the laughter and the sound of his still glowing garden. A sudden emptiness seemed to flow now from the windows and the great doors, endowing with complete isolation the figure of the host, who stood on the porch, his hand up in a formal gesture of farewell. (FITZGERALD, 1994, p.62) 26 24 A natureza da composição do Sr. Tostoff foi coisa que me escapou, pois que, logo que ela começou, meus olhos pousaram em Gatsby, de pé nos degraus de mármore, a correr os olhos, com ar de aprovação, pelos grupos de seus convidados. (FITZGERALD, 1980, p.46) 25 O grande salão estava cheio de gente. (FITZGERALD, 1980, p.47) 26 Dei meia volta e atravessei o gramado, em direção de minha casa. Olhei ainda uma vez para trás. A lua cheia brilhava sobre a mansão de Gatsby, tornando a noite tão bela quanto antes, e sobrevivendo aos risos e aos sons de seu jardim, ainda iluminado. Súbito, um vazio pareceu fluir das janelas e das grandes portas envidraçadas e envolver a figura do dono da casa, que se achava de pé no alpendre, a mão a acenar num gesto cerimonioso de despedida. (FITZGERALD, 1980, p.50) Através da revelação das reminiscências de Nick, toma-se conhecimento das aventuras desse pequeno período em que esteve vivendo na costa leste do país e desfrutou da companhia de Jay Gatsby e das demais personagens. Ele relata a história do protagonista, de quem era vizinho e posteriormente tornou-se amigo, e tem participação ativa nos acontecimentos narrados. Durante esse derradeiro verão, ele participa de algumas atividades ao lado do protagonista e aos poucos vai lhe conhecendo os segredos. É dessa forma que o narrador conhece o passado de Gatsby – que por ser deveras nebuloso, acaba sendo assunto de um falatório generalizado, fantasioso – e passa a conhecer os desejos e temores de seu fascinante vizinho. Assim, percorre um caminho que conduz o leitor à essência dessa personagem. Talvez a característica mais importante de Nick seja a maneira delicada e discreta que se põe à margem, observa e julga os acontecimentos desse pequeno período em que desfruta da companhia de Gatsby. A história acaba sendo um depoimento de Nick, uma reflexão sobre os limites da conduta pessoal e da tolerância. Nick Carraway é um narrador confiável, que se abre de forma sincera às histórias que lhe são narradas, e o faz particularmente a Gatsby. O interesse pelo vizinho é genuíno, ele aprende através dos erros e da obstinação do protagonista. O narrador parece ser a única personagem que sai mudada ao final do verão, que consegue amadurecer, esse fato é marcado quando Nick se lembra de seu aniversário – completava trinta anos – ao voltar de Nova York na noite em que se dá o clímax da história. (...) he (Fitzgerald27) selected a narrator sufficiently near to the center of things to know all he needs to know, tied into the action by the affair with Jordan Baker which is, though muted, carefully made parallel to the affair between Gatsby and Daisy. (KAZIN, 1966, p.26) 28 Mesmo o narrador sendo uma personagem, portanto não podendo conhecer tudo o que se passa no íntimo das outras personagens, mostra-se capaz de muitas inferências. Além de suas opiniões pessoais sobre elas, Nick tem mais informações sobre os fatos transcorridos no verão do que qualquer outra pessoa. Isso acontece porque ele é o único 27 Grifo nosso. 28 Ele (Fitzgerald) escolheu um narrador suficientemente próximo ao centro dos acontecimentos, para saber tudo o que ele precisa saber, atado à ação através do affair com Jordan Baker, que de maneira velada, faz um paralelo com o affair de Gatsby e Daisy. que se relaciona de modo geral com todas as personagens e das quais tem o afeto e a confiança, ficando, dessa forma, livre para transitar e observar os fatos ocorridos. Durante a trama várias confissões são confiadas ao narrador, que possui informações suficientes para, por vezes, assumir características de narrador onisciente. Como se constata a seguir: ‘She’ll be all right tomorrow,’ he said presently. ‘I’m just going to wait here and see if he tries to bother her about that unpleasantness this afternoon. She’s locked herself into her room, and if he tries any brutality she’s going to turn the light out and on again.’ ‘He won’t touch her,’ I said. ‘He’s not29 thinking about her.’30 (FITZGERALD, 1994, p.151) Como narrador-personagem Nick não pode decifrar os íntimos pensamentos das demais personagens. O que pode fazer, e realmente faz, é sondar-lhes os desejos e as intenções. Quando diz a Gatsby que Tom não está pensando em Daisy, diz por saber que naquele momento ele estava em luto por Myrtle. O fato de ter conquistado a confiança das pessoas deixa-lhe o trânsito livre por todos os espaços, facilitando assim que ele faça essa sondagem, desvele alguns segredos ou apenas observe as outras personagens em suas mais prosaicas ações e intenções. A facilidade que o narrador possui para explorar os variados cenários da obra permite-lhe narrar a cena abaixo, na qual ele percebe “um inconfundível ar de intimidade”, característica de casais que dividem uma harmoniosa rotina. Daisy and Tom were sitting opposite each other at the kitchen table, with a plate of cold fried chicken between them, and two bottles of ale. He was talking intently across the table at her, and in his earnestness his hand had fallen upon and covered her own. Once in a while she looked up at him and nodded in agreement. 31(FITZGERALD, 1994, p.152) […] 29 Grifo nosso. 30 – Amanhã ela já estará bem. Vou esperar aqui apenas para ver se ele tentará molestá-la devido às coisas desagradáveis ocorridas esta tarde. Ela está trancada em seu quarto; se ele tentar agir com brutalidade, ela me dará um sinal, apagando e acendendo a luz. – Ele não tocará nela – disse-lhe eu. – Ele não está pensando nela. (FITZGERALD, 1980, p.124) 31 Daisy e Tom estavam sentados, um diante do outro, à mesa da cozinha, tendo diante de si um prato de frango frito e duas garrafas de cerveja. Ele falava-lhe, com ar grave, através da mesa e, no decorrer da conversa, sua mão caíra sobre a de Daisy, ocultando-a por completo. De quando em quanto, ela erguia os olhos para ele e fazia um sinal de assentimento com a cabeça. (FITZGERALD, 1980, p. 125) (…)There was an unmistakable air of natural intimacy about the picture, and anybody would have said that they were conspiring together. (FITZGERALD, 1994, p.152) 32 Essa confiança que as outras personagens depositavam em Nick permite-lhe também saber do envolvimento de Tom com Myrtle – que morre atropelada no penúltimo capítulo do livro, assim como conhecer o verdadeiro culpado por essa morte. A liberdade que tinha na residência Buchanan, e também em todos os outros cenários da história, adiantava-lhe o reatamento do casal. No ar de cumplicidade que pairava sobre a cena na cozinha, presenciada por ele, podia antever o desfecho que Daisy e Tom dariam àquela tão recente tragédia. E não era como se tudo aquilo não lhe provocasse indignação; indignava-se sim, mas em momento algum poderia declarar-se surpreso. Observador é, sem dúvida, um termo essencial para descrever Nick Carraway, ele é mesmo esse ser que testemunha os fatos e depois se propõe a documentá-los. “Haverá, pois, que ao menos distinguir no interior do tipo homodiegético duas variedades: uma em que o narrador é o herói da narrativa (...) e a outra em que desempenha um papel de observador secundário [...]”. (GENETTE, s/d, p.244) Homodiegético é o termo genettiano para o tipo de narrador que integra, como personagem, a narrativa. Visualizar Gatsby pelos olhos de Nick acaba por transformar o protagonista em uma figura mistificada. Em sua concepção, o ostentoso contrabandista de bebidas alcoólicas, Gatsby, era uma pessoa de maior sensibilidade moral do que Daisy e Tom, ambos ricos e bem educados. Nick mesmo lhe diz isso ao final do romance, quando lhe recomenda uma viagem, fugindo das suspeitas que certamente recairiam sobre ele, no que seria seu último momento ao lado de Gatsby: “‘They’re a rotten crowd’, I shouted across the lawn. ‘You’re worth the whole damn bunch put together.’”(FITZGERALD, 1994, p.160)33 No entanto, “observador” seria insuficiente para definir Nick, uma personagem essencial à trama, cuidadosamente colocado na história para expressar opiniões que outros não poderiam expressar. Nick é um narrador subjetivo e sem distanciamento 32 (...) havia nesse quadro, um ar inconfundível de intimidade; qualquer pessoa diria que ambos se achavam entregues a alguma conspiração. (FITZGERALD, p.125) 33 - Essa gente é horrorosa! – gritei-lhe. – Você vale muito mais do que todos eles reunidos. (FITZGERALD, 1980, p.133) como o descrito na citação que se segue, e haver esse caráter pessoal em sua narrativa é o que a torna persuasível para o leitor que se compadece do enorme esforço e infeliz desfecho do protagonista. O nosso problema técnico é encontrar uma orquestração das consciências que nos permita transmitir a pluralidade do acontecimento. Além disso, renunciando a ficção do narrador que tudo conhece, assumimos a obrigação de suprimir os intermédios entre o leitor e as subjetividades-ponto-de-vista das nossas personagens: trata- se de fazê-lo entrar nas consciências como num moinho, é necessário até que ele coincida sucessivamente com cada uma de entre elas. Assim aprendemos com Joyce a buscar uma segunda espécie de realismo: o realismo bruto da subjetividade sem mediação nem distância. (SARTRE apud BOURNEUF; OUELLET, 1976, p.120). Há detalhes da narrativa que se revelam através do olhar de Nick Carraway sobre eles. Há também informações que dependem unicamente do ponto de vista do narrador. Por ter assumido uma posição de confidente das outras personagens ele possui informações íntimas sobre elas e a partir daí, pode fazer, e faz, inferências sobre o caráter e o comportamento dessas pessoas ao lado de quem desfruta o verão. Portanto deixa-se influenciar pela subjetividade, por mais sensato que Nick tenha se mostrado durante toda a narrativa, tudo o que se sabe sobre os fatos ocorridos e a reação das pessoas diante deles passa pela avaliação do narrador. 3.2 O percurso espacial de Nick Carraway Os cenários que separam as personagens em classes são criados através de ilusões referenciais, constam três bairros na narrativa: East Egg, West Egg e The Valley of Ashes. Essa divisão é determinada por razões financeiras e de tradição familiar. A segregação criada auxilia na caracterização dessas personagens, influenciando na determinação de suas ações e fornecendo pistas ao leitor do que esperar de cada segmento geográfico. Tal separação importa, desde o princípio, para a narração de Nick Carraway, seu estratégico posicionamento na obra e sua livre movimentação pelos variados cenários. Todos os espaços em The Great Gatsby, como já foi dito, dependem dos caminhos trilhados por Nick Carraway, desde o momento em que se muda para a costa leste para trabalhar em Nova York e o acaso o leva a viver em West Egg. Por morar fora da cidade, precisa tomar diariamente o trem, o que lhe possibilita observar a paisagem no entorno. Mudando-se para aquele bairro acontece de habitar a casa ao lado da mansão de Jay Gatsby, participar de suas festas e com ele fazer alguns passeios pela cidade de Nova York. Nick descreve a diferença existente entre West Egg e East Egg como “bizarra e um pouco sinistra”, esse simples comentário já adianta ao leitor o que encontrará nos dois espaços. I lived at West Egg, the – well, the less fashionable of the two, though this is a most superficial tag to express the bizarre and not a little sinister contrast between them. My house was at the very tip of the egg, […] The one on my right was a colossal affair by any standard […] with a tower on one side, spanking new under a thin beard of raw ivy, and a marble swimming pool, and more than forty acres of lawn and garden. It was Gatsby’s mansion. (FITZGERALD, 1994, p.11) 34 Também o reencontro com sua prima Daisy, cujo marido Tom Buchanan foi seu contemporâneo na universidade de Yale, permite-lhe trilhar novos caminhos pelo outro lado da baía. Retomar a relação com a prima e o marido dela coloca Jordan Baker (amiga de Daisy) em sua vida e possibilita-lhe, também, conhecer a amante de Tom (Myrtle Wilson). Dessa forma, todas as pessoas que atuam nos acontecimentos que serão narrados são postas à sua frente e passam a integrar a sua vida de maneira mais ou menos direta. Reading over what I have written so far, I see I have given the impression that the events of the three nights several weeks apart were all that absorbed me. On the contrary, they were merely casual events in a crowded summer, and, until much later, they absorbed me infinitely less than my personal affairs. (FITZGERALD, 1994, p.62) 35 As três noites a que se refere Nick no trecho acima acontecem nos três bairros em que as personagens da história se dividem. Portanto, até esse momento, o narrador 34 (...) Eu morava em West Egg, o ... bem, o menos elegante dos dois, embora este seja um rótulo sumamente superficial para exprimir o contraste bizarro – e que não deixava de ser, de certo modo, sinistro – existente entre ambos. Minha casa ficava bem na ponta do ovo (...) A da direita era colossal, comparada a qualquer construção do mesmo gênero: com uma torre ao lado esplendidamente nova sob o seu tênue revestimento de hera, uma piscina de mármore e mais de quarenta acres de relvados e jardins. Era a mansão de Gatsby. (FITZGERALD, 1980, p.8-9) 35 Lendo o que até agora escrevi, vejo que dei a impressão de que os acontecimentos das três noites, tendo de permeio o decurso de várias semanas, formam a única coisa que me absorveu a atenção. Mas pelo contrário, não passaram, na verdade, de acontecimentos casuais de um verão agitado e, a não ser muito mais tarde, me absorveram infinitamente menos do que os meus assuntos pessoais. (FITZGERALD, 1980, p.51) pôde visitar todos os cenários e já apresentou ao leitor as personagens mais importantes do romance. A trama segue na medida em que Nick segue seu percurso pelos espaços mencionados. 3.2.1. Nick Carraway é recebido em East Egg O primeiro encontro que o narrador tem com o casal Buchanan após a guerra foi em um jantar na casa deles. Há anos não os via, fora colega de Tom na universidade de Yale, mas não pudera comparecer ao casamento, pois estava servindo no exército. Ao voltar dessa reunião em East Egg, senta-se na varanda simples de sua casa em West Egg e então reflete sobre os acontecimentos da noite e de como aquelas pessoas se comportavam diferentemente dele, como se aquela separação geográfica entre leste e oeste separasse ainda de maneira natural, as pessoas por características que lhe eram intrinsecamente determinantes. Apesar de notar um certo ar de descontentamento em sua prima, quando tiveram a oportunidade de conversar em particular, pôde perceber, também, quão parecida com o marido ela era. ‘I’ve been everywhere and seen everything and done everything’ Her eyes flashed around her in a defiant way, rather like Tom’s, and she laughed with thrilling scorn. ‘Sophisticated – God, I’m sophisticated!’ (p.24) 36 Nick tem um momento a sós com sua prima e percebe a insatisfação dela, sentimento que não detectou em seu marido: Tom Buchanan mostrou a mesma vitalidade de quando o conheceu há anos atrás. O narrador ainda encanta-se com o charme de Daisy, no entanto nota o olhar de ceticismo que ela lança sobre o próprio casamento, entende que a vida dispendiosa e errante ao lado do marido afetou-lhe a personalidade e que a convivência com Tom Buchanan a faz assemelhar-se a ele. Nick Carraway ao se despedir do casal no final da noite percebe a estranha e artificial harmonia presente naquela casa, compreende a afinidade existente, mas não se deixa enganar pela pretensa cordialidade dos dois. 36 Estive em toda parte, vi tudo e já fiz tudo. – Lançou em torno de si um olhar lampejante, desafiador, que se assemelhava, de certo modo, ao de Tom, e riu, com eletrizante desdém: - Sofisticada!... Santo Deus, como sou sofisticada! (p.19). They came to the door with me and stood side by side in a cheerful square of light. (p.26)37 Their interest rather touched me and made them less remotely rich – nevertheless, I was confused and a little disgusted as I drove away. It seemed to me that the thing for Daisy to do was to rush out of the house, child in arms – but apparently there were no such intentions in her head. As for Tom, the fact that ‘he had some woman in New York’ was really less surprising that he had been depressed by a book. Something was making him nibble at the edge of stale ideas as if his sturdy physical egotism no longer nourished his peremptory heart. (FITZGERALD, 1994, p.27) 38 À primeira vista a impressão que se tem ao ver Tom e Daisy Buchanan é de que, se não são felizes, são ao menos coerentes juntos, combinam com aquele cenário e parecem firmar algum tipo de parceria. O luxo e a grandiosidade da casa complementam a elegância de Daisy e a altivez de Tom. No entanto o interesse deles pelo bem estar de Jordan e pela vida romântica de Nick lhes conferem características mais sensíveis, que o narrador recebe educadamente mas sem ingenuidade. E ao acabar a noite, ao se despedirem do narrador, parados lado a lado enquadrados pelo umbral da porta, é fácil enxergá-los tal qual uma pintura, onde todos os elementos exteriores comungam. A função de contar uma história e descrevê-la em detalhes é executada de maneira convincente por Nick Carraway, ele se atém a pequenos detalhes que conferem valor simbólico à narrativa, como a cena em que vê Gatsby pela primeira vez de braços esticados em direção a imensidão azul, ou quando faz notar a presença de um outdoor quase destruído no caminho para seu trabalho em Nova York, cujo aspecto de deterioração combina com a imagem de miséria que pode observar na parada do trem na estação, em The Valley of Ashes. O percurso de Nick faz mais do que simplesmente mostrar os espaços percorridos por ele e por outras personagens, pois delineia os rumos da história e está repleto de ricos detalhes que colorem a narrativa dele. 37 Acompanharam-me ambos até a porta e ficaram parados lado a lado, sob um alegre retângulo de luz. (p.21). 38 O interesse de ambos quase me comoveu, fazendo com que parecessem menos ricos e distantes; não obstante, senti-me um tanto confuso e desgostoso, ao afastar-me dali. Pareceu-me que o que Daisy queria fazer era fugir daquela casa, levando nos braços a filhinha – mas, segundo parecia, não havia tal intenção em sua cabeça. Quanto a Tom, o fato de ele “ter uma mulher em Nova York” era, na verdade, menos surpreendente do que o de haver ficado deprimido com a leitura de um livro. Algo estava fazendo com que ele mordiscasse a ponta de algumas idéias sediças, como se o seu vigoroso egoísmo físico já não alimentasse o seu coração autoritário. (FITZGERALD, 1980, p.21) O romancista, como o pintor ou o fotógrafo, escolhe em primeiro lugar uma porção do espaço, que enquadra, e situa-se a uma certa distância: [...] isola intencionalmente um fragmento de objeto como para aí fechar, nesta visão, a personagem e com ela o leitor, sendo, além disso, a impressão reforçada reeducação paródica do mesmo quadro. (p.143) Na pintura, é o próprio observador que a efetiva, visto o quadro ser dado de uma só vez; no romance, onde a descrição tem de ser sucessiva, o escritor guia a vista ao longo dos caminhos que ele próprio traçou. [...] O olhar estabelece, portanto, relações entre as diversas partes do objeto a descrever, assinala as similitudes, fixa as proporções, marca os contrastes: (BOURNEUF; OUELLET, 1976, p.144) Em sua posição de narrador Nick coloca-se estrategicamente para observar e, então, relatar as ações que testemunha. Sem importar a que distância se coloque, pode ser da janela do trem olhando a paisagem ou frente a frente com seu interlocutor, é sempre Nick Carraway quem guia o olhar do leitor e o direciona para o exato lugar onde quer que ele pouse. 3.2.2 – The Ashes Valley e Myrtle Wilson Além de Jordan Baker, que conheceu na noite em que jantou na residência Buchanan, a reaproximação com o casal permitiu também a Nick conhecer a amante de Tom. Foi em um domingo que por acaso viajava de trem com o marido de sua prima, ele insistiu para que fizessem uma parada a fim de Nick conhecer a “sua garota”. Com seu jeito de ser impetuoso quase arrasta o narrador para a oficina de George Wilson. Nesse momento Nick pôde conhecer de perto espaços que até então apenas vira através da janela do trem. Ao entrar na oficina e conhecer o casal Wilson. Nick entende que aquela imagem desolada, coberta de cinzas, que vê do lado de fora, desloca-se também para dentro daquele lar. The valley of ashes is bounded on one side by a small foul river, and, when the drawbridge is up to let barges through, the passengers on waiting trains can stare at the dismal scene for as long as half an hour. There is always a halt there of at least a minute, and it was because of this that I first met Tom’s mistress. (P.29-30) 39 39 O vale de cinzas como limite, de um lado, um riozinho sujo e, quando a ponte levadiça é levantada, para dar passagem às barcas, os passageiros dos trens, parados, podem fitar, por espaço de meia hora, a desolada paisagem. Há sempre lá uma parada de pelo menos um minuto, e foi devido a isso que vi, pela primeira vez, a amante de Tom Buchanan. (FITZGERALD, 1980, p.24) I went up to New York with Tom on the train one afternoon, and when we stopped by the ashheaps he jumped to his feet and, taking hold of my elbow, literally forced me from the car. ‘We’re getting off,’ he insisted. ‘I want you to meet my girl.’ (FITZGERALD, 1994, p. 30) 40 É dessa forma que descobre que a tal mulher que Tom tinha na cidade – sobre a qual foi informado na noite em que reencontrou o casal Buchanan – era a esposa do dono da oficina mecânica que avistava em seu caminho para o trabalho. A aparência exagerada de Myrtle desagrada Nick, ele a descreve como uma mulher vulgar e cheia de uma intensa energia vital, que ao mudar de ambiente e roupa, muda também de personalidade, tornando-se altiva. Em pouco tempo ele se vê envolvido em uma reunião de poucas pessoas, no pequeno apartamento que Tom mantinha com Myrtle, em Nova York. 3.2.3 – West Egg: ao lado de Jay Gatsby A primeira vez que Nick conversou com Gatsby fez sobre ele diversas considerações, que descrevem muito mais do que uma primeira impressão. Descrevem, sim, uma impressão de surpresa por talvez esperar um homem mais sofisticado ou mais velho, não contava com um encontro tão empático. Eles se conhecem mas não são apresentados formalmente, Nick lhe é simpático e prestativo antes de saber que se tratava do anfitrião, e essa cordialidade desinteressada ganha, quase que instantaneamente, a confiança e o respeito de Gatsby. He smiled understandingly – much more than understandingly. It was one of those rare smiles with a quality of eternal reassurance in it, […] It faced – or seemed to face – the whole eternal world for an instant, and then concentrated on you with an irrestible prejudice in your favour. It understood you just as far as you wanted to be understood, believed you as you would like to believe in yourself, and assured you that it had precisely the impression of you that, at you best, you hoped to convey. Precisely at that point it vanished – and I was looking at an elegant young rough-neck, a year or two over thirty, whose elaborate formality of speech just missed being absurd. Some time before he introduced himself I’d got a strong impression that he was picking his words with care. (FITZGERALD, 1994, p. 54-55) 41 40 Seguia eu de trem, certa tarde, para Nova York, em companhia de Tom, quando aos chegarmos aos montes de cinzas, ele se pôs de pé de um salto e, tomando-me pelo cotovelo, me obrigou, literalmente, a descer do trem. − Vamos descer aqui – insistiu. – Quero que você conheça a minha garota. (FITZGERALD, 1980, p.24) 41 Sorriu compreensivamente – muito mais do que compreensivamente. Era um desses sorrisos raros que têm em si algo de segurança eterna, (...) Um sorriso que, por um momento, encarava – ou Esse parágrafo revela a imagem que Gatsby assumiu aos olhos de Nick, que nota certa artificialidade nas maneiras de seu an