MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA O CASO DA CITRICULTURA ESTADUNIDENSE CAMILLA SILVA GERALDELLO M E D ID A S A N T ID U M P IN G E P O L ÍT IC A D O M É S T IC A C A M ILLA SILVA G ER A LD ELLO Capa_Medidas_antidumping_(impresso).indd 1Capa_Medidas_antidumping_(impresso).indd 1 28/11/2015 01:10:2328/11/2015 01:10:23 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 1Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 1 31/12/2015 14:52:3631/12/2015 14:52:36 CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Samuel Alves Soares Suzeley Kalil Mathias Flávia de Campos Mello Sebastião Velasco e Cruz Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 2Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 2 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 CAMILLA SILVA GERALDELLO MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA O CASO DA CITRICULTURA ESTADUNIDENSE Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 3Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 3 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 © 2015 Editora Unesp Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br www.livrariaunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ G314m Geraldello, Camilla Silva Medidas antidumping e política doméstica [recurso eletrônico]: o caso da citricultura estadunidense / Camilla Silva Geraldello. – 1.ed. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. Recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7983-665-7 (recurso eletrônico) 1. Estados Unidos – Relações exteriores. 2. Relações internacionais. 3. Política internacional. 4. Livros eletrônicos. I. Título. 15-26810 CDD: 327.73. CDU: 327(73) Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Editora afiliada: Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 4Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 4 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 A meus pais e meu irmão Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 5Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 5 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 6Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 6 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 AGRADECIMENTOS A meus pais, Fernando e Rosemary, e a meu irmão, Fernando Henrique, por apoiarem cada passo e cada decisão da minha vida acadêmica, muitas vezes sem nem saber ao certo o que significa- vam. Mesmo assim, vocês enfrentaram as batalhas, comemoraram as vitórias e me confortaram nas derrotas. A meu orientador, Tullo Vigevani, por me “desorientar” (tra- zendo sempre novas questões para reflexão), e a todos os professo- res do San Tiago Dantas, em especial ao Carlos Eduardo Carvalho, aos professores que estiveram presentes em minha banca de qua- lificação, Marcelo P. Mariano e Filipe A. Mendonça, e em minha banca de defesa, Christian Lohbauer. Ao pessoal do Igepri, em especial ao Marcelo Fernandes de Oliveira. Aos meus amigos “marilienses” André Eiras, Annie Pelissa- ri, Aubrey Leonelli, Barbara Regina Vieira Lopes e José Lucas Bergamasco. A todos os meus amigos “Dantas”. A minha tia Dirce, minha madrinha Maria Aparecida e Mônica Catarino, por me acolherem em suas casas durante o período em que cursei as disciplinas do mestrado e as minhas roommates de Ribeirão Preto. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 7Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 7 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 8 CAMILLA SILVA GERALDELLO Ao Anderson Romanello, por me proporcionar a primeira expe- riência no ensino universitário, confiando-me alunos incríveis, aos quais também agradeço. À Capes, pelo auxílio concedido, e a Deus, pela força, paciência e sabedoria em cada passo do caminho. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 8Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 8 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 As disposições jurídicas internacionais guardam relação com a lei de sociedades primitivas estudadas pela antropologia, nas quais o litígio ainda emerge como alternativa tênue à resolução de conflitos pela força. Contenciosos internacionais possuem caráter indeterminado. Não fornecem respostas inevitáveis para dis- putas legais, nem resultados conclusivos. (Hudec, 1987, tradução nossa) Os homens não são guiados pelos fatos e sim por suas próprias opiniões sobre os fatos, opiniões essas que podem ou não ser corretas, e normalmente não são. (Angell, 1951, apud Griffiths, 2004) Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 9Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 9 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 10Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 10 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 SUMÁRIO Introdução 13 1 Discussão teórica 23 2 Antidumping na OMC 43 3 A citricultura estadunidense 85 4 Interação entre citricultura, Congresso e eleições 121 Considerações finais 151 Referências bibliográficas 153 Apêndices 175 Sobre a autora 187 Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 11Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 11 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 12Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 12 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 INTRODUÇÃO Desde que assumiu a liderança no cenário internacional, os Es- tados Unidos da América promovem em seus discursos as ideias kantianas e democráticas de institucionalismo, paz, cooperação e liberalização econômica. Todavia, o país utiliza-se constantemente do protecionismo direto e indireto no segmento agrícola. Quando o assunto é importação de commodities,1 a sua política comercial externa agrícola tende a ser contrária à ideia liberalizante nortea- dora da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em vez de diminuir barreiras comerciais, termina por criar novas e remodelar antigas barreiras. Um exemplo recente desse comportamento foram as medidas antidumping2 e as barreiras fitossanitárias3 impostas ao suco de la- 1 São produtos de baixo valor agregado, ou seja, que não foram processados, apresentando-se muitas vezes como matéria-prima. Podem ser de origem vegetal, animal ou mineral. 2 Medidas de direitos antidumping são aquelas que países importadores ado- tam para compensar o dumping na importação de algum produto. O dumping ocorre quando um produto é vendido no exterior a preço menor do que no seu país de origem. 3 Grosso modo, barreiras fitossanitárias são restrições impostas a importações por meio de critérios sanitários. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 13Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 13 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 14 CAMILLA SILVA GERALDELLO ranja brasileiro no mercado estadunidense. Desde 1980, o Brasil é o maior produtor de laranjas e de suco de laranja, em prejuízo da produção dos Estados Unidos,4 e este país, que é o maior e mais lucrativo mercado nacional de suco de laranja, teve que se contentar com o segundo lugar na produção. Juntos, Brasil e Estados Unidos respondem por 81% da produção mundial de suco de laranja (Fava Neves et al., 2010). Contudo, o Brasil concentra, sozinho, 85% da participação no mercado mundial. Isso porque o produto brasileiro conta com maior competitividade em sua cadeia produtiva, em re- lação ao produto estadunidense, graças à tecnologia mais avançada e às condições naturais favoráveis do país (id., ibid.).Calcula-se que, sem as restrições tarifárias, provavelmente haveria uma subs- tituição da produção doméstica estadunidense pela importação do suco de laranja brasileiro (Carvalho da Rosa et al., 2013). Embora o Citrus Belt5 estadunidense receba forte auxílio go- vernamental, por meio de medidas de fomento, como crédito aos produtores, investimento em marketing para o consumo do produ- to local, programas de controle de doenças, entre outras, a Flórida, principal estado do Citrus Belt,6 vem sofrendo constantes perdas de produtividade, em decorrência de geadas e furacões. Foram as geadas ocorridas no estado, na década de 1980, que levaram o Bra- sil ao primeiro lugar em produtividade mundial. Já na década de 2000, foram os furacões e a chegada de uma nova doença ao estado, o greening,7 os responsáveis pela diminuição da produção estaduni- dense, isso tudo em um só ano, 2005 (Fava Neves et al., 2010). 4 A nascente indústria citrícola brasileira consolidou-se no período em questão, quando a citricultura da Flórida sofria uma redução na produção. 5 Ou cinturão citrícola, área produtora de citros. 6 A Flórida é responsável por 70% da produção de laranja no país e foi a pioneira no setor de produção de suco pronto para consumo. Outros estados que tam- bém produzem laranja são o Texas, o Arizona e a Califórnia, porém a produção está voltada para o consumo da fruta in natura e não para a fabricação de suco. 7 Doença de difícil controle, para a qual ainda hoje não existe um método de tratamento totalmente eficaz. O Brasil optou por erradicar as árvores doentes e aplicar inseticidas e vem conseguindo bons resultados no controle da doença. Já a Flórida optou pela não erradicação das árvores atingidas pela doença e não vem conseguindo controlar a expansão do greening (Joaquim, 2013a; 2013b). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 14Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 14 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 15 O Brasil atualmente é responsável por 26% da produção mun- dial de laranja e por 53% da produção mundial de suco de laranja, além de exportar 85% do suco consumido no mundo. Ou seja, três em cada cinco copos de suco de laranja consumidos no mundo são provenientes do nosso país. Em nenhum outro setor sua liderança mundial é tão grande quanto na citricultura. Nenhuma outra fruta é produzida aqui para fins industriais no mesmo volume que a laranja: em São Paulo, 70% das laranjas são destinadas à produção do suco concentrado e, em Minas Gerais, 86%. Essa posição vem sendo mantida graças à grande competitividade do país no setor, às boas condições de clima e solo locais, bem como às técnicas avan- çadas e à infraestrutura logística e estratégica do setor (Fava Neves et al., 2010). “Mas não há em lugar algum, na terra ou no céu, uma ‘fruta de ouro’ com tanta importância quanto a laranja tem na Flórida, onde a plantação e o processamento de cítricos movimentam uma indústria bilionária de dólares” (Florida Citrus Mutual, c2012a, tradução nossa). A indústria citrícola na Flórida movimenta US$ 9 bilhões, sendo US$ 1 bilhão em impostos, e gera cerca de 76 mil empregos, de maneira direta ou indireta, pois 98% das laranjas são colhidas manualmente (id., c2012a; c2012b). Dessa forma, frente aos problemas sanitários e ambientais, à li- derança brasileira, ao destaque que a citricultura tem na Flórida e à presença marcante do suco de laranja na alimentação estaduniden- se, esse estado vem tentando manter a viabilidade da sua produção. Para tanto, visando proteger seus produtores, os quais arcaram com custos mais elevados na produção da commodity em questão, desde que o Brasil ascendeu à liderança nesse setor os Estados Unidos utilizam três mecanismos contra o produto brasileiro:8 pico tarifá- 8 O “suco de laranja brasileiro, talvez, juntamente com o açúcar e o algodão, [seja] um dos produtos agrícolas mais visados pelas barreiras comerciais [estadunidenses]”, sendo os setores citrícola e açucareiro os “mais pena- lizados pelas políticas comerciais adotadas pelos Estados Unidos, devido principalmente à competitividade brasileira” (Carvalho da Rosa et al., 2013, p.51, 53-4). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 15Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 15 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 16 CAMILLA SILVA GERALDELLO rio alto; processos de defesa comercial; e preferências comerciais a terceiros países, como o México (Brasil, 2007).9 Esse protecionismo estadunidense criou diversos impasses co- merciais, obrigando as autoridades brasileiras a levarem a questão para a OMC em 2002 e em 2008-2009. Em 2002, o problema foi um imposto aplicado pela Flórida ao produto importado, que, além de taxar somente os importados, era investido no marketing do produto floridiano.10 As partes não chegaram a um consenso sobre os painelistas, e uma decisão de um juiz dos Estados Unidos foi na direção daquilo que era pretendido pelo Brasil: a diminuição do im- posto, encerrando o caso antes da abertura do painel (Lima, 2009a). Já em 2008, após consultas, o Brasil decidiu pela abertura do painel na OMC, o qual iniciou-se em 2009 e terminou em 2011, com a vitória brasileira, como em outras ocasiões.11 O problema, nesse período, foi que os Estados Unidos aplicaram medidas anti- dumping baseadas no método do zeroing12 contra o produto brasi- leiro desde 2005, em decorrência de petição liderada pela Florida Citrus Mutual (uma associação de citricultores). Esse painel, um dos últimos sobre o zeroing, já vinha sendo condenado na OMC, e os Estados Unidos eram o último país que ainda o utilizavam. Isso 9 Gostaríamos de esclarecer que “preferências comerciais a terceiros países” não são mecanismo protecionista per se, porém, dada a utilização desse mecanismo como modo de diminuir a importação do produto brasileiro, ele acaba sendo percebido como um mecanismo de defesa. 10 O governo do estado da Flórida realiza, em parceria com os citricultores, cam- panhas publicitárias para estimular o consumo do suco de laranja produzido no país, como veremos no Capítulo 3. 11 Entre elas, os contenciosos das patentes (Oliveira; Moreno, 2007) e do algodão (Lima, 2009b). 12 O zeroing é uma forma de calcular o dumping para a qual apenas as transações nas quais o preço do produto é mais baixo do que o seu valor normal são uti- lizadas no cálculo, ficando de fora as transações nas quais o preço do produto é mais alto do que o seu valor no mercado interno do exportador. Ou seja, as transações nas quais não ocorre dumping não são levadas em consideração, são nulas. Logo, ao excluir parte das transações, como no caso em questão, haverá o aparecimento positivo de dumping. Todos os casos de utilização dessa prática que chegaram à OMC foram condenados (Saggi; Wu, 2013). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 16Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 16 31/12/2015 14:52:4731/12/2015 14:52:47 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 17 porque, como veremos, o método não realiza uma comparação justa entre o preço no mercado doméstico do exportador e do importa- dor, favorecendo e alcançando porcentagens mais altas de dumping positivo, principalmente quando há aumento na demanda interna do mercado importador (Saggi; Wu, 2013). Em 2005, esse país produziu safras de laranja menores, devido aos furacões dos anos anteriores e ao greening, o que fez sua demanda pelo suco de laranja brasileiro aumentar. Todavia, o maior penalizado com a utilização do método é o consumidor final, que terá à disposição um produto mais caro. Logo, “o principal efeito dos direitos antidumping nesse caso não era a proteção aos produtores de suco de laranja estaduni- denses, mas altos preços para os consumidores” (id., ibid., p.406, tradução nossa). Ainda em 2008, formava-se no Brasil uma nova associação dos exportadores de cítricos, a Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos (CitrusBR), que congregou as principais indús- trias exportadoras de cítricos: Citrosuco, Citrovita, Cutrale e Louis Dreyfus Commodities. Nasceu altamente profissionalizada, pois os membros da diretoria e da presidência contratados para atuar nela são pessoas com capacidade técnica especializada. Assim, podemos destacar três aspectos importantes: 1o) a apli- cação de medidas antidumping pelo método do zeroing passou a ocorrer quando a citricultura estadunidense começou a enfrentar problemas sanitários e ambientais, o que prejudicou a produção, e quando solicitada pela Florida Citrus Mutual, em período de safras reduzidas; 2o) o pedido de abertura do painel na OMC pelo Brasil ocorreu quando estourou a crise da bolha imobiliária nos Estados Unidos, a qual afetou o mundo todo; 3o) o pedido brasileiro foi feito no momento em que houve um fortalecimento do seu setor citrícola exportador, com a criação da CitrusBr. Nessa vitória brasileira, pela primeira vez os Estados Unidos não apelaram contra o resultado final e retiraram as taxas anti- dumping do suco de laranja brasileiro em março de 2012. Todavia, apesar de terem enviado comunicados ao Órgão de Solução de Con- trovérsias (OSC) da OMC, afirmando que estudavam uma propos- Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 17Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 17 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 18 CAMILLA SILVA GERALDELLO ta de modificação do método de cálculo das margens de dumping e das taxas de liquidação nos procedimentos antidumping (World Trade Organization, 211c), uma medida fitossanitária foi imposta pouco antes do prazo final, em janeiro de 2012, contra um pesticida largamente utilizado na citricultura em geral, o carbendazim,13 in- clusive na brasileira. Em 14 de março de 2012, a Comissão de Comércio Interna- cional dos EUA (United States International Trade Commission – USITC) revogou as taxas antidumping impostas aos produtos brasileiros, pois considerou as acusações de dumping improcedentes e não danosas aos produtores estadunidenses. Portanto, mesmo a contragosto dos citricultores da Flórida, o país cumpriu o acorda- do no órgão internacional. Isso indica que cadeias produtivas sem articulação com setores industriais importantes, como no caso da citricultura, não possuem a mesma capacidade de conduzir esse país a defender posturas protecionistas no mercado agrícola global, levando ao esgotamento da utilização do zeroing. Entretanto, o governo estadunidense manteve a alta tarifa de importação e apli- cou uma medida fitossanitária, o que pode demonstrar disposição para a aplicação de novas formas de protecionismo, embora este não tenha sido o objetivo no caso em questão. Diante do exposto, faz-se necessário responder a algumas ques- tões, entre elas: Por que a citricultura da Flórida é protegida por meio do uso de métodos condenados pelo regime internacional de comércio (o zeroing)? Como um setor com pequena participação na economia nacional dos Estados Unidos conseguiu superar as prefe- rências de livre comércio das indústrias de exportação de alto valor agregado, se, para a economia estadunidense e seus consumidores, seria mais interessante que o produto brasileiro ingressasse sem taxas extras? Por que esse país está disposto a aplicar diversas for- mas de protecionismo para proteger sua citricultura? Estaria bus- 13 Essa substância, proibida nos Estados Unidos, é utilizada por todos os produ- tores brasileiros. Entretanto, os níveis do produto que foram encontrados no suco brasileiro estavam dentro dos padrões internacionais. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 18Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 18 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 19 cando transformar as regras do comércio internacional, realizando protecionismo e ao mesmo tempo tentando obedecer à legislação internacional pró-liberalização do comércio internacional? Ou são medidas tomadas devido à importância da política doméstica do estado da Flórida? Nossa hipótese foi que os Estados Unidos, devido à sua orga- nização político-burocrática doméstica (agências e suas estruturas e organização da sociedade civil), podem agir de modo contrário ao expresso no regime internacional do comércio, visando atender suas demandas internas, seja de seus cidadãos ou de suas empresas nacionais, para protegê-los quando esses grupos nacionais possuem grande influência ou poder político. Todavia, o grau de participação na economia nacional dos setores demandantes internos afeta a maneira como ocorre a ação no âmbito internacional: setores que articulam cadeias complexas nacionais têm uma defesa mais ferre- nha, enquanto setores que não o fazem possuem uma defesa mais “branda”, menos confrontacionista. O caso da laranja destaca-se porque não articula uma cadeia complexa nacional, porém a defesa é ferrenha, mostrando que suas ações de lobby14 são tão eficientes quanto as de cadeias complexas. Procuramos demonstrar nossa hipótese por meio da análise do contencioso do suco de laranja, no qual, como exposto, os Estados Unidos adotaram ações contra supostas práticas desleais brasileiras de maneira incorreta. O caso revela que se, por um lado, a submis- são dos interesses do segmento citricultor estadunidense ao painel da OMC, sem recorrer da decisão, demonstra que o conjunto da ca- deia produtiva da laranja não articula cadeias complexas e relevan- tes na economia nacional estadunidense e, devido ao esgotamento do uso do zeroing, ceder apresenta-se como a opção menos custosa em âmbito internacional, por outro lado, a utilização de métodos sabidamente condenados pela OMC demonstra a relevância do setor citricultor da Flórida na dinâmica do sistema federativo dos 14 Ação de exercer pressão, de tentar influenciar decisões políticas, praticada por grupos de interesse. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 19Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 19 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 20 CAMILLA SILVA GERALDELLO Estados Unidos, haja vista a força e o respaldo que tem tanto no Congresso Nacional quanto nas estruturas do Executivo responsá- veis pela política comercial agrícola. Como veremos neste livro, isso decorre, em grande parte, do papel decisivo dos votos da Flórida nas eleições (congressuais e presidenciais) e do apoio financeiro dos produtores a essas campanhas eleitorais (Langevin, 2006). Nesse sentido, a compreensão do fato de os Estados Unidos aplicarem direitos antidumping ao suco de laranja brasileiro em- pregando método contrário às regras da OMC certamente está atrelada ao entendimento de como ocorre a influência e a pressão dos citricultores do estado da Flórida na arena doméstica do país. Isso porque “essas indústrias da Flórida tem muito a perder se os Estados Unidos e o Brasil chegarem mais próximo de um comércio livre de commodities agrícolas” (Langevin, 2006). De acordo com Carvalho da Rosa et al. (2013), se existisse um acordo entre os dois países para retirar todas as barreiras ao suco de laranja brasileiro no mercado estadunidense, haveria um aumento de 21,56% no comér- cio desse produto entre eles (pelo menos entre 1998 e 2008), o que enfraqueceria a produção doméstica estadunidense e, dependendo do caso, praticamente a eliminaria. Começaremos, no Capítulo 1, “Discussão teórica”, fazendo uma breve revisão sobre a teoria da influência dos atores domésticos nas negociações internacionais e a da ação coletiva, pois acreditamos que tais teorias poderiam nos auxiliar a compreender nosso estudo de caso. Tanto o protecionismo estadunidense quanto a disputa na OMC entre Brasil e Estados Unidos devem ser analisados como reflexos das demandas de grupos internos de cada país. Do lado estadunidense, temos os citricultores floridianos, que exigem de seu governo, em âmbito estadual e federal, que sobretaxe o produto importado, seja via impostos domésticos ou medidas antidumping, e que auxilie em campanhas para incrementar o consumo do pro- duto produzido localmente; e o governo estadunidense, o qual, seguindo os princípios sobre os quais foi estabelecida a Federação, procura atender a tais demandas e arca com os custos internacionais decorrentes dessa ajuda. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 20Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 20 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 21 No Capítulo 2, “Antidumping na OMC”, analisaremos as regras do regime internacional de comércio para casos de antidumping estabelecidas por esse órgão e abordaremos os casos ocorridos a par- tir de 1995 em que medidas antidumping foram por ele contestadas, dando maior atenção aos momentos em que houve a contestação da utilização do método zeroing, e aos casos envolvendo os Esta- dos Unidos. Passaremos então à análise do contencioso do suco de laranja dentro do regime internacional de comércio; o modo como a metodologia utilizada por esse país estava em desacordo com o regime internacional de comércio; e os desdobramentos do caso: a eliminação das medidas antidumping, a aplicação da barreira fitossa- nitária e os seus reflexos na importação do suco de laranja, passando brevemente por uma análise do Acordo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (AMSF) da OMC. No Capítulo 3, “A citricultura estadunidense”, trataremos da cadeia citrícola da Flórida; da organização da coalizão dos produto- res para proteção do setor; das ações do Departamento de Cítricos da Flórida (Florida Department of Citrus) – marketing, pesqui- sa, financiamento; da crise que o setor enfrentou nos anos 2000; da maneira como são determinadas as medidas antidumping pelos órgãos competentes: Administração de Comércio Internacional (International Trade Administrative), Departamento de Comércio dos EUA (United States Department of Commerce), Comissão de Comércio Internacional dos EUA (United States International Trade Commission). Desse modo, delinearemos o setor e as inicia- tivas do governo para auxiliá-lo. Ainda em relação ao âmbito doméstico estadunidense, no Capí- tulo 4, “Interação entre citricultura, Congresso e eleições”, busca- remos compreender como ocorreu o processo na política doméstica estadunidense para a proteção do setor, mostrando a dinâmica elei- toral e o peso da Flórida nas eleições, devido a seus votos e ao finan- ciamento de campanhas, e a interação entre o setor, o Congresso e as eleições, revelando o quanto as organizações citrícolas investem em lobby e apoio a candidatos, direta ou indiretamente. Com isso, será possível entender como as instituições políticas absorvem as Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 21Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 21 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 22 CAMILLA SILVA GERALDELLO demandas internas e como a lógica do lobby atua nesse processo e na política estadunidense. Por fim, apontaremos algumas perspectivas para o setor e faremos nossas considerações finais. A pesquisa que deu origem a este livro procurou demonstrar que casos de antidumping e de barreiras fitossanitárias não são ape- nas medidas aplicadas automaticamente pelos órgãos competentes estadunidenses, de acordo com as regras estabelecidas interna- cionalmente, mas podem envolver cálculos políticos domésticos, levando à sua aplicação sem real necessidade, o que nos ajuda a compreender o motivo do descumprimento de normas do regime internacional de comércio pelos Estados Unidos, os quais molda- ram os padrões do regime, testando nossa hipótese de que esse país agora busca transformar o sistema que ele mesmo criou utilizando- -se das normas do sistema, mas de maneira distorcida. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 22Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 22 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 1 DISCUSSÃO TEÓRICA O contencioso do suco de laranja entre Brasil e Estados Unidos suscita questões relevantes tanto no âmbito internacional quanto no doméstico sobre os dois países e para eles: Por que existem tantas barreiras à entrada do produto brasileiro no mercado estadunidense? Por que o Brasil acionou a OMC somente em 2008, se as medidas antidumping são impostas desde a década de 1980? Como o Brasil conseguiu vencer o painel, se o setor citrícola nacional ainda enfrenta dificuldades em articular produtores e indústrias? Ou a capacidade e a tecnicidade brasileira na OMC ajudam a superar esses problemas internos? Por que os Estados Unidos, que, contrariamente, possuem um órgão governamental que defende e representa seus citriculto- res, perderam o contencioso, não recorreram e aplicaram uma nova proteção (a fitossanitária) ao setor? Qual a importância da citricul- tura estadunidense no país? É política ou econômica? Nosso escopo, neste livro, porém, será a parte relativa aos Estados Unidos. A maior facilidade de acesso a documentos nos permite uma compreensão mais ampla dos fatos e das causas. Para tanto, parece-nos relevante discutir primeiramente algumas questões teóricas. Entre os atores estadunidenses do caso, temos, além do Estado- -nação (o ator no órgão internacional), os atores domésticos – alguns fazem parte da burocracia desse Estado-nação e outros, da socie- Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 23Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 23 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 24 CAMILLA SILVA GERALDELLO dade civil organizada em associações de interesse comum. Nessa perspectiva, acreditamos que teorias pautadas na preponderância do Estado como único ator, as quais dominaram quase exclusiva- mente as análises sistêmicas da área de Relações Internacionais até a década de 1980, não são suficientes para alcançar o entendimento do contencioso. Já as teorias que envolvem outros temas (economia e meio ambiente) e outros atores (organizações não governamen- tais, empresas transnacionais, organizações intergovernamentais) que emergiram em meio ao debate aberto na área na década de 1970 e levaram a uma revisão do princípio do Estado-nação como ator unitário e racional (Moreira Jr., 2012), apresentam-se como melhor opção em nosso caso. Essas teorias liberais surgidas na década de 1970 pretendiam responder a determinados questionamentos para compreender a realidade que se impunha no momento, a saber: Como se formam as preferências de cada Estado? O interesse nacional é sempre o mesmo? Qual o papel da sociedade nas decisões do Estado no ce- nário internacional? Ela participa? “Onde está o interesse nacional quando a ação do Estado tem consequências distributivas domésti- cas?” (Soares de Lima, 2000, p.288). O Estado-nação passou a não ser visto mais como uma caixa-preta.1 Assim, o conflito sobre o que o interesse nacional requer é ine- vitável (Milner, 1997). De acordo com Putnam (2010), os policy- makers2 discordam em quase todas as questões importantes sobre o que o interesse nacional e o contexto internacional demandam. Isso acontece porque o interesse nacional não é definido somente pelo Executivo, que sofre influências do Legislativo, da opinião pública, dos grupos de interesse. Logo, “a escolha da política (externa) é resultado do jogo estratégico entre atores domésticos na luta pelo poder interno” (Soares de Lima, 2000, p.287). 1 Não entraremos aqui em uma discussão profunda sobre o debate entre rea- lismo e liberalismo, para não fugir da nossa análise central. Para mais informa- ções, ver Sarfati (2005); Nogueira; Messari (2005). 2 Nesse caso, são os responsáveis pela elaboração de políticas governamentais. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 24Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 24 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 25 A literatura estadocêntrica não tem as bases para teorizar o modo como as políticas doméstica e internacional interagem, pois o realismo clássico vê Estado e governo como sinônimos. “Indepen- dentemente da natureza do governo que esteja no poder, ele será sempre o mais fiel intérprete dos interesses nacionais” (Soares de Lima, 2000, p.285). Todavia, no contexto da hegemonia da economia de mercado e da demo- cracia representativa liberal [as quais têm se consolidado na maior parte dos Estados], a perspectiva realista tende a perder o lugar pre- dominante que ocupara. [...] Passam a ser privilegiadas nas análises correntes não apenas novas definições do conceito de segurança, como as possibilidades de cooperação internacional em função de normas compartilhadas existentes nas formações republicanas de governo. (Soares de Lima, 2000, p.267) Nessa perspectiva, uma subárea do campo de política externa surgida no final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960 (e que tem se desenvolvido como uma área separada das Relações Interna- cionais) ganha mais espaço: a Análise de Política Externa (APE; em inglês: Foreign Policy Analysis – FPA). […] A APE distingue-se de outras abordagens teóricas das Rela- ções Internacionais por sua insistência em que o ponto focal da explicação da política externa devem ser os próprios formuladores de política, e não fenômenos estruturais ou sistêmicos maiores. Variáveis explicativas de todos os níveis de análise, desde o micro ao macro, são de interesse para o analista, na medida em que elas afetam o processo de tomada de decisão. Assim, de todos os sub- campos das Relações Internacionais, a APE é a interface teórica mais integrativa. As investigações sobre os papéis que as variáveis (tais como personalidade, percepção e construção de significado, dinâmicas de grupo, processos organizacionais, políticas burocráti- cas, políticas internas, de cultura, influência da estrutura do sistema Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 25Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 25 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 26 CAMILLA SILVA GERALDELLO na política externa) ocupam são a agenda da FPA. (Encyclopedia..., c2014a, tradução nossa) Desse modo, não somente os estados, mas também os indi- víduos, as organizações e as instituições são elementos chave nas decisões de política externa e para se entender a natureza do sistema internacional, pois a “decisão do governo reflete a batalha política dentro [dele]. A política externa final é, assim, um compromisso, não refletindo o que o sistema exige, mas sim o que as diferentes facções dentro do governo de um Estado podem concordar” (Hal- ruth, 2011, p.5). Portanto, o ponto principal da Análise de Política Externa é explicar por que os atores fazem as suas escolhas, pois, de acordo com Hudson (2005), são os indivíduos tomadores de deci- sões que determinam o comportamento do Estado. Ainda segundo essa autora, três obras construíram a base dessa subárea: Decision making as an approach to the study of international politics [Tomada de decisão como uma abordagem para o estudo de política internacional], de Snyder, Bruck e Sapin (1954); Pre-theo- ries and theories of Foreign Policy [Pré-teorias e teorias de política externa], de Rosenau (1960); e Man-milieu relationship hypotheses in the context of international politics [Hipótese do relacionamento do homem comum no contexto da política internacional], de Sprout e Sprout (1956). Esses primeiros trabalhos focaram a conceituação, o desenvolvimento da teoria específica do ator em vários níveis de análise e a experimentação metodológica. Um dos autores que f iguram nesse primeiro momento é Graham Allison (1971), que vê a ação estatal como resultado do comportamento das organizações estatais – logo, o Estado constitui um arranjo complexo de burocracias. As capacidades organizativas existentes dentro dele influem na escolha feita pelos governos, e as prioridades dessas organizações modelam a implementação das ações governamentais. Como as organizações tendem a maximizar sua jurisdição e seu orçamento, os governantes que negligenciam os cálculos de viabilidade administrativa correm o risco de fracassar. Veremos que no caso dos Estados Unidos essa análise dos anéis Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 26Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 26 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 27 burocráticos é uma máxima: o Estado norte-americano é de fato um arranjo complexo de burocracias (agências governamentais federais e estaduais) que têm mais espaço de atuação e orçamento do que o próprio presidente, o qual não consegue tomar nenhuma decisão sem ponderar o seu impacto sobre as ações dessas agências.3 Grande parte das disputas burocráticas que Allison (1999) descreve como parte do processo de tomada de decisões continua durante todo o processo de execução. Isso ocorre porque o signi- ficado de qualquer política não está definido em uma decisão. É preciso ação para interpretar o que a política vai significar na prá- tica. [...] O “burocrático experiente” sabe que a decisão é apenas metade da batalha, e está disposto e capaz a dar forma ao processo de implementação na mudança de política de preferências. (Hal- ruth, 2011, p.6) Outra metodologia que se desenvolveu nesse início da Análise de Política Externa foi a Política Externa Comparativa (Compa- rative Foreign Policy – CFP), a qual compara fontes internas da conduta externa de diferentes países, explorando a relação entre o tipo de ligação interna–externa de um país e seu sistema político e econômico e o nível de desenvolvimento social. Algumas pesqui- sas também têm explorado em que medida certos padrões de com- portamento, como manifestações violentas ou protestos, podem se espalhar de um Estado para outro (Pfaltzgraff Jr., c2014). Assim, na Política Externa Comparativa, os acontecimentos poderiam ser comparados ao longo das dimensões comportamentais e identi- ficados como positivos ou negativos, bem como a forma como os instrumentos de política externa (diplomático, militar, econômi- co) foram utilizados na tentativa de influenciar os fatos, segundo Hudson (2005). 3 Aprofundaremos essa análise sobre a política externa comercial nos capítulos seguintes, nos quais apresentaremos as agências governamentais que cuidam do comércio exterior e atuaram no contencioso. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 27Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 27 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 28 CAMILLA SILVA GERALDELLO Essa autora também destaca, entre as primeiras abordagens de Análise de Política Externa, as análises que levaram em considera- ção as percepções e imagens na política externa (psychological and societal milieux of foreign policy decision making) e que foram muito importantes na agenda da subárea. Uma das linhas de análise pos- síveis aqui considera que as características do indivíduo negociador são essenciais para a tomada de decisão; outra perspectiva de análi- se, por sua vez, realça as características nacionais e sociais. Entre os autores que trataram dessa segunda abordagem, temos Robert Pu- tnam, com o jogo de dois níveis (que veremos mais detalhadamente na seção seguinte), e Almond e Lippman, para os quais a opinião pública é incoerente e sem unidade em questões de política externa, mas tem grande impacto sobre a condução dessa política (Hudson, 2005). Todavia, muitos outros autores vêm tentando mostrar que a opinião pública e a das elites afetam a política externa: Mueller mostrou que a mudança na opinião pública em relação a assuntos internacionais ocorre por fatores racionais, citando o exemplo da Guerra do Vietnã (id., ibid.). Com relação aos estudos contemporâneos de Análise de Política Externa, as áreas de desenvolvimento mais ativas são: as toma- das de decisão; as características do líder; cultura e identidade; a metodologia (novos modelos computacionais quantitativos); e a integração, segundo Hudson (2005). Ainda de acordo com esta autora, novos rumos no estudo de grupos sociais e sua influência na política externa começaram a tomar forma. Van Belle (1993) combina de forma inovadora a teoria da escolha racional e a teoria dos jogos com a APE para desenvolver uma compreensão teórica de imperativos políticos domésticos. Vemos assim que a teoria do ator específico é o tipo de teoria mais adequada para auxiliar na análise da tomada de decisão em política externa. Nessa perspectiva, as teorias que levam em consideração a in- fluência dos atores domésticos nas negociações internacionais e aquelas que tratam da organização e mobilização de grupos domés- ticos em busca dos seus interesses foram as que nos auxiliaram a compreender nosso estudo de caso, o contencioso do suco de laranja entre Brasil e Estados Unidos. Tanto o protecionismo estaduni- Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 28Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 28 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 29 dense quanto a disputa na OMC entre os dois países devem ser analisados como reflexo das demandas internas de cada um deles. Temos, em um nível, os citricultores floridianos, que exigem de seu governo, em âmbito estadual e federal, que sobretaxe o produto im- portado, seja via impostos domésticos ou via medidas antidumping, e auxilie em campanhas que incrementem o consumo do produto produzido localmente; e, em outro nível, o governo estadunidense, que, seguindo os princípios sobre os quais foi estabelecida a Fede- ração, procura atender a tais demandas e arca com os custos inter- nacionais decorrentes dessa ajuda. Detalharemos teoricamente, a seguir, como ocorrem essas dinâmicas. As teorias de Análise de Política Externa: o jogo de dois níveis O contencioso em análise mostra um “envolvimento simultâneo em vários jogos: no jogo parlamentar e no jogo eleitoral propria- mente dito para os representantes no Congresso; [...] num jogo na política internacional e na política nacional para os líderes nacio- nais” (Tsebelis, 1998, p.20). Isso porque “os resultados de nego- ciações comerciais em arenas multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), são claramente diferenciais em ter- mos de ganhos e perdas para distintos grupos econômicos” (Soares de Lima, 2000, p.289-90), o que as torna uma questão distributiva no âmbito doméstico e leva “interesses setoriais [...] a ser articula- dos e contemplados nas agendas da política comercial externa [...]. Confirma-se, assim, a transitoriedade do interesse nacional, cada vez mais dependente das preferências das forças sociais e dos inte- resses da coalizão política vencedora” (Oliveira, I. T. M.; Milani, 2012). Nessa perspectiva, dentre as teorias de análise de política externa, aquela que melhor relaciona esses aspectos, mas não os esgota, para o nosso caso, é a teoria do jogo de dois níveis (JDN). Essa teoria surgiu em 1989, quando Robert Putnam publicou seu artigo “Diplomacia e política doméstica: a lógica dos jogos de dois níveis”, fazendo uma reflexão sobre a ratificação de acordos Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 29Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 29 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 30 CAMILLA SILVA GERALDELLO internacionais, por meio da demonstração da articulação entre o nível internacional (nível I) e o nível doméstico (nível II) durante as negociações desenvolvidas entre estados – o jogo de dois níveis (JDN). No nível I, ocorrem as negociações internacionais, na tenta- tiva de um acordo; e, no nível II, simultaneamente, se manifestam as coalizões favoráveis ou contrárias às ações internacionais do Estado. Com esse modelo analítico, podemos perceber as relações entre a escolha de uma posição negociadora internacional e os interesses domésticos que os governos representam e a complexidade da rati- ficação do acordo. Assim, o processo de negociação pode avançar ou regredir, dependendo da aprovação ou desaprovação dos atores domésticos ligados à questão em negociação, ou seja, a dinâmi- ca interna define as possibilidades da ação internacional. E essa dinâmica interna é determinada pela formulação e acomodação das preferências domésticas em coalizões políticas, os chamados win-sets (ou conjunto de vitórias), as quais procuram influenciar a negociação segundo seus interesses (Putnam, 2010). A forma como isso ocorrerá é definida pelas instituições demo- cráticas de cada Estado e pelos processos de distribuição de poder na formulação da política externa, pois a organização do Estado in- terfere na tomada de decisão. Logo, um aspecto fundamental para analisar esse processo, de acordo com esse autor, é compreender as relações entre Executivo e Legislativo. A Figura 1 mostra de ma- neira simplificada como ocorre esse jogo na visão de Putnam. Negociação internacional Nível I (internacional) Nível II (nacional) Pressão para alcançar demandas Pressão para alcançar demandas Estado A Estado B Grupos de interesse, legisladores, partidos, ONGs, opinião pública Grupos de interesse, legisladores, partidos, ONGs, opinião pública Figura 1 – Jogo de dois níveis Fonte: Oliveira, M. F. de (2005; adaptado). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 30Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 30 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 31 Como podemos observar, as coalizões políticas organizadas na forma de grupos de interesse, em nível nacional, buscam atingir seus objetivos por meio da pressão sobre o governo, de modo que ele formule políticas que lhes sejam favoráveis. No que se refere ao nível internacional, Putnam (2010) argumenta que os governos visam a maximização de sua habilidade para satisfazer as demandas internas, concomitantemente à minimização das consequências ad- versas de desenvolvimento externo. Dessa maneira, há uma relação entre as posições domésticas (win-set) e a possibilidade de se firmar um acordo, uma vez que a dimensão relativa dos win-sets em relação ao nível II afetará a distribuição dos ganhos a partir de conjuntos de barganha internacional. Quanto mais posições difusas no nível doméstico, mais força terá o governo na negociação internacional (nível internacional), pois possuirá alta capacidade de barganha, de- vido à grande variedade das demandas internas. Ou seja, as dissen- sões são benéficas por indicarem que, se as negociações não forem ao encontro de seu win-set, o acordo não será ratificado. Contra- riamente, quanto menor a variedade de demandas internas – mais posições coesas ou consensuais no nível doméstico –, a capacidade de barganha do governo com relação a outros negociadores é menor, porém, é mais provável alcançar um acordo (Oliveira, 2005). Se esse acordo corresponder às expectativas desses grupos, mais facilmente será ratificado. Identifica-se, assim, uma relação de legitimidade entre os dois níveis, que é capaz de gerar credibilidade no cenário internacional (Soares de Lima; Santos, 2001). Essa credibilidade, por sua vez, segundo esses autores, promoverá maior eficácia nas negociações, graças, em certa medida, à transparência e visibilidade do processo. Outro fator resultante de uma maior e mais efetiva interlocução entre os dois níveis é a estabilidade, que fornece um caráter mais resistente em relação a possíveis pressões para alteração de acordos internacionais (Martin, 2000). Contudo, Putnam (2010) ressalta que o nível II pode abandonar o nível I se não tiver plena certeza de que a negociação a seu favor está devidamente documentada. Portanto, deve-se prezar pelo não Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 31Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 31 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 32 CAMILLA SILVA GERALDELLO excesso de comprometimento, para que não se prometa mais do que se pode cumprir no acordo, pois isso levaria a uma deterioração da credibilidade externa. Desse modo, a ratificação do acordo internacional afeta o tama- nho da estrutura de ganhos domésticos, pois “aqueles [grupos de interesse do nível II] que perdem devem bloquear ou tentar alterar qualquer acordo internacional, enquanto aqueles que podem se beneficiar [do acordo internacional] devem pressionar para sua ratificação” (Milner, 1997, p.63). Na Tabela 1 são mostrados os fatores que afetam o tamanho dos win-sets. Tabela 1 – Fatores que afetam o tamanho dos win-sets Preferências e coalizões do nível II Tamanho relativo das forças “isolacionistas” e “internacionalistas”; nível de politização do tema. Desafio principal do negociador: gerenciar di- ferenças entre expectativas dos grupos interno e resultado negociável Instituições do nível II Procedimentos de ratificação Estratégias dos negociadores do nível I Status do negociador; poder de barganha; in- formações; atividades diplomáticas Fonte: baseado em Putnam (2010). Vemos que tanto a organização político-burocrática do Estado quanto as ações dos negociadores afetam as preferências e coalizões domésticas. Assim, algumas vezes, “as pressões internacionais re- verberam na política doméstica, alterando o equilíbrio doméstico e as negociações internacionais”, podendo até mesmo “ocasionar uma reação doméstica adversa” (Putnam, 2010, p.166-7). Depreende-se que muitos grupos pequenos são capazes de vetar acordos que mereceriam ser aprovados, além de tratados que nem foram cogitados para a ratificação. Há inúmeras explicações para isso. Entre elas, cabe destacar que o insulamento burocrático tende a reforçar as demandas por interesses protecionistas, na medida em que reduz os custos da organização em relação à pressão sobre o tomador de decisão, em especial em cenários de crise econômica Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 32Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 32 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 33 (Mansfield; Busch, 1995); a ausência de diversificação econômica também tende a gerar protecionismo em contextos de instabilida- de, devido à lógica da especialização e concentração de interesses setoriais (Grossman; Helpman, 2002); e a capacidade defensiva de grupos de interesse pequenos com expertise organizacional para a defesa das suas demandas em bases eleitorais e com relevância política (Rogowski, 1990). Tais grupos podem dar o sinal verde ou vermelho para a legiti- mação de uma negociação internacional. Mas aquilo que os torna detentores desse potencial de influência é sobretudo a capacidade de ter acesso à informação e sua perícia na articulação perante as ins- tituições diretamente ligadas a seus interesses na arena do comércio internacional. Muitas vezes, isso significa demonstrar que os in- teresses setoriais desses grupos são estratégicos para os interesses nacionais ou, no caso do contencioso do suco de laranja, estratégicos para a política interna do Estado. Dessa forma, os grupos de interesse participam do processo político, servindo como órgãos consultivos do governo e dos par- lamentares, informando-lhes o caminho desejado para as políticas públicas de seu interesse, as quais podem inclusive contrariar acor- dos e regras internacionais no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Esses grupos procuram mobilizar informações sobre as políticas governamentais e suas mudanças; familiarizam-se com a administração de políticas estabelecidas; buscam influenciar o pro- cesso de formulação de políticas (policy-making) etc. A informação é fator decisivo nesse processo, desde as eleições até o cotidiano do governo. Assim, ter expertise4 para acompanhar e alterar o rumo de políticas públicas é determinante para o sucesso no encaminha- mento de demandas e interesses em qualquer país democrático. Aplicando esse raciocínio à formulação da política externa co- mercial estadunidense, faz-se necessário reconhecer que a utili- zação das instituições e das informações pelos grupos de interesse 4 Conhecimento adquirido pela prática. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 33Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 33 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 34 CAMILLA SILVA GERALDELLO nessa questão é determinante para a ratificação ou o veto de acordos internacionais. Para Milner (1997), as instituições domésticas são essenciais para a interlocução e o fornecimento de informações aos grupos de interesse no nível II, pois a comunicação de seus interes- ses para os negociadores internacionais depende de tais instituições. Portanto, para a autora, o sucesso da defesa do interesse setorial encontra-se na capacidade do setor de mobilizar instituições e in- formações e transmiti-las ao negociador internacional, travestindo seu interesse específico em interesse geral estrutural – um instru- mento muito utilizado nos Estados Unidos. Percebemos que, no caso da citricultura estadunidense, embora ela não consiga travestir seus interesses específicos em interesses gerais, os negociadores reconhecem seu papel na estrutura políti- ca nacional e procuram atender aos interesses do setor de alguma maneira. Isso porque as “indústrias como as dos cítricos e do açú- car, que contam com ativos fixos (terra) e proteção de mercado, normalmente demonstram uma capacidade notável para articular seus interesses, liderar coalizões e assegurar a lealdade das autorida- des eleitas” (Avery, 1998; Baldwin; Magee, 2000, apud Langevin, 2006).5 A citação de Robert Strauss feita por Putnam (2010) ilustra muito bem essa dinâmica: Durante meu mandato como representante especial de comér- cio [dos Estados Unidos], gastei tanto tempo negociando com grupos domésticos (industriais e trabalhistas) e com membros do Congresso dos Estados Unidos quanto gastei negociando com nos- sos parceiros comerciais estrangeiros. (p.151) 5 De acordo com Langevin (2006), “durante uma era de negociações de livre comércio para o Alcac-RD, a Alca e a Rodada de Doha das deliberações na OMC, os produtores de laranja e cana-de-açúcar da Flórida adoçaram suas relações com o Congresso, especialmente com aqueles membros que tinham assento nos comitês de agricultura e de comércio internacional. Além disso, eles apostaram pesado nos candidatos presidenciais republicanos, apesar da considerável incerteza eleitoral” (p.191). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 34Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 34 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 35 Nessa perspectiva, acreditamos que aprender tanto sobre as razões dos atores quanto sobre as regras que governam sua prática “capacita-nos a melhorar as previsões sobre o comportamento daqueles que agem de acordo com elas. Portanto, determinar o significado das ações nos dá algum conhecimento sobre causas” (Rosenberg, 1988: 87). (Adler, 1999, p.216) Dessa forma, compreender como se formam as coalizões domés- ticas que afetam a barganha internacional é de extrema importância. Como o jogo dos dois níveis é uma teoria sobre a barganha interna- cional, e não sobre a formação das preferências nacionais, comple- mentaremos nossa discussão teórica com a teoria da ação coletiva. Lógica da ação coletiva: lobby e decisões políticas Um dos níveis da negociação internacional, o âmbito domés- tico, não é uníssono. Existem diferentes forças e interesses inter- nos atuando sobre a ação estatal no nível internacional. Tais forças formam uma representação ou conjunto de representações, que constituem a base adequada para a ação do Estado, e, como são compostas por indivíduos, essa formação só ocorre se existe um acordo entre eles (Hudson, 2005). Todavia, nem sempre esse pro- cesso é tranquilo, pois “problemas de ação coletiva são endêmicos à vida social” (Soares de Lima, 2000, p.275). Mas o que leva esses indivíduos a se associarem? E por que eles continuam associados? Olson nos ajuda a responder a essa pergunta. Na sua obra A lógi- ca da ação coletiva (2011), o autor desenvolve uma teoria sobre a for- mação e a permanência dos grupos de pressão. Ele explica que esses grupos são formados por indivíduos racionais (aqueles que procu- ram alcançar seus objetivos por meios eficientes e efetivos), com interesse na obtenção de um mesmo benefício coletivo, que traga vantagens materiais para cada indivíduo do grupo (e não somente para o grupo como um todo). “Toda verdadeira representação [...] Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 35Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 35 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 36 CAMILLA SILVA GERALDELLO não é uma representação de pessoas, mas apenas uma representação de propósitos comuns” (Cole, apud Olson, 2011, p.129).6 O foco dos casos analisados por Olson reside no comportamen- to de indivíduos racionais que formam grupos econômicos, os quais são fundamentais no comportamento político e econômico de uma sociedade. Desse modo, um grupo de interesse ou grupo de pressão é um conjunto de indivíduos, empresas ou outro coletivo com um ou mais interesses em comum que se unem para exercer influência/ fazer lobby sobre o governo na aprovação de leis favoráveis aos seus objetivos. Contudo, essa atividade não deve ser o fim da organiza- ção desse conjunto de indivíduos, mas um subproduto dela. Este é o caso da Florida Citrus Mutual, a maior associação de citricultores e indústrias,7 que, como veremos, possui como objetivo “ajudar os citricultores da Flórida a produzir e comerciar sua colheita com lucro” (Florida Citrus Mutual, c2012a, tradução nossa). Esse lobby poderá ter de levar a cabo uma considerável cam- panha. Se for encontrada uma resistência significativa, grandes quantidades de dinheiro serão necessárias. Os especialistas em relações públicas terão de influenciar os jornais, e pode ser preciso fazer alguma propaganda. Provavelmente será necessário contratar organizadores profissionais para armar “manifestações espontâ- neas” envolvendo os angustiados produtores do setor industrial em questão e fazer esses produtores escreverem cartas a seus congres- sistas. Essa campanha tomará tempo de alguns produtores do setor industrial – e dinheiro. (Olson, 2011, p.23) 6 “As organizações com propósitos primariamente econômicos, como os sindi- catos, as organizações rurais e outros tipos de grupos de pressão, normalmente afirmam que estão servindo aos interesses dos grupos que representam, e não que são acima de tudo organizações filantrópicas para ajudar outros grupos. Assim, seria surpreendente se a maioria dos membros desses ‘grupos de inte- resse’ sempre desprezasse seus próprios interesses individuais. Um grupo de interesse essencialmente egoísta normalmente não atrairia membros comple- tamente desprendidos. Portanto, o comportamento centrado nos próprios inte- resses pode ser de fato comum em [algumas] organizações” (Olson, 2011, p.77). 7 Existem outras organizações, e algumas não possuem capacidade para fazer lobby. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 36Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 36 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 37 Logo, o grupo de interesse precisará ter recursos financeiros e, para tanto, deverá arrecadá-los entre seus membros (o que também é realizado pela Florida Citrus Mutual). Ele precisará manter seus membros e conquistar novos membros, e uma maneira de conseguir isso é oferecer outros serviços, os chamados “incentivos seletivos”. Estes incentivos extras são necessários para incentivar a participa- ção na organização, pois os resultados alcançados por um grupo de pressão de determinado setor por meio de lobby podem beneficiar todos os integrantes desse setor, mesmo os que não fazem parte do grupo que acionou o lobby. Para os membros pequenos, a atividade lobística pode ser indiferente para definir sua entrada e permanên- cia no grupo, já que mesmo sem participar (e pagar por isso) eles podem receber os benefícios difusos, principalmente nos Estados Unidos, onde uma ação individual vale coletivamente.8 Nessa perspectiva, grupos de pressão apenas se formam quando um grupo de indivíduos com o mesmo objetivo tem capacidade de implementar medidas coercitivas ou oferecer incentivos seletivos aos seus membros, pois, “se os indivíduos em qualquer grande grupo estiverem interessados em seu próprio bem-estar, eles não irão fazer voluntariamente nenhum sacrifício para ajudar seu grupo para atingir suas metas políticas (públicas ou coletivas)” (Olson, 2011, p.140; destaque do autor). Este autor acredita que é mais fácil alcançar um objetivo em pequenos grupos (mais organiza- dos e ativos) do que em grandes grupos (mais desorganizados e inativos).9 Isso ocorre devido aos altos custos dos grandes grupos para se organizar e da dificuldade que enfrentam para dissuadir o comportamento free rider,10 pois em grupos grandes ele é difícil de 8 A chamada class action (ação de classe). 9 Os grupos muito grandes são chamados por Olson (2011) de grupos latentes, os quais se distinguem pelo fato de que, “se um membro ajudar ou não ajudar a prover o benefício coletivo, nenhum outro membro será significativamente afetado e, portanto, nenhum terá razão para reagir” (p.62-3). 10 O comportamento do free rider (ou do carona) implica se beneficiar dos ganhos do grupo sem pagar os custos ou não ter prejuízos nas perdas do grupo. Isto é, ao não contribuir para o bem coletivo, pega “carona” no resultado benéfico ou não arca com os prejuízos de um resultado ruim. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 37Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 37 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 38 CAMILLA SILVA GERALDELLO ser identificado, já que sua não contribuição não impede o alcan- ce do bem coletivo. Contrariamente, nos grupos pequenos, a não contribuição de um dos membros reduz as possibilidades do bem coletivo, fazendo que o free rider seja facilmente identificado. É em decorrência disso que os grandes grupos (como todos os consumi- dores) têm dificuldades em formar uma ação coletiva. Segundo Olson (2011), os grupos pequenos conseguem não recorrer à coerção ou a algum outro estímulo além do próprio be- nefício coletivo para obtê-lo, porque cada membro ficará com uma porção substancial do ganho total. Já nos grupos grandes, a porção que cada membro receberá do ganho total será pequena (embora, mesmo no caso dos grupos pequenos, os membros maiores con- tribuirão mais do que os membros menores e, em consequência, os primeiros sentirão mais os prejuízos). Além disso, nos grupos pequenos os custos de organização são mais baixos, tornando-os mais eficazes em fazer pressão política e dar apoio político (votos, contribuições de campanha etc.) (Shughart II, c2008). Portanto, como afirma Schattschneider (1960, apud Olson, 2011), a “política de pressão [...] é essencialmente a política dos grupos pequenos” (p.160), os quais atuam como empreendedores políticos (political entrepreneurs), “dispostos a arcar de forma desproporcional com os custos da ação coletiva em troca de interesses próprios, como projeção e liderança” (Oliveira; Onuki; Oliveira, 2006, p.478). É o caso da Florida Citrus Mutual, ao liderar a coalizão que pediu a im- posição de medidas antidumping sobre o suco de laranja brasileiro a partir de 2005. Assim, o número e o poder das organizações lobísticas que representam as empresas norte-americanas é de fato surpreendente em uma democracia que opera de acordo com a regra da maioria. [...] O alto grau de organização dos interesses empresariais, assim como o poder desses interesses, deve estar ligado em grande parte ao fato de que a comunidade empresarial divide-se em uma série de “indústrias” (geralmente oligopolísticas), cada uma das quais contendo apenas um número francamente Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 38Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 38 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 39 pequeno de empresas [que é claramente o caso da citricultura na Flórida]. (Olson, 2011, p.158; destaques do autor) Em decorrência dessa influência e da força dos grupos pequenos, os políticos que buscam a reeleição acabam tendo fortes incentivos para atender às demandas desses grupos, o que leva Shughart II (c2008) a afirmar que “democracias representativas frequente- mente levam a uma tirania da minoria” (tradução nossa). Nessa perspectiva, a lógica da ação coletiva explicaria o motivo pelo qual os agricultores vêm garantindo subsídios governamentais à custa de milhões de consumidores não organizados, que pagam preços mais altos por alimentos, e o motivo pelo qual os fabricantes de têxteis vêm se beneficiando de barreiras comerciais, em detrimento dos compradores de vestuário. Se fossem votadas separadamente, tais medidas não seriam aprovadas, segundo Shughart II (c2008). Este autor explica que, por meio de barganhas, nas quais os repre- sentantes dos estados agrícolas concordam em negociar seus votos, em nome do protecionismo comercial, em troca de promessas de apoio aos subsídios agrícolas dos seus representantes, ambos os projetos conseguem obter maioria. Tabela 2 – Tamanho dos grupos e possibilidade de cooperação para ação coletiva Grupos pequenos: dezenas a algumas centenas de pessoas Grupos grandes: mil e milhões de pessoas Cooperação voluntária Comunidades que garantem confiança e reciprocidade. Grupos de empresários políticos. A interação estratégica é possível. A cooperação unilateral está sujeita a incerteza. Interação estratégica difícil e ainda impossível. Cooperação involuntária Comunidades nas quais se exerce ostracismo e pressão social. A interação estratégica é possível Existem empresários da ação coletiva, em especial “a classe política”, que usam, estrategicamente, incentivos seletivos e coerção e criam ambientes para a confiança em grande escala. Fonte: Cante (2007, p.168, tradução nossa). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 39Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 39 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 40 CAMILLA SILVA GERALDELLO Desse modo, Balbinotto Neto (2010) aponta algumas implica- ções da teoria de Olson: 1. Não há países que tenham obtido uma organização perfeitamente simétrica de todos os grupos com interesses comuns e, consequen- temente, atinjam resultados ótimos de negociações abrangentes. 2. As sociedades estáveis com fronteiras inalteradas tendem a acu- mular mais grupos de interesse (collusions) e organizações de ação coletiva no tempo. 3. Membros de “grupos pequenos” têm um poder organizacio- nal desproporcional em prol da ação coletiva, e esta desproporção diminui, mas não desaparece em sociedades estáveis. 4. Em geral os grupos de interesse e organizações de ação coletiva reduzem a eficiência e o rendimento agregado das sociedades em que operam e tornam a vida política mais conflituosa. [...] 5. As organizações de grupos de interesse reduzem a capacidade de uma sociedade em se adaptar a novas tecnologias e a realocar recursos em resultado de mudanças, e, portanto, reduzem a taxa de crescimento econômico.11 [...] 6. A acumulação dessas organizações de grupos de interesse aumenta a complexidade da regulação, o papel do governo e a com- plexidade dos compromissos, e muda a direção da evolução social. 11 Para o caso dos Estados Unidos, não podemos afirmar que esses grupos de pressão reduzem a capacidade da sociedade de se adaptar a novas tecnologias e levam à realocação de recursos e à consequente redução na taxa de cresci- mento, pois continuam sendo grandes desenvolvedores de tecnologia de ponta e crescendo, embora esse crescimento não seja tão próspero quanto antes. Em 1999, a taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB) do país era de 4,1% (US$ 9,255 bilhões); em 2000, 5%; em 2001, 0,3%; em 2002, 2,45%; em 2003, 3,1%; em 2004, 4,4%; em 2005, 3,2%; em 2006, 3,2%; em 2007, 2%; em 2008, 1,1%; em 2009, 2,6%; em 2010, 2,8%; em 2011, 1,7% (US$ 15,290 bilhões), de acordo com o Index Mundi (c2014). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 40Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 40 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 41 Percebemos que essas afirmações são particularmente verda- deiras no caso dos Estados Unidos – uma sociedade estável e com fronteiras inalteradas há quase 150 anos.12 Inúmeras organizações de ação coletiva foram se formando dentro do país: em 1968 havia 10.300 grupos de interesse; já em 1988, elas eram 20.600; após a Se- gunda Guerra Mundial, foram registrados 500 lobistas e, em 2014, 11.509 (Center for Responsive Politics, 2014a; Encyclopedia..., c2014b). Assim, no nosso estudo de caso procuramos mostrar como os grupos pequenos têm demonstrado seu poder de influência sobre a política estadunidense. Ao mesmo tempo que a atuação desses gru- pos revela o nível de democracia liberal de uma sociedade, tornando o processo político mais transparente, eles também a tornam mais conflituosa, aumentando a complexidade da regulação, do papel do Estado (o qual deve tentar ajustar cada interesse e cuidar da regula- ção deles) e dos compromissos assumidos em âmbito internacional, tornando o quadro político do país cada vez mais complexo. Não deve passar despercebido o fato de que a existência dos gru- pos de interesse, nos casos de política externa, é criticada por alguns especialistas em comércio internacional e ex-secretários de Estado, como Henry Kissinger, para quem era quase impossível conduzir efetivamente a política externa numa sociedade aberta; como Dean Acheson, que observou que a limitação imposta por práticas po- líticas democráticas tornou difícil conduzir negócios estrangeiros sobre o interesse nacional; como George Shultz, que lamentou a proscrição de iniciativas diplomáticas executivas pelo Congresso, persuadido por lobistas. Esses homens de Estado tiveram (e têm) que conciliar os interesses nacionais dos Estados Unidos, dita- dos pelo presidente, com as demandas e expectativas de outras nações, mas acabaram deparando-se com os grupos de interesse, que podem constranger as relações diplomáticas (Encyclopedia..., 12 Segundo Visentini e Pereira (2008), em 1867 os Estados Unidos compraram o Alasca da Rússia e, assim, atingiram seu território atual. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 41Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 41 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 42 CAMILLA SILVA GERALDELLO c2014b). Isso corrobora nossa análise de APE focada na teoria dos jogos de dois níveis. Nessa perspectiva, vemos que a teoria da ação coletiva permi- te explicar como grupos com pequeno número de membros in- fluenciam decisões políticas e econômicas de âmbito nacional e reflexo internacional, o que nos leva à teoria do jogo de dois níveis. Essa base teórica foi fundamental para analisarmos nosso estudo de caso, pois com ela compreendemos como um setor com pequena participação na economia nacional dos Estados Unidos consegue demandar proteção diante da competição internacional por diver- sas vias, superando as preferências de livre comércio das indústrias de exportação de alto valor agregado e criando alternativas às regras do comércio internacional. No próximo capítulo apresentaremos os casos, ocorridos a partir de 1995, em que medidas antidumping foram impostas pelos Esta- dos Unidos sem que houvesse as condições necessárias para aplicá- -las, ou seja, muito provavelmente foram impostas para atender a grupos de pressão específicos. Para comprovar tal afirmação, exa- minamos as regras do regime internacional de comércio para casos de antidumping e medidas fitossanitárias. Assim, pudemos analisar nosso estudo de caso dentro do regime internacional de comércio e o modo como a metodologia utilizada por esse país estava em desa- cordo com ele. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 42Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 42 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 2 ANTIDUMPING NA OMC Abordamos, em nossa discussão teórica, dois aspectos conside- rados na análise de nosso estudo de caso: o processo de negociação internacional, influenciado pela pressão doméstica, e os grupos de interesse que aplicam essa pressão. Neste capítulo, trataremos o processo de negociação internacional do contencioso do suco de la- ranja, que teve como objeto a contestação dos direitos antidumping impostos à importação do produto brasileiro nos Estados Unidos e seus desdobramentos. Antes, porém, faz-se necessário conhecer as normas que regem o uso das medidas antidumping e os antecedentes de contestações relativos ao uso dessas medidas. Para tanto, precisamos ter em mente que, desde o fim da Se- gunda Guerra Mundial, os países engajados na economia mundial buscaram remover barreiras impostas contra o fluxo de bens, ser- viços e capitais no comércio internacional. Para facilitar essa tare- fa, foi discutida em Bretton Woods, em julho de 1944, a criação da Organização Internacional do Comércio (OIC).1 Entretanto, 1 Segundo Vigevani, M. F. de Oliveira e Mariano (2003), “os acordos de Bretton Woods, de julho de 1944, previram a necessidade de se aumentar a cooperação entre os países capitalistas na economia mundial, visando tanto à ampliação do comércio internacional quanto à criação dos instrumentos institucionais para Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 43Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 43 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 44 CAMILLA SILVA GERALDELLO as negociações para sua efetivação não avançaram, e a questão do comércio internacional passou a ser tratada no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade – Gatt), o qual vigoraria enquanto a carta da OIC não fosse ratificada.2 Todavia, essa organização nunca chegou a constituir-se, e o que de fato regeu o comércio internacional entre 1947 e 1994, quando se constituiu a Organização Mundial do Comércio, foi o Gatt. Esse acordo ofereceu as condições institucionais e políticas para a realização das rodadas de negociações multilaterais sobre comércio internacional, zelando pelo seu cumprimento até a sua incorporação por meio da criação da OMC ao final da Rodada Uru- guai (1986-1994). Assim, a OMC pode ser considerada a primeira organização internacional surgida após a Guerra Fria (Thorsten- sen, 2001). um modelo de desenvolvimento que evitasse os erros da desordem econômica, do protecionismo, da não conversibilidade monetária e do comércio admi- nistrado. Para atingir esses objetivos, foram discutidas em Bretton Woods as diretrizes para a criação de três grandes instituições internacionais: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird) e a Organização Internacional do Comércio (OIC)” (p.48). 2 “A conferência internacional para a sua criação realizou-se em Cuba, de novembro de 1947 a março de 1948, quando foram negociados os termos para sua implantação e funcionamento, e que resultaram na Carta de Havana. Este documento nunca foi ratificado pelos Estados Unidos, visto que a grande maioria dos congressistas receava que ele restringisse a soberania do país no tocante ao comércio internacional. Acrescente-se o fato de que o Congresso era constitucionalmente detentor dos poderes em relação ao comércio inter- nacional e não parecia disposto a delegá-los à Administração e ao Presidente. Ressalte-se que a não abdicação de qualquer espécie de poder de soberania era questão essencial para o Congresso, tendo sido objeto de discussão no final de 1944 no tocante às Nações Unidas. [...] A resolução do impasse resultante da não ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos da Carta de Havana ocorreu em 1948, por meio de um acordo provisório entre 23 países, dentre os quais os Estados Unidos. Por este Acordo, ficou estabelecida a adoção de um único segmento da Carta de Havana – o de Política Comercial (Capítulo IV) –, relativo às negociações de tarifas e regras sobre o comércio internacional; mais tarde, ele passou a ser denominado Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt). Este Acordo Provisório foi possível pelo fato de o Congresso ter auto- rizado o poder Executivo a assinar acordos dessa natureza” (id., ibid., p.48-9). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 44Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 44 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 45 Conquanto as medidas previstas no Gatt e os acordos assina- dos nos cinquenta anos de sua vigência, mesmo com a constitui- ção da OMC, em 1994, tenham continuado válidos, a organização trouxe um novo mecanismo para o regime de comércio interna- cional: o poder delegado ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), para autorizar sanções/retaliações a estados que agissem contrariamente às normas do organismo (desde que comprovadas pelo órgão). Além do mais, novos acordos foram firmados, como o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (Agreement on Technical Barriers to Trade – TBT) e o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (Agreement on the Application of Sa- nitary and Phitosanitary Measures – SPS), necessários devido ao aumento da aplicação das barreiras não tarifárias, provocado pela redução das tarifas de produtos industriais, entre eles, máquinas agrícolas. Novos temas também foram incluídos, como a agricultu- ra (Fonseca; Hidalgo, 2006), que havia ficado fora das negociações do Gatt, pois os Estados Unidos queriam proteger seu mercado de importações. Assim, somente após o Acordo Blair House,3 antes da conclusão da Rodada Uruguai, é que a agricultura começou a fazer parte das negociações do Gatt, segundo Thorstensen (2001). Ainda de acordo com esta autora, houve uma redução de 15% nas tarifas agrícolas como um todo, e de aproximadamente 40% nas tarifas agrícolas estadunidenses. Desde então, a OMC vem buscando ampliar a liberalização comercial nas negociações tarifárias do setor agrícola, haja vista as manobras que os países que exportam produtos de alto valor agregado usam para dificultar a entrada das commodities em seus 3 Foi assinado em novembro de 1992 entre Estados Unidos e, na época, a Comunidade Europeia. Esse acordo reduziu subsídios às exportações e os apoios domésticos aos produtores; converteu as barreiras não tarifárias em tarifas equivalentes; consolidou todas as tarifas e as reduziu; abriu acesso a quotas mínimas para produtos que estavam bloqueados por meio de proteção (Thorstensen, 2001, p.68). Esta autora destaca como uma das críticas que, com tais medidas, ele acabou legalizando políticas agrícolas protecionistas dos países desenvolvidos. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 45Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 45 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 46 CAMILLA SILVA GERALDELLO mercados, principalmente Estados Unidos e União Europeia, vi- sando a defesa de grupos internos específicos, e não da nação como um todo. Fonseca e Hidalgo (2006) exemplificam o caso estaduni- dense: “embora a tarifa média dos EUA seja muito baixa, os picos tarifários, as quotas tarifárias e as barreiras não tarifárias tornam o mercado norte-americano extremamente protegido no caso dos diversos produtos agrícolas e também insumos industriais” (p.13). Logo, temos, de um lado, países desenvolvidos com indústrias tra- dicionais afetadas pela concorrência internacional, que desejam pouca liberalização agrícola e utilizam manobras para bloquear a entrada desses produtos em seus mercados, e, do outro, países desenvolvidos e principalmente em desenvolvimento, como o Bra- sil, com vantagens comparativas (tecnologia e mão de obra) para a produção agrícola, que desejam obter mais mercados e sofrem com as barreiras protecionistas (Thorstensen, 2001). Dessa maneira, se, por um lado, no âmbito das negociações multilaterais da OMC, há a redução de tarifas alfandegárias, por outro, os países desenvolvidos “procuram novas alternativas para defender a indústria doméstica e dar vazão às pressões exercidas por grupos internos que buscam compensar a falta de competitividade internacional com barreiras comerciais disfarçadas” (Di Sena Jr., 2003, p.73) – as chamadas barreiras não tarifárias –, o que anula os ganhos provenientes da redução tarifária, e o prejuízo tende sempre a afetar mais os países em desenvolvimento. O problema decorre do fato de que esses países “tradicionais” utilizam medidas permitidas pela OMC, tais como as medidas antidumping, medidas compensatórias, medidas de salvaguarda e subsídios, mas nem sempre em conformidade com a previsão legis- lativa da entidade. Desse modo, os mecanismos que serviriam para proteger os membros da organização contra práticas desleais aca- bam sendo as próprias práticas desleais, ao servirem para resguar- dar interesses de setores econômicos com baixa competitividade internacional e alto grau de influência política junto às instituições de seus países, de acordo com Di Sena Jr. (2003). Ainda segundo este autor, os países desenvolvidos usam tanto as medidas anti- Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 46Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 46 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 47 dumping para restringir o livre comércio que elas têm servido mais como mecanismo protecionista, no sentido de barreira não tarifária, do que como punição por obtenção de vantagens extraordinárias geradas pelo dumping.4 Como a salvaguarda e os subsídios5 exigem uma contrapartida do país importador, as medidas antidumping tornam-se mais ágeis e eficientes na busca de proteção, pois são um mecanismo seletivo contra um país ou empresa que não exige compensações e permite maior flexibilidade de interpretação (Thorstensen, 2001), devido, entre outros fatores, à fragilidade dos critérios técnicos para sua caracterização, levando a arbitrariedades na aplicação dessa medi- da, que deveria proteger temporariamente o mercado interno que a impõe. Embora tais medidas só possam ser aplicadas obedecendo aos quatro princípios que regem o Acordo Antidumping da Rodada Uruguai e condicionam a adoção de medidas antidumping – tipifi- cação, exclusividade (por meio do enquadramento no Artigo VI do Gatt), objetividade (aplicação somente para neutralizar ou impedir dumping) e não cumulação (não aplicar dois tipos de medidas) –, alguns estados encontram meios de distorcer o acordo e usá-lo sem- pre que desejam (Di Sena Jr., 2003). Para o enquadramento no Ar- tigo VI mencionado e a caracterização como dumping, é necessário que ocorram três condicionantes simultâneos: fato, dano e nexo causal (id., ibid.). Nessa perspectiva, faz-se necessário analisar o Artigo VI do Gatt. 4 De acordo com Di Sena Jr. (2003), a prática do dumping é entendida por muitos como predatória, uma vez que serve para eliminar concorrentes e elevar unila- teralmente os preços, gerando lucros monopolistas para a empresa praticante. Outros, ao contrário, veem o dumping como uma estratégia de negócios legí- tima, derivada de economias de escala decorrente do comércio internacional. A visão que prevalece é a primeira. 5 As medidas de salvaguarda são baseadas na não seletividade, devendo ser impostas a determinado produto e não a determinado país. O país que as impõe deve ceder em outras áreas. Já os subsídios exigem que o governo abdi- que de bens ou capital, seja por meio de isenções fiscais ou até mesmo repasses, ou por meio de doações de terras. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 47Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 47 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 48 CAMILLA SILVA GERALDELLO O Acordo Antidumping De acordo com Carvalho da Rosa et al. (2013): Existem três tipos de dumping, o persistente, que é a tendên- cia contínua de um monopolista doméstico a maximizar os lucros através da venda de uma commoditie a um preço mais alto inter- namente, pois não há concorrência, e a um preço mais baixo no estrangeiro, devido à concorrência dos outros países. O dumping predatório, que é a venda de uma commoditie temporariamente abaixo do seu preço de custo, a fim de eliminar os concorrentes estrangeiros, mas logo após os preços sobem para que se possa aproveitar o monopólio recém-adquirido. E, por fim, o dumping esporádico, que é a venda externa de uma commoditie a um preço abaixo do seu preço de custo ou a preço externo inferior ao interno, para que possa descarregar o excedente da produção, não previsto, sem ter de baixar os preços praticados internamente. (Carvalho da Rosa et al., 2013, p.35) Vemos nessa tipificação que há uma diferença entre o dumping como atividade econômica e como prática condenável internacio- nalmente. Porém, para a OMC, essa diferença não é levada em consideração e todos os tipos são condenáveis.6 Segundo o parágra- fo 1 do Artigo VI do Gatt, o dumping é condenável se causa ou ameaça causar prejuízo a uma produção estabelecida no território de uma parte contratante ou atrasa a cria- ção de uma indústria nacional. Para efeitos do presente artigo, um produto deve ser considerado como sendo introduzido no mercado 6 Cordovil (2009) destaca que, no Gatt de 1947, o dumping não foi proibido per se, “mas somente aquele que causasse o dano. Como notado por alguns autores [como Verlmult e Waer (1996)], alguns países queriam defender o interesse de certas indústrias que sobreviviam se beneficiando dos preços baixos dos produtos importados” (p.20). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 48Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 48 31/12/2015 14:52:4831/12/2015 14:52:48 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 49 de um país importador com preço menor que seu valor normal, se o preço do produto exportado (a) é inferior ao preço comparável, no decurso de operações comer- ciais, para o produto similar destinado a consumo no país de ori- gem, ou (b) na ausência de tal preço no mercado interno, é menor do que (i) o mais alto preço comparável para o produto similar para exportação a qualquer terceiro país no decurso de operações comerciais normais, ou (ii) o custo de produção do produto no país de origem, acres- cido de um suplemento razoável para a venda de custo e lucro. Devem ser dados os devidos subsídios, em cada caso, para deter- minar as diferenças nas condições e nos termos de venda, as diferenças de tributação e outras que afetam a comparabilidade dos preços. (General Agreement on Tariffs and Trade, 1986, p.10, tradução nossa) Desse modo, para o dumping ser caracterizado, devem existir três condicionantes simultâneos: fato (a existência do dumping), dano (o prejuízo à indústria doméstica do país importador) e nexo causal (a demonstração de que o dumping do exportador está causando pre- juízo à indústria doméstica do importador). Logo, o parágrafo 1o do Artigo 2o do Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do Gatt (o Acordo Antidumping) determina que ocorre dumping neste caso: [...] um produto deve ser considerado objeto de dumping, ou seja, introduzido no mercado de outro país com preço menor do que o seu valor normal, se o preço de exportação dele é inferior ao preço comparável, no curso normal de comércio, para o produto similar destinado ao consumo no país de origem. (World Trade Organiza- tion, 1994a, p.145, tradução nossa) Segundo o parágrafo 4 desse mesmo artigo, uma comparação equitativa deverá ser efetuada no nível ex-fábrica entre o preço Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 49Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 49 31/12/2015 14:52:4931/12/2015 14:52:49 50 CAMILLA SILVA GERALDELLO de exportação e o valor normal e deverá considerar as vendas realizadas. O parágrafo 4 também estabelece que a existência do dumping deverá ser determinada com base na comparação entre o valor normal médio ponderado e o preço médio ponderado de todas as exportações equivalentes ou entre o valor normal e os preços de exportação apurados em cada transação (World Trade Organization, 1994a). Isso trará alguns embates, como veremos adiante, no caso do contencioso do suco de laranja, no qual o Órgão de Solução de Controvérsias condenou os Estados Unidos por vio- larem esse parágrafo (Saggi; Wu, 2013). Um valor normal determinado com base numa média ponde- rada poderá ser comparado aos preços de transações de exportação individuais se as autoridades encontrarem um padrão de preços de exportação que divirja significativamente entre diferentes compra- dores, regiões ou períodos de tempo e se é fornecida uma explicação do porquê de tais diferenças não poderem ser levadas em conside- ração quando se recorre a uma comparação de médias ponderadas ou transação por transação. (World Trade Organization, 1994a, p.147, tradução nossa) O Artigo 2o ainda apresenta informações detalhadas para o cálculo do valor normal e do preço de importação. Já o dano é ca- racterizado no Artigo 3o como “salvo disposição em contrário, um importante prejuízo à indústria doméstica, uma ameaça de prejuízo importante para uma indústria ou atraso interno no estabelecimento de tal indústria” (World Trade Organization, 1994a, p.148, tradu- ção nossa). Para verificar a existência de dano, é necessário o exame objetivo, baseado em provas positivas, do aumento do volume das importações, em comparação com a produção nacional, e de seu efei- to sobre os preços, “se houve subvalorização nos preços das impor- tações objeto de dumping em relação aos preços do mercado interno. Nenhuma dessas análises pode ser feita de forma separada” (Cor- dovil, 2009, p.38). Ou seja, “deve incluir uma avaliação de todos os fatores e índices econômicos pertinentes que influenciam a situação Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 50Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 50 31/12/2015 14:52:4931/12/2015 14:52:49 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 51 da indústria” (World Trade Organization, 1994a, p.148, tradução nossa), incluindo queda real ou potencial das vendas, dos lucros, da produção, da participação no mercado, da produtividade, do retorno dos investimentos ou da ocupação, da capacidade instalada, fatores que afetam os preços internos, efeitos negativos reais ou potenciais sobre o fluxo de caixa, estoques, emprego, salários, crescimento, capacidade para aumentar capital ou obter investimentos (id., ibid.). No Artigo 3o ainda é estabelecida a necessidade de relação causal entre as importações e o dano. A demonstração de uma relação causal entre as importações objeto de dumping e o prejuízo para a indústria nacional deve basear-se no exame de todas as provas relevantes perante as auto- ridades. Estas examinarão também todas as outras importações objeto de dumping que, ao mesmo tempo, estão causando dano à indústria nacional, e os prejuízos causados por outros fatores que não devem ser atribuídos às importações objeto de dumping. Fato- res que podem ser relevantes a esse respeito incluem o volume e os preços das importações não vendidas a preços de dumping, a con- tração da procura ou alterações nos padrões de consumo, práticas comerciais restritivas de concorrência entre os estrangeiros e pro- dutores nacionais, desenvolvimento em tecnologia e os resultados das exportações e a produtividade da indústria nacional. (World Trade Organization, 1994a, p.149, tradução nossa) Apenas após investigações (Artigo 1o), baseadas em fatos, e não somente em alegações, conjecturas ou possibilidades que constatem a ameaça de dano causada pelo dumping, é que se aplicam medidas antidumping. A ameaça de dano precisa ser claramente previsível e iminente (Thorstensen, 2001), e as provas devem ser reais. Por- tanto, as medidas antidumping são exceções autorizadas pela OMC com a finalidade de proteger temporariamente o mercado interno do país que ganha o direito de impô-las. Assim, tanto os países de- senvolvidos quanto os países em desenvolvimento “incorporaram o antidumping a suas legislações” (Cordovil, 2009, p.26). Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 51Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 51 31/12/2015 14:52:4931/12/2015 14:52:49 52 CAMILLA SILVA GERALDELLO Entretanto, como já ressaltamos, alguns países utilizam as medidas antidumping mais como um mecanismo protecionista na lógica de barreira não tarifária, em vez de punir estratégias de ob- tenção de lucros altos com o dumping. Essa é uma das críticas ao acordo, dado que cada membro pode realizar a leitura que achar mais conveniente do texto: alguns países não analisam todos os elementos necessários que influenciam o dumping, alegando que alguns critérios são mais importantes do que outros. Logo, utilizam o acordo de forma protecionista, conforme julgam necessário a cada situação, podendo aplicá-lo de modo diferente de outros países ou mesmo dentro do país, o que aumenta as reclamações e a vontade de negociar uma nova redação para o acordo (Cordovil, 2009).7 Um país frequentemente acusado de fazer uso dessa tática são os Estados Unidos, que, com o crescimento da concorrência inter- nacional, passaram a se enxergar mais como competidores do que como protetores do regime de comércio internacional (Krueger et al., 1998). Goyos Jr. (1995) afirma que, “nos EUA, dumping é tudo aquilo que se pode convencer o governo norte-americano de agir contra, nos termos da lei antidumping” (p.80). Isso fica evidente quando verificamos que, no mesmo período em que a Rodada Uru- guai começou, os Estados Unidos “estavam no ápice do uso das medidas antidumping como política industrial [...]. A administra- ção americana argumentava que altas medidas antidumping contra importações ‘desleais’ eram necessárias para preservar o merca- do” (Cordovil, 2009, p.22). No nosso estudo de caso procuramos demonstrar essa lógica de pensamento. Apresentaremos a seguir as contestações contra o uso das medidas antidumping na OMC, focando nas acusações contra os Estados Unidos de utilização do dumping como barreira não tarifária. 7 Cordovil (2009) ainda destaca que os Estados Unidos propuseram a inclusão de maior transparência nos processos de investigação respaldados pelo acordo: qualquer pessoa deveria poder ver os documentos das investigações e eles deveriam estar disponibilizados na internet. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 52Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 52 31/12/2015 14:52:4931/12/2015 14:52:49 MEDIDAS ANTIDUMPING E POLÍTICA DOMÉSTICA 53 Acusações de usos desleais do Acordo Antidumping pelos Estados Unidos Em decorrência dos problemas sobre o acordo, seja pela discri- cionariedade ou pelas dúvidas quanto aos conceitos nele emprega- dos, a interpretação da correta utilização da aplicação de medidas antidumping nele baseadas tem ficado a cargo do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio. [...] O novo Acordo Antidumping é uma evolução em relação ao Código Antidumping. O instrumento da OMC serviu para trazer transparência em relação à forma de aplicação das medidas, bem como (e principalmente) ao controle desta aplicação pela OMC. Ficou definido o papel do mecanismo de solução de controvér- sias no caso de má interpretação, por um membro, das normas do acordo. (Cordovil, 2009, p.24-5) O OSC foi estabelecido como elemento essencial para a seguri- dade e previsibilidade do regime de comércio internacional instituí- do pela OMC. Seu objetivo é encontrar uma solução positiva para as diferenças. Assim, quando um Estado discorda de medidas ado- tadas por outro que impedem a entrada de seus produtos naquele mercado, o Estado reclamante/demandante8 avisa ao OSC, que primeiramente promove encontros entre os envolvidos (conversas/ consultas), sem painelistas, visando um acordo. Caso as partes não cheguem a uma solução, os demandantes podem requerer a ins- tauração de um painel que julgará o caso. Para o painel, as partes devem acordar na escolha de três a cinco painelistas, os quais têm papel de árbitro. Caso não haja consenso nessa escolha, o diretor- -geral da OMC é quem os escolhe. Com o painel instaurado, são realizadas audiências em que cada parte expõe seus argumentos, que gerarão um relatório parcial e, posteriormente, um relatório final. Se uma das partes não concordar com a decisão, poderá solici- 8 Estado demandado é o país que está sendo acusado de algo na OMC, e Estado demandante é aquele que acusa. Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 53Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 53 31/12/2015 14:52:4931/12/2015 14:52:49 54 CAMILLA SILVA GERALDELLO tar uma revisão por meio do Órgão de Apelação (Goyos Jr., 1995). Para que seja cumprida, o OSC tem poder para impor suas decisões e permitir que os ganhadores apliquem retaliações aos perdedores em caso de descumprimento (Thorstensen, 2001). Segundo Preto (2011), “diversos autores argumentam que o OSC tem, em geral, exibido um padrão de decisão em favor do país reclamante, [o que] tende a induzir mais livre comércio, já que estimula a eliminação da (possível) barreira comercial em questão” (p.101). Isto tem ocorrido mesmo quando os Estados Unidos são os demandados. Nessa perspectiva, de 1995 a 31 de maio de 2014, 949 casos chegaram ao OSC acusando um Estado de utilizar de modo distorcido as medidas antidumping, como vemos na Tabela 3 (no Apêndice A, esta tabela aparece ampliada, com o número e o status do painel e o produto em disputa). Tabela 3 – Quantidade de vezes em que houve controvérsias sobre a aplicação de medidas antidumping por Estado demandado10 Estado demandado Quantidade de vezes em que houve controvérsias sobre a aplicação de medidas antidumping Estado demandante Estados Unidos 39 Coreia (seis vezes); China (cinco vezes); México (cinco vezes); Japão (quatro vezes); União Europeia (três vezes); Vietnã (duas vezes); Itália (duas vezes); Tailândia (duas vezes); Brasil (duas vezes); Argentina (duas vezes); Índia (duas vezes); Equador; França e Alemanha; Canadá; Alemanha 9 São noventa casos em que o termo “antidumping” aparece no título, três casos em que aparece o termo “zeroing”, que é um método de antidumping, e um caso em que aparecem os dois termos. Pesquisa feita em consulta ao site da OMC em 31 de maio de 2014 no link: . 10 Aqui consideramos somente a primeira parte, ou seja, o Estado que pede a abertura do pedido de investigação, pois outros países podem questionar a mesma medida – são as chamadas terceiras partes. Continua Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 54Miolo_Medidas_antidumping_(GRAFICA).indd 54 31/12/2015 14:52:4931/12/2015 14