UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ― JÚLIO DE MESQUITA FILHO Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP GUILHERME DE MATOS FLORIANO De “dentro” e de “fora” do Estado: um estudo sobre percepções e práticas do Bolsa Família ARARAQUARA – SP 2018 GUILHERME DE MATOS FLORIANO DE “DENTRO” E DE “FORA” DO ESTADO: UM ESTUDO SOBRE PERCEPÇÕES E PRÁTICAS DO BOLSA FAMÍLIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Estado, sociedade e políticas públicas Orientadora: Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello Agência de fomento: CAPES ARARAQUARA – SP 2018 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). de Matos Floriano, Guilherme De "dentro" e de "fora" do Estado: um estudo sobre percepções e práticas do Bolsa Família / Guilherme de Matos Floriano — 2018 145 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello 1. Programa Bolsa Família. 2. dádiva. 3. simetria. I. Título. AGRADECIMENTOS Desde os autores lidos e as mulheres entrevistadas, muitos pessoas são as responsáveis por esta pesquisa. Dessa forma, não posso deixar de agradecer à minha família, meu pai, minha mãe, meu irmão, minha irmã e minha cunhada, sempre me apoiando e ajudando muito para que esta pesquisa se concretizasse; à minha namorada Licia, por todo o apoio, ajuda, correções e pela parceria de vida; à CAPES pelo financiamento da pesquisa; aos amigos e às amigas do Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia Contemporânea (GEPAC) pelos produtivos debates; às professoras Renata, Maria Jardim e Carla que, ao ministrar a disciplina Teorias Sociais, me possibilitaram a visualização deste trabalho, o qual contem muitos dos debates e leituras propostos em sala; à diversas amizades, Douglas (Pantera), José Lucas (Gelo), Amanda, Luiz, Maria Fernanda, Giovanna, Camila, Tainá, Natália e, em especial, ao meu irmão de vida João, pelos mais variados motivos; à Daniel Pícaro, por todo apoio, incentivo e paciência desde o início desta pesquisa, quando ela não era nada mais que uma ideia; aos companheiros e companheiras de militância, pelos aprendizados da vida política; à toda equipe do CRAS Junia Maria de Santi Alves, em especial à Priscila e ao Fábio, pelos longos papos, entrevistas, acesso aos dados, apoio, incentivo e solicitude; à Prefeitura Municipal de Araraquara e à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, em especial à Maria Eloísa, à Cecília e ao Alex também pelas entrevistas, pelo auxílio, pelo acesso aos dados e informações; à Juliana Agatte, pela entrevista, pelos debates e pelos ensinamentos diários que a vida, coincidentemente, veio a proporcionar; às entrevistadas que cederam seu tempo, suas vidas, suas palavras à esta pesquisa; à Maria Jardim pelas reflexões que influenciam este trabalho, leituras indicadas, debates e reflexões incentivados, pelas correções e acompanhamento deste trabalho e pela participação na banca de qualificação e defesa; à André Pires que também tem muita influência sobre este trabalho, sendo citado pelo mesmo e, também, pela participação na banca de qualificação e de defesa; por fim, à Renata, minha orientadora, por todos debates, ajuda, paciência, ensinamentos, por ser um exemplo a ser seguido e por tantas contribuições quantas não caberiam em texto tão sucinto. Resumo O presente texto trata de uma pesquisa sobre o Programa Bolsa Família, política pública brasileira que efetua transferência direta de renda às famílias consideradas como economicamente vulneráveis. O principal objetivo deste trabalho é, percebendo o Bolsa Família de um local central entre beneficiários e o Estado, olhar para ambas as facetas do programa, os que estão do lado de “dentro” e os que estão do lado de “fora” do Estado, para uma compreensão mais ampla da política. A partir da antropologia simétrica, em busca de registrar as percepções e opiniões sobre a prática do PBF, objetiva-se colocá-las em simetria para alargar o espaço de entendimento do PBF, sendo este chave para a sua compreensão. Para tanto, foi visitada uma bibliografia ampla acerca da política pública, bem como foi etnografado um dos CRAS da cidade de Araraquara de modo que permitiu compreender o fluxo de informações e o funcionamento do programa ao mesmo tempo em que foram acompanhadas reuniões de grupo neste CRAS e foram entrevistados funcionários e beneficiárias do programa, visando indagar suas percepções a respeito do programa e sua prática buscando a visão que estes possuem do PBF. Assim, concluiu-se que o PBF enquanto um programa de transferência direta de renda impacta diversamente na sociedade brasileira e possui um forte potencial ampliador de cidadania, ao mesmo tempo em que – e exatamente por isso –, se constitui enquanto um exemplo de dádiva entre as sociedades modernas. Palavras-chave: Programa Bolsa Família – dádiva – simetria Abstract This article deals with a research on the Bolsa Família Program, a Brazilian public policy that directly transfers income to families considered to be economically vulnerable. The main objective of this work is to perceive Bolsa Familia from a central location between beneficiaries and the State, to look at both facets of the program, those on the “inside” and those on the "outside" of the State, for a broader understanding of this politics. From the symmetrical anthropology, in order to register the perceptions and opinions about the practice of the PBF, it aims to place them in symmetry to broaden the space of understanding of the PBF, being this key to its understanding. In order to do so, a wide bibliography on public policy was visited, as well as an ethnography of one of the CRAS of the city of Araraquara in a way that allowed to understand the information flow and the operation of the program while being accompanied group meetings in this CRAS and were interviewed employees and beneficiaries of the program, seeking to inquire their perceptions about the program and its practice seeking their vision of the PBF. Thus, it was concluded that the PBF as a direct income transfer program has a diverse impact on Brazilian society and has a strong potential for broadening citizenship, at the same time as - and precisely because of this - it constitutes an example of a gift between modern societies. Key-words: Bolsa Família Program – gift – symmetry Lista de fotos Foto 1 – Centro de Referência e Assistência Social “Junia Maria de Santi Alves” 22 Lista de imagens Figura I – Fluxograma de atendimento do CRAS 23 Lista de abreviaturas e siglas BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social BPC – Benefício de Prestação Continuada CAIXA – Caixa Econômica Federal CRAS – Centro de Referência e Assistência Social CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social DAAE – Departamento Autônomo de Água e Esgoto FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICS – Instâncias de Controle Social IGD – Índice de Gestão Descentralizada INSS – Instituto Nacional de Serviço Social LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social M.A.U.S.S. – Mouvoment Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MEC – Ministério da Educação MS – Ministério da Saúde ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ONU – Organização das Nações Unidas PAIF – Programa de Atendimento Integral à Família PBF – Programa Bolsa Família PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PGRM – Programa de Garantia de Renda Mínima PIB – Produto Interno Bruto PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PSB – Proteção Social Básica PSDB – Partido da Social Democracia Brasileiro PSE – Proteção Social Especial PSF – Posto de Saúde da Família PT – Partido dos Trabalhadores RPF – Rede Pública de Fiscalização SCFV – Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos SIBEC – Sistema Informatizado de Benefícios da Caixa SiCon – Sistema de Condicionalidades do Programa Bolsa Família SISC – Serviço de Informações do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos SISVAN – Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional SMADS – Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social SNAS – Sistema Nacional de Assistência Social SUAS – Sistema Único de Assistência Social TSE – Tribunal Superior Eleitoral UNESP – Universidade Estadual Paulista SUMÁRIO Introdução ..................................................................................................................... 11 CAPÍTULO I – O LADO DE “DENTRO” E O LADO DE “FORA”: ampliando o escopo ............................................................................................................................. 19 1.1 Contextualização do CRAS ....................................................................................... 20 1.2 Cadastro Único Para Programas Sociais do Governo Federal .............................. 28 1.3 Transferência direta de renda no Brasil: do Bolsa Escola ao Bolsa Família ......... 35 1.4 Os agentes de “dentro” ............................................................................................ 45 1.5 Os grupos e as beneficiárias .................................................................................... 50 CAPÍTULO II – PERCORRENDO UM CAMINHO: dos impactos do PBF às teorias sociais................................................................................................................. 63 2.1. Dados e impactos ..................................................................................................... 63 2.2 Liberdade e Desenvolvimento .................................................................................. 76 2.3 Contexto econômico: redistribuição como inclusão via mercado ........................... 82 2.4 Teorias sociais em debate ......................................................................................... 88 2.4.1 Indivíduos e sociedade: relações de poder ............................................................ 89 2.4.2 Como a democracia pode lidar com isso? ............................................................ 92 2.5 Programa Bolsa Família: redistribuição, reconhecimento e cidadania ................ 101 CAPÍTULO III – BOLSA FAMÍLIA: repensando a troca .................................... 112 3.1 Marcel Mauss: o parto da dádiva .......................................................................... 113 3.2 O dom e o Bolsa Família ........................................................................................ 117 Considerações finais ................................................................................................... 130 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 134 ANEXOS ..................................................................................................................... 140 11 Introdução Como todo estudante de Ciências Sociais que passa por crises e, por vezes, pensa até mesmo em desistir da área, a presente pesquisa surge em um momento não diferente deste. No ano de 2013, durante uma experiência como professor substituto da rede de ensino do Estado de São Paulo enquanto cursava o terceiro ano de graduação – e pensava diariamente em mudar totalmente de direção –, começa uma greve dos professores do Estado. Para alguns, um momento importante de luta; para outros, férias antecipadas; para outra parcela, um inferno, pois teriam de repor aula nas férias; para um jovem aprendiz da vida, aprendiz de professor que precisava do salário, era um momento para colocar as leituras em dia e preparar as futuras aulas. Mesmo assim, com a escola esvaziada, alguns alunos não faltavam em hipótese alguma até que as férias começassem. Certo dia, em uma conversa informal na sala dos professores, alguns comentavam – por vezes até mesmo de maneira maldosa – que estes alunos não deixavam de frequentar a escola, pois eram beneficiários do Programa Bolsa Família e, portanto, se faltassem às aulas teriam seu benefício cortado. Segundo eles, era até mesmo uma imposição dos pais – cujos filhos eram acusados, muitas vezes, pelos professores de terem sido feitos apenas para receber o programa –, para que não deixassem de receber o benefício. Em meio à greve, crises pessoais e descrença com a educação pública, as férias universitárias começam e passo a ter um novo interesse: fazer uma pesquisa sobre o Programa Bolsa Família. Sempre tive interesse em estudar meu país e compreender melhor as dinâmicas pelas quais passamos e, até mesmo, porque parecemos tão singulares frente aos autores – europeus, em sua esmagadora maioria – que lemos por aqui. Ao procurar, inicialmente, por reportagens de jornais e revistas, uma primeira impressão: o Bolsa Família era o responsável por todos os males do país, sobretudo pelos que se relacionam à população mais desfavorecida economicamente. Os pobres fazem muitos filhos, pois assim recebem mais dinheiro do governo pelo Bolsa Família. Os pobres se acomodam, pois recebem o Bolsa Família e não querem mais trabalhar, são incentivados à “vagabundagem”. E o dinheiro, eles gastam com drogas e bebidas, claro, afinal são preguiçosos desempregados que não querem “nada com nada”. Estas foram as impressões iniciais que a maioria das reportagens 12 veiculadas pela grande mídia me trouxe. Pedi ajuda a um amigo e comecei a procurar por artigos acadêmicos para ver se o mesmo se repetia nos diversos campos do conhecimento. Os estudos acadêmicos apresentam lá também suas divergências, sobretudo conforme o referencial teórico de cada pesquisa se altera. Alguns textos acusam o Bolsa Família de marketing político, outros questionam os discursos proferidos pela mídia e pelo senso comum. A variedade começou a aparecer e percebi que existiam alguns eixos que prevaleciam: estudos na saúde, na educação, sobre os impactos do programa na reeleição do ex-presidente Lula, impactos na pobreza. O balanço desses estudos será feito adiante, ao longo do texto, mas isto me chamou a atenção para um fato: a disciplina que mais me intrigava e mais me possibilitou perceber a sociedade de uma maneira diversa, a antropologia, não aparecia como uma disciplina por meio da qual se analisava o Bolsa Família. A partir daí meu projeto de pesquisa começa a se delinear. Mas como estudar uma política pública com uma metodologia antropológica? Isso parecia impossível à época. E, caso existisse uma metodologia que permitisse tal reflexão, qual seria? Desconhecia. Por dois acasos simultâneos, os caminhos foram tomando forma. Em um dos textos que estudavam o programa, uma das referências bibliográficas era um texto que relacionava o Bolsa Família com relações de troca e reciprocidade, de um professor da PUC-Campinas chamado André Pires. Procurei e encontrei o artigo online do texto e o salvei para mais tarde. Em uma disciplina que cursava, reli o Ensaio sobre a Dádiva de Marcel Mauss e relembrei deste artigo que tinha salvo para ler mais tarde. Eu o fiz na mesma semana. Fiquei encantado e queria fazer uma reflexão similar. Com isso, minha monografia estava feita e, a seguir, foi publicada pela editora Novas Edições Acadêmicas como meu primeiro livro, Para além da bolsa: família, estado e reciprocidade, no ano de 2016. Seguindo as leituras da referida disciplina, deparei-me com outro antropólogo contemporâneo, ainda vivo e, aparentemente, pouco estudado – ao menos eu nunca havia ouvido falar dele. Fala sobre híbridos, sobre unir humanos e não-humanos na análise dos fenômenos sociais, impulsionando uma nova concepção metodológica no campo antropológico: a antropologia simétrica. Bruno Latour permanece até hoje em 13 grande medida um autor de grande complexidade para mim. Compreender seus textos é como me debruçar sobre um quebra cabeça de milhares de peças cuja imagem representa uma obra de arte abstrata. Lê-lo implica em um exercício intenso de cafeína e reflexão. Entretanto, o presente texto, mesmo que ainda incompleto – e provavelmente sempre o será – busca trazer uma reflexão do Bolsa Família à luz de sua antropologia simétrica. No limite, as reflexões que aqui se delinearão, percebem que o Bolsa Família constitui uma relação de troca constante entre o Estado e as famílias que inclusive gera um movimento maior no país: a criação de uma política nacional de assistência social, como nunca antes havia existido, com locais físicos de referência e atendimento – os CRAS – que, mais uma vez, constituem relações com as famílias – logo, do Estado com as famílias1. O Bolsa Família é, portanto, olhado enquanto um recorte de um momento histórico do Brasil que começa no início do século com o governo Lula, assim como é elemento central na implementação da assistência social no período e no desenvolvimento das políticas macroeconômicas, parte da chamada “inclusão através do mercado” (JARDIM, 2009). O PBF perceber a pobreza pelo recorte de renda: a assistência social ainda está em fase de consolidação no país e, portanto, através do Cadastro Único ainda estamos mapeando a população nacional. Dessa maneira, é pela renda que se atinge mais rápido a pobreza pelas limitações que a sua ausência implica na população. As condicionalidades que esta política requer – por parte dos beneficiários –, então, visam combater a pobreza por outros caminhos que se atrelam à transferência direta de renda Sendo que o Cadastro Único e o mapeamento da população são feitos nos CRAS, é nesse sentido, que os CRAS se constituem enquanto locus privilegiados para o estudo da assistência social no Brasil, assim como é a estrutura organizacional que dá corpo à assistência social e, portanto, o CRAS é o espaço empírico central deste estudo. Araraquara é uma cidade de 228 mil habitantes aproximadamente – segundo dados do IBGE cidades – localizada no interior de São Paulo. Sua estrutura de assistência social conta com nove CRAS, além da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, que também faz atendimentos à população como um CRAS – e é onde se situa o Cadastro Único, local onde todas as informações coletadas nos 1 Os serviços oferecidos pelo CRAS têm foco sempre nas famílias, assim como o PBF e toda a política de assistência social implantada no Brasil nos últimos anos. 14 CRAS são digitalizadas no sistema informatizado da estrutura de assistência social nacional. Ribeirão Preto, município localizado a aproximadamente 80 quilômetros de Araraquara, conta com uma população três vezes maior – 674 mil habitantes aproximadamente – e tem apenas quatro CRAS. Dentre os, antes oito agora dez, CRAS que Araraquara apresenta, o CRAS Junia Maria de Santi Alves, localizado no bairro Maria Luiza foi o primeiro a ser construído de acordo com o modelo padrão2 do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Por isso a pesquisa se desenvolveu nesta cidade e neste CRAS. Diferentemente da maioria dos estudos acerca de políticas públicas como o Bolsa Família, que levam em consideração apenas o desenho institucional, o aparato burocrático legal ou as entrevistas com beneficiários destas políticas, este estudo pretende unir estas perspectivas. O CRAS se constitui enquanto eixo central, o espaço empírico onde a assistência social ocorre, por isso foi feita uma etnografia do funcionamento da estrutura de assistência social, delineando como e quais são os atendimentos prestados à população neste ambiente, quais são os encaminhamentos. Do mesmo modo, foram feitas entrevistas com as beneficiárias do programa – mais precisamente, com quatro beneficiárias. Os grupos de convivência existentes nos CRAS também foram espaços para o acompanhamento da população beneficiária e, assim, acompanhei três reuniões em diferentes meses, reportando aqui algumas destas experiências cruciais. Compreender o PBF só será possível através de um olhar que privilegie tudo o que está envolvido nesta política pública. Não podemos, de acordo com a proposição de Anjos (2005), separar a dimensão analítica do fazer científico, de um lado, do empreendimento “nativo”, do outro. Etnografar todos os elementos é compreender simultaneamente a verdade e o erro, é dar agência a tudo que de fato interfere na sociedade (LATOUR, 2013). Dessa forma, busquei aplicar o princípio de simetria (LATOUR, 2004) para estabelecer um estudo de antropologia simétrica com as 2 Este “modelo padrão” é um modelo do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) de estrutura física recomendável para que os CRAS possam funcionar bem. Trata-se de uma estrutura que conta com salas de atendimento individualizado, brinquedoteca, sala de administração, recepção, sala de reuniões para grupos, cozinha e banheiros (inclusive adaptado para pessoas com deficiência). Iremos apresentar mais adiante como a estrutura é de fato, mas de antemão destacamos a escolha pelo CRAS do Maria Luiza por este ter sido o primeiro em Araraquara a ser construído no “modelo padrão”. 15 respectivas visões e representações dos que se localizam nessa relação de troca entre os beneficiários e o Estado. Na medida em que o PBF é dotado de agência, ele constitui um espaço social específico que mobiliza categorias e gera alterações e impactos na sociedade, como vimos. Sensibilizar-se e se deixar afetar pelo olhar e pelas falas do outro implica no alargamento de nosso conhecimento. E é assim que nos beneficiaremos do conceito de simetria na medida em que este conceito se constitui mais como o nome de um lápis que vai descrever os acontecimentos que como o nome de um objeto a ser desenhado (FREIRE, 2006). Trata-se de olhar para toda a complexidade da relação buscando informações, dados e percepções que possibilitem perceber o PBF como um produto dessa interação - o nó central desta relação. Ou seja, apresentar como essa política pública se concretiza a partir destas percepções – entendidas não apenas no sentido avaliativo, mas pela maneira como se apresenta para os diferentes atores envolvidos na relação – que permeiam a sua prática, sendo isto chave para uma melhor reflexão sobre esta política pública. A partir disso, o que se pretende é explorar a complexidade das informações e argumentações envolvida nessa relação social e simbólica olhando simetricamente (LATOUR, 2013) para os que estão “dentro” e “fora” do Estado – entendendo que, para os efeitos desta pesquisa, “dentro” do Estado refere-se ao CRAS, os sistemas informatizados da assistência social como o Cadastro Único, etc. e “fora” do Estado se refere aos beneficiários –; para as percepções, práticas, informações; para as categorias – como são mobilizadas pelo Estado e se são interiorizadas pelos beneficiários. Portanto, é a abordagem simétrica (LATOUR, 2013) que proporciona um olhar para os beneficiários e para o Estado, bem como para as vastas informações, os dados, as percepções, as práticas, etc. de modo que possibilite um alargamento do espaço de entendimento do PBF. Para que seja possível delinear a pesquisa desta maneira, o presente trabalho se divide em três seções. No primeiro capítulo, o objetivo foi “ampliar o escopo” do Bolsa Família, trazendo a caracterização do espaço do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS), possibilitando percebê-lo enquanto o espaço central dessa relação mediada. A posteriori, descrevendo como funcionam os sistemas informatizados, os 16 atendimentos do CRAS, buscou-se apresentar o histórico do Programa Bolsa Família até sua atual formatação e seu desenho institucional, caracterizando seus benefícios, condicionalidades, efeitos de descumprimento, etc. para, por fim, trabalhar com as reuniões de grupo que foram acompanhadas no CRAS, bem como as entrevistas feitas junto às beneficiárias do programa. No segundo capítulo, o texto se volta à reflexão mais teórica per se. Assim sendo, a mesma se inicia com um balanço da bibliografia acadêmica referente ao Bolsa Família, buscando demonstrar a complexidade que envolve esta política e, ao mesmo tempo, apresentar alguns de seus impactos, sejam eles quais forem. Desta feita, reflexiona-se a partir disso em consonância com as proposições de Amartya Sen (2000) ou seja, olhar para o Bolsa Família enquanto um instrumento para a ampliação de liberdades e, portanto, de desenvolvimento. Concomitantemente, reflete-se sobre como o programa então institui uma nova maneira de cidadania na sociedade brasileira. Tornando possível compreender o momento histórico do qual o programa faz parte – e seu contexto de criação –, se traz uma reflexão acerca do período de transição de fins de governo Cardoso e sua passagem para o governo Lula. Assim, buscou-se apresentar as principais características desses governos e suas políticas sociais e econômicas – afinal, o Bolsa Família é resultado deste período. O que se conclui, a partir disto, é que a política macroeconômica do período Lula adotou inclinações keynesianas, investindo na criação de demanda, para além de quaisquer outros fatores, e o Bolsa Família é um dos exemplos que reforçam esta afirmação. Deste ponto em diante, as reflexões se inclinam perceptivelmente às teorias sociais mais contemporâneas de Habermas, Foucault, Bourdieu, Honneth, Mouffe à Nancy Fraser: reflexões sobre Estado e sociedade, sobretudo. O que se pretendeu nestes dois itens seguidos, foi levantar teorias sociais recentes que podem ser utilizadas para perceber o programa de diversos pontos de vista. Mas, sobretudo, buscou-se traçar um caminho que nos leve ao ponto que queremos chegar: o Bolsa Família é uma política de redistribuição que impacta de diversas maneiras no reconhecimento das pessoas e, não só, é uma forma de incluir os excluídos, mesmo que não acabe com a exclusão. Afinal, como veremos, ela é inerente a qualquer arranjo democrático e nos permitirá chegar ao dom. No quarto item que se segue, são trazidos alguns debates que pensam o programa à luz destas teorias. 17 Por fim, o que se traz é uma ideia que, desde a fundação da sociologia, ao meu ver, permanece extremamente pertinente. Ao se resgatar algumas reflexões de Durkheim acerca da autonomia do objeto sociológico intentou-se retraçar o vínculo social entre indivíduos: as trocas. À luz da teoria da dádiva inaugurada por Marcel Mauss, buscaram-se autores contemporâneos que refletem sobre este debate para perceber de que maneira o Bolsa Família se constitui enquanto um dos exemplos de dádiva entre os modernos – mesmo que o dom esteja em todo o lugar. E buscou-se, sobretudo, mesmo que de maneira talvez não tão explícita, concluir que perceber o programa desta maneira é uma forma de percebê-lo mais amplamente, construindo um olhar bifocal de “dentro” e de “fora” do Estado, resgatando as imbricações entre os campos econômico e social. Este terceiro capítulo buscou o alargamento da perspectiva analítica sobre o PBF – e sobre o social – a partir do dom. O dom não está restrito a sociedades “arcaicas”, nem está presente na sociedade dita “moderna” de maneira residual ou, menos ainda, é uma forma anarquista de resistência ao capitalismo. O dom é condição sine qua non da sociedade (CAILLÉ, 2002). Ele está em toda parte (GODBOUT, 2002) a todo o momento. A fundação do Estado, assim como da sociedade, passa pelo dom e pelas trocas que ele estabelece. As diferentes roupagens que as trocas assumem em diferentes sociedades nada mais são que os costumes e as diferentes formas da moral que caracterizam as diferenças de cada grupo como tal. Procurar hau, mana, ou qualquer outras destas características na sociedade “moderna” – como faz Hyde (2010) – significa essencializar o dom e perder de vista sua condição essencial: a criação do vínculo social (CAILLÉ, 2002). É por isso que o PBF é um exemplo privilegiado para pensarmos como o dom é elemento fundador da sociedade e do Estado – bem como da relação entre ambos (LANNA, 2005). E é por isso que a simetria de Latour nos permite pensar este trabalho desta maneira: é exatamente por serem o fundamento da sociedade que as trocas não são apenas econômicas, políticas ou etc. Mas é por isso que elas são essencialmente todas estas coisas ao mesmo tempo. E é por ter esta constituição que as trocas – e o PBF como um exemplo dessas trocas, como aqui veremos – impacta em âmbitos não apenas de redistribuição de renda, mas também de reconhecimento. 18 É disso que se trata reatar o nó górdio e é isso que caracteriza o fato de jamais termos sido modernos. Para Latour (2013), a modernidade não se concretizou justamente pela distância que se impõe sobre as áreas de conhecimento enquanto, na realidade, a humanidade prolifera os híbridos. Híbridos que se caracterizam por objetos da natureza, mas que sofrem ação humana, como uma garrafa d’água, por exemplo. A água é encontrada na natureza, mas é coletada e selecionada pelo homem. O plástico também é uma produção humana. E assim é comercializada. Assim, os híbridos são constituídos por humanos e não-humanos. Na medida em que olhamos, então, para o mundo apenas de tal ou qual perspectiva – seja ela linguística, biológica, ou qualquer outra – não compreendemos a totalidade dos fatos. Reatar o nó górdio consiste, portanto, em reunir as perspectivas que nos permitirão compreender os fatos na realidade. E isso constituiria a modernidade, para Latour (2013). Lançar tal olhar sobre o PBF é possivelmente, a contribuição do presente texto. 19 CAPÍTULO I – O LADO DE “DENTRO” E O LADO DE “FORA”: ampliando o escopo De modo a tornar possível a proposta de estudo que resulta no presente trabalho, este primeiro capítulo propõe delinear a operacionalidade do Programa Bolsa Família (PBF) a partir de um mapeamento de seu funcionamento do lado de “dentro” do Estado e, a posteriori, a partir das perspectivas das beneficiárias que, portanto, estão no lado de “fora” do Estado. Estabelecemos aqui “dentro” e “fora” não enquanto uma composição física de ocupação espacial, mas enquanto um recorte metodológico que, através dessas terminologias, pretende evidenciar que, para compreender a complexidade de uma política pública dessa magnitude, é necessário olhar tanto para a estrutura institucional- burocrática, quanto para os beneficiários dessas políticas, de maneira que considere com a devida atenção a agência – os actantes (LATOUR, 2013) – dentro de todo esse processo. É por isso que este capítulo é metodologicamente essencial para o trabalho que aqui se propõe: é através dele que tentaremos construir uma concepção simétrica do Bolsa Família. Para alcançar esse objetivo, foi feita uma etnografia dentro de um Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) no município de Araraquara, no interior de São Paulo, por esse ser o local de referência, de fato, dentro da assistência social no país e por ser o locus da relação entre este programa de política pública e seus beneficiários – onde os cadastros são preenchidos, as entrevistas são feitas, etc. Também foram entrevistados o gestor do Cadastro Único no município, o gestor do CRAS do Maria Luiza, a assistente social do mesmo CRAS e uma funcionária do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, assim como realizado um levantamento de dados sobre o programa na cidade e analisado o questionário aplicado aos beneficiários das políticas públicas federais – e algumas municipais –, o chamado “caderno verde” do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal3. Em um último momento desta primeira parte, foram trazidas experiências vividas nas reuniões de grupo do CRAS e as entrevistas com as beneficiárias do programa. 3 Doravante Cadastro Único. Neste capítulo agradeço, sobretudo, Juliana Agatte que, além de conceder uma entrevista, forneceu dados, estudos e, mais que isso, abriu o caminho para as seguidas entrevistas; à Maria Cecília e ao Alex da Secretaria Municipal pelas entrevistas, abertura para diálogo e fornecimento dos dados; ao Fábio, gestor do CRAS do bairro Maria Luiza pelo enorme auxílio prestado a esta pesquisa; e às beneficiárias que concederam seu tempo e suas palavras. 20 1.1 Contextualização do CRAS Os Centros de Referência e Assistência Social se constituem enquanto os locais onde operam os atendimentos assistenciais de todos os programas sociais do governo federal. Através deles são feitas as buscas ativas por populações em situação de vulnerabilidade, são cadastradas famílias no Cadastro Único, são oferecidas oficinas de música, brincadeira e jogos para as crianças e adolescentes, são oferecidas acolhidas privadas e em grupo com apoio psicológico, entre diversos outros atendimentos prestados às famílias. Trataremos disso ao longo deste primeiro item. O foco de atendimento do CRAS, como se verá, é na proteção social básica (PSB), ou seja, os serviços são oferecidos tendo as famílias como alvo de suas ações, sendo que estas são todas orientadas à manutenção dos vínculos familiares, prevenção de maiores vulnerabilidades, etc. E, nesse sentido, é no CRAS que o PBF se concretiza, uma vez que o programa se constitui enquanto uma política de proteção social básica. Antes do inicio do programa nos moldes que aqui serão delineados, foi proposto o Bolsa Escola pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o local de referência era a escola, ou seja, eram as secretarias de educação municipais e estaduais e o Ministério da Educação, que ficavam responsáveis pela política focada nas crianças em idade escolar de faixa etária de 7 a 14 anos de idade (ROCHA, 2013). O que cabe destacar, de antemão, é que o conceito de família, tanto para o Cadastro Único quanto para o PBF, é amplo: constitui-se família o grupo nuclear formado por um ou mais indivíduos – ou seja, até mesmo uma residência com apenas uma pessoa é considerada uma família unipessoal – que contribuam para o rendimento da residência ou tenham suas despesas custeadas por membros da residência em questão. Mesmo que não sejam parentes consanguíneos ou nem mesmo casais, as pessoas que dividam o mesmo domicílio e, por conseguinte, as despesas do mesmo, são consideradas como uma família4. Do mesmo modo, o Bolsa Alimentação tinha como referência as secretarias municipais e estaduais de saúde e o Ministério da Saúde. Com a unificação desses programas sociais no Programa Bolsa Família em 2003 pelo presidente Lula (PT), a focalização passa a ser nas famílias em situação de vulnerabilidade, sendo consideradas 4 http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/bolsa_familia/Informes/informe362.pdf visualizado em 21 dez. 2017. http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/bolsa_familia/Informes/informe362.pdf 21 como em situação de pobreza extrema as que recebem R$77 per capita, e em situação de pobreza as que recebem entre R$ 77,01 e R$154 per capita. Existem, entretanto, condições para o recebimento do benefício – como será melhor delineado ao longo do trabalho – que se relacionam à saúde e à educação como nos programas anteriores e, tendo como foco a assistência social e a proteção social básica, não havia um local de referência para concentrar tal atendimento à população (ROCHA, 2013). É nesse sentido que o CRAS se constitui enquanto o local de referência da proteção social no Brasil e é por isso que se configura como locus desta pesquisa. É nele que as famílias entram em contato com os programas sociais do Estado, têm atendimento básico promovido por este do mesmo como é considerado enquanto a parte de “dentro” da estrutura institucional do Estado. Araraquara é um município do interior de São Paulo com aproximadamente 228 mil habitantes5. Totalizam 10.456 o número de famílias cadastradas no sistema Cadastro Único ao fim de 2016, compostas por 32.526 pessoas, ao passo que beneficiários do Bolsa Família são 3.321 e o valor repassado ao município, pelo governo federal, no ano todo, foi de quase R$6 milhões6. Sua estrutura de atendimento de assistência social conta com nove CRAS7, um Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS – Proteção Social Especial, voltado a casos de violação de direitos, de violência física, delitos, etc. e não cabe mais a prevenção, ou seja, proteção básica), e a própria secretaria de desenvolvimento social presta atendimento à população de alguns bairros que não são cobertos pelos CRAS. Segundo noticiado por um jornal da própria cidade e constatado nas entrevistas, este é um numero elevado de CRAS para municípios desse porte. Ribeirão Preto, município localizado a aproximadamente 80 quilômetros de Araraquara conta com uma população três vezes maior – 674 mil habitantes aproximadamente8 – e com apenas quatro CRAS9. 5 Segundo o IBGE Cidades: http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=350320&search=sao-paulo|araraquara 6 Todos esses dados foram gentilmente fornecidos por Alex, que à época do trabalho de campo era o gerente do Cadastro Único no município de Araraquara. 7 No início da pesquisa, Araraquara contava com nove CRAS, já nos primeiros meses de 2018 são dez CRAS no município de Araraquara. 8 Segundo o IBGE Cidades: http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=354340&search=sao-paulo|ribeirao- preto 9 http://www.seuplaneta.com.br/Araraquara/2012/10/araraquara-tem-quatro-cras-a-mais-que-o- previsto.html visualizado em 16/05/2016. Na época da notícia Araraquara contava com oito CRAS tendo sito recentemente criado mais um. http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang&codmun=350320&search=sao-paulo http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang&codmun=354340&search=sao-paulo http://www.seuplaneta.com.br/Araraquara/2012/10/araraquara-tem-quatro-cras-a-mais-que-o- 22 O bairro Maria Luiza foi constituído a partir de um loteamento chamado Maria Luiza I lançado em 1991, tendo 785 lotes e uma população entre 3 e 4 habitantes por lote, ou seja, 2383 habitantes à época. Após esse período foram lançados mais dois loteamentos, o Maria Luiza IV e o Maria Luiza V, em 1996 e 2009, com 742 e 330 lotes respectivamente10. Este número é calculado pelo Departamento Autônomo e Água e Esgoto (DAAE) do município tendo por base os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Foto 1 – Centro de Referência e Assistência Social “Junia Maria de Santi Alves” Fonte: Autoria própria, 2016. O CRAS “Junia Maria de Santi Alves”, do bairro Maria Luiza, localiza-se na entrada do bairro, é de fácil acesso e ao lado do Posto de Saúde da Família (PSF). Conta com a estrutura do “modelo padrão” citada na introdução: uma sala de entrada onde uma atendente faz o pré-atendimento das famílias; uma sala de administração; uma sala de atendimento individual; uma sala de atendimento familiar; uma sala multiuso; uma brinquedoteca; uma sala de gerência; dois banheiros; um banheiro para pessoas com deficiência física; uma copa. Além disso, conta com um gestor (que, no momento da pesquisa, também exercia a função de psicólogo por falta de profissional11); um assistente social; um agente operacional (responsável pela limpeza) dois educadores 10 Todos esses dados foram adquiridos juntos ao DAAE. Agradeço em especial ao Helton, funcionário do DAAE por esse apoio. 11 Hoje este gestor do CRAS Maria Luiza é o gerente do Cadastro Único no município. 23 sociais; um agente administrativo; e um agente operacional. Estes 6 funcionários compõem a Equipe Técnica, sendo que, além destes, o CRAS conta com dois “oficineiros” responsáveis pelas oficinas oferecidas no local: uma psicopedagoga e um professor de violão. Este é o único CRAS do município que conta com dois educadores sociais, profissionais responsáveis pela busca ativa – atividade na qual caminham pelo bairro observando as possíveis vulnerabilidades das famílias -, assim como fazendo alguns acompanhamentos de suas necessidades de assistência social. Figura I – Fluxograma de atendimento do CRAS Fonte: Fluxograma fornecido por funcionários do CRAS, 2016. A população chega até os serviços prestados pelo CRAS através de três possíveis formas: pelo encaminhamento dessas famílias vulneráveis por parte de outros programas que se ligam às áreas da educação ou saúde, por exemplo, ou até mesmo por outras entidades; outras chegam por procura espontânea, devido, em muitos casos, à curiosidade pelos serviços prestados naquele espaço; ou através da busca ativa, sendo esta realizada de diversas maneiras possíveis de acordo com cada CRAS e as necessidades dos bairros em questão. No caso do CRAS do Maria Luiza, os dois 24 educadores sociais percorrem as ruas do bairro indo às casas das famílias que frequentam as chamadas “acolhidas” e/ou são beneficiárias do Programa Bolsa Família, por exemplo, em casos de falta às reuniões de acolhida ou por um descumprimento das condicionalidades do PBF, para passar um “pente fino” das famílias que recebem benefícios do governo. Além disso, mapeiam as necessidades da população e as encaminham ao CRAS quando necessário. No caso de bairros mais afastados do CRAS, mas que são dependentes deste12, as visitas são feitas com o auxílio de um carro disponível uma vez por semana. Segundo os dados obtidos com os funcionários CRAS do bairro Maria Luiza, todas as formas de procura pelo local no segundo semestre de 2016 se deram através da chamada “procura espontânea”, o que não significa que não houve busca ativa, pelo contrário. Foram realizadas 134 ações de busca ativa, cujo maior propósito foi identificar as famílias em descumprimento das condicionalidades do Bolsa Família. Além disso, trata-se de um território que abrange 4500 munícipes, lembrando que nem todos são atendidos pelo Centro de Referência: existem aproximadamente 950 prontuários de atendimento no Maria Luiza. Cabe destacar que as principais demandas que surgiram para o CRAS foram: a regularização de benefícios de transferência de renda; atualização cadastral de programas sociais; e acesso ao cadastro de programas sociais. Após a chegada da família ao Centro de Referência, por qualquer forma que seja, a recepcionista, localizada logo à entrada do CRAS, faz o pré-atendimento, que consiste na identificação das necessidades de cada caso em particular – como muito relatado, a necessidade de cestas básicas ou incidência de drogadição em algum membro da família, por exemplo – e que leva ao devido encaminhamento conforme as necessidades. As acolhidas, segundo nossos informantes, são caracterizadas por uma escuta classificada como escuta qualificada, um momento marcado pelo diálogo entre assistentes sociais, psicólogos e gestores do CRAS com as famílias, que pode ser em grupo, particularizado ou domiciliar. As acolhidas resultantes da busca ativa são, costumeiramente, domiciliares, de modo que os educadores sociais vão às casas das pessoas em questão e conversam lá. Normalmente, situações como esta são incomuns, 12 Segundo informado pelo gerente, o CRAS do bairro Maria Luiza atende também ao Parque do Planalto e à Chácara Flora, bairros próximos, porém não o suficiente para fazer a busca ativa a pé, sem o auxílio de um veículo. 25 acontecendo apenas caso a família solicite ou não compareça ao CRAS quando encaminhada pelos profissionais, motivo este que pode se dar por inúmeras razões, das quais a vergonha é apenas um dos relatados nas entrevistas. Outra forma de acolhida, encaminhada pelo pré-atendimento, é a acolhida particularizada que, assim como a domiciliar, consiste em um momento de escuta qualificada e diálogo apenas com a família ou algum de seus membros e não com um grupo de moradores do bairro. Estas situações são comuns em casos muito urgentes, como uso de drogas por adolescentes ou até mesmo a necessidade de um acompanhamento psicológico de algum dos membros da família, e costumam acontecer no momento em que o membro ou família procura o CRAS. Assim, a recepcionista, ao perceber a complexidade da situação, informa de imediato o gestor do CRAS e, talvez, a assistente social e/ou o psicólogo, proporcionando acolhida no exato momento da procura. A acolhida em grupo é a mais comum de acordo com as informações obtidas. Estas ocorrem semanalmente no Maria Luiza, em geral às sextas-feiras. Participam as famílias ou alguns de seus membros conforme agendado pelo CRAS. Acontecem sempre em dia e horário marcado e proporcionam, além da escuta qualificada e do diálogo, a troca de experiências entre habitantes do mesmo bairro, em muitos casos amigos, familiares, conhecidos. Caso seja constatado que as necessidades familiares não se referem à assistência social, o CRAS faz os devidos encaminhamentos às instâncias responsáveis por sanar tais demandas, assim como o mesmo ocorre de outras instancias para o CRAS. Se as necessidades forem, de fato, referentes à assistência social, os profissionais incluem as famílias no Programa de Atendimento Integral à Família (PAIF) e fazem novos encaminhamentos de acordo com cada caso em particular. O “encaminhamento SUAS” 13 consiste em diversas ações, desde o acolhimento e a integração em grupos até a inclusão da família no Cadastro Único. O Serviço Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) entre a população – sobretudo as famílias – através de grupos divididos de acordo com as faixas etárias: de zero a seis anos; de sete a quatorze anos; de quinze a dezessete anos; de dezoito a cinquenta e nove anos; e de sessenta anos para cima. No Maria Luiza os grupos de convivência ofertados são os da faixa de sete a quatorze anos, chamados de “jogos e brincadeiras” e realizados 13 Sigla referente ao Sistema Único de Assistência Social. 26 na brinquedoteca, geralmente com jogos que incentivem a compreensão e o raciocínio das crianças, além das atividades musicais, como as aulas de violão. Também são ofertados os grupos das faixas de dezoito a cinquenta e nove anos e aos idosos. No caso dos adultos, as reuniões que acontecem a cada quinze dias visam sempre debater questões do dia-a-dia desses participantes, como auto-estima, convivência, problemas familiares, benefícios, direitos. A questão dos direitos, pelo que se pode constatar, são corriqueiramente trazidas aos grupos com o intuito de conscientizar os indivíduos de seus direitos à convivência, a benefícios sociais, a serviços básicos, etc. Esses grupos têm como objetivo o empoderamento das pessoas através do qual possam adquirir independência14. No último caso, o grupo dos idosos ocorre semanalmente e também consiste em rodas de conversa e debates sobre temas cotidianos. Em todos os grupos a maior parte dos participantes é do sexo feminino, sendo que, no caso dos idosos não há um individuo do sexo masculino sequer, e dois terços ou mais são compostos por beneficiárias do Bolsa Família. Em alguns casos, vulnerabilidades maiores podem ser constatadas por profissionais diversos dentro do CRAS, como os próprios professores de violão, por exemplo. Nessas situações, como em quaisquer outras onde se perceba tais condições, a família é orientada e encaminhada de acordo. O terceiro encaminhamento é a visita domiciliar. Em certas situações, os profissionais do CRAS, ao perceberem vulnerabilidades acentuadas – como casos de violência doméstica, por exemplo –, fazem visitas a domicílio de modo que possam ampliar sua visão acerca da vivência de cada família, identificando demandas, necessidades, problemas, e proporcionam os devidos encaminhamentos, sejam eles relacionados a assistência social ou não. Quando essas necessidades resultam da existência de idosos ou deficientes na família, os profissionais não negam a escuta e a acolhida em grupos, porém o quarto encaminhamento, denominado “serviço de atendimento em domicilio de idosos/deficientes”, ainda não é feito, pois não existem diretrizes nacionais claras de como proceder em qualquer lugar do país. O quinto encaminhamento, que leva o nome de “ações particularizadas”, pode ser feito de diversas maneiras de acordo com as propostas de cada CRAS, mas, no caso do Maria Luiza, os grupos de convivência são as principais ações, tentando acolher as 14 Isto é algo que nos foi dito por Fábio, gestor do CRAS Maria Luiza, quem nos acompanhou no espaço, apresentou e explicou todo o funcionamento do CRAS. 27 famílias, lidar com suas demandas da melhor forma possível e conscientizar a população de seus direitos, incentivar sua participação na sociedade e associações de bairro – como há no caso em questão – buscando, como fim, desconstruir a visão “paternalista” que muitos têm das políticas sociais, encorajando-os a estudar, encaminhando-os a cursos gratuitos ofertados em parcerias com ONGs, instituições, governo municipal, federal, etc. Essa visão paternalista, segundo um de nossos informantes, dificulta a adesão das famílias aos grupos e acolhidas na medida em que faz com que as pessoas esperem a resolução imediata de suas demandas e não se percebam enquanto cidadãos portadores de direitos. O “encaminhamento à rede setorial e políticas públicas” tem como objetivo orientar as pessoas a buscar programas ou serviços que atendam às suas vulnerabilidades ou necessidades, como cursos técnicos e profissionalizantes. No caso de Araraquara, os jovens podem ser encaminhados a centros e cursos de formação, aos serviços de convivência, ao sistema de saúde, às visitas domiciliares, às ações particularizadas – a todas ações já mencionadas acima – e até mesmo ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)15 que, diferentemente do CRAS, atende famílias ou pessoas em situação de violação de direitos como as de risco pessoal ou social, as que cumprem medidas socioeducativas, as que sofrem qualquer tipo de violência, entre outras. As ações desempenhadas pelo PAIF no “Junia Maria de Santi Alves” foram diversas, somando 712 no total do segundo semestre de 2016, sendo que estas ações incluíram: agendamentos; orientações por telefone; orientações presenciais; acolhida realizada por profissional de nível superior; acompanhamento de famílias; acompanhamento de famílias em descumprimento de condicionalidades do Bolsa Família; visitas domiciliares; grupo/oficina de convivência e atividades socioeducativas; entre diversas outras ações. Nesses grupos/oficinas em família, foram desenvolvidas, sobretudo, atividades de roda de conversa com artesanato, ao passo que nos grupos de convivência e fortalecimento de vínculos, as ações também consistiram em rodas de conversa, atividades de arte e cultura (teatro, dança, música) e atividades recreativas como jogos e brincadeiras. Essas ações estão contidas nos encaminhamentos que estão sendo aqui descritos. 15 Desse modo, o CREAS é o responsável pela Proteção Social Especial (PSE). 28 Há, também, o acompanhamento PAIF direcionado às famílias mais carentes de serviços básicos, constituindo-se em algo mais específico e particularizado entre a assistência social e as famílias. Assim, o CRAS, em conjunto das famílias, constrói um calendário de reuniões em grupo e/ou particularizado, e um plano de acompanhamento familiar, que pode acontecer através de ações particularizadas ou de reuniões em grupos, conforme a família sentir-se mais à vontade e conforme suas necessidades imediatas. Após desenvolvido todo esse processo de atendimento, acompanhamento, encaminhamentos a serviços e grupos, identificação de demandas e propostas particularizadas, os agentes do CRAS se reúnem com as famílias e fazem um monitoramento e avaliação das ações efetivadas dentro do tempo proposto e desligam as famílias dos atendimentos caso estes não sejam mais necessários, ou reformulam o projeto de atendimento objetivando atender as vulnerabilidades até então não consideradas. Como se pode ver, o CRAS se constitui como o espaço empírico de relação da assistência social, no país, com a população em maior situação de vulnerabilidade. Além disso, coloca o foco de todas as suas ações na família enquanto elemento central de troca. Troca aqui entendida teórico-metodologicamente em seu sentido maussiano, o que constitui uma das hipóteses deste trabalho, como se verá no último capítulo. É nesse sentido que o CRAS caracteriza-se como locus privilegiado para a realização dessa pesquisa: nele opera a relação do lado de “dentro” com o lado de “fora” do Estado – é o local onde as famílias se cadastram para receber o Programa Bolsa Família e as condicionalidades são, em parte, acompanhadas. 1.2 Cadastro Único Para Programas Sociais do Governo Federal O CRAS utiliza diversas plataformas digitais para registro dos acompanhamentos dessas famílias, controle de condicionalidades, entre outras funções. O Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação, como se verá, tinham locais de referência e sistemas de registro próprios, da educação e saúde, respectivamente. Quando implantada uma rede de assistência social a nível federal, tendo o Bolsa Família como carro chefe, não havia um sistema online pelo qual fosse possível fazer acompanhamentos, registros, ocorrências. Quem cumpre esta função hoje é o Sistema 29 Nacional de Assistência Social (SNAS). Nele são registrados todos os atendimentos mensais do CRAS, sejam eles individualizados, coletivos ou preenchimento de dados de famílias em acompanhamento pelo PAIF. O Sistema de Informações do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SISC) é outra plataforma na qual são registradas todas as famílias em acompanhamento pelo CRAS no que se refere aos atendimentos PAIF mencionados no item anterior. Através deste sistema, é possível gerar relatórios e fazer consultas de oficinas existentes nos CRAS do município, bem como consultar dados das famílias que frequentam tais oficinas. O Sistema de Condicionalidades do Programa Bolsa Família (SiCon) é aquele no qual são preenchidos os dados referentes às famílias que estão descumprindo as condicionalidades do PBF. Através desse preenchimento, a família tem seu benefício protegido, ou seja, não sofre advertências nem bloqueios ou até mesmo cancelamentos, os chamados “efeitos de descumprimento”. As famílias inseridas neste sistema devem ser acompanhadas pelo CRAS, de modo a verificar suas vulnerabilidades e dar apoio e encaminhamentos conforme as necessidades de cada uma. Visualizaremos melhor as funções deste sistema quando chegarmos aos acompanhamentos de condicionalidades do PBF. Dentre estes e outros sistemas que são utilizados no CRAS, um deles foi criado ainda no governo Fernando Henrique Cardoso e é de central importância para identificar e caracterizar as famílias de baixa renda, permitindo conhecer as realidades socio- econômicas dessas famílias, bem como sua composição e demais informações sobre seus membros. Falamos do Cadastro Único. Através dos dados produzidos pelo Cadastro Único, o governo consegue fazer a seleção de beneficiários para as políticas sociais existentes, como o Programa Bolsa Família, o Programa Minha Casa Minha Vida, o Telefone Popular, o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social ao idoso e à pessoa com deficiência, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, entre diversos outros. Programas estaduais e municipais também podem ser vinculados ao Cadastro Único. Além disso, todos os outros sistemas citados são integrados a este último, de modo que os bancos de dados ficam interligados automaticamente. 30 Os CRAS de Araraquara, ao entrevistarem as famílias que procuram pela assistência social, fazem o preenchimento dos dados de seus membros especificamente, dos materiais predominantes na construção da habitação familiar, etc., à mão, no chamado “caderno verde”. No momento do preenchimento, as pessoas (normalmente mulheres16) devem apresentar alguns documentos pessoais como RG, CPF, certidão de nascimento, etc. – também precisam levar as certidões de nascimento dos filhos que tiverem – e alguns comprovantes de moradia e renda, como conta de luz, holerite caso exerça trabalho remunerado, carteira de trabalho, etc. Assim, um funcionário do CRAS preenche os dados pessoais da pessoa que está sendo cadastrada, ao mesmo tempo em que faz uma breve entrevista solicitando dados pessoais que não estão contidos nos documentos, como a renda, no caso das rendas informais, gastos com alimentos, medicamentos, etc. Importante destacar que no Maria Luiza, a recepcionista do CRAS é quem fez o treinamento para preenchimento do “caderno verde”, portanto ela agenda com os moradores do bairro para fazerem seus cadastros (CAD) ou recadastros (RECAD), e muitas são as mulheres que faltam aos agendamentos de RECAD. Na realidade, poucas foram as que compareceram nos dias marcados ou até mesmo no horário correto durante o período em que o trabalho de campo foi efetuado. Desse modo, os RECAD foram remarcados até que as mulheres compareceram de fato, por medo de perderem seus benefícios. Posteriormente, esses cadernos são enviados à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, onde o gestor responsável irá digitar esses cadastros em um sistema informatizado de responsabilidade da Caixa Econômica Federal (CAIXA). A equipe técnica do CRAS tem acesso ao Cadastro Único apenas para consultas, não podendo fazer alterações, exclusões ou novos cadastros. É através do Cadastro Único que os dados são cruzados com os das secretarias municipais de educação e da saúde para fazer o acompanhamento das condicionalidades do PBF; através dele também se fiscaliza a gestão de benefícios do PBF do Sistema Informatizado de Benefícios da Caixa (SIBEC); realiza-se a interlocução entre os membros das Instâncias de Controle Social (ICS) e a coordenação do PBF; realiza-se a interlocução da Prefeitura Municipal com a CAIXA, assim como entre a Prefeitura, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), os estados e outros 16 É praticamente uma exigência do MDS que os cadastros sejam feitos em nome das mães/mulheres. 31 municípios; realiza-se a coordenação do processo de coleta de informações por visitas domiciliares e/ou postos de atendimento, entre diversas outras atribuições. A diferença, no caso de Araraquara, entre as atribuições dos CRAS e da secretaria de assistência social é que na secretaria são feitas as digitações no sistema informatizado do Cadastro Único, além de prestarem atendimentos aos casos considerados de maior complexidade, como aqueles nos quais foram feitos bloqueios, revertam-se cancelamentos, gerem-se os benefícios – só lá tem-se acesso ao SIBEC –, geram-se dados, responde-se às demandas do ministério público, da justiça ou do governo federal, etc. Embora o Cadastro Único seja uma ferramenta com mais de quinze anos de existência, sendo um dos principais instrumentos para a assistência social a nível nacional, não o é sem críticas e sem que ainda devam ser feitas melhorias segundo um de nossos entrevistados. Tinha que ter informação sobre a situação habitacional das famílias, não tem... por exemplo o Cadastro Único não fala se a pessoa mora numa casa cedida, alugada, financiada ou própria ou não. Isso é um grande problema, é uma falha. Outro problema é que as despesas, tem várias despesas que não constam ou possibilidade de despesa que não tem, por exemplo se a pessoa paga financiamento de uma casa a gente não tem como, não acessa essa informação, gastos com telefone, internet e outros... também não consta se a pessoa, qual é a profissão da pessoa. Isso também é uma falha, na minha opinião. E empresa que trabalha ou a data de admissão. Então isso é muito sério porque envolve uma série de questões aí que a gente inclusive já indicou pro Ministério do Desenvolvimento Social, um procedimento de revisão desses formulários que esses campos são importantes e é uma falha, na nossa opinião, não ter essa possibilidade de informação. Pra você entender a situação social de uma família, uma das informações mais básicas é saber a situação de moradia dela, então assim tem várias coisas para nós que não são tão importantes, por exemplo: a construção – é logico que no nosso município é muito, vamos dizer, a gente tem uma condição social muito melhor do que a maioria dos municípios do Brasil, né? (...) Então aqui pergunta qual é o material predominante do piso da casa, quer dizer é uma pergunta é interessante, mas assim eu acho que ela é secundária diante da informação: você mora numa casa própria, cedida, alugada, arrendada ou financiada? Entendeu? Então, coisas desse tipo... Aqui despesas que eu falei pra você, né? Se você, se a pessoa tiver.. também não tem o campo ‘outras despesas’, de repente a pessoa paga um curso, paga uma faculdade e você não tem como lançar a despesa. Então, assim, isso é base quando você quer entender a situação social de uma família, a primeira coisa que você precisa saber é qual realmente é a despesa ou a ausência da despesa que mais impacta para uma família de baixa renda na situação de moradia: se ela paga aluguel, se ela não 32 paga aluguel, né? E isso infelizmente não tem (Alex, Gerente do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, 2016). Aqui se trata da opinião de um agente que trabalha com o sistema há mais de nove anos e por isso tem um extenso conhecimento sobre os benefícios e o próprio Cadastro Único. Isso talvez seja um indício para pensarmos a forma como os gestores federais do sistema e os governos buscam levantar as informações particulares dos beneficiários das mais diversas políticas sociais. A crítica, face à análise do programa e do questionário do caderno verde, parece contundente, mas o que se quer dizer é que talvez não seja despropositada a ausência dos itens citados pelo entrevistado. O que cabe neste texto é perceber que olhar simetricamente para o Bolsa Família implica que as visões dos diferentes agentes se fazem essenciais para uma compreensão mais ampla sobre o PBF, assim como a percepção de como são o questionário, os sistemas, o fluxo de informações, etc. Em fins de 2016 no município de Araraquara, 59% dos indivíduos cadastrados no sistema são do sexo feminino – a orientação nacional é para cadastrar as mulheres como chefes de família, inclusive – e aproximadamente 31% dos cadastrados tem entre 30 e 59 anos. De toda essa população cadastrada, 49% tem renda per capita entre R$154,01 e R$394,00, 13% tem renda até R$77 – considerados pelo Programa Bolsa Família como famílias em condição de extrema pobreza – e 24% tem renda per capita entre R$77,01 e R$154,00 – considerados pelo PBF como famílias em condição de pobreza17. As famílias compostas por 2 membros, 3 membros e 4 membros são maioria no município, representando 24,3%, 27,7% e 20,2% aproximada e respectivamente do total de famílias cadastradas. Dessa forma, a média de filhos por família presentes no Cadastro Único de Araraquara é 3,1. Dentre os cadastrados, 51% se consideram da cor branca, 39% parda e 10% preta. 98% dessa população habita a zona urbana e quase 100% em lares particulares permanentes. Em resumo, o Cadastro Único permite mapear a parcela mais vulnerável da população de todos os municípios, bem como conceder os benefícios sociais que a ele são vinculados, acompanhar a qualidade dos cadastros, cruzar dados com outras secretarias e ministérios, acompanhar as condicionalidades do Programa Bolsa Família, gerar dados, informações e relatórios, entre diversas outras competências. 17 Dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, 2016. 33 Através do Cadastro Único, o MDS, além de fazer fiscalizações nos cadastros, benefícios, membros, renda, etc., acompanha a qualidade dos preenchimentos, uma vez que existe um índice de descentralização, o chamado Índice de Gestão Descentralizada (IGD)18, através do qual se mede a qualidade dessa descentralização entre os três entes federados, e são repassadas as verbas aos municípios. Quanto maior o IGD, maior o repasse. Essa foi uma medida que ampliou os repasses aos municípios, incentivando, também, um maior e melhor cadastramento das famílias no Cadastro Único através de ações de busca ativa Um dos mecanismos para viabilizar esse objetivo foi a alteração nos repasses de recursos de apoio a municípios e estados para gestão do Programa Bolsa Família e do Cadastro Único, por meio do Índice de Gestão Descentralizada (IGD). Houve, primeiramente, uma forte ampliação do volume de recursos repassados. Mas também houve mudanças na fórmula de cálculo dos repasses, que passou a considerar não somente as famílias beneficiárias do Programa, mas todas aquelas inscritas no Cadastro Único com renda de até meio salário mínimo mensal per capita. Os repasses dos recursos do IGD são feitos por meio do Fundo Nacional de Assistência Social. O Índice mede o despenho dos municípios, estados e do Distrito Federal no alcance dos resultados relativos às atividades de cadastramento e atualização cadastral e de acompanhamento das condicionalidades de saúde e educação do Programa Bolsa Família. O resultado alcançado pelos entes federados determina o montante de recursos a ser transferido mensalmente. (PAIVA et al, 2014, p. 367). Essa parcela de renda transferida aos municípios através do IGD é o que possibilita a aquisição de bens duráveis para os centros de referência e para as secretarias municipais de assistência social. A renda que é repassada aos beneficiários do Bolsa Família, diferentemente, advém das contas da união, ou seja, dos impostos diretos ou indiretos pagos pela população primordialmente. Essa é transmitida à CAIXA que faz os pagamentos de acordo com os benefícios concedidos a cada família conforme o preenchimento do Cadastro Único, também um sistema de responsabilidade da CAIXA. Um baixo IGD pode indicar alguma deficiência no preenchimento de informações, falta de funcionários ou baixo nível de treinamento dos funcionários, falta de infraestrutura adequada, entre outras possíveis deficiências do município, estado ou governo federal. É importante ressaltar que o município tem muita importância no 18 Para o cálculo do IGD, o Sistema de Condicionalidades (SiCon) é de notória importância também, mas isso será tratado mais adiante, quando chegarmos ao acompanhamento das condicionalidades do PBF. 34 funcionamento do programa como um todo, mas cada ente federado tem algumas responsabilidades particulares. Aos municípios cabe a relação entre benefício e beneficiários, realizada pelos CRAS e secretarias municipais de assistência social, o que justifica mais uma vez nosso locus empírico. É ele que gere o PBF a nível municipal, designando um gestor – ou mais – para o programa e responsável pelo Cadastro Único – como no caso de Araraquara. Os CRAS apenas preenchem o caderno verde à mão, enquanto a digitação dos dados no sistema informatizado do Cadastro Único é feita pelo gestor municipal. Além destas responsabilidades, os municípios fazem o acompanhamento das condicionalidades e até alguns bloqueios nos benefícios através de outros dois principais sistemas informatizados: o Sistema de Condicionalidades (SiCon) e o Sistema de Gestão de Benefícios da Caixa (Sibec). É nos municípios que são realizados os cadastros, bem como sua atualização, o acompanhamento das condicionalidades e das dificuldades das famílias que estão em situação de descumprimento, direcionando- as para algum serviço oferecido pelo CRAS, CREAS ou alguma outra instância do município - como as de saúde, por exemplo –, presta-se auxílio geral às famílias e faz-se o atendimento de suas necessidades ou encaminhamentos, como tratado no item 1.1. A busca ativa é um elemento também fundamental dos municípios. Como apontado anteriormente, os educadores sociais – no caso de Araraquara – são os responsáveis por essa função. O propósito da busca ativa consiste em identificar famílias em situação de vulnerabilidade social, territorial e/ou econômica, efetuar seu cadastramento, como no caso de moradores de rua e até quilombolas – estes últimos sobretudo por sua distância física (em muitos casos). Para efetuar esse procedimento, o MDS pode prestar auxílio. Entretanto, os municípios têm autonomia para sua realização. Nos bairros mais afastados das regiões centrais ou outros bairros que possuam CRAS, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de Araraquara efetua mutirões, através dos quais leva-se a estrutura humana, física e tecnológica até uma praça de fácil acesso no bairro e, por esses chamados mutirões, efetua-se o cadastro e o recadastro das famílias. No caso do CRAS do Maria Luiza, os dois educadores sociais fazem visitas a pé ao redor de todo o bairro verificando as condições dos moradores e fazendo alguns acompanhamentos referentes às condicionalidades. Situação que seria inviável em 35 bairros muito grandes, em especial em regiões metropolitanas. Os objetivos das ações de busca ativa no CRAS em questão19 foram primordialmente a identificação de famílias em descumprimento de condicionalidades do PBF (34 casos de 134 no total); seguido de inclusão nos serviços de convivência e fortalecimento de vínculos (25 de 134); identificação de famílias em situação de vulnerabilidade (24 de 134); verificação dos beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC) (22 de 134); e atualização do Cadastro Único (18 de 134). Para a realização dessas ações de busca ativa, 57 consistiram em visitas domiciliares, 56 na disponibilização de listas, entre outras com menor incidência, como telefonemas, envio de correspondências, etc. Os estados da federação são responsáveis pelo fornecimento de infraestrutura para o funcionamento dos CRAS, assim como treinamento de pessoal especializado para atuação nesses espaços, de maneira geral, prestando auxílio também no acompanhamento das frequências escolares através do cruzamento de informações com as escolas estaduais. Já o governo federal, neste caso o MDS principalmente, é responsável pela gestão federal do programa, transferindo verbas à CAIXA para o pagamento dos benefícios, e aos munícipios para o pagamento do IGD. Além disso, cabe o acompanhamento das condicionalidades, que chega ao Ministério através do cruzamento dos dados do Cadastro Único com os das instituições de saúde e educação. O governo federal fornece, de modo geral, todo o apoio e estrutura para o funcionamento do programa em todo o país. 1.3 Transferência direta de renda no Brasil: do Bolsa Escola ao Bolsa Família Muito se discute, sobretudo em debates eleitorais, sobre a paternidade do Programa Bolsa Família. Embasados em Sônia Rocha (2013) tentaremos tratar de maneira breve essa questão, apresentando, em seguida, a estruturação atual do programa, com seus benefícios, valores, limites, condições de recebimento, etc. 19 Todos estes dados foram fornecidos por profissionais do CRAS do Maria Luiza e são referentes ao 2º semestre de 2016. 36 Eduardo Suplicy, em 1991, propõe ao senado uma lei que instituiria o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM)20, projeto esse que tramita na câmara ate 2007 quando é arquivado. Diferentemente, outro projeto que não o de uma renda básica universal como o de Suplicy, é proposto (CAMARGO, 1993 apud ROCHA, 2013). O diferencial era o fato de a transferência ter como foco as famílias com crianças em idade escolar obrigatória – 7 a 14 anos – afinal de contas, garantiria que as crianças frequentassem a escola, uma vez que exigia uma frequência mínima escolar enquanto contrapartida para o recebimento do benefício, e o acesso à educação escolar à época era um ponto crucial a ser trabalhado21. Nesse sentido, a concepção do programa no que se refere à pobreza, ia além da insuficiência de renda, visando a quebra com o ciclo da pobreza através da influência em outras componentes que implicam na sua reprodução. Em Campinas e no Distrito Federal, o Bolsa Escola foi implantado no ano de 1995. No município de Campinas, já havia uma rede assistencial pré-estabelecida ao qual o programa veio a se integrar, diferente do que aconteceu no Distrito Federal, no qual o programa se constituiu enquanto o centro de articulação das políticas assistenciais voltadas à população pobre. A cidade do interior paulista apresentava uma desigualdade de renda muito grande, embora fosse um município rico. O Programa de Garantia de Renda Mínima foi criado, então, em 1995, e atendia às famílias que residiam no município há pelo menos dois anos – como uma forma de não “incentivar” movimentos migratórios – com renda inferior a meio salário mínimo per capita. Assim, transferia quantias variáveis de renda para que as famílias pudessem atingir a quantia de R$35 per capita, o equivalente a meio salário mínimo na época. As famílias, por sua vez, deveriam manter as crianças na escola e fazer o acompanhamento de saúde, além de participar dos grupos socioeducativos, grupos formados por famílias beneficiárias, psicólogos e assistentes 20 Sobre esse projeto ver Rocha (2013). Em 2001 Suplicy faz outro projeto que acabaria por se tornar a lei 10.835 de 8 de janeiro de 2004; lei essa que institui a renda básica incondicional ou a renda de cidadania, como bem aponta Rocha. 21 Questão que deixa de ser tão central já em fins do século passado. Enquanto no início da década de 90 as taxas eram de 88%, em fins dela, eram 95%. O que decerto influenciou na opção do Partido dos Trabalhadores (PT) em manter-se de acordo com a proposta de Suplicy e não restringir a transferência de renda às famílias com crianças em idade escolar obrigatória. 37 sociais que objetivavam mostrar as possíveis formas de melhoria nas condições de vida dessas famílias.22 Quanto ao número de famílias em situação de pobreza, o Distrito Federal superava Campinas. Entretanto, o acesso a serviços básicos estava quase universalizado já em meados da década de 1990. O Programa Bolsa Familiar para a Educação foi criado no início de 1990, pelo então governador Cristovam Buarque23, e tinha como enfoque as famílias pobres com crianças em idade escolar obrigatória. O benefício era de um salário mínimo mensal – valor único – concedido às famílias que garantissem a matrícula escolar dos filhos entre 7 e 14 anos; residisse há cinco anos no Distrito Federal; e tivesse renda per capita inferior a meio salário mínimo. O benefício era concedido por 12 meses, podendo ser renovado por mais 12 meses. Assim como os programas de transferência de renda, como o Bolsa Escola federal e o Programa Bolsa Família, no caso do Distrito Federal, as mulheres – mães – eram as interlocutoras do programa com o governo. A seleção das famílias se dava por um sistema de pontuação calculado a partir de 13 variáveis (ROCHA, 2013), tendo a renda mínima per capita sido aceita até 70% de um salário mínimo. O Bolsa Escola, sendo federalizado em 1997, voltava-se à garantia de renda mínima associado a ações socioeducativas (ROCHA, 2013, p. 47). Entretanto, esta chamada primeira fase do programa autorizava o executivo federal a apoiar financeiramente os municípios mais pobres em cada Unidade da Federação que instituíssem o Bolsa Escola. A implantação seria progressiva. Os municípios operariam o programa quanto à seleção das famílias e garantindo a educação, além de custear 50% do benefício. O público-alvo era o mesmo: famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo, com crianças em idade escolar que, para receber o benefício, deveriam obter 85% de frequência – mas na realidade havia um cálculo que determinava quem seriam os beneficiários a partir do número de filhos e da renda familiar, sobretudo, como aponta Rocha (2013, p. 49). Devido a diversos fatores, como o baixo valor dos benefícios, a baixa adesão dos municípios pelo fato de ter que se encarregar de 50% dos custos dos repasses, além da falta de repasses do governo federal, o fracasso do Bolsa Escola em sua primeira fase – 22 Como aponta Rocha (2013), base de todo esse resgate histórico, até hoje o programa existe dessa forma em Campinas, com a exceção de não existirem mais os Grupos Socioeducativos. 23 À época governador pelo PT. 38 que se encerra em 2000 – estava dado. Dessa forma, o governo relança o programa em 2001 com algumas alterações: a fórmula para cálculo dos benefícios é deixada de lado; o valor dos benefícios agora se torna fixo de R$15 por mês para cada criança e máximo de R$45, ou seja, era limitado a 3 crianças por família; a idade das crianças que se enquadram nos parâmetros do programa também se altera de 7 a 14 anos para 6 a 15 anos; a partir de sua segunda fase, também não era exigida mais a contrapartida dos municípios de modo que a federação fica responsável pelos repasses do benefício; outra alteração foi a de que qualquer município, depois de 2001, poderia aderir ao programa, diferentemente da versão antiga, na qual só os municípios mais pobres dentre os estados poderiam se qualificar. Uma das principais inovações da segunda versão em relação à primeira é que nesta o benefício era entregue em dinheiro às famílias por meio de funcionários das secretarias de educação, o que complicava em muito as transferência, enquanto naquela que passa a existir, cada família recebe um cartão magnético da Caixa Econômica Federal com acesso a uma conta bancária na qual os benefícios são depositados. Entretanto, as melhorias na forma da transferência de renda, no que se refere à educação e ao acompanhamento das frequências escolares, nada modificou, o que deixou este aspecto em segundo plano, embora o acesso escolar não fosse o problema principal, mas sim a qualidade do ensino (ROCHA, 2013). O cadastro dessas famílias também era algo que permanecia deficiente, até a criação do Cadastro Único em 2001. O Bolsa Alimentação, implementado em setembro de 2001, veio para complementar o Bolsa Escola e ampliar a rede de proteção básica através de transferência direta de renda aos pobres. Tinha como público alvo as mulheres gestantes, nutrizes ou crianças até 6 anos de idade. O público-alvo era o mesmo do Bolsa Escola – famílias com renda per capita abaixo de meio salário mínimo – e, focado na saúde, subordinado ao Ministério da Saúde (MS), tinha como contrapartida o acompanhamento do cartão de vacinação, bem como a realização das consultas de pré- natal e de acompanhamento de possíveis doenças. Os valores também eram iguais aos do Bolsa Escola: R$15 por beneficiário, tendo um limite de três benefícios por família, R$45. Um dos programas criados em meados da década de 1990 e que foi o último a ser incorporado ao Programa Bolsa Família, foi o Programa de Erradicação do Trabalho 39 Infantil (PETI). Diferentemente dos demais, seu foco era manter as crianças em idade escolar obrigatória longe do trabalho e frequentando, de fato, as escolas. Transferia, assim, uma quantia variável de R$25 a R$40 por mês para cada criança, e incentivava a jornada ampliada na escola, transferindo uma quantia de renda variável ao município – de acordo com características particulares – para que fossem oferecidas oficinas, reforço escolar, entre outras atividades. A jornada ampliada foi mantida após sua incorporação ao PBF em 2006. O Auxílio-Gás foi um programa também um pouco diferente das duas Bolsas. Igualmente, tinha como foco as famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo, entretanto não havia contrapartidas, era um benefício mais universal, que privilegiava as famílias pobres em geral. Porém, pela dificuldade de mapeamento dessa população, e por não existir uma rede assistencial pré-estabelecida que não a rede escolar (pelo Bolsa Escola) e a rede de saúde (pelo Bolsa Alimentação), o governo optou por pagar este benefício às famílias já beneficiárias pelo Bolsa Escola. Antes de avançarmos historicamente ao governo Lula e às alterações nas políticas de transferência de renda, uma consideração de Rocha: Embora, em 2002, fossem evidentes os problemas quanto à cobertura insuficiente da população-alvo, falta de organização nos mecanismos de controle e superposição dos programas, um aprendizado importante tinha ocorrido desde as tentativas esparsas de introdução do Bolsa Escola no nível local. Vista em retrospectiva, a continuidade de esforços e a correção progressiva dos problemas detectados ao longo do tempo foram fundamentais para o amadurecimento da política focalizada de transferências de renda. (...) Ao final do período de oito anos, a política de transferência não só tinha se federalizado, como de fato cobria todo o país. Estava também devidamente consagrada a colaboração entre governos municipais e governo federal para a operacionalização do programa, assim como estabelecido institucionalmente o Cadastro Único como ferramenta fundamental de gestão das políticas focalizadas nos pobres. O uso do cartão magnético tinha resolvido os problemas ligados à mecânica, e – importantíssimo – ao significado do pagamento mensal em dinheiro às famílias, tornando claro que a concessão da transferência era uma política de Estado, acima e além dos interesses e compromissos políticos locais. (ROCHA, 2013, p. 76). Em 2003, no início do governo Lula (PT), há o lançamento do programa Fome Zero, cujo mote era a segurança alimentar e o fim da fome no país, embora, segundo Rocha (2013), o acesso aos alimentos já não fosse um problema à época, mas sim sua qualidade, o que gerava subnutrição e sobrepeso de forma simultânea. Desse modo, 40 dentre as diversas políticas componentes do Fome Zero, o Cartão Alimentação foi criado nesse contexto enquanto uma política de transferência de renda com características distintas daquelas dos outros programas do período Cardoso. Também apresentava o recorte de renda de meio salário mínimo per capita enquanto marcador da pobreza e da população-alvo. Entretanto visava todos que se enquadrassem nesse parâmetro de renda, sem a necessidade de a família ter filhos entre determinadas idades. Todas as famílias que se enquadrassem nessa condição recebiam R$50, independentemente de quaisquer formatos, tamanhos, existência ou não de filhos, etc. Os impactos imediatos dessa nova política eram visíveis: redução de 8,6% dos pobres e redução da intensidade da pobreza entre os que, mesmo com a transferência, não superaram a renda determinada. Entretanto, devido aos custos altos que as transferências e operacionalizações do programa gerariam, o governo resolveu implantá-lo de forma gradual, privilegiando em um primeiro momento as regiões mais pobres e rurais, de modo que pretendia atender a população-alvo já em 2006. Mas devido a diversas razões, dentre as quais a não existência de uma contrapartida por parte das famílias - como a frequência escolar das crianças -, a dificuldade em gerenciar os antigos programas e agregá-los ao Cartão Alimentação, entre outras, o programa ficou muito aquém de suas metas de cobertura. Além disso, essas diversas falhas deram fôlego às críticas que geraram ainda mais dificuldades para o governo. Dessa forma, o Programa Bolsa Família foi lançado ainda em 2003, em substituição ao Cartão Alimentação. O Bolsa Família pretendia incorporar os programas de transferência de renda já existentes e se diferenciava em alguns aspectos do Cartão Alimentação. Os parâmetros de renda agora eram dois: famílias extremamente pobres são aquelas com renda per capita inferior a R$50; famílias pobres são as com renda per capita entre R$50 e R$100. O que se nota já de imediato é que os valores de corte de renda se desvinculam do salário mínimo que, na época, era de R$240. Assim, as famílias extremamente pobres recebiam um benefício básico de R$50 e um variável de R$15 para cada filho de até 15 anos – limitado a 3 benefícios por família. Já as famílias pobres recebiam apenas os benefícios variáveis relacionados aos filhos, ou seja, mínimo de R$15 e máximo de R$45. 41 Segundo Rocha (2013), por melhorar a focalização e privilegiar as famílias com crianças, como nos outros programas criados na era Cardoso, o PBF tem maior impacto na pobreza extrema, sobretudo nos indigentes das áreas rurais do Norte e Nordeste, embora o Cartão Alimentação tivesse maior impacto na pobreza. Desse modo, grandes dificuldades foram enfrentadas pelo PBF, como a não existência de uma rede assistencial a nível nacional na qual o programa pudesse se ancorar, já que o Bolsa Escola se apoiava nas escolas e secretarias de educação e o Bolsa Alimentação nos postos de saúde e secretarias de saúde; além do fato de as transferências per se não poderem se constituir enquanto solução para a pobreza ou para a extrema pobreza; entre outras dificuldades operacionais, dispêndios federais com as transferência, infraestrutura e pessoal capacitado e o fato de municípios muito pobres terem problemas mais profundos que não apenas os de renda, como questões mínimas de saneamento básico, por exemplo. Diferentemente do Cartão Alimentação, o PBF não previa áreas prioritárias de implementação, de modo que foi implantado logo em todo o país - mas, claro, a população coberta pelo programa foi aumentando ao longo dos anos – e seus impactos já se tornaram evidentes de imediato, tornando-o um sucesso. Hoje, os valores do Bolsa Família foram atualizados, de modo que as famílias que têm renda per capita abaixo de R$77 são as consideradas em extrema pobreza, e as que têm renda per capita entre R$77,01 e R$154 são consideradas em condição de pobreza. Os benefícios pagos pelo programa também foram alterados ao longo do tempo, sendo que hoje existem os seguintes: o benefício básico é pago somente às famílias em condição de extrema pobreza, sendo que atualmente é no valor de R$77; o benefício variável de 0 a 15 anos, constituindo um valor de R$35 por criança; o benefício variável à gestante, também constitui no valor de R$35 pago por 9 meses às grávidas; o benefício variável nutriz, às famílias que apresentem crianças de até 6 meses de idade, transferindo também R$35 por 6 meses às famílias – este último só é pago após o término da gestação. Todos estes chamados benefícios variáveis são limitados a cinco por família (FLORIANO, 2016)24. Com foco nos adolescentes, devido à alta evasão escolar na faixa etária de 16 e 17 anos – como afirmado por Juliana, uma das entrevistadas e funcionária do MDS – foi criado o Benefício Variável Vinculado ao 24 O “desenho institucional” a seguir tem como base o trabalho feito alhures (FLORIANO, 2016). 42 Adolescente, benefício responsável por transferir R$42 às famílias com jovens – este limitado a dois por família. Se ainda assim as famílias não superarem a renda per capita de R$77, existe o Benefício para Superação da Extrema Pobreza, calculado caso a caso. No que se refere à seleção de famílias para recebimento do benefício, não há clareza ao menos para os funcionários da ponta – o banco de dados do governo federal não é acessível aos gestores municipais dos CRAS. A maioria dos CRAS apresentam algum funcionário capacitado – através de treinamento – para efetuar a entrevista com as famílias e o preenchimento manual do caderno verde e, a seguir, a ficha cadastral é enviada ao gestor municipal do Cadastro Único. Por sua vez, o gestor faz o lançamento dos dados no sistema informatizado do Cadastro Único e, mesmo que a família se caracterize enquanto público-alvo do PBF, não há como saber quando ela receberá ou se de fato ela irá receber o benefício. Não há conhecimento desse fator de seleção, nem dos critérios de seleção das famílias beneficiárias por parte de nenhum dos entrevistados nesta pesquisa. Para receberem os benefícios, existem condições herdadas dos programas que aqui foram unificados – as condicionalidades –, atreladas a educação e saúde, como outrora. As crianças de até 15 anos devem ter frequência escolar de, no mínimo, 85%, ao passo que os adolescentes entre 16 e 17 anos devem ter 75% como frequência mínima; quanto à saúde, as gestantes devem fazer as consultas de pré-natal e acompanhar a saúde e a vacinação do bebê, as mulheres até 44 anos também devem estar com seu acompanhamento de saúde em dia; e o Cadastro Único deve ser atualizado a cada dois anos no máximo, mas preferencialmente a cada nova alteração na família, seja ela relacionada a membros, endereço, etc. O Cadastro Único tem banco de dados integrado a diversos outros, como o do INSS, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), averiguando a veracidade das informações por meio do cruzamento de dados. Isto impede que pessoas que recebam outros benefícios, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), do INSS, ou que ocupem cargos eletivos, possam receber este de maneira indevida. Como as condicionalidades estão ligadas a educação e saúde, o MEC e o MS também contribuem para sua fiscalização, enviando relatórios ao MDS de que constam as crianças, mulheres ou famílias em situação de descumprimento. Desse modo, o MDS repassa as informações ao gestor do benefício no município que, por sua vez, repassa aos CRAS responsáveis 43 por essas famílias, cujos agentes devem fazer as visitas domiciliares para averiguar a situação indevida e fazer algum encaminhamento caso necessário, ou devem incluir as famílias no SiCon quando for necessário um acompanhamento mais próximo a cada caso particular por parte dos assistentes sociais e psicólogos dos CRAS. Isso fez com que o número de famílias que saem do programa por descumprimento de condicionalidades caísse de 17.573 em 2012 para 241 em 2015 (PAIVA et al., 2014). Além disso, as situações mais frequentemente identificadas no território de abrangência do CRAS são os descumprimentos de condicionalidades por parte dos beneficiários do PBF, sendo que estes, no Maria Luiza, são todos referentes à condicionalidade de educação, ou seja, apontam para uma baixa frequência por parte dos filhos de famílias beneficiárias. Dessas 34 famílias em descumprimento de condicionalidades – das 98 beneficiárias da região – 100% foram incluídas no acompanhamento PAIF e registradas no SiCon. Além disso, a regra de “retorno garantido” foi criada para proteger as famílias de possíveis instabilidades trabalhistas, de modo que pudessem continuar a receber o benefício por um período limitado desde que atingissem uma renda máxima de meio salário mínimo per capita O “retorno garantido” complementa, dessa forma, outra medida, adotada desde 2009, que procurou assegurar a continuidade do recebimento dos benefícios às famílias que conquistam renda maior do que a renda de elegibilidade. Trata-se da “regra de permanência”, que garante à família beneficiária cerca de dois anos de recebimento de benefícios na hipótese de a renda per capita da família ultrapassar a renda de elegibilidade, até o limite de meio salário mínimo. Essa medida criou garantias de proteção aos beneficiários do Programa frente à instabilidade de seu rendimento enquanto se consolida sua situação de melhoria de renda. De acordo com dados de abril de 2014, 1,27 milhão de famílias do Bolsa Família estavam usufruindo da regra de permanência, das quais 936,5 mil há mais de 6 meses. (PAIVA et al, 2014, p. 372). O acompanhamento dessas condicionalidades de educação é realizado cinco vezes por ano, ou seja, a cada bimestre escolar. Ao fechamento de cada bimestre, as presenças e notas são lançadas no sistema das secretarias e do Ministério da educação e, como apontado, repassadas até retornarem ao CRAS, gerando repercussão desses descumprimentos aproximadamente três meses após sua identificação. Fato que chama atenção é que, no caso do bairro Maria Luiza, todos os descumprimentos de condicionalidades se relacionam à frequência escolar, sendo que não há um sequer que 44 se relacione à saúde. Já as condicionalidades relacionadas à área da saúde são acompanhadas semestralmente, sendo repassadas apenas duas vezes ao ano para os CRAS. Quando a equipe técnica do CRAS recebe estes formulários com as famílias em situação de descumprimento, o(s) educador(es) social(is) fazem a visita domiciliar/busca ativa para averiguar a situação de vulnerabilidade dessas famílias ou elas são convocadas a comparecerem ao CRAS. A equipe do CRAS faz contato com a escola do bairro – a qual a maior parte dos beneficiários frequenta – e verifica a situação de tal ou qual criança/adolescente em específico. Caso a situação de descumprimento tenha sido pontual, como ocorre em muitos casos de a criança faltar à aula e ser tratada com remédios caseiros sem que seja levada ao médico, o que implica na inexistência de atestado médico, a família é orientada sobre os impactos dessa ação afetar no seu benefício. Caso a situação seja mais complexa, como o uso de drogas por parte da criança, adolescente ou responsáveis pelos jovens – situação muito comum no bairro – o gerente do CRAS inclui essa família no SiCon digitando as informações sobre ela e os acompanhamentos que estão sendo feitos pelo CRAS. Dessa forma a família não tem nenhum efeito – “punição” – implicado no benefício. Além desse acompanhamento, existem Instâncias de Controle Social (ICS) instituídas no município para averiguação do Cadastro Único, das estratégias de preenchimento e busca ativa propostas pelo município, para o monitoramento das condicionalidades também. Estas instituições são instaladas no momento em que o município adere ao Cadastro Único e ao Programa Bolsa Família. Sua composição é feita através da paridade entre o poder público e a sociedade civil, tendo seu funcionamento como uma espécie de conselho municipal fiscalizador. Denúncias sobre a irregularidade no pagamento de benefícios também podem ser feitas pela internet ou por um telefone disponível no site do MDS de forma anônima. A já citada busca ativa, através da qual os educadores sociais do CRAS fazem visitas às famílias cadastradas, ou não, tem três objetivos principais: identificar e cadastrar famílias em situação de vulnerabilidade; assim como identificação e cadastro de famílias em vulnerabilidade considerada maior (quilombolas, indígenas, em situação de rua, etc.); e atualização dos cadastros existentes (FLORIANO, 2016). Todas essas 45 medidas de fiscalização em conjunto – dentre outras que podem ser desenvolvidas pelos municípios autonomamente – constituem a Rede Pública de Fiscalização (RPF). Em situações nas quais se comprovem irregularidades repetidas por um período de seis meses, os efeitos no benefício acarretam desde uma advertência até o cancelamento da Bolsa. No primeiro descumprimento, a família é notificada através de uma advertência em seu extrato e no caixa eletrônico do banco. Se o descumprimento ocorrer novamente dentro de seis meses, a família tem seu benefício bloqueado por trinta dias e pode retirá-lo no mês seguinte. Caso novamente seja descumprida alguma condicionalidade, a família tem o benefício bloqueado por sessenta dias e não há a possibilidade de retirá-lo no próximo mês. Se ainda assim houver um novo descumprimento, a família tem seu benefício cancelado. Entretanto cabe salientar que situações de cancelamento são raras e demoram a acontecer. Logo que detectado um descumprimento, o CRAS é acionado – pelos meios já citados – e procura a família em questão. O descumprimento por si só não é tão importante quanto a vulnerabilidade que ele pode maquiar. Dessa forma, as famílias que deixam de seguir alguma condicionalidade são visitadas pela equipe do CRAS de forma que são orientadas a frequentarem os serviços de convivência ou orientadas à rede de saúde, assistência especial – ou qualquer que seja necessária – e é incluída no SiCon, tendo seu benefício protegido de qualquer descumprimento por estar em situação de acompanhamento familiar. 1.4 Os agentes de “dentro” Antes de avançarmos para as situações que aconteceram nas inserções em campo – no grupos – e nas entrevistas com as beneficiárias do PBF, detenhamo-nos um pouco mais sobre os nossos “agentes do Estado”, ou seja, os do lado de “dentro”, que foram as pessoas que nos possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa, o conhecimento dos pormenores do programa, do desenho acima apresentado, e que nos acompanharam no que seguirá no próximo item. Tenhamos em mente que todo este item está baseado nas respostas das entrevistas feitas. 46 Nossa primeira entrevistada – antes mesmo do trabalho de campo – se chama Juliana25. É economista de formação com mestrado em políticas sociais e é funcionária do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome desde 2006, onde desempenha a função de analista em política social – experiência concentrada na área de gestão das condicionalidades do PBF. Segundo ela, o PBF foi concebido como uma estratégia de justaposição: transferência de renda com foco na família, sendo que o público alvo da política já vinha, de certa maneira, determinado pelos programas anteriores – de maneira fragmentada, entretanto, segundo ela. Assim, o Cadastro Único, que já existia, foi aperfeiçoado: no inicio, o PBF pagava R$6 ao município para cada pessoa cadastrada. Assim, o PBF foi criado como o encontro de uma necessidade do Estado de ter uma política de combate à pobreza com a garantia de acesso a serviços básicos – as condicionalidades –, segundo ela. O recorte de renda utilizado na seleção do público alvo se deu através de uma discussão com o Banco Mundial, pensando em uma qu