BOTTICELLI PINTURA E TEORIA DÉBORA BARBAM MENDONÇA BOTTICELLI CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Ricardo Pereira Tassinari Reinaldo Sampaio Pereira Clélia Aparecida Martins Felipe Resende da Silva (representante discente) DÉBORA BARBAM MENDONÇA BOTTICELLI PINTURA E TEORIA © 2012 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M494b Mendonça, Débora Barbam Botticelli: pintura e teoria / Débora Barbam Mendonça. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-352-6 1. Botticelli, Sandro, 1444 ou 5-1510. 2. Pintura renascentista – Itália. I. Título. 12-9385. CDD: 709.45 CDU: 7.034(450) Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Editora afiliada: Ao meu sobrinho, o pequeno Frederico. Que o futuro triunfe! AGRADECIMENTOS Durante o curso das disciplinas, a elaboração da dissertação e todas as demais atividades envolvidas no mestrado, muitas pessoas foram enormemente importantes ao ajudar a manter minha sanida- de mental. Agradeço ao programa de pós-graduação de filosofia e ao escritório de pesquisa, em especial aos funcionários Paulo Sérgio Teles, Sylvia Moraes e Renato Geraldi, sem os quais estaria à deriva em um mar de burocracia. Não há espaço suficiente para expressar a imensa gratidão pela minha querida orientadora Arlenice Almeida da Silva, por sua sabedoria, dedicação, compreensão e paciência ao longo de todos os anos em que trabalhamos juntas. Agradeço aos professores Ana Maria Portich, Andrey Ivanov, Magnólia Costa, Márcio Benchimol e Mário Henrique D’Agostino por terem cola- borado diretamente com meu trabalho. Agradeço à Fapesp por ter fomentado minha pesquisa, possibilitando que eu dispusesse de mais tempo para me debruçar sobre ela. Agradeço à minha família, principalmente à minha mãe, à minha irmã, ao meu sobrinho e aos meus avós por terem me lembrado com frequência que, mesmo estando a um passo da loucura, nossa prioridade é sempre a vida. Agradeço aos meus colegas de pós-graduação Cláudia Galassi, Danilo Ramos, Flávia Quintanilha, Fernando Aun, Luís Fernando Catelan, Rafael Gazeli e Tércio Bugano que, surpreendentemente, 8 DÉBORA BARBAM MENDONÇA se tornaram amigos. Agradeço à república Alta Tensão (Ivan Pedro Martins, Nathália Pantaleão e Paulo Henrique Pereira) pelo “alívio na tensão”. Agradeço aos amigos de longa data e de vida inteira Ana Carolina Meneguelli, Emerson Filipini, Estevan Franco, Fer- nando Pilan, João Roberto Ricardi, Juliana Arruda, Márcio Girotti e Vivian Souza por terem acompanhado meu esforço e terem me apoiado mesmo quando meu cansaço os afetava. Agradeço a João Antonio de Moraes por nunca ter perdido a fé e por ter me mos- trado que sempre há um caminho melhor a se traçar. Concluindo em um contexto místico, agradeço ao cosmos por ter me devolvido a saúde no momento em que qualquer mal-estar era considerado artigo de luxo. “And I ride the winds of a brand new day High where mountains stand Found my hope and pride again Rebirth of a man Time to fly…” (Angra – Rebirth) SUMÁRIO Introdução 13 1 Historiografia e metodologia 27 2 Conceitos e doutrinas 41 3 Pintura e reflexão 65 Considerações finais: A virgem do magnificat 113 Referências bibliográficas 125 INTRODUÇÃO Esta obr a tem por objetivo estudar o conceito de “graça” na pin- tura do florentino Sandro Botticelli e, com base nele, confrontar o trabalho desse artista com os pressupostos teóricos que embasavam essa produção. Para isso, tomamos como ponto de partida o estudo de Giulio Carlo Argan1 sobre a pintura de Botticelli, que examinou o envolvimento do pintor com o contexto teórico que vigorava em Florença no século XV. As contribuições de Argan foram lidas como sugestão inicial para o questionamento filosófico acerca da pintura de Botticelli. Tal pintura, realizada durante o Quattrocento florentino, é fre- quentemente dividida em três fases, as quais passaremos a expor sucintamente, a fim de termos maior clareza acerca dos questio- namentos indicados por Argan. Certamente, cada fase da obra de Botticelli foi intrigante e decisiva na constituição do conjunto, bem como para a formação do artista, que consideramos um verdadeiro representante do Renascimento. A primeira fase da produção de Botticelli corresponde às suas obras iniciais, e a maior parte delas sofreu forte influência de seus 1 Cf. Argan, Giulio C. Clássico e anticlássico. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 14 DÉBORA BARBAM MENDONÇA precursores e mestres de ateliês, como Fra Angelico (1395-1455), Fra Filippo Lippi (1406-69) e Masaccio (1401-28). Nessa fase, observamos que Botticelli se dedicava às representações de figuras bíblicas, seguindo as exigências do Cristianismo. Outra caracterís- tica que podemos notar é a presença de um traço não tão seguro e bem delimitado como o que aparece na fase seguinte, uma vez que, assim como todo iniciante em pintura, Botticelli começou se fami- liarizando com a composição, aprendendo a mistura e o preparo das tintas. Algumas obras, no entanto, já lhe rendiam prestígio, como é o caso de A adoração dos magos (1465-7). Trata-se de um de seus primeiros trabalhos originais, que marca o início de uma grandiosa série de quadros dedicados ao tema religioso. Eles foram do agrado de mecenas importantes em Florença, cujas confrarias, como a dos Reis Magos, faziam parte do regimento da vida na cidade. Na primeira fase, Botticelli também se dedicou à representação da Virgem Maria, que na maioria das vezes é figurada junto do menino Jesus e de anjos. Esse tema mostra claramente a fidelidade do pintor aos ensinamentos de seu mestre Fra Filippo Lippi, que, por sua vez, exercia atividades religiosas. Não demorou muito, após os cinco anos em que esteve vinculado ao ateliê de Lippi, para que Botticelli inaugurasse seu próprio estúdio em Florença, por volta de 1470. A partir de então, Botticelli partiu em direção a caracte- rísticas próprias e se mostrou receptivo às novas tendências que acreditamos ser o ponto de transição para sua segunda fase. O artis- ta se colocou de prontidão à necessidade de serem pintadas figuras de temática bíblica e até mesmo retratos; porém, solitariamente, começou a introduzir em suas representações alguns elementos que denotam originalidade. Tais elementos atingiram seu ápice por volta da década de 1480, no Quattrocento, quando, por meio deles, Botticelli finalmente conquistou a admiração dos mecenas, sobre- tudo da família Médici. Pelo fato de Botticelli haver começado sua produção indepen- dente ainda muito jovem, as obras da segunda fase podem ser clas- sificadas como “obras de juventude”, nas quais a jovialidade e o estado de ânimo do pintor são percebidos de maneira clara. No final BOTTICELLI 15 dos anos 1470, a fama de Botticelli extrapolou os limites de Floren- ça, proporcionando-lhe, entre outras atividades, a oportunidade de pintar afrescos na Capela Sistina. O prestígio decorria, também, dos conhecimentos intelectuais para os quais o artista se abria, como a literatura e a filosofia antigas, que fizeram com que ele atraísse a atenção da família mais poderosa de Florença. Esse fato lhe rendeu encomendas grandiosas, por meio das quais é possível reconhecer sua celebridade além da era renascentista. Durante o período estabelecido como a segunda fase da obra de Botticelli,2 marcada principalmente pela adoção de motivos pagãos, percebemos um importante e valioso aspecto, que pode ser obser- vado nas diversas esferas do Renascimento: o tema do naturalismo. O tema da natureza, ou mesmo a busca por um conteúdo que res- gatasse a temática grega, era nitidamente frequente nas pinturas de Botticelli, as quais expressavam uma estreita associação entre arte e filosofia. O tema do naturalismo surgiu no Renascimento por causa do interesse renovado pela Antiguidade, pois nesse período a natureza (physis) envolvia várias dimensões da vida do homem: mitológica, científica, filosófica, cultural e política. Dessa maneira, os renascentistas buscavam na Antiguidade referências por meio das quais pudessem estabelecer uma nova relação entre o homem e a natureza, e essa busca pode ser muito bem observada nas produ- ções artísticas da época. Destacavam-se representações de figuras mitológicas que, à primeira vista, conotavam um sentido profano, em vista da religião cristã; entretanto, a real mensagem era a trans- missão de um conteúdo filosófico que os intelectuais discutiam nos encontros de reflexão. Na fase tardia de Botticelli, posterior aos anos 1490, o pintor demonstrou uma grande preocupação com o conteúdo, jamais, contudo, em detrimento dos aspectos formais que compõem sua 2 Apresentamos uma divisão do conjunto de obras de Botticelli a partir das considerações de Giulio Carlo Argan (Clássico e anticlássico. São Paulo: Com- panhia das Letras, 1999), e pela apresentação das obras realizadas por Bárbara Deimling (Botticelli. Colônia: Taschen, 1995). 16 DÉBORA BARBAM MENDONÇA pintura. O pintor utilizou atrativos figurais e grande variedade de cores, fazendo com que tais elementos auxiliassem a transmissão de um conceito já não mais mitológico; as formas, as cores e até mesmo as figuras tornaram-se instrumentos de comunicação de suas re- flexões. Acreditamos que esse novo objetivo da arte de Botticelli expressa, sumariamente, um retorno à arte simples, mais natural no sentido paisagístico, tomando como referência os afrescos de Giotto (1266-1337), em um movimento no qual seria possível realizar um regresso saudosista ao início do Renascimento, com valoriza- ção maior do conteúdo e menor do artifício. Essa medida talvez se deva ao fato de Botticelli ter sofrido certa censura por parte de um frei dominicano que se estabeleceu em Florença no final do século XV, Girolamo Savonarolla (1452-98). Tal censura teria ocorrido diante da intensa retomada pelo pintor de temas religiosos, como é o caso das obras que ilustram a vida de São Zenóbio (1500-1505), narrador da história do primeiro papa de Florença, nascido mais de mil anos antes. Percebemos que essa última fase despertou um interesse particular da parte de Argan, uma vez que o teórico ob- servou que foi nela que Botticelli se definiu, ou seja, que o pintor florentino foi capaz de conciliar as influências teóricas e técnicas, as quais examinaremos adiante. Como se sabe, a família Médici foi grande provedora da arte de Botticelli, estabelecendo certos critérios para as obras que lhe encomendavam. No entanto, o artista, como homem intelectual do Renascimento e conhecedor das regras do Humanismo, entendia que tais regras eram aquelas ditadas pelos manuais de pintura, ou, diferentemente, orientadas pela Filosofia, Teologia e, sobretudo, pelo legado antigo da Literatura. Botticelli conseguiu imprimir, por meio desse conhecimento múltiplo, um caráter original em sua obra: conseguiu resgatar e apropriar-se do repertório dos antigos sobre a natureza, voltando-se aos temas clássicos que permearam boa parte de sua produção. Os valores humanísticos fundamentavam-se não só na temática grega essencial para o Renascimento, como também na necessidade de regresso à natureza esquecida e, com isso, aos valores antigos, BOTTICELLI 17 fossem eles neoplatônicos – que se referem ao amor e ao belo possí- vel de se realizar para o homem em âmbito estritamente ideal – ou aristotélicos. No artigo “Botticelli”, Argan (1999, p.208-9) propõe que o pintor possuía uma orientação filosófica, cuja intenção era a de que, por meio da arte, fosse possível colocar em prática uma de suas vertentes. Botticelli foi o primeiro a “[...] atrelar a pesquisa artística a uma filosofia [...] que, por meio da arte, buscou realizar uma estética [...]”. Argan ainda ressalta que Botticelli teria sido “o primeiro que afirmou a unidade profunda entre arte, pensamento e poesia; o primeiro, finalmente, que isolou o valor do ‘belo’, in- dicando nele o fim último da arte”. Argan (1999, p.218) destaca, entretanto, que a arte não é conhecimento da natureza, mas é o que desvenda os “significados alegóricos ocultos das coisas naturais”, ou seja, “ela é vontade de beleza”, haja vista que a “natureza não empresta sua beleza à arte”; a natureza possibilita às práticas artís- ticas a adoção de temas, motivos e até mesmo conceitos, por meio dos quais a arte age em favor da natureza. Nossa intenção nesta obra é tomar as considerações de Argan como fio condutor, sempre problematizando-as, e questionando até que ponto a pintura de Botticelli pode ser indicada como uma manifestação da ideia do belo, demonstrando uma possível con- cordância com a vertente do neoplatonismo em voga no final do século XV florentino. É importante discutir esses apontamentos acerca de Botticelli, uma vez que há um universo teórico que envol- ve a produção do artista que muitas vezes se contradiz. Tendo em vista tal contradição, iniciaremos nosso estudo sobre a produção de Botticelli por meio da análise de Argan, e no decorrer da discussão apresentaremos contribuições de outros teóricos capazes de con- frontar, ou mesmo assegurar, a pesquisa apresentada. Argan (1999, p.216) situa na pintura de Botticelli uma mani- festação da ideia do belo, encarando-o como resultado de uma fi- guração particular da natureza. Entretanto, para Argan o belo é obtido com a transcendência da realidade; ou seja, a obra de arte é fruto de uma mediação entre o artista e a natureza, pois o belo está 18 DÉBORA BARBAM MENDONÇA no detalhe obtido na figuração do conteúdo,3 na imitação da natu- reza. Essa constatação é um dos grandes problemas que envolvem o Renascimento: de um lado, (i) a exigência herdada da Antiguidade de mimese, de imitar a natureza; de outro, (ii) no meio humanista que se desenvolvia no século XV, essa exigência não estava pauta- da em bases puras, uma vez que o imitar da natureza não deve ser realizado tal como ela é exposta aos sentidos. Segundo a posição (ii), a arte deve realizar a perfeição que não existe na natureza, que pode ser alcançada por meio de correções ou, em outros termos, por uma escolha daquilo que se irá representar, pois o objeto de imitação deve ser aquele que houver de melhor, de acordo com técnicas ca- pazes de aperfeiçoá-lo. Essa exigência de uma escolha da natureza gera outro princípio, o do eletio,4 que parece ser inverso ao do imita- tio, ao de realização da mimese. Argan desenvolveu uma tentativa de resolver esse impasse na obra de Botticelli com a distinção entre mimese e inventio: a pintura das coisas consiste na mimese, e a pintura das ideias consiste na inventio. Para entendermos a pintura do artista, conforme a visão de Argan, devemos enxergá-lo como um pintor capaz de realizar a inventio em sua arte, conseguindo assim estabelecer uma oposição entre formas e imagens. Botticelli realizava uma pintura de ideias, pois se utilizava de símbolos, de alegorias, ou seja, de imagens que carregam em si um conceito mais amplo do que aquele que a pró- pria imagem literal é capaz de figurar. O conteúdo encontrado nas obras de Botticelli é transposto por elementos sempre objetivos que, por sua vez, são equivalentes visuais de um plano incorpóreo e estável: as formas. Dessa maneira, a arte de Botticelli é conside- rada instável (Argan, 1999, p.216), pois são as imagens (alegóricas, 3 O belo exposto por Argan é o belo obtido pela inventio, e difere-se do belo mimético platônico, uma vez que a arte mimética consiste na imitação das coi- sas, que para Platão já são imitação das ideias. O conceito de inventio resolve a fragilidade da mimese, pois consiste na representação de uma ideia em si. 4 Cf. Panofsky, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994. BOTTICELLI 19 plurais, polivalentes, mutáveis) que envolvem sua arte figurativa, enquanto as formas, as quais tendem ao universal, embasam uma arte estável e constante, capaz de figurar um único conteúdo, a natureza. A história cênica não é ordenada em episódios, mas em um movimento que não permite um recorte estático, tal como no quadro A primavera, no qual as flores estão mais do que descri- tas, pois são invocadas, destituídas da substância corporal (Argan, 1999, p.214), ou seja, a “rítmica descontínua da linha” e a “cor em- palidecida” sinalizam que para Botticelli a pintura está distante da experiência sensorial, por um processo de transposição das coisas em imagem. O processo de transposição em imagem ao qual Argan se refere vai ao encontro dos ensinamentos da tradição neoplatônica que vigorava em Florença por influência do filósofo neoplatônico Marsílio Ficino. A imagem é incorpórea e abarca significados ocultos, alegóricos, pois é plural (contaminatio), e a questão do belo para Botticelli, por sua vez, é independente da natureza (Argan, 1999, p.218). A arte é entendida como um artifício que permite descobrir os significados alegóricos ocultos das coisas naturais; se é responsável por realizar a imitatio, trata-se de uma imitação por meio da inventio. Argan observa que arte não é representação do belo, e sim vontade de be- leza, concordando assim com a teoria metafísica de Ficino, e, dessa maneira, Botticelli é capaz de eliminar o problema arte/natureza irresoluto desde a Antiguidade: a incompatibilidade entre eletio e imitatio. O ideal ficiniano, que possivelmente influenciou a pintura de Botticelli, consiste na expressão de uma religiosidade indetermi- nada que vai da pulchritudo a venusta, não sem intervenção da vo- luptas, ou seja, é um ideal de beleza pautado menos em uma beleza moral (pulchritudo) e mais em uma beleza física (venusta), cuja graça decorre de ritmos de cor, visibilidade, interrupção repentina, obs- truções, retornos de linha, impedindo que o ritmo se determine como algo constante e previsível. A cor vai agregando seu signifi- cado à imagem, perdendo suas qualidades particulares em favor da composição da totalidade; nesse processo, o significado simbólico 20 DÉBORA BARBAM MENDONÇA da cor é responsável por traduzir textualmente a metáfora da luz (Argan, 1999, p.217), e esta, por sua vez, é vaga e indefinida, pois é mediação “espiritual”; os temas, ou residem na tradição iconográ- fica ou são alegóricos, capazes de substituir um conceito com uma imagem. Argan ressalta que a poesia do tema é diferente da poesia da imagem, e que não podem se unir em uma forma de objetivação, como na imitação ou contemplação da natureza, ou mesmo em um exemplar histórico. Uma vez que o belo artístico de Botticelli, para Argan (1999, p.206), é “abstrato”, ele não pode ser o belo natural ou clássico, e tampouco estar sujeito a uma determinação históri- ca ou objetiva qualquer, pois o pensamento do belo se liga a uma teoria, a uma poética comum da elite intelectual florentina da corte dos Médici, uma teoria neoplatônica do amor, que retoma vários motivos do “dolce stil novo” e de Petrarca.5 Em meados do Quattrocento, era cada vez mais frequente o uso de signos figurativos extraídos da poesia antiga, fazendo com que não fosse mais necessário que os artistas falassem de modo natural sobre os valores sensíveis, intelectuais, filosóficos, metódicos e, neste caso, principalmente poéticos.6 Por exemplo, a existência do mito permite associar as obras humanas às épocas da história, tornando possível, assim, marcar sua significação: a ruína romana, por exemplo, faz com que Florença entre na Antiguidade, de ma- 5 Cf. Argan, 1999, p.211. 6 Não mais falar de modo natural pode ser entendido como falar alegoricamente. Nosso interesse na linguagem alegórica consiste em saber até que ponto as teorias que justificavam as figuras simbólicas de Botticelli eram pautadas no neoplatonismo. João Adolfo Hansen (1986, p.86), em sua obra Alegorias, cons- trução e interpretação da metáfora, realiza alguns apontamentos importantes para o estudo de obras de arte simbólicas no cenário florentino do século XV: os elementos alegóricos tinham por finalidade explicar um simbolismo com outro elemento misterioso, tornando mais difícil sua interpretação. Hansen (1986, p.82) apresenta o método de interpretação alegórica florentino como um artifício de deslocamento das Escrituras, responsabilizando o pensamento da Antiguidade oriental e greco-romana para sua possível interpretação. Esse deslocamento unifica mistérios pagãos e a revelação cristã numa genealogia ideal, remontando a uma unidade. BOTTICELLI 21 neira que seja possível agregar o elemento pagão ao mundo cristão (pasticho), ou seja, os mitos são atribuídos aos espíritos que movem o mundo, e não à posição em relação ao objeto. É no contexto de diálogo entre as disciplinas do conhecimento que Argan procura interpretar a pintura de Botticelli, entendido como participante do debate técnico e filosófico do meio intelectual florentino do século XV. Diante disso, essa interpretação resulta na tese que pode ser assim resumida: a pintura de Botticelli é a pintura de ideias, ou seja, seu belo é ideal, o que o torna o realizador de uma filosofia, ou até mesmo de uma “estética”, como prefere Argan (1999, p.206). O referido autor inicia seu estudo acerca da pintura de Botticelli sugerindo que o pintor tenha participado de correntes helenizantes que surgiram em meio à cultura florentina do século XV, uma vez que essas correntes utilizavam fontes literárias anti- gas, das quais era extraído o tema das obras de arte produzidas por seus artistas, como no caso de Botticelli, que realizou uma ecfra- se do pintor antigo Apeles, utilizando o conceito da Vênus Ana- diômene para compor a obra Calúnia. Com base nessas sugestões, Argan chamou a atenção para a importância do conceito envolvido nas produções artísticas de Botticelli, pois o pintor realizava uma poética com sofisticação, a partir de uma escolha minuciosa de ima- gens que expressassem uma ideia, um tema conveniente. O rigor é próprio do “rito que evoca o mito” (Argan, 1999), sem o qual não seria possível a existência de imagens, uma vez que a pintura tem a função de descobrir e revelar as ideias por meio dos símbolos, isto é, das imagens. A transposição do ideal genérico de beleza nas aparências natu- rais foi visto por Argan como exemplo de alegorismo. Ressalte-se, entretanto, que é um alegorismo que não aspira a uma transposição direta do conceito em imagem, tampouco à simplicidade do sím- bolo. O alegorismo da segunda fase de Botticelli, pois, substitui o alegorismo direto e mais naturalista, observado na primeira fase, por um alegorismo conceitual, que expressa uma carga maior de conteúdo, tal como a filosofia neoplatônica de Ficino, o que resul- tou na destruição do mito naturalista dos artistas do Trecento. 22 DÉBORA BARBAM MENDONÇA Argan apontou que Botticelli, inspirando-se no mestre grego Apeles, escolheu para si um ideal de graça venusta, que entende a arte como harmonia de linhas e cores, realizando em certas obras uma imitação da ideia de belo, e não de formas históricas, instigan- do-nos ao questionamento sobre qual é o belo ideal do artista. Para Argan, os elementos que compõem uma pintura são o resultado de uma inspiração propriamente teórica, e não apenas técnica. A obra Calúnia, por exemplo, apresenta elementos formais que são decor- rentes da especial inspiração do pintor no mestre antigo Apeles, uma vez que Botticelli se manteve atento aos artifícios da pintura antiga que agregavam a graça (venusta) e a harmonia entre as cores e as linhas à pintura. O belo de Botticelli, segundo Argan (1999, p.214), está afastado e quase destituído de substância corporal: a beleza, a mesma beleza ficiniana, é um distanciamento da realidade física, uma misteriosa transferência da coisa na imagem, um pro- cesso que implica um artifício, uma poética moldada em procedi- mentos alegóricos carregados de preceitos humanistas. Uma grande e decisiva exigência para a composição da pintura no Renascimento certamente foi a do uso da perspectiva. Para ten- tar definir a pintura de Botticelli, Argan tentou classificar o tipo de perspectiva que o pintor empregava em suas obras: a perspectiva contraposta à de Piero della Francesca (1415-92), a toda a constru- ção espacial e proporcionalidade toscana. Botticelli foi um dos primeiros a perceber a diferença entre a visão de perspectiva toscana e a flamenga; diferença que está além da questão óptica, pois, tal como a distinção entre mimese e imitatio, na pintura toscana de Piero há uma espacialidade da proporção, enquanto na de Botticelli há uma composição resultante de um con- ceito harmônico, ou seja, a construção de um campo visual a partir de um ponto de fuga. Nesse sentido, a preocupação de Botticelli muitas vezes se restringiu à prevalência do valor poético da imagem ao valor de composição da forma, uma vez que, para o artista, a composição da história dependia mais dos conceitos que as figuras representavam a partir de um envolvimento harmônico do que propriamente da teorização matemática da disposição das figuras BOTTICELLI 23 no espaço; dessa maneira, é possível atrelar ou mesmo fundir o valor cristão com o motivo pagão (Argan, 1999, p.230). Argan entendeu a pintura de Botticelli como antipaisagem, pois, segundo as análises das obras que realizou, as arquiteturas são traçadas seguindo regras de perspectiva; porém, inexiste o espaço que ordene ou contenha as figuras, o que resulta, observa Argan, na técnica por meio da qual Botticelli é capaz de valorizar as figuras, ressaltando assim o seu valor alegórico ou simbólico. A perspectiva utilizada por Botticelli, para Argan, não serve para unir, mas para fragmentar o espaço, o que garante uma singularidade ao objeto e vai ao encontro do pressuposto de que sua pintura exprime a trans- missão de uma imagem incorpórea. Podemos, entretanto, ressaltar que ao longo desta obra faremos uma exposição sobre os funda- mentos da perspectiva que possivelmente influenciaram Botticelli, mas que não concordam com as análises de Argan, que, por sua vez, se ateve com muito mais atenção ao legado filosófico que auxiliou a composição dos conceitos-base para as obras de Botticelli. Como minucioso teórico de arte, Argan (1999, p.215) localizou os elementos técnicos que permeavam a pintura de Botticelli e ob- servou que, além da perspectiva flamenga que auxiliava na compo- sição da harmonia pictórica, devemos considerar a importância dos métodos ópticos de Brunelleschi (1377-1446), que, por meio do Tratado da pintura desenvolvido por Alberti, chegaram até Botti- celli. Alberti expôs e codificou como teoria da visão a de Brunelles- chi sobre a construção arquitetônica do espaço, tornando os estudos sobre a óptica muito mais acessíveis aos artistas do Quattrocento.7 A construção arquitetônica do espaço foi elaborada por Alberti a partir do domínio do visível. Botticelli, por sua vez, como leitor do tratado de Alberti, adotou essa noção de perspectiva para a constru- ção do espaço. Tal procedimento remeteria ao Trecento, à arte sim- ples como cópia do que pode ser apreendido pela pirâmide visual, sem deixar que o conceito da obra se esconda atrás da sistematiza- 7 Cf. Alberti, L. B. Da pintura. Campinas: Ed. Universidade Estadual de Cam- pinas, 1989. 24 DÉBORA BARBAM MENDONÇA ção geométrica do espaço, a qual pertence à tradição de Piero della Francesca e que se estende até o século XVI com Rafael e Leonardo. A pintura é sempre o fruto de uma eleição, e a perspectiva é o méto- do que a pintura utiliza para conseguir transpor tal eleição segundo as regras incontestáveis da visão. Para que entendamos melhor como é possível que a perspectiva auxilie no processo de eleição ao qual a pintura se propõe, devemos compreender o que os domínios do visível, do objeto, significam para a filosofia ficiniana: o objeto, segundo Ficino, é o equivalente visual do plano incorpóreo, que, por sua vez, é estável e universal. O que devemos apreender a partir das considerações de Ficino é que o processo de eleição é uma atividade incorpórea que está associada ao intelecto, e, assim, atende à necessidade que o belo tem de se as- sociar às ideias. Uma vez que a perspectiva auxilia na elaboração do objeto por causa da teorização realizada na composição do espaço, podemos entendê-la também como algo incorpóreo se estivermos inseridos no contexto ficiniano priorizado por Argan. A perspectiva tem uma importância especial, pois é responsável por empregar o ritmo da linha, estabelecendo características que não possuem uma continuidade, mas uma ordem, para produzir movimento, e com ela, a beleza graciosa que os humanistas tanto almejavam. A partir da análise de Argan da obra de Botticelli, fica indica- do que a perspectiva pautada na visão se realiza em auxílio a um conceito que exprime uma beleza ideal, uma vez que a construção arquitetônica do espaço de Brunelleschi, que influenciou a perspec- tiva de Alberti, pode também ter auxiliado a manifestação de um legado filosófico ficiniano em favor da pintura. A imagem pintada, de tema antigo ou renascentista, profana ou pagã, pertence ao plano do real e das ideias, pois se trata de uma figuração da realidade a partir de uma escolha. Ambos os temas estão vivos em uma realida- de, a mesma na qual encontramos a cultura humanista, que preza pela beleza e pela graça, pelas formas que possuam um conteúdo constante, que se refira à natureza, ao espaço. A possível influência do religioso Savonarola na pintura tardia de Botticelli pode explicar o fato de que o pintor tenha efetuado BOTTICELLI 25 uma arte abstrata, na leitura de Argan, realizando uma filosofia, já que sua arte esteve colocada fora do tempo e da história, como conhecimento supremo que se consegue transcendendo a realidade rumo à contemplação livre, o que talvez explique o fato de que suas obras tardias, da terceira fase, celebram uma arte antiga, um alego- rismo naturalista, além de sua opção pelo uso da perspectiva. No século XVI, o problema da arte era posto, grosso modo, sob função cognitiva, classificando o transcendentalismo estético de Botticelli fora da história e da questão artística, devido à sua polêmica ênfase ao primitivo. Botticelli confrontava a concepção histórica da pintura como indagação e conhecimento da natureza e da história, diferente de Leonardo, para quem a natureza não é revelação da vontade do Criador no sistema harmônico das formas criadas, tampouco obstáculo material: é o mundo ilimitado dos fenômenos, aberto à indagação e à experiência, ou seja, uma antítese ao platonismo contemplativo de Botticelli (Argan, 1999, p.208). Em síntese, nosso trabalho consiste em comparar os aponta- mentos de Argan com outras referências de teóricos e historiadores, tais como Aby Warburg, Robert Klein, Erwin Panofsky, a fim de enxergar Botticelli com nossos olhos. Para realizar essa tarefa se faz necessário entender até que ponto há um ideal de belo ficiniano in- trínseco nas obras de Botticelli, bem como ter contato com o legado teórico da pintura da tradição humanista, seja por Alberti ou Piero della Francesca. Enfim, tentaremos localizar elementos na obra de Botticelli, em pormenores tardios ou de juventude, que exemplifi- quem o conceito de graça e o debate teórico no qual o pintor esteve inserido. 1 HISTORIOGRAFIA E METODOLOGIA Uma das grandes dificuldades encontradas em nossa tentativa de analisar a pintura de Sandro Botticelli decorre da necessidade metodológica de inseri-lo em um período histórico específico. Essa dificuldade não se faz presente somente em virtude da peculia- ridade de Botticelli em relação à sua época, mas também pela polê- mica historiográfica gerada em torno do período no qual o pintor se situa: o Renascimento. Existem incontáveis manuais de Arte ou mesmo de História que classificam o período entre os séculos XIV e XVII como Renasci- mento; entretanto, não é sempre que os manuais entram em um acordo com relação ao início e fim dele, ou mesmo acerca do começo do Maneirismo ou Barroco. O fato é que a tradição historiográfica costuma ter tendências a recortar a história, fragmentar períodos, o que muitas vezes acaba dificultando o entendimento de alguns aspectos que são mais bem compreendidos com uma abordagem contínua: esse é o caso do Renascimento, por exemplo, na visão de Leon Kossovitch (1994). Kossovitch (1994) observa que há dois modos a partir dos quais é possível interpretar o Renascimento. Estudos realizados por volta do século XVIII por teóricos da Escola de Winckelmann, entre ou- tros, concebiam, ainda, o Renascimento como um período de gran- 28 DÉBORA BARBAM MENDONÇA des manifestações artísticas, tendo como característica principal uma abordagem retórica e poética inovadora de tais manifestações; no século XIV, Petrarca ou, depois, Vasari operam um “topoi de invenção que, remontando a Roma imperial, republicana, nada po- sitivam”. Outra concepção de Renascimento, periodizadora, é atri- buída aos historiadores dos séculos XIX e XX, como os teóricos do Instituto Warburg, ou os italianos Venturi e Argan, que associam a esse período uma novidade estilística; ou seja, defendiam que as manifestações artísticas no Renascimento foram responsáveis não apenas pela atuação da Retórica e da Poética nas artes visuais, como contribuíram diretamente para a invenção e a formação de um es- tilo, o que é encarado por historiadores dessa tradição como algo positivo. Para aprofundar nossa análise sobre esses dois possíveis modos de enxergar o Renascimento, nos apoiaremos nas interpre- tações realizadas por teóricos do século XIX, como Aby Warburg (2005), e do século XX, como Giulio Carlo Argan (1999), Erwin Panofsky (1981), Edgard Wind (1999) e Frank Zöllner (2009). Erwin Panofsky foi um dos teóricos do século XX que mais contribuiu para a compreensão do Renascimento e, consequente- mente, da pintura de Sandro Botticelli. Para Panofsky, o Renascimento não é um período exclusivamente italiano, o que o faz percorrer e utilizar outras classificações históricas de acordo com as épocas e regiões. Destaca-se, então, uma diferença de abordagem em relação àquelas presentes nas análises de Lionello Venturi e Argan, que sempre colocam a efervescência italiana em oposição ao isolamento de Bizâncio. Para que possamos ter noção dos critérios que orientam a cronologia de Panofsky, apresentaremos a divisão histórica elaborada pelo teórico na obra Renascimento e renascimentos.1 Nessa obra, observa-se o esforço de Panofsky para argumentar em defesa de uma desmistificação e de um questiona- mento rigoroso sobre a própria existência do Renascimento, enten- dido como um período particular e isolado na história da civilização. 1 Cf. Panofsky, Erwin. Renascimento e renascimentos na arte ocidental. Lisboa: Editorial Presença, 1981. BOTTICELLI 29 Panofsky (1981, p.18) almeja detectar a existência de uma ino- vação e, talvez, com isso, negar a hipótese de que a natureza hu- mana permanece a mesma segundo a ordem do tempo, uma vez que, para esse teórico, a história é uma narrativa que constitui um registro metódico e contínuo. Megaperíodos não deverão, portanto, servir como princípios explicativos para essa caracterização, já que o tempo é a própria definição de um período, com uma fase mar- cada por uma mudança de direção que implica, simultaneamente, continuidade e ruptura. O Renascimento é, para Panofsky (1981), um período passível de desperiodização, pois, como na análise das manifestações cultu- rais ocorridas anteriormente ao século XIV não são identificadas rupturas concisas, muitos historiadores são levados a elaborar uma definição que entende o Renascimento como parte de um processo linear, que ocorreu desde a Idade Média. No entanto, por causa da constatação histórica de que é possível haver a localização de diversos traços de revivescências menores, ocorridas muito antes da considerada “grande revivescência” que “culminou na época dos Médici”, percebemos que diversos fatores mantinham o Renascimento atado à Idade Média, bem como à Antiguidade Clássica (Panofsky, 1981, p.24). No entanto, a questão que ecoa a partir dessa constatação é: o Renascimento pode ser entendido como um fenômeno único em comparação com as outras revives- cências ocorridas anteriormente? Panofsky inicia sua reflexão acerca da periodização do renasci- mento propondo um questionamento sobre a legitimidade desse movimento2 como uma época particular da história. O primeiro passo de sua argumentação consiste em demarcar diferenças im- portantes entre o Renascimento e os movimentos humanistas da Idade Média, defendendo inicialmente que, por se tratar de um termo médio, a denominação Renascimento já pressupõe uma era anterior separada da Antiguidade. Para tal, Panofsky relembra os 2 A palavra renascimento está escrita com letra minúscula por causa da reflexão que Panofsky propõe ao período. 30 DÉBORA BARBAM MENDONÇA versos saudosistas de Petrarca que, diante das ruínas romanas, es- tabelecia o passado como glorioso e o presente (Idade Média) como deplorável, mesmo que a figura iluminada e gloriosa de Cristo esti- vesse inserida em todo o contexto do universo medieval. Partindo da existência de um humanismo medieval, Panofsky acompanhou diversas esferas da atividade cultural em busca de indícios, de características próprias do Humanismo (ou mesmo do hipotético Renascimento), que poderiam ser resumidos no regresso à Antiguidade Clássica e na exigência da imitação da natureza. Uma primeira revivescência nas artes visuais possibilitou o surgimento de uma tendência, que autorizou os historiadores a observarem nas diversas artes, como a pintura, a escultura e a arquitetura, uma con- fluência entre imitação da natureza e regresso ao antigo, de modo que a pintura do início do século XIV remeteria à regressão ao clássi- co, e a escultura e a arquitetura do século XV, à imitação da natureza. Para ressaltar a singularidade do Renascimento, Panofsky (1981) reconhece nele uma evolução, típica à sua tradição, em três fases: a infância corresponde ao momento em que a pintura foi considerada grandiosa com a figura de Giotto; a adolescência tam- bém corresponde à pintura, mas com a figura de Masaccio; a fase adulta é atribuída à arquitetura de Brunelleschi; e, por fim, chega- -se à maturidade, cujos representantes são Leonardo (1452-1519) e Michelangelo (1475-1564). Provavelmente fundamentando-se em Ghiberti (1378-1455), Panofsky considera Giotto o portador de uma nova luz, que tira do esquecimento a aura clássica e que marca o início da nova era. Giotto enquadra a pintura em um caráter mais naturalista, denotando a sua inclusão na teoria da revivescência. Segundo Ghiberti (2005),3 Giotto foi descoberto ainda criança pelo pintor Cimabue (1240-1302),4 que ficou muito admirado com 3 Cf. Bagolin, L. A. Dos comentários de Lorenzo Ghiberti: análise e tradução. São Paulo: FFLCH-USP, 2005. Tese de doutorado. Mimeog. 4 Cimabue é um pintor do Trecento, sobre o qual se tem muito poucas informa- ções. A única obra atribuída a ele é a figura de São João Evangelista executada para o mosaico absidial da Catedral de Pisa, cujo pagamento foi efetuado em 1301 (Bagolin, L. A. Notas de tradução do segundo comentário de Ghiberti, p.2, 2005). BOTTICELLI 31 a engenhosidade do menino; este, sem que ninguém tivesse lhe en- sinado, era capaz de transmitir a natureza.5 Giotto foi ensinado por Cimabue, que, por sua vez, conhecia a maneira grega e fez com que seu aprendiz se tornasse um grandíssimo mestre, criando notáveis obras em inúmeros lugares. Além desses feitos, segundo Ghiberti (Bagolin, 2005, p.6), Giotto também trouxe a arte nova e natural, abandonando o caráter rude dos gregos, mas mantendo a medida de equilíbrio que eles possuíam. Um dos problemas com as categorias propostas por Panofsky, que explicam por que elas não são aceitas tão facilmente, decorre, como bem observa Kossovitch (1994, p.62), de uma possível incoe- rência na datação de Panofsky a respeito do início do Renascimento. Existem versões que indicam que Giotto inaugurou esse período; entretanto, Kossovitch observa também que Dante está cravado na Idade das Trevas, com Cimabue, mesmo que estes sejam con- siderados pré-giottanos. Kossovitch atenta para a incoerência de atribuir data ao início do Renascimento, pois, ao mesmo tempo que Cimabue era um pré-giottano, estava preso às margens das pri- meiras luzes e também emancipado delas; por essa razão, é o nome essencial da representação naturalista abordada no final do século XV. Nesse sentido, Cimabue não assinala a evolução do período bizantino ao renascentista, cujo implícito é o naturalismo, outra apropriação antiga. Controvérsia à parte, para Panofsky houve um renascimento que principiou na Itália por volta de 1300 com Cima- bue e teve prosseguimento com Giotto. Antes de iniciarmos nossa análise sobre a polêmica acerca da existência de uma delimitação periódica do Renascimento na His- tória, passaremos à elucidação das revivescências gregas ocorridas durante o período medieval, anteriores ao Trecento, para que, em seguida, possamos melhor contornar o século XV. As revivescências medievais são de grande ajuda no entendimento do início do Renas- cimento pelo fato de ser a porta de entrada para dois movimentos maiores: o Proto-Renascimento toscano e o Proto-Humanismo. 5 A natureza que Ghiberti menciona é, segundo Bagolin (2005), uma referência à tópica antiga, na qual a natureza é a fonte da invenção. 32 DÉBORA BARBAM MENDONÇA A primeira revivescência medieval foi denominada Carolíngia pela abrangência dos domínios de Carlos Magno (séculos VII e VIII). Suas manifestações ocorreram na época dos intercâmbios do Cristianismo com o Paganismo e com o Orientalismo, que utiliza- vam os termos que se referem ao “renascer” em sentido diferente ao dos humanistas dos séculos posteriores. O núcleo da revivescência do Império Carolíngio foi Roma, o Norte da França e o Oeste da Alemanha, lugares onde se propagava um vácuo cultural. A princi- pal reivindicação era a da herança de Roma (Renovatio Imperii Ro- mani), uma postura universalista e até pagã, pois fazia menção aos caracteres mitológicos e às personificações clássicas (como a da arte cristã primitiva). Panofsky marcou como o fim da revivescência carolíngia, em 877, a morte de Carlos, o Calvo, e por nove déca- das posteriores Roma permaneceu infértil, praticamente em um período de incubação. A segunda revivescência medieval foi denominada de Renasci- mento Otoniano, que ocorreu em meados do século X (970-1020) na Inglaterra, paralelamente às revivescências de outras regiões que receberam outras denominações, como é o caso do Renascimento Anglo-Saxônico, na Alemanha. Não havia um esforço no sentido de reviver a Antiguidade, pois era proclamado um espírito cristo- cêntrico, que buscava inspiração apenas nas fontes do Cristianismo primitivo, carolíngio e bizantino. Era aproveitada a aparência das imagens, com eliminação de suas características clássicas. Cem anos após esses movimentos medievais, surgiram as cor- rentes mais expressivas, ainda no Alto Medievo: o Gótico primitivo na França (última parte do século XI); e, no período do Alto Româ- nico, os mais próximos do Renascimento no Trecento, que citamos anteriormente: o Proto-Renascimento (século XII) e o Proto-Hu- manismo (apogeu no século XII, até o Trecento). Esses dois últimos movimentos são paralelos, além de complementares e clássicos. Iniciaremos a explicação da aproximação da Idade Média com o Renascimento detalhando a definição desses dois renascimentos românicos, começando pelo Proto-Renascimento. BOTTICELLI 33 O Proto-Renascimento é um fenômeno mediterrâneo com ori- gem no sul da França, Itália e Espanha (fora do território carolín- gio de tendências celto-germânicas), ou seja, em regiões onde o elemento clássico ainda dizia respeito às civilizações. Nessa época temos o início da urbanização e da formação dos centros, bem como das peregrinações (Cruzadas) e das construções monásticas, o que possibilitou que a arte atingisse as massas. A atenção na Antigui- dade voltava-se para a arte pré-cristã, com tendência à monumen- talidade e à arte tridimensional, estabelecendo um enfoque maior para a arte de cunhar moedas e a da ourivesaria, encrustamento de pedras preciosas e confecção de camafeus. A escultura, por sua vez, começou a ser praticada num sistema arquitetural – princípio da axialidade (aproximação gradual da estátua à coluna). O Proto- -Renascimento mediterrâneo foi, também, um movimento paralelo ao movimento Gótico francês, apesar de esse fenômeno ter sido menos duradouro. Segundo Panofsky (1981, p.92): [...] foi no próprio coração da França – quer dizer, fora da órbita do movimento do Proto-Renascimento propriamente dito – e não antes dos fins do século doze – quer dizer, não antes do estilo gótico passar, como diria Vasari, da infância à juventude e à maturidade – que a arte medieval adquiriu a capacidade de se juntar à arte antiga em condições de igualdade (Movimento do Proto-Renascimento atraído pelo Gótico no domínio real e champanha). O Proto-Humanismo, por sua vez, adotou um ideal cultural e educacional específico. Defendia a união entre a razão e eloquência (letras), estabelecendo uma grande importância ao estudo das Hu- manidades. O Proto-Humanismo, como movimento distinto do Proto-Renascimento, originou-se em regiões afastadas do Medi- terrâneo, como na Alemanha Ocidental, Borgonha, Inglaterra e Países Baixos. Esse movimento propagou-se essencialmente no Sul da França, na Itália e na Espanha, desenvolvendo uma cultura autenticamente clássica, mas não de cunho humanista, que priori- zava a Filosofia, a Medicina e a Matemática. O Proto-Humanismo 34 DÉBORA BARBAM MENDONÇA retomou mais que o espírito intelectual, pois se lançou na tentativa de resgatar o valor da tradição clássica. A maior manifestação do Proto-Humanismo deu-se no âmbito da Literatura, isto é, no conhecimento da cultura grega e na reali- zação de traduções de filósofos. Isso contribuiu para a formação do autêntico humanista, o que viria a auxiliar a constituição intelectual no Renascimento italiano propriamente dito. O Renascimento ita- liano reintegraria os elementos formais e de conteúdo que haviam sido separados por ambas as tendências (artifícios do Proto-Re- nascimento e eloquência do Proto-Humanismo), pondo fim aos paradoxos medievais que limitavam a forma clássica em virtude de temas cristãos. Entretanto, a influência conjunta dos movimentos medievais (Proto-Humanismo e Proto-Renascimento) resultou na retomada dos motivos clássicos pelas artes figurativas. Nos séculos XI e XII, a arte medieval tornou-se então a arte clássica, assimilável mediante a decomposição natural desses movimentos. A reintegração dos movimentos anteriores – Proto-Renasci- mento e Proto-Humanismo – ao Trecento foi baseada na “Contrar- revolução Gótica”, que, segundo Panofsky, começou a surgir no século XIV e consistia na tentativa de dispersar a classicização, de reconstituir os significados dos conceitos que estavam esquecidos durante a Idade Média. Essa tentativa pretendia estabelecer a buona maniera moderna, com a finalidade de propor algo de novo em rela- ção ao antigo, que, como podemos perceber, não caiu absolutamen- te no esquecimento durante toda a Idade Média. Observa-se, nesse período, a ausência de uma tradição figurativa, mas, com o passar do tempo, foram surgindo imagens “neoteóricas” (autônomas de qualquer tradição clássica e livremente formadas por descrições verbais oriundas de traduções árabes), o que faz com que esse mo- mento seja intermediário entre a dependência da cultura antiga e a nova cultura particular do Ocidente, atingindo, assim, o “ponto zero da curva ocidental”. O conceito de “ponto zero” é cunhado por Panofsky para res- ponder à sua questão inicial da singularidade do Renascimento. Para esse teórico da arte (1981), há sim um renascimento particular, BOTTICELLI 35 que surgiu da emergência de duas tendências que se destacaram durante o período da Idade Média. No entanto, esse período par- ticular sinalizado como Renascimento não exclui os vestígios clás- sicos existentes ao longo da história da pós-Antiguidade; portanto, mesmo se tratando de um período particular, o Renascimento não é a única manifestação clássica na História, mas, sim, a manifestação mais completa de tais valores, que conseguiu unir, a partir do século XIII, a forma e o conteúdo clássicos. Três fenômenos distintos colaboraram para que houvesse tal completude em um dado momento da história, isto é, para que fosse constituído o Renascimento: a Rinascita italiana, a Renovatio Carolíngia, e as duas últimas manifestações que convergem em uma só, o Proto-Humanismo e o Proto-Renascimento. Os ele- mentos góticos, por sua vez, simbolizavam a transitoriedade dos renascimentos medievais, dos quais o Renascimento se diferencia estruturalmente. A diferença crucial entre a postura do Renascimento italiano e a dos anteriores, segundo Panofsky (1981, p.153), é essencialmente decorrente do fato de: No Renascimento italiano, o passado clássico começou a ser olhado a partir de uma distância fixa, comparável à “distância entre o olho e o objeto” [...] essa distância impedia um contato direto [...] mas permitia uma visão total e racionalizada. Em nenhum dos dois renascimentos medievais se encontra essa distância. Ou seja, Panofsky tentou tomar a técnica da perspectiva como uma metáfora do olhar perspectivo6 que se desenvolve durante o Re- nascimento italiano, legitimando-o como período histórico. O olhar perspectivo se desenvolveu a partir do distanciamento consciente entre o presente cristão e o passado pagão. Por falta de perspectiva, de uma distância temporal, a cultura clássica não podia ter uma 6 Entende-se por olhar perspectivo a distância estabelecida entre o observador e o objeto a ser observado, ou seja, a possibilidade de múltiplos pontos de vista. 36 DÉBORA BARBAM MENDONÇA visão completa de si mesma. A “apaixonada nostalgia” dos huma- nistas em relação aos gregos (Panofsky, 1981, p.159) impulsionou a recriação do contexto, mas de uma maneira consciente, pois o passar dos séculos possibilitou que houvesse uma visão histórica ampla, servindo de roteiro para a renovação dessa cultura. Ainda para Panofsky, o salto do século XIV para o XV caracte- rizou a conquista de uma maior noção de espaço, o que possibilitou ao artista mover-se, situando o objeto de sua arte à sua frente. O objeto tomou sentido literal a partir de então, pois assumiu seu papel de objectum, ou seja, se colocou em frente ao artista. No final do século XIV, a arte na Itália ficou afastada da Antiguidade quase tanto quanto a arte nos países do Norte. Por exemplo, os holandeses criaram seu próprio modo operante e estiveram em contato com quase todas as artes visuais. Os pais da pintura holandesa eram atraídos pelo estilo românico, que estabelecia um rompimento com os mestres. Já para os nórdicos, o românico representava o fim do passado. A Holanda e a Itália, no fim do século XIV, reagiram de forma semelhante quanto ao postulado central, ou seja, o de interpretar o espaço como tridimensional. O início de uma nova era foi então marcado pelo regresso à natureza, conceito que desempenhou um papel importante na pintura e, no que se refere à arte clássica, in- fluenciou também a arquitetura, tendo chegado ao seu equilíbrio na escultura. Na arte de Florença, houve um momento em especial no qual é percebido o regresso à Antiguidade e seu modo de conceber a natureza; nessa fase destacaram-se três grandes artistas, um em cada linguagem artística: Brunelleschi com a arquitetura, Dona- tello (1386-1466) com a escultura e Masaccio com a pintura. As influências clássicas colaboraram para a escolha das cores na pintu- ra de Masaccio e para a modelação escultural segundo a perspectiva em Donatello, sempre de acordo com as atitudes que remetem à na- tureza, garantindo, assim, uma expressividade emotiva em relação à Antiguidade (Panofsky, 1994, p.225). O início do século XV pode ser caracterizado como um período de incubação, que consistiu na reconciliação da pintura com a es- BOTTICELLI 37 cultura e a arquitetura. A expansão relativa aos motivos clássicos ocorreu inicialmente não Norte da Itália, uma vez que Florença e Roma ainda iam aos poucos despertando seu interesse pela at- mosfera burguesa e pelo retorno aos motivos clássicos. Depois de 1450-60, houve o início do estilo classicizante com figuras típicas destinadas à representação de anjos, como podemos observar em obras tardias de Andrea Del Castagno.7 O domínio do estilo clas- sicista em figuras e cenários estabeleceu a “[...] reintegração da forma e do conteúdo clássicos” (Panofsky, 1991, p.239). Um exem- plo dessa reintegração é Piero Pollaiuolo (1441-96), o primeiro pintor anatomista de que se tem notícia na Itália do século XV; suas representações de nus indicavam ênfase excessiva aos contornos caligráficos, as figuras nuas eram contrapostas a um fundo neutro ou a paisagens luminosas, o que denota contribuições holandesas aos cenários. De acordo com Kossovitch (1994, p.59-61), a abordagem reali- zada pelos estudos históricos, nos séculos XIX e XX (de Panofsky, por exemplo), além de positivar a noção de estilo, também foi res- ponsável por realizar recortes nos dados históricos, o que resultou em uma avaliação analítica, petrificando os tempos e possibilitando uma concepção evolucionista da História, e mesmo das artes, uma vez que a concepção de estilo é suporte para agregar adjetivos pe- riodizados. No caso dos séculos XIX e XX, de fato, é possível ver de que maneira o Renascimento é classificado como período de período, pois são realizadas grandes partilhas, criando-se até mesmo a noção de subperíodos, como o Renascimento Carolíngio (Proto-Huma- nismo), o que decorre, grosso modo, de um isolamento da Idade Média. Isso gerou preconceitos historiográficos, como o rótulo da Idade das Trevas, a escuridão medieval e outros. Vale ressaltar que o elemento grego que fez parte da Antiguidade é diferente do elemento grego apropriado pelo Renascimento. Do século XIV ao XVI, esses elementos passaram a integrar o que os historiadores de- 7 Escudo cerimonial pintado em couro com fundo paisagístico – David – aná- logo à Florença. 38 DÉBORA BARBAM MENDONÇA nominam corrente da maniera greca moderna, diferente da maniera greca antica. Os renascentistas tinham a consciência de que somen- te ao modo grego cabia a perfeição, e que o reviver dessa cultura não significava atingir essa perfeição. Essa concepção renascentista é vista pela historiografia evolucionista como impulso para uma nova busca que culminou no classicismo do século XIX; ou seja, para a tradição historiográfica herdeira do século XVIII, os momentos artísticos ao longo da história são isolados e depois transferidos para uma escala evolutiva, na qual o posterior consegue superar o momento anterior. Quanto à definição do momento histórico denominado, como indicamos, Renascimento, Kossovitch concorda que a ele corres- ponde uma invenção histórica e poética que ocorreu por volta do século XIV, cuja característica principal é a da realização de uma ligação retórica entre os tempos antigo e moderno. O século XV, cenário da pintura de Botticelli, é a continuidade da ligação entre o antigo e o moderno, é o período no qual se observou, segundo Argan (1999), o princípio de inventio, nos termos da Retórica e da Poética antigas. Podemos localizar muitas apropriações de ele- mentos antigos em favor da composição de obras de artes plásticas, literárias e até mesmo de tratados metodológicos, como a obra Da pintura, de Leon Battista Alberti (1436), que indica a direção a ser seguida pelo pintor que almeja o bem pintar. A historiografia dos séculos XIX e XX também aproxima Re- nascimento e Humanismo, como podemos constatar na presença e influência de textos considerados medievais, como os de Al-Hazen, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Dante, entre outros, nos conjunto dos renascentistas. Contudo, o fato central é o de que os elementos clássicos, sejam eles gregos, romanos, de orientação pla- tônica ou aristotélica, nunca abandonaram o Renascimento. Isso se deve à relação desse período com o Humanismo: a representação do belo, de sua associação retórica com o bem, no Renascimento, espe- cificamente nos séculos XV e XVI em Florença, estava diretamente atrelada à intersecção entre Filosofia, Ética, Retórica, e Poética, o BOTTICELLI 39 que caracteriza o retorno ao ideal grego de um conhecimento múl- tiplo, à capacidade do homem ciceroniano. Nas palavras de Kosso- vitch (1994, p.61): [...] “clássico”, “Renascimento” não tem, contudo, datação certa, sendo atribuído ao século XVI pela historiografia dos fins do XIX e começo do XX; pode circunscrever-se ao XV, Quatrocentos, dando-se ênfase à “representação” (ausente do pensamento das artes do mesmo século) perspectivista [...] pode começar no XIV, quando também, atualmente, a historiografia deriva artes de letras, valorizando o “humanismo” ignorado nos tempos concernidos por ele, pois criação do século XIX e XX: “Renascimento” subordina-se como “humanismo” [...] para cada poeta designado um pintor [...]. Tomamos como base o debate historiográfico sobre o Renas- cimento, pautado principalmente nas considerações acerca de sua periodização, para que seja possível nele examinar a pintura de Botticelli, em nossa abordagem acerca do Renascimento. Entretanto, tentaremos apontar as novidades ocorridas no sé- culo XV, sempre levando em consideração o fato de que a histo- riografia pode, muitas vezes, direcionar a pesquisa com jargões e preconceitos gerados em relação ao período estudado. Ciente de tais limites metodológicos e historiográficos, procuraremos mostrar como se efetua a identificação do moderno (Renascimento) com o antigo, acentuando de que modo a tradição antiga persiste ou muda, nas várias vertentes de tais elementos antigos, e observando atentamente quais eram as fontes do século XV, bem como seus procedimentos. Em meados do século XV, surgiram algumas obras de grande importância no direcionamento das apropriações dos elementos an- tigos realizadas pela época moderna. As obras Da pintura, De statua e De re aedificatoria, de Leon Battista Alberti, ordenam – retórica e poeticamente – o que deveria ser produzido. Pretendemos estudar mais atentamente a obra Da pintura (1436), para que possamos compreender quais os métodos indicados aos pintores de Floren- 40 DÉBORA BARBAM MENDONÇA ça e de quais elementos antigos os artistas, intelectuais e teóricos se apropriavam. A partir desses métodos e elementos, esperamos também destacar em que sentido a Antiguidade persiste, e em qual muda; ou seja, perceber através da obra da Alberti quais são as no- vidades do momento que chamamos Renascimento. Em Alberti, Poética e a Retórica impõem-se na pintura dos séculos XV e XVI, imposição encarada pelos historiadores dos séculos XIX e XX como uma superação positiva, uma vez que à Antiguidade faltava o do- mínio da composição – os antigos desconheciam a perspectiva, bem como o sentido retórico da pintura. Para que seja possível realizar qualquer estudo acerca da arte no Renascimento, devemos levar em consideração a importân- cia do conceito filosófico de belo que, por sua vez, não apresenta apenas um modo de compreensão. De um lado há uma orientação humanista, como bem podemos observar em Alberti; de outro, uma compreensão que, embora não exclua o caráter humanista, sua característica mais marcante é a de que o belo artístico seja a representação de um belo ideal, como bem podemos observar na fi- losofia de Marsílio Ficino. Vale ressaltar que as duas apreensões do belo, durante o Renascimento, concordavam, mesmo com algumas diferenças, com a indissociação entre o bem e o belo, na medida em que havia uma presença inquestionável da Retórica e de seus pre- ceitos de conveniência e decoro, que regravam as práticas letradas e as arti liberali, constituindo a representação do belo no século XV. Em outros termos, a reflexão sobre o belo, no Humanismo, estava diretamente atrelada ao entrecruzamento entre Filosofia, Ética, Retórica e Poética, seja caracterizando as apropriações dos elemen- tos antigos, por meio de um retorno ao ideal grego, seja buscando o conhecimento múltiplo na capacidade do homem ciceroniano. Tendo em vista as questões metodológicas e os elementos pre- sentes no estudo do Renascimento, no próximo capítulo examina- remos as teorias de Alberti (1989) e Ficino (1956), que embasavam a prática artística, localizando nessas teorias de quais elementos an- tigos o Renascimento se apropriou, bem como quais as novidades que permeavam o período. 2 CONCEITOS E DOUTRINAS Para nossa investigação sobre a obra de Botticelli foi necessário, como se observou no Capítulo 1, desenhar o contorno da discussão historiográfica que envolve o Renascimento. Não menos impor- tante que o entendimento historiográfico é o exame das discussões teóricas ocorridas no século XV, uma vez que o meio intelectual florentino articulava Arte, Filosofia, Literatura, Ciência, e é nesse contexto que devemos observar as obras de Botticelli. Tentamos observar o Renascimento a partir de um frutífero recorte: o século XV florentino, que foi cenário de importantes transformações capazes de legitimar esse movimento como período histórico. O Quattrocento florentino foi o período em que viveu e produziu Sandro Botticelli, e nesse mesmo século respirava-se um clima de inquietação cultural, no qual se observava grande multiplicidade cultural e crescente laicização das concepções sobre o homem. Essa inquietação intelectual tinha como direcionador a busca por algo indeterminado, alguma aura perdida ou mesmo esquecida na Antiguidade Clássica, que se foi tornando mais clara a partir de reflexões pautadas em Platão,1 Aristóteles ou mesmo no 1 Um exemplo que podemos citar a respeito da retomada do universo antigo é o conceito de amor casto pautado no legado platônico, que ficará mais claro adiante. 42 DÉBORA BARBAM MENDONÇA platonismo de Plotino, bem como na literatura poética dos antigos, a exemplo a de Homero. O clima do século XV era característico do Humanismo, um movimento intelectual abrangente que não temos a pretensão de tentar definir, mas que foi decisivo para a elaboração das obras de dois grandes teóricos, os quais influen- ciaram diretamente a pintura de Botticelli: Leon Battista Alberti e Marsílio Ficino. Leon Battista Alberti foi um teórico de grande importância no cenário artístico do Quattrocento, situando-se, nos termos de An- thony Blunt, na obra Teoria artística na Itália 1450-1600, no mais alto patamar humanístico, uma vez que se tratava de um homem consciente do fazer artístico e de diversas disciplinas que serviam à produção de conceitos para uma obra de arte. Alberti foi um dos primeiros representantes dos humanistas2 que tinham uma ligação mais íntima com os assuntos clássicos, e a característica principal de sua concepção de vida está relacionada com esse racionalismo humanista, baseado mais na Filosofia antiga do que nos ensina- mentos do Catolicismo que vigorava em sua época. Alberti, em sua obra De re aedificatoria,3 abordou os méto- dos arquitetônicos de Brunelleschi para auxiliar a sua teoria de construção visual do espaço,4 que serviria tanto para a composição escultórica quanto pictórica. Alberti defendeu que os edifícios foram construídos por causa dos homens, feitos para satisfazer as necessidades da vida, ocupações do homem ou deleite. Sua ati- 2 Os humanistas defendiam a posse do conhecimento em caráter universal, enciclopédico, estabelecendo uma maior importância às múltiplas disciplinas do saber, como a Matemática, Geometria, Anatomia, Retórica, Literatura, idiomas como Latim e Grego, Teoria das Cores, Geografia, História etc. 3 Cf. Alberti, L. B. De re aedificatoria. 4 No Livro I da obra Da pintura, Alberti oferece uma formulação teórica da perspectiva linear para a representação pictórica dos objetos, indicando os exercícios já mencionados por Brunelleschi. O método albertiano da cons- trução do espaço visual assemelha-se a um do tabuleiro de xadrez, tal como teoriza sobre a construção da pirâmide visual a partir do ponto de fuga. O line- amento é a parte da pintura que corresponde ao conhecimento da geometria euclidiana e da ótica; e a composição, à oratória (Baxandall, 1971). BOTTICELLI 43 tude com relação à pintura é a mesma, porém esta deve ter uma “história”, que é de tipo mais nobre ao seguir um tema e de tipo menos nobre se estiver restrita a figuras individuais; é essa “histó- ria” que gera uma imagem das atividades do homem, assim como na arquitetura. Na obra Da pintura, Alberti fornece apontamentos para o pin- tor, visando ensiná-lo a trabalhar como se deve a fim de atingir uma pintura de tipo mais nobre, bem como indica a necessidade de o pintor mostrar-se desejoso e consciente de todas as formas de conhecimento que sejam relevantes para sua arte. O pintor deve empregar sua arte naquilo que for mais agradável, objetivando con- quistar os mecenas e, com isso, elevar o gosto e as opiniões deles, porém sem nunca deixar de seguir, acima de tudo, certas normas e princípios como proporções justas, harmonia, variedade e deco- ro, que para Alberti constituem a beleza da “história” pintada. A importância do decoro na obra de arte no Renascimento constrói propriamente a beleza ou a graça, no sentido de que é considerado belo apenas o que deve ser pintado; ou seja, o belo é aquilo conve- niente de ser pintado, acima de tudo, em âmbito moral. O poder criativo do artista é limitado e sua grandeza consiste justamente na maneira com que é capaz de produzir uma obra agradável e oportu- na, incluindo seus traços pessoais, mesmo que tenha que seguir os preceitos importantes para a época. Durante quase toda sua obra, sobretudo no Livro I, Alberti chama a atenção para a construção da história a ser pintada.5 Um elemento de grande importância para a composição é o ponto, pois se trata de um sinal que não pode ser dividido por partes, e que também forma o início da construção de um campo visual (base da pirâmide visual). A superfície igualmente é um elemento impor- tante na composição da obra de arte: além de se tratar da base da 5 A história para Alberti deve ser digna de admiração, ser agradável e ornada a ponto de cativar e deleitar a alma, e tanto o espectador quanto o artista preci- sam ter o olhar educado segundo decoros e conveniências, capazes de produzir graça, leveza e harmonia, encobrindo o artifício. 44 DÉBORA BARBAM MENDONÇA pirâmide visual, agrega em si a função do movimento; permanece a mesma enquanto as linhas e ângulos não mudarem, porém, se hou- ver mudança no movimento da orla, a superfície muda de aparência e de nome, por exemplo, de triângulo para quadrângulo. Algumas superfícies são planas, outras apresentam inconstância de movi- mentos; como afirma Alberti (1989, p.74), são “cavadas por dentro, e outras são infladas para fora e são esféricas”. A perspectiva tem um papel importante na constituição da superfície, uma vez que é por meio da visão que as qualidades dispostas na superfície ganham movimento. Cada superfície apresenta sua própria pirâmide, cor e luz, sendo possível encontrar várias superfícies juntas. O teórico não trata com menos importância a questão da mul- tiplicidade das cores que devem ser empregadas nas obras de arte consideradas belas. A categorização das cores durante o Renas- cimento está estritamente ligada à natureza, pois divide as cores existentes em quatro grupos referentes, ou seja, relacionados aos quatro elementos da natureza: a água (verde), o ar (azul), a terra (cor cinzenta e parda) e o fogo (vermelho). As variações de cores existem por causa da alternância de tonalidades que representam esses ele- mentos, de acordo com o emprego do preto e do branco. A pintura por volta de 1420 (contemporânea de Alberti) con- sistia, em linhas gerais, na figuração do mundo exterior de acordo com os princípios do conhecimento humanista, ilustrando uma rememoração da necessidade grega de que a produção artística deva estar de acordo com a natureza tal como se apresenta. Assim, surge novamente a natureza como objeto de produção artística e, portan- to, como objeto de estudo, uma vez que se torna necessário que o artista apresente um domínio dos diversos ramos do saber para que possa figurar a natureza de maneira completa. Alberti observa que poucos pintores são capazes de compor a conjunção das superfícies com excelência, pois, para tal tarefa, devem saber circunscrever a superfície com as linhas e pôr-se à distância de seu objeto de imita- ção. Isso torna possível encontrar o vértice do ângulo da pirâmide visual para uma ideia da melhor localização para a contemplação das coisas pintadas. BOTTICELLI 45 Tal como prescreve a Retórica, a pintura deve mover e ensinar, deleitar pela copia e varietà delle cose; efetuando por si própria a indagação sobre a graça e a beleza da composição, pois não se en- contra método mais correto que observar a natureza mesma; por isso, para imitá-la é preciso exercitar-se com todos os pensamentos e diligências. No entendimento de Alberti, encontrar na natureza o tema da pintura não significa realizar uma imitação mimética, e sim pôr em prática o princípio de imitatio, que não se deve confundir com a cópia fenomênica, pois o deleite não é alcançado se a história não refratar virtudes. Alberti pactua, dessa maneira, com a noção de graça como copiosidade, concordando com o conceito de con- cinnitas.6 O termo concinnitas é utilizado por Alberti para auxiliar na compreensão de um tipo de beleza, uma vez que o tipo de beleza defendido pelo teórico vai ao encontro da raiz retórica do termo.7 Em relação à proporção, Alberti valoriza a comparação, pois “essas coisas todas se conhecem por comparação. A comparação tem em si a força de mostrar nas coisas o que é mais, o que é menos ou igual” (Alberti, 1989, p.87). Nesse sentido, a proporção das coisas a serem pintadas deve ser preservada para que o pintor não caia no ridículo de os espectadores reconhecerem as coisas pintadas desproporcionalmente, já que é possível reconhecer esse erro pela comparação com os outros elementos da obra. Para reforçar seu ar- gumento, Alberti (1989, p.88) interpreta a máxima de Protágoras: “o homem é a dimensão e a medida de todas as coisas”, no sentido de que “os acidentes das coisas podiam ser conhecidos, comparadas com os acidentes dos homens”. 6 Em seu tratado sobre a Arquitetura (De re aedificatoria, 1443-52), Alberti defende que a beleza deve ser digna e justa, além de entendida mais com a alma do que com o corpo. Para simplificar as definições, Alberti coloca a beleza como algo resultante do ritmo existente entre as partes reunidas com propor- ção e raciocínio. 7 O termo concinnitas está ligado a uma concepção retórica de Herênio e está baseado em outros três princípios da Retórica: elegantia, que consiste na reco- mendação de se evitar os vícios; compositio, que recomenda evitar as repetições e cortes; e dignitas, que recomenda que a oração retórica seja ornada por ele- mentos convenientes. 46 DÉBORA BARBAM MENDONÇA Em resumo, Alberti trata dos rudimentos da arte no Livro I Da pintura (triângulos, pirâmides, intersecção), que são primordiais para proporcionar ao pintor em formação os primeiros passos para o “bem pintar”. Alberti (1989, p.93) ainda acrescenta no Livro I que “nunca será bom artífice quem não for extremamente escrupu- loso em conhecer tudo o que dissemos até agora”. O próximo passo das lições ao pintor (Livro II) é saber como se deve empregar na prática o que se aprendeu em teoria. No Livro II de Da pintura, Alberti explora a necessidade da busca da graça, da beleza das coisas na composição da história, ou seja, da superfície a ser pintada, bem como enfatiza que por meio da inteligência o pintor deve colher esses elementos na própria natu- reza. Para que seja possível atribuir importância à constituição da obra de arte, Alberti expõe o processo de composição da superfície. Na superfície delimitada é possível construir a composição da his- tória a partir dos elementos a serem pintados, os corpos, que, por sua vez, são formados pelos membros, e assim por diante. A pintura é dividida em três partes tiradas da própria natureza: a descrição do espaço (circunscrição); a superfície através da qual se realiza a composição; e as qualidades da superfície, a saber, as cores e a recepção de luzes. A circunscrição é responsável por des- crever a volta em torno da orla na pintura, por estabelecer linhas, delineamento e movimento desta. A composição na pintura é o processo pelo qual as partes (da superfície) se constituem na obra, o que resulta na história. A recepção de luz é o que proporciona cor e originalidade à obra, o que diferencia a sombra do colorido, ou seja, é uma característica, como observado, qualitativa da obra. Há, no entanto, a necessidade de que todas as partes que com- põem a obra pintada formem um conjunto harmônico em si, o que resultará na história bela; essa harmonia é entendida por Alberti como a graça da pintura; é o ajuste natural e delicado das partes du- rante a composição: “[...] Da composição das superfícies nasce aque- la graça nos corpos que chamamos beleza” (Alberti, 1989, p.107). Para que seja possível a concretização dessa graça, ou mesmo a beleza necessária, é preciso que o pintor siga na prática toda a teoria BOTTICELLI 47 que lhe foi transmitida como os primeiros passos, os rudimentos do bem pintar. Deve haver um delineamento preciso da orla, uma de- limitação exata da superfície no que diz respeito à imitação daquilo que se obteve pela base da pirâmide visual, e uma justa disposição, proporção e conformidade dos elementos que traçam as figuras que irão compor a história. Alberti (1989, p.112) revela que o talento é atributo crucial do pintor, verificado na composição dos corpos, ou seja, na adequação devida das figuras com a história que se quer contar. Nesse mesmo momento do Livro II de Da pintura,8 é revelada a importância da variedade e da copiosidade para a beleza ou graça de uma obra de pintura. Segundo o autor, a história variada é capaz de abranger uma universalidade que somente a pintura é capaz de alcançar, ou seja, a pintura é capaz de agradar tanto o pobre quanto o rico, tanto o sábio quanto o inculto, tanto o fraco quanto o forte. A pintura transmite, de acordo com Alberti, certos movimentos da alma, como a ira ou a dor, que se mostram ao corpo por meio de sua natureza mutável, fazendo com que o espectador identifique a obra com a alma. Para que a pintura seja digna, é necessário que haja movimentos suaves e graciosos, convenientes ao que nela acontece. Nas pala- vras de Alberti (1989, p.107): “mas as fisionomias que tiverem superfícies juntas de tal modo que recebam sombras e luzes amenas e suaves, e não tenham asperezas de ângulos salientes, diremos certamente dessas fisionomias que elas são formosas e delicadas”. Que ela consiga por meio desses métodos afetar a imaginação do espectador por meio de seu corpo ou de sua alma. Como já decla- rado, é também de suma importância o equilíbrio do jogo de luz e sombra empregado nas cores, oferecendo destaque àquilo que lhe for devido. Na superfície plana a cor permanece uniforme, já nas superfícies irregulares ela sofre variações, porque não há como ter um equilíbrio linear entre claro e escuro. Alberti assegura que, de acordo com o contraste existente entre as cores, a beleza estará nas partes em que a cor estiver mais clara e leve. 8 Cf. Alberti, 1989, p.112. 48 DÉBORA BARBAM MENDONÇA Podemos observar que, nos livros I e II de Da pintura, Alberti procurou combinar elementos técnicos e metodológicos que julga- va importantes para a composição pictórica. Especificamente no Livro II, Alberti tratou dos conceitos necessários para a formação do pintor, que consiste na associação do fazer artístico com alguns elementos que os humanistas julgavam imprescindíveis, de acordo com a tendência quatrocentista de realizar uma representação de belo segundo uma definição, uma filosofia. Ou seja, como já vimos, realizando-se com base no diálogo que a pintura pode estabelecer com a Ética, Retórica e Poética, de maneira que seja ressaltado o retorno ao ideal grego, o conhecimento múltiplo do homem e a ob- tenção das virtudes. Dessa maneira, Alberti enfatiza que o artista não deve ter a riqueza como objetivo de sua pintura, uma vez que a arte da pintura deve produzir o contrário: o reconhecimento, a estima e a glória. O teórico reforça a necessidade de o pintor ser instruído nas artes liberais,9 como a Geometria, e dispor de um vasto conhecimento sobre muitos saberes que possam servir de ajuda para uma bela composição da história. O maior mérito do pintor está na invenção, ou seja, na descrição da história de maneira original e cuidadosa com a fidelidade aos ensinamentos que o pintor deve ter aprendido antes de realizar a obra, estando sempre atento aos detalhes dos elemen- tos pintados. Alberti toma como exemplo de uma boa invenção ou narração da história a obra de Luciano, pintada por Apeles (século IV a.C.) e, mais tarde, por Botticelli, intitulada A calúnia, pois, além da originalidade, a obra demonstra que o pintor foi íntimo dos poetas. Seguindo sua argumentação, no Livro III de Da pintura, Al- berti aconselhou, sobretudo, que o pintor deve exercitar-se em sua tarefa e procurar conhecer as proporções e superfícies daquilo que pretende pintar. No entendimento desse autor, o pintor também 9 As artes liberais se definiam pela junção das artes do Trivium com as do Qua- trivium, sendo o Trivium a Gramática, a Retórica e a Dialética; e o Quatrivium a Astronomia, a Geometria, a Aritmética e a Música. BOTTICELLI 49 deve empenhar-se no domínio das variadas figuras que possam lhe servir de inspiração, ou seja, não apenas figuras humanas, mas todas as coisas que considera “dignas de serem vistas”. Para Alberti (1989, p.137), é conveniente pintar, pois se trata de cultivar as dá- divas da natureza com empenho e exercício. O pintor deve evitar a ansie dade de terminar as obras, uma vez que o período de confecção abrange toda a reflexão do tema e a correção do que não estiver ade- quado para que o resultado seja uma obra bela e conveniente. Alberti ressalta ao final do Livro III que todos os pintores devem pensar bem, corrigindo-se, sobretudo, interiormente, para que de- pois possam confiar no que os mais experientes têm a ensinar. O humanismo de Alberti consiste na busca por alcançar algo através da combinação entre aptidão natural e studia humanitatis (Retórica, Gramática, História, Poesia e Filosofia Moral); ou seja, baseia-se na combinação entre teoria e prática quase nunca almejada, uma vez que a Oratória era a necessidade do homem virtuoso e o contato com as boas letras considerado pouco útil se não fosse complemen- tado pelo conhecimento das coisas do mundo, pela experiência. A recomendação era que os artistas recorressem às boas letras para “ornar e aguçar a invenção que naturalmente nasce com eles”10. Tal recomendação era dada porque a educação literária aperfeiçoa o juízo e reforça a dependência conceitual do discurso sobre as artes liberais da instituição retórica, uma vez que teoria e prática devem estar juntas, dado que é o que se julga conveniente à vida. Alberti foi um dos poucos que conseguiram na prática a reali- zação de sua teoria, por isso era considerado digno de elogios no meio florentino. Segundo Vasari,11 que escreveu sobre as realizações dos artífices, Alberti aliava conhecimento de causa e eloquência, atingindo o ideal ciceroniano do orador pleno. As artes claramente tinham uma função ética, pois os escritos nos quais os artífices 10 A obra de Vasari à qual nos referimos é Vite de’ più eccellenti architetti, pittori et scultori Italiani (1550). Aos cuidados de Luciano Bellosi e Aldo Rossi. Apresentação de Giovanni Previtali. Einaudi: Torino, vol. 2, 1991. 11 Ibidem, nota 17. 50 DÉBORA BARBAM MENDONÇA deveriam se pautar estavam associados à persuasão pelo ethos; nesse contexto, o que convinha era normatizado em preceptiva, possi- bilitando enfatizar os decoros por meio da engenhosa técnica do distanciamento. Para Vasari, o decoro na pintura era capaz de moldar a prudência e o engenho, alterando a própria compreensão do que se convencio- nava tomar, desde a Antiguidade, como a finalidade das artes libe- rais, isto é, a imitação da natureza. Paralelamente à reflexão sobre o novo papel do homem, posto como artista, desenvolveu-se uma reflexão sobre a técnica da perspectiva, surgida com Brunelleschi e teorizada pela primeira vez pelo próprio Alberti (Panofsky, 1994), e, como lembra Leon Kossovitch (1994), que deve ser compreen- dida como parte de um amplo discurso sobre composição pictórica, pois é em função da história que a obra se mostra. Segundo Grayson,12 Alberti era um homem culto que buscava um entendimento da história e a finalidade da arte em relação a essa história, o que resultou numa concepção de arte como atividade criadora e expressão interpretativa das relações entre o homem e a natureza ao longo da História. Blunt (2001) afirma que, para Alberti, uma pintura histórica afeta o espectador profundamente e o que ele vê faz com que suas emoções sejam despertadas. Por isso, Alberti ressalta a importância de haver no pintor a habilidade conveniente não só para explicar uma ação, como também para escolher um tema, a fim de mostrar as emoções por meio de um gesto. A perspectiva que Alberti teorizou auxilia em muito essa habilidade do artista, pois é por meio dela que o tema é organizado, é seguindo sua conveniência que a história será contada. Essa necessidade gerada por influências humanistas, a de repre- sentar na pintura uma natureza adequada, decorre certamente das teorias antigas da imitação da natureza, mas, para Alberti, a imita- ção é limitada ao nível daquilo que é visível. Em outras palavras, a pintura deve ser realizada de acordo com as limitações do espaço, 12 Alberti, L. B. Da pintura. Introdução de Cecil Grayson. Campinas, 1989, p.51. BOTTICELLI 51 captada pela pirâmide visual,13 e a imagem deve ser restrita ao que a base dessa pirâmide for capaz de captar. Portanto, o que deve ser imitado é a intersecção da pirâmide que todo o corpo subentende aos olhos do observador. A grande contribuição de Alberti para a reconstrução da arte da pintura ocorreu por causa da sua moderni- zação sob bases antigas em função dos valores absolutos da pintura (Grayson, 1989), possibilitando uma nova perspectiva ou um pos- sível futuro para ela. Em resumo, a obra Da pintura, de Alberti, terminada por volta de 1435, pode ser encarada como um guia para o pintor, articulan- do, em uma linguagem humanista, a necessidade de teorias e leis do conhecimento para a arte, exaltando assim o fazer artístico antigo. O guia do pintor também pretende mostrar que o especial moti- vo para que determinado momento histórico volte-se aos valores clássicos da Antiguidade é a carência de modelos; a arte antiga deve, portanto, ser alvo do aprendizado dos modernos, uma vez que os antigos, “tendo muita gente de quem aprender e a quem imitar, tinham menos dificuldades para chegar ao conhecimento daque- las supremas artes que para nós hoje são extremamente penosas” (Alberti, 1989, p.68), se constituindo como exemplo de valorização e desenvolvimento das capacidades do homem, como ser que se relaciona com a natureza. A familiaridade com os assuntos clássicos era a característica principal da concepção de vida de Alberti que, por sua vez, está relacionada com esse racionalismo humanista, o qual unia sem nenhuma dificuldade elementos da filosofia pagã e clássica com elementos cristãos.14 Seu ponto de vista a respeito das artes e da be- leza dependia diretamente dessa sua característica. Em quase toda sua obra Da pintura, Alberti chamou a atenção para a construção da história a ser pintada, pois um aspecto de grande importância 13 A pirâmide visual trata-se da construção da imagem vista no olho do obser- vador, ou seja, é o que conduz o objeto visto ao olho, e teoria que serve de fundamento para a técnica da perspectiva linear. 14 Pasticho. 52 DÉBORA BARBAM MENDONÇA na beleza é a composição dos elementos no espaço: é o processo por meio do qual as partes das coisas vistas se ajustam na pintura, do qual depende toda a graça possível de se empregar. Por exemplo, a construção teórica de um campo visual demonstra a necessidade da elaboração de métodos científicos – matemáticos – para a cons- trução de uma pintura. Em outras palavras, a natureza que deve ser representada na obra de arte depende de uma sistematização racional, partindo da composição, para tingir a beleza, uma vez que: “[...] Da composição das superfícies nasce aquela graça nos corpos que chamamos beleza” (Alberti, 1989, p.107). Sabendo da existência de duas exigências antagônicas no século XV para o belo, podemos perceber que toda a discussão acerca do belo artístico decorria da proximidade que os intelectuais da época procuravam manter com a Antiguidade clássica, sobretudo a grega, de maneira que a relação do homem com a natureza estivesse em evidência. A liberdade de imaginação que o artista adquire consiste em uma nova percepção do modo de realizar a arte, o que para Al- berti corresponde ao inventio, na originalidade que o artista tem de aliar os conhecimentos clássicos aos exercícios do fazer. Entretanto, um fato que se impõe é que, no Renascimento, a questão não é mais a de “como fazer”, e sim “o que se pode fazer”, de modo que sua liberdade o leve para a direção correta ao encontro do belo, a fim de que então seja capaz de “enfrentar a natureza com armas iguais” (Panofsky, 1994, p.49). A necessidade de sistematizar a produção artística gerou di- versas especulações acerca do belo que, segundo Panofsky (1994), partiam de duas necessidades antagônicas que conviviam durante o Renascimento: uma que concebe a beleza como fruto da imitação da natureza (princípio imitatio); e outra que defende que a beleza artís- tica é atingida quando o artista toma a natureza como modelo, mas que por meio de suas habilidades consegue superar a simples natu- reza, corrigindo o que nela houver de imperfeito (princípio eletio).15 15 O princípio da imitatio em Alberti é entendido como simples cópia descritiva da realidade, pois se trata de procedimento prudencial de conhecimento das BOTTICELLI 53 Abordamos o conceito de graça como o ponto de confluência entre ambas as necessidades, pois se trata da beleza que os teóricos in- dicavam para os artistas, envolvendo o exercício das técnicas e os elementos da natureza. Alberti reconhece que uma pintura se torna digna quando atende a essa dupla exigência que vigora no período, a imitação eletiva da natureza, indispensável para alcançar a graça na obra. Daí decorre, como já vimos, a necessidade de representar elemen- tos da natureza em movimentos que deveriam ser suaves, gracio- sos, apropriados ao que estivesse acontecendo na cena representa- da, visando atingir a identificação do espectador em seu corpo ou sua alma. A novidade dessa tendência pode ser percebida especialmente em Botticelli na relação estabelecida entre poesia e pintura, uma vez que a regra pictórica era vista por um viés poético e o movimento decorria de uma apropriação da Poética de Poliziano pautada nos contos homéricos, na qual se baseou Botticelli, não apenas por re- meter à poesia antiga, mas por empregar a graça necessária à beleza da obra, de fornecer a vivacidade (Warburg, 2005, p.74). O movi- mento é, nesse caso, capaz de aflorar as fantasias e reflexos, contem- plar os cabelos, as roupas, dar continuação à liberdade da fantasia e dotar de vida os elementos ornamentais inanimados (Warburg, 2005, p.78). Alberti exige do pintor que, ao reproduzir tais moti- vos, tenha o juízo comparativo necessário para não se deixar levar pelo emaranhado antinatural, pois deve dotar de movimento ape- nas onde o próprio vento possa ocorrer realmente. A graça ou, simplesmente, a beleza natural que os renascentistas procuravam encontrar na Antiguidade teve seu conceito desenvol- vido a partir do debate prático-teórico realizado por historiadores do final do século XIX, como Aby Warburg, citado anteriormente. Com base nesse debate, é possível perceber que o caminho encon- coisas do mundo, envolvendo a inventio, dispositio e elocutio, o dizer ornado. Dessa maneira, a mimese do mundo fenomênico passa do mundo moral, da cena representada, dirigindo-se à alma do espectador. 54 DÉBORA BARBAM MENDONÇA trado por Botticelli para expressar a ambiguidade de sua época e, ao mesmo tempo, empregar a beleza e originalidade em suas obras consiste na alternância entre o modelo buscado na natureza e o modelo natural buscado nas ideias. O cumprimento das duas exigências (imitatio e eletio) resultou, então, em uma única: a imita- ção eletiva da natureza. O embasamento teórico que legitima o Renascimento, como pe- ríodo particular da História, foi responsável pela aproximação entre a arte e o pensamento, pois cada vez mais se percebia a expansão do humanismo cultural entre os intelectuais, bem como se difundia o estudo de textos filosóficos, principalmente os de cunho neoplatô- nico. Podemos observar que o clima humanista foi capaz de agregar ao Renascimento teorias do fazer artístico envolvendo os conceitos necessários para a representação artística, seja a teoria de Alberti, sejam as teorias sobre o belo de cunho idealista, neoplatônico, que atribuíam valores ideais às representações artísticas, tal como a fi- losofia de Marsílio Ficino. A teoria sobre o belo no século XV fundamenta-se na noção de “ideia”, admitida tanto por Alberti (Panofsky, 1994, p.53) quanto pelos intelectuais neoplatônicos que, por sua vez, adotaram a pre- sença de propriedades metafísicas, ou simplesmente o pressuposto de que a beleza artística fosse a representação de uma ideia. A di- ferença entre a intuição da teoria da arte e a intuição do platonismo consiste na união da doutrina das ideias com a teoria da arte, que “[...] só foi possível mediante sacrifícios consentidos de parte a parte e, na maioria das vezes, conjuntamente” (Panofsky, 1994, p.55). Quanto mais a concepção de ideia se aproxima de suas pro- priedades metafísicas, mais a teoria da arte se afasta de suas origens práticas e, nesse mesmo sentido, quanto mais a teoria da arte se aproxima dos postulados práticos do Humanismo, mais a teoria das ideias perde seu caráter metafísico. Um dos filósofos de orientação neoplatônica mais influentes no cenário intelectual florentino foi, sem dúvida, Marsílio Ficino (1433-99). O estudioso era médico, mas se dedicava a traduzir textos BOTTICELLI 55 de Platão e Plotino,16 e também se empenhava na tentativa de fundir a filosofia de Platão com preceitos bíblicos, principalmente no seu comentário ao Banquete, De amore, obra na qual já demonstrava uma articulação entre ensinamentos pagãos e cristãos. Ainda no contexto da obra De amore, percebemos a presença de uma cosmo- logia complexa, também alicerçada em fragmentos de escritos anti- gos, utilizados pela Medicina Hipocrática – Corpus Hermeticum –, atribuídos duvidosamente a um texto traduzido por Ficino para o latim de um sacerdote egípcio lendário, Hermes Trimegisto, que segundo a lenda era tradutor de tratados mágicos e cosmológicos antiquíssimos, de Asclépio e Pimandro, mas que na verdade se tra- tavam de textos de inspiração neoplatônica dos séculos II e III. Per- cebemos, então, que Ficino também pode ser considerado um inte- lectual de múltiplos saberes que, por sua vez, não tentou influenciar diretamente a arte do século XV; entretanto, como os artistas eram participantes do cenário intelectual florentino, Ficino teve suas es- peculações filosóficas transpostas em arte, principalmente suas con- siderações neoplatônicas acerca do belo ideal. O eixo central da filosofia de Ficino é reconhecido na oposição ao pensamento amplamente disseminado no contexto florentino, de que a beleza equivaleria à “posição correta de todos os mem- bros”, à concinnitas (composição, relação das partes entre si e com o todo),17 tal como colocara Alberti no seu Tratado da Arquitetura (De re aedificatoria). Entretanto, Ficino, como antes Plotino, ob- servou que o belo definido como o simétrico – harmônico – não se mostra capaz de evitar a aporia de considerar belo também o acordo entre as partes das coisas más, pois nesse caso há uma pos- sível harmonia entre elas.18 A beleza para Ficino é mais uma simi- 16 No ano de 1463, Cosme de Médici adaptou a Villa Careggi para os estudos de Ficino, onde se estabeleceu a sede da academia platônica e Ficino traduziu todos os diálogos de Platão para o latim, obra concluída em 1469. 17 Cf. nota 25. 18 Cf. Tratado das Enéadas. São Paulo: Polar Editorial, 2002, p.21. 56 DÉBORA BARBAM MENDONÇA litude espiritual da coisa do que beleza corporal dela. Não é algo corpóreo e tampouco material, nem por isso se resume à simples harmonia entre as partes, pois é incorpóreo; o ser humano é dotado de um senso para captar a proporção, simetria e formas regulares, vinculadas às formas espirituais: “todo espírito elogia de imediato a forma”.19 Para Ficino,20 o belo está impresso em nosso espírito como uma fórmula,21 e é somente essa noção inata que consiste na faculdade de reconhecer a beleza visível e, ao mesmo tempo, julgá-la em função de uma invisível beleza; ou seja, a beleza não é apreendida primei- ramente pela visão, uma vez que transcende a formulação matemá- tica do quadro estático da ordem, consistindo numa “determinada atualidade, vivacidade e graciosidade” (Albertini, 2007). Bela é a coisa que, na Terra, está em harmonia mais completa com a ideia da beleza. O belo, como o bem, é capaz de atrair para si todas as atenções, pois é dotado da propriedade de fazer ver a verdade para além do mundo fenomênico. A incorporiedade da beleza situa-se, desse modo, fora das coisas, bem como fora dos olhos de quem vê; e decorre especialmente do efeito percebido no homem, pois, quando o homem se depara com o efeito provocado nele pelas coisas belas, é sinal de que o conceito que permeia a beleza foi transmitido. No contexto ficiniano, o engenho, isto é, o fazer artístico, não se dissocia do temperamento, uma vez que, mesmo que a beleza seja algo incorpóreo, a disposição corporal dos espectadores, tal como “o predomínio da bile negra”,22 confere certos atributos favoráveis 19 Cf. Albertini, T. Marsilo Ficino, dar forma estética ao mundo por meio do pensamento. In: BLUM, Paulo Richard (org.). Filósofos da Renascença. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007, p.114. 20 Cf. Panofsky, 1994. 21 Seguindo o legado platônico, Ficino sugere que a forma é responsável por provocar efeito de belo, pois há um reconhecimento intelectual com as formas eternas. 22 Ficino era adepto das considerações da doutrina dos quatro humores (bile negra, bile amarela, sangue e fleuma) que, por sua vez, se encaixava perfeita- mente na concepção filosófica da estrutura do universo. A Médicina Hipo- crática se baseava na teoria dos humores (khymós) e julgava o temperamento BOTTICELLI 57 à percepção intelectiva das ideias, numa atração simpática mútua entre o humor melancólico do artista e o centro de todas as coisas. Nesse sentido, a beleza da obra depende necessariamente da ideia do artista, tanto para a elaboração de um conceito quanto para o bem fazer. Ficino não apenas elaborou uma teoria ética, ou seja, do belo indissociável ao bem, como também relacionou a beleza de uma pintura ou escultura às ideias. Desse modo, as ideias são tornadas visíveis pela combinação do engenho com capacidade de enxergar além das aparências, marcando, assim, forte oposição às teorias clássicas do decoro, harmonia e proporção, como a de Alberti. Ao afirmar que o belo é o resultado visível de uma ideia, isto é, beleza incorpórea, Ficino destaca que o amor deve ser o mestre de todas as artes, tanto pelo prazer de buscar o verdadeiro quanto pelo senti- mento ao ensinar os discípulos. Podemos perceber com essa breve exposição da filosofia de Ficino e das indicações teóricas de Alberti sobre a pintura que a compreensão da beleza, de cunho humanista, durante o Quattro- cento não tinha uma definição única, mas múltiplas abordagens, que privilegiavam ora elementos teóricos, ora místicos ou, ainda, retóricos. Entretanto, ambas as posições concordam que a beleza é fruto de um trabalho que ocorre quando o artífice é capaz de provo- car um efeito no espectador. Nesse sentido, pretendemos examinar o conceito de graça na obra de Botticelli, tentando localizá-lo nos apontamentos de Alberti e, então, se possível, sugerir sua adequa- ção com a “determinada atualidade, vivacidade e graciosidade” que humano a partir do derramamento desses humores. Cada líquido é produzido por determinado órgão do corpo, e o excesso ou deficiência de qualquer um dos humores poderia ocasionar as doenças. A bile negra é o líquido produzido pelo baço ou estômago, e de origem seca e fria; ela transmite um tempera- mento melancólico. Havia ainda uma correspondência entre os quatro humo- res com os quatro elementos (terra, ar, fogo e água), com as quatro qualidades naturais (frio, quente, seco e úmido) e com as quatro estações do ano (inverno, primavera, verão e outono), que certamente nos auxilia no entendimento de muitas alegorias encontradas no Renascimento. 58 DÉBORA BARBAM MENDONÇA Ficino defende transcender a formulação matemática do quadro estático da ordem (Albertini, 2007). De acordo com Panofsky (1994, p.56), Ficino considera que a ideia de belo está impressa no espírito como uma “fórmula”, o que é capaz de realizar o reconhecimento da beleza visível, de maneira invisível, pois é belo aquilo que materialmente estiver em confor- midade com a ideia de beleza. Contrariamente a Alberti, Ficino entende que a disposição não é suficiente para formar a beleza; ele defende que coisas simples podem ser belas, com a confirmação do argumento de que a possibilidade de encontrar a beleza em uma disposição cujas partes não são belas é um absurdo, uma vez que a disposição depende do conjunto. A beleza deve compreender a graça e, assim, agradar. O amor (base da beleza) não se satisfaz pela visão, assim como a fome pelo paladar ou pela comida, pois nenhum sentido corpóreo isoladamente é capaz de satisfazer uma necessidade incorpórea e, desse modo, somente a beleza satisfaz