Elisabete Marin Ribas Arquivo de casal: uma questão de proveniência Marília 2024 Câmpus de Marília 2 Elisabete Marin Ribas Arquivo de casal: uma questão de proveniência Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência da Informação como parte das exigências para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Informação pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Câmpus de Marília. Linha de Pesquisa: Produção e Organização da Informação Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sonia Maria Troitiño Rodriguez Marília 2024 3 Ficha catalográfica: 4 Elisabete Marin Ribas Arquivo de casal : uma questão de proveniência. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Informação pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Câmpus de Marília. Linha de Pesquisa: Produção e Organização da Informação BANCA EXAMINADORA _______________________________ Prof.ª Dr.ª Sonia Maria Troitiño Rodriguez FFC - Unesp-Marília Orientadora _______________________________ Prof.ª Dr.ª Telma Campanha de Carvalho Madio FFC - Unesp-Marília Titular _______________________________ Prof.ª Dr.ª Rubia Martins FFC - Unesp-Marília Titular _______________________________ Prof.ª Dr.ª Patricia Ladeira Penna Macêdo UNIRIO Titular _________________________ Prof. Dr. José Francisco Guelfi Campos UFMG Titular ____________________________ Prof.ª Dr.ª Mariangela Spotti Lopes Fujita FFC - Unesp-Marília Suplente ___________________________ Prof. Dr. Renato de Mattos UFF Suplente ____________________________ Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes IEB-USP Suplente Marília, 02 de abril de 2024. 5 Para Fred, parceiro em todos os momentos da vida. 6 AGRADECIMENTOS Um trabalho como este jamais poderia ser feito de forma solitária. Para sua finalização, eu contei com o apoio de tantas pessoas e instituições, que talvez seriam necessárias mais 200 páginas, apenas para que os agradecimentos fossem devidamente registrados. Ciente de que, infelizmente, nem todos os nomes estarão aqui registrados, ouso elencar aqueles de quem, sem a ajuda direta, esta tese não seria possível. Começo agradecendo a minha mãe, Lurdes Benedita Oste Ribas, e a meu pai, Geraldo Marin Ribas, que abriram mão de tantas coisas, para que eu pudesse estudar. Eles me ensinaram coisas da vida que não estavam na escola e me deram o presente de ser irmã de Luciana Marin Ribas, minha companheira e inspiração, por sua inteligência e integridade. Também agradeço ao meu cunhado, Luiz Casemiro, que sempre me lembra que viver vale a pena. Foi pela minha família que aprendi a acreditar em Deus. Sendo uma pessoa espiritualizada, agradeço a Ele pela força diária e pela dádiva da vida. Aproveito para agradecer às minhas colegas de missão religiosa: Eneida, Luiza, Solange, Cida, Kelly, Angela, Viviane e Juliana, as quais me animaram nos momentos mais difíceis e cobriram minhas ausências, enquanto eu, muitas vezes, usava o final de semana para escrever este trabalho. Contei com o apoio de profissionais de tantas áreas, que cuidavam da minha casa, da minha saúde e bem-estar, das coisas cotidianas da vida, que fazem toda a diferença, quando precisamos nos dedicar a uma empreitada como é a escrita de um doutorado. Agradeço à Maria Aparecida Ferreira de Andrade, profissional exemplar que cuida de tantos aspectos da minha vida, a quem jamais poderei agradecer em palavras; ao Dr. Daniele Riva e às suas secretárias, Cleide Ana de Souza e Kelly Aparecida Mathias Barbosa; ao Dr. Marco Antonio Landgraf de Vasconcelos e suas secretárias, Iracema e Marli; Angela Souza; Renata J. Rigos Alves e Yassussi Nagao. Agradeço, por fim, a todos os profissionais da empresa Use Táxi, os quais me auxiliaram no transporte seguro de minhas inúmeras idas e vindas para trabalhos realizados, em tantos locais de São Paulo e região. Agradeço à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Sonia Maria Troitiño Rodriguez, pelos ensinamentos e pela paciência. Estudar e trabalhar, concomitantemente, não foi fácil, de modo que, sem o apoio dela, assim como de sua compreensão quanto à dificuldade 7 do cumprimento de prazos, não teríamos chegado ao fim. Agradeço de forma especial à sua família, Julio, Beatriz e Miguel, que, de forma generosa, abriram mão da presença e companhia dela, para que ela pudesse me orientar, em tantas noites e finais de semanas. Agradeço ao PPGCI – Unesp, em seu corpo técnico, que, durante e posteriormente à pandemia de COVID-19, não parou por nenhum momento, atendendo a todos os pedidos de documentação necessária, a distância, de forma gentil e eficiente. Também agradeço ao corpo de professores, especialmente àqueles com quem eu pude trabalhar em projetos e acompanhar disciplinas e palestras que tanto contribuíram com a expansão de meus conhecimentos e minha atualização profissional. Fica meu muito obrigada ao professor Carlos Candido de Almeida e à professora Helen de Castro Silva Casarin, atuais coordenadores do Programa, assim como à professora Marta Lígia Pomim Valentim, coordenadora do programa no meu ingresso. Certamente, muito da excelência do programa, devemos aos coordenadores, professores e área técnica do PPGCI-Unesp. À professora Maria Leandra Bizello e à minha orientadora, Sonia Maria Troitiño Rodriguez, pela disciplina Arquivo, memória e informação: uma abordagem epistemológica; às professoras Luana Maia Woida, Tamara de Souza Brandão Guaraldo e Maria Eugênia Porém, pela disciplina Informação e Comunicação na gestão organizacional para a diversidade: sentidos, discursos e práticas sociais; à professora Marcia Cristina de Carvalho Pazin Vitoriano, pela disciplina Gestão da informação orgânica: a abordagem informacional dos documentos de arquivo; aos professores Carlos Francisco Bitencourt Jorge e Marta Lígia Pomim Valentim, pela disciplina Gestão da inteligência e do conhecimento em organizações competitivas e inovadoras; aos professores Mariângela Spotti Lopes Fujita e Isidoro Gil-Leiva, pela disciplina Tópicos Especiais: Indexação e representação em sistemas de informação. De programas vinculados à USP, agradeço aos professores Lucia Maciel Barbosa de Oliveira e André Vieira de Freitas Araújo, pela disciplina Dinâmicas Culturais Contemporâneas. E à professora e amiga Inês Gouveia, pela disciplina Patrimônio Cultural, Lutas e Movimentos Sociais, e por tudo o mais que nos aventuramos juntas. Agradeço, ainda em relação à Unesp, ao corpo técnico da área de internacionalização, pela atenção, apoio e gentileza e à Dr.ª Flávia Bastos, pela excelência na gestão do sistema de bibliotecas e repositórios de referência da Unesp. 8 Agradeço aos colegas do Programa: Maria Blassioli Moraes, Antonio Gouveia de Sousa, Noemi Andreza Penha, Wilson Veronez, Rodrigo Fukuhara, Gisele Sanches, Jean Marcel Caum Camoleze, Fábio Robal, Heloá Cristina Camargo de Oliveira e Richele Vignoli. Agradeço à Banca do Exame de Qualificação, composta pelas professoras Tânia de Luca e Patricia Ladeira Penna Macêdo, pelas sugestões e incentivo. Também agradeço à Banca de Defesa, composta pelas professoras Patricia Ladeira Penna Macêdo, Telma Campanha de Carvalho Madio, Rubia Martins e pelo professor José Francisco Guelfi Campos. Agradeço aos colegas e coordenadores dos grupos de pesquisa dos quais fiz parte: "Acervos: dimensões do documento, da memória e do patrimônio" (PPGCI - Unesp); “Patrimônios Culturais, Museus e Direitos Humanos” (IEB-USP) e “Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação – GMEPAE” (ECA-USP). De forma especial, agradeço aos professores Nílson José Machado e Marisa Ortega, coordenadores do SEED – FE-USP, primeiro grupo no qual tive a boa experiência de trocas e partilhas pessoais e científicas. Agradeço ao Professor Alexandre Pacheco da Silva, da FGV, e à pesquisadora Tatiane Guimarães, pelas oportunidades de aprendizado e diálogo junto aos dilemas dos direitos autorais e tantos outros direitos conexos. Agradeço aos colegas das redes colaborativas nas quais eu atuo, mas de que, em muitos momentos, precisei me afastar: REDARQ-SP e Rede Arquivos de Mulheres (RAM). Agradeço à USP, pela formação na graduação, especialização e mestrado. De modo especial, agradeço à Prof.ª Dr.ª Sandra Nitrini e à Prof.ª Dr.ª Johanna Wilhelmina Smit, pelas orientações das etapas anteriores ao doutorado. Também agradeço à Prof.ª Dr.ª Maria Angela Borges Salvadori, pela inspiração, ainda nas carteiras de minha formação no antigo curso técnico do magistério. Por ela, agradeço a todos os professores que tive! Agradeço à FFCL-Unesp, câmpus de Marília, duplamente: foi aqui, no acervo da Biblioteca, que eu encontrei parte importante do corpus de estudo do meu mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada, na época dedicado à análise das aulas de História da Arte do escritor e professor Osman Lins. Agora, como aluna do PPGCI, finalizo a etapa do meu doutoramento. 9 Agradeço ao professor e amigo, Alexandre Antoniazzi, pela amizade, apoio emocional e pelas aulas de italiano, preparatórias para minha volta aos estudos. E às professoras Mónica Garcia e Isabel Gomes, pelas aulas de espanhol e pelo encorajamento generoso! Agradeço ao corpo docente do IEB e aos colegas do Instituto, em especial do Arquivo do IEB, que me apoiaram durante os quatro anos de meus estudos. De maneira especial, Juliana Frutuoso Vieira, por tantos auxílios que não seriam possíveis elencar; Paulo José de Moura, pela digitalização de documentos que me auxiliaram na análise da tese; Valéria Valente, por aceitar assumir o Atendimento à Pesquisa do Arquivo do IEB, sem o qual a finalização desta tese não seria possível. Por fim, às minhas duas chefes, durante esse período: Denise de Almeida Silva e Dina Elisabete Uliana, pessoas e profissionais com cujo apoio incondicional contei. Sem o auxílio a generosidade delas, este trabalho não teria se tornado uma realidade. Agradeço aos bolsistas e estagiários de todos os projetos da USP, com os quais tive o privilégio de atuar, aprender e, sobretudo, me recarregar da energia de sua juventude. De forma especial, agradeço aos meus estagiários diretos que estiveram comigo, nos últimos intensos quatro anos: Guilherme Lassabia de Godoy, Beatriz de Jesus Correa, Tatiane Sayuri Ogawa e Letícia Cescon da Rosa. Obrigada por correrem ao meu lado, me apoiarem e segurarem minha mão, em tantos momentos difíceis! Um dia vocês foram meus estagiários; hoje, com muita honra, são meus colegas de profissão! Agradeço aos professores, funcionários e alunos da BYU – EUA, em especial ao professor Rex, o qual sempre me encorajou em minha pesquisa e me possibilitou conhecer de perto a estrutura da Family Search, em Utah. Agradeço aos amigos e parceiros de aventuras, na organização de arquivos: Luciana Amaral, Marlene Laky, Thais Bayer, Flávio Mariano, Viviane Morais Mariano, Alessandra Barbosa, Milton Vedoato Filho, Luísa Valentini, Elizama Almeida de Oliveira, Joana Barros e Luis Ludmer. Agradeço à SBPSP, pela confiança e apoio, especialmente aos meus coordenadores, Regina Lacorte Gianesi, Yone Vitorello Castelo, Cassio Rotenberg, Carmen C. Mion e Bernardo Tanis. Também agradeço aos colegas Irene Pereira, Maria do Carmo, Marcos Paulo Ribeiro dos Santos, Fernanda Ferreira e Diógenes Gomes dos Santos. Agradeço à Casa do Povo, nas pessoas de Paula Salles, Marcela Amaral e Benjamin Seroussi, e aos queridos colegas Alice Bispo e Gabe Fernandes. 10 Agradeço à Casa Sueli Carneiro, nas pessoas de Ionara Lourenço e Bianca Santana. Agradeço ao Itaú Cultural, nas pessoas de Tania Rodrigues, Fernando Oliveira Fernandes, Ícaro Santos Mello, Sofia Fan, Claudinei Ferreira, Carmen Cristina F. Luccas, Andréia de Fátima Briene, Guilherme Gonçalves Miranda Silva, Luciana Modé e Jader Rosa. Agradeço aos professores e pesquisadores que me ajudaram com suas leituras, sugestões e palavras de apoio: Aracy Amaral, Marina Mazze Cerchiaro, Max Luiz Gimenes, Christiano Key Tambascia, Ívina Flores Melo, Samanta Pereira da Paixão, Vanessa Martins do Monte, Phablo Facchin, Priscila Rosa Martins, Silvana Ramos, Livia Beatriz Almeida Pacito, Marcos Antonio de Moraes, Mariana Diniz Mendes, Alexandre de Freitas Barbosa, Antonio Dimas, Ana Paula Cavalcanti Simioni, Maria de Lourdes Eleutério, Marcos Galindo Lima, Daniele Chaves Amado, Carolina Gonçalves Alves e Adelina Maria Alves Novaes e Cruz. Agradeço, de forma especial, à Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Duarte Lanna, pela confiança, incentivo, amizade e oportunidades. Agradeço a todos aqueles que atuaram para que o acervo do IEB fosse a riqueza que ele é hoje. De modo especial: Prof.ª Dr.ª Telê Ancona Lopes, Prof.ª Dr.ª Flávia Toni, Prof.ª Dr.ª Marta Rossetti Baptista, Prof.ª Dr.ª Yedda Dias Lima, Prof. Dr. Antonio Candido, Prof.ª Dr.ª Gilda de Mello e Souza, Prof. Dr. Sérgio Buarque de Holanda, Maria Cecília Ferraz de Castro Cardoso, Rosemarie Erika Hoch e Maria Inês Bento. Agradeço a todas as famílias doadoras dos acervos do IEB, especialmente àquelas que cederam tempo e direitos autorais para a produção e desenvolvimento desta pesquisa. De forma especial, sou grata à Lina Chamie, pois foi graças à doação do acervo de seus pais ao IEB, da sua confiança em nosso trabalho e de conversas generosas que pudemos ter, que a ideia desta tese surgiu. Registro, de maneira especial e com grande pesar, que, na escrita deste trabalho, perdemos Heloísa Liberalli Bellotto e Ana Maria de Almeida Camargo. Sem elas, as reflexões aqui não existiriam. Por fim, agradeço e dedico esta tese a Frederico Antonio Camillo Camargo, meu marido, meu amigo e meu parceiro de vida e de trabalho. Ao meu lado, em nosso dia a dia, dividimos nosso amor pelo patrimônio cultural e pelo conhecimento. Sem seu apoio incondicional, este trabalho, assim como tantos outros, não seriam possíveis. 11 No Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas. Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente? Ailton Krenak (2019, p.18-19) 12 RESUMO Esta tese busca refletir sobre um possível novo conceito para a Arquivologia, a ser nomeado arquivo de casal, termo que integraria o escopo dos chamados arquivos privados. O reconhecimento do problema se deu por meio do contato com os acervos pessoais de intelectuais do Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB- USP), composto atualmente pelos arquivos dos seguintes casais: Aracy de Carvalho Guimarães Rosa e João Guimarães Rosa; Julieta de Godoy Ladeira e Osman Lins; Lídia Besouchet e Newton Freitas; Emilie Chamie e Mário Chamie; Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido. Até o presente, o tratamento documental aplicado a esses conjuntos se deu de forma individualizada; entretanto, o trabalho técnico cotidiano de organização do acervo para abertura à pesquisa pública sempre evidencia intersecções entre os fundos. A formulação do conceito de arquivo de casal resultaria na ampliação da teoria da Arquivologia e, consequentemente, originaria nova prática de tratamento documental a ser aplicado a arquivos de titulares que firmaram parcerias em várias convergências da vida, abrindo-se espaço para a criação e classificação de um novo tipo de fundo, o qual passaria a ser nomeado a partir do nome de ambos os titulares da documentação e conceituado como arquivo de casal. Para tal, o principal eixo norteador dessa proposta de análise estará baseado nos princípios da proveniência, ordem original, respeito aos fundos, organicidade e integridade ou indivisibilidade arquivística. Além da reflexão, delimitação e caracterização do conceito arquivo de casal, realizou-se revisão de literatura que abarcou a revisitação de conceitos consolidados na área. Dessa forma, foram reexaminados os princípios arquivísticos previamente citados, além de certos termos, como: (i) arquivos privados; (ii) arquivos pessoais e (iii) arquivos de família. Com base na recapitulação de tais conceitos, buscou-se identificar os fundamentos que caracterizam o arquivo de casal. Por fim, foram aplicados os métodos de identificação documental e análise dos dados institucionais de incorporação e instrumentos de pesquisa dos fundos sob a custódia do IEB-USP, bem como a contextualização histórica da instituição de guarda. Palavras-chave: arquivo de casal; arquivo pessoal; arquivo de família, arquivo privado; princípios arquivísticos. 13 ABSTRACT This thesis seeks to reflect on a possible new concept for Archivology, to be named couples archive, term that would integrate the scope of the so-called private archives. The recognition of the problem arises from the contact with personal collections of intellectuals at the Archive of Instituto de Estudos Brasileiros da USP (Institute of Brazilian Studies at USP/IEB-USP), which currently comprises the following couples archives: Aracy de Carvalho Guimarães Rosa and João Guimarães Rosa; Julieta de Godoy Ladeira and Osman Lins; Lídia Besouchet and Newton Freitas; Emilie Chamie and Mário Chamie; Gilda de Mello e Souza and Antonio Candido. Up to now, the archival treatment applied to those collections has been carried out on an individual basis; however, the daily technical work of organizing collections for public research always reveals intersections between the fonds. Formulating the concept of couples archive would lead to the expansion of the theory of Archivology and, consequently, originate a new practice for archival treatment to be applied to archives of individuals that have established partnerships in several life convergences, creating space for the development and classification of a new type of fonds, which would be now named after both individuals, thus conceptualized as couples archive. To this end, the main guiding axis of this analytical proposal is based on the principles of provenance, original order, respect des fonds, organicity, and archival integrity or indivisibility. Besides theorizing, delimiting, and characterizing the couples archive concept, we have conducted a literature review which revisited consolidated concepts in the field. In this manner, we have gone over the aforementioned archival principles, as well as certain terms such as: (i) private archives; (ii) personal archives and (iii) family archives. Based on the reassessment of those concepts, we sought to identify the fundaments that characterize a couples archive. Lastly, we have employed the methods of documentary identification and analysis of institutional data of acquisition and research tools of fonds under the custody of IEB-USP, as well as the historical contextualization of the archival institution. Keywords: couples archive; personal archive; family archive; private archive; archival principles. 14 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 – Tela de referência de website da Torre do Tombo, com entrada de pesquisa para Fundos e Coleções que compõem o acervo. Destaque para a entrada “Pessoas Singulares”..................................................................................................................................... 70 Figura 02 – Tela de referência da área de pesquisa designada como “Pessoas Singulares”..................................................................................................................................... 71 Figura 03 – Tela de referência da área de pesquisa designada como “Research by Topic”. Destaque para a entrada “People”.................................................................................................. 74 Figura 04 – Tela de referência da área de pesquisa designada como “Women.” Destaque para a entrada “Notable Women”........................................................................................................... 75 Figura 05 – Página dedicada a Madeleine Albright, Secretária de Estado nomeada pela gestão Clinton............................................................................................................................................ 76 Figura 06 – Página descritiva da “Abraham Lincoln Papers”, no website da “Library of Congress”...................................................................................................................................... 77 Figura 07 – Tela de referência à área designada como “Genealogia e História Local” do website da “Torre do Tombo”, em Portugal.................................................................................................. 92 Figura 08 – Tela de referência à área designada como “Genealogia” do website da “Torre do Tombo”, em Portugal...................................................................................................................... 92 Figura 09 – Detalhe da tela de referência à área designada como “Genealogia”, voltada ao público jovem, do website da “Torre do Tombo”, em Portugal.......................................................................................................................................... 93 Figura 10 – Detalhe da tela de referência à área que trará potenciais fundos e coleções para a elaboração de genealogias, do website da “Torre do Tombo”, em Portugal.......................................................................................................................................... 94 Figura 11 – Tela do Arquivo Nacional dos EUA, onde se veem coleções doadas, das quais destacamos um exemplo de documentação familiar...................................................................... 103 Figura 12 – Tela principal do website do “National Archives”, dos EUA. Destaque para a entrada “Genealogists” ............................................................................................................................... 104 Figura 13 – Tela de referência à área designada como “Resourches for Genealogists”, do website do “National Archives”, dos EUA ....................................................................................... 105 Figura 14 – Exemplo de nota explicativa deixada por Antonio Candido, onde se lê: “Peça esboçada por Gilda / (A.C.)”........................................................................................................... 122 Figura 15 – Exemplo de nota explicativa deixada por Julieta de Godoy Ladeira, onde se lê: “Cartas de escritores e ensaistas. Há cartas de Esdras do Nascimento e de Lygia F. Telles”............................................................................................................................................ 122 Figura 16 – Caderno de João Guimarães Rosa presente no Fundo Aracy de Carvalho Guimarães Rosa............................................................................................................................ 128 https://www.archives.gov/research/genealogy/ 15 Figura 17 – Exemplo de nota explicativa deixada por Julieta de Godoy Ladeira, onde se lê: “Amiga de OL no tempo de Paris, da Aliança Francesa” ................................................................ 133 Figura 18 – Carta de Celso Ferreira, enviada ao casal de amigos Lídia Besouchet e Newton Freitas ........................................................................................................................................... 142 Figura 19 – Caderno de estudos de Antonio Candido, com anotações de Gilda............................ 152 Figura 20 – Caderno de estudos presente no Fundo Antonio Candido, com anotações e desenhos atribuídos a Gilda .......................................................................................................... 154 Figura 21 – Texto “Os deuses malditos”, em que Gilda e Antonio Candido compõem juntos ....................................................................................................................................................... 156 Figura 22 – Estilização de arquivo de casal, considerando dois fundos individualizados.............................................................................................................................. 163 Figura 23 – Estilização de arquivo de casal, considerado como um único fundo, a partir da soma de dois fundos................................................................................................................................ 163 Figura 24 – Estilização de arquivo de casal, com intersecção entre dois fundos, de modo a criar um novo fundo................................................................................................................................ 164 Figura 25 – Estilização de arquivo de casal, como novo fundo a ser criado, considerando o fluxo de produção documental – reflexão avançada............................................................................... 165 Figura 26 – Aplicação de proposta de identificação de arquivo de casal, a partir de exemplo retirado do acervo do Arquivo IEB-USP......................................................................................... 167 16 LISTA DE QUADROS Quadro 01 – Definições do princípio da proveniência, presentes nas principais obras de referência, no Brasil............................................................................................................................................... 33-34 Quadro 02 – Variações do princípio da proveniência: definições do princípio à ordem original, presentes em obras de referência, no Brasil........................................................................................ 35-36 Quadro 03 – Variações do princípio da proveniência: definições do princípio do respeito aos fundos, presentes em obras de referência, no Brasil........................................................................................ 36-37 Quadro 04 – Definições de organicidade, presentes nas principais obras de referência do Brasil.................................................................................................................................................... 45-46 Quadro 05 – Definições de indivisibilidade e/ou integridade arquivística presentes nas principais obras de referência, no Brasil............................................................................................................... 49-51 Quadro 06 – Princípios que orientam quanto ao arranjo de “papéis privados”, segundo Schellenberg........................................................................................................................................ 60-61 Quadro 07 – Levantamento da presença e identificação do termo arquivos privados, tendo como base o histórico do desenvolvimento da Arquivologia, partindo do manual de José Jamón Cruz Mundet (1994)...................................................................................................................................... 61-63 Quadro 08 – Definições do conceito de arquivo privado, presentes nas principais obras de referência, no Brasil............................................................................................................................. 64-65 Quadro 09 – Paralelo entre o conceito de arquivo privado e arquivo de família, no Brasil, a partir de Dicionário brasileiro de terminologia arquivística (2005)...................................................................... 84 Quadro 10 – Fundos e coleções documentais da Torre do Tombo, sugeridos para genealogistas................................................................................................................ ....................... 94 Quadro 11 – Lista de arquivos de família, disponíveis para pesquisa na Torre do Tombo................... 95 Quadro 12 – Paralelo entre eixos e diretrizes da política de acervos do IEB-USP............................... 116-117 Quadro 13 – Identificação de arquivos de casais presentes no acervo do IEB – USP.......................... 120-121 Quadro 14 – Definição de arquivo de casal, a partir da definição de arquivo pessoal.......................... 171-172 17 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 01 – Cronologia de cartas trocadas durante o processo de doação do acervo pessoal de Osman Lins junto ao IEB, coordenado por Julieta de Godoy Ladeira................................................... 135 18 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABL – Academia Brasileira de Letras AEL – Arquivo Edgard Leuenroth AEM – Arquivo dos Escritores Mineiros AN – Arquivo Nacional APESP – Arquivo Público do Estado de São Paulo ARQ-SP – Associação de Arquivistas do Estado de São Paulo BBM – Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin CEDAE – Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio” CEDAP – Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa CEDEM – Centro de Documentação e Memória CONARQ – Conselho Nacional de Arquivo CPDOC-FGV – Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas FFCL – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz ICA – International Councilon Archives IEB – Instituto de Estudos Brasileiros iFHC – Instituto Fernando Henrique Cardoso IMS – Instituto Moreira Salles NARA – National Archives and Records Administration RAM – Rede Arquivos de Mulheres SAA – Society of American Archivists UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais UNESP – Universidade Estadual Paulista UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas USP – Universidade de São Paulo 19 Sumário 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 21 1.1 Identificação do problema de pesquisa, hipóteses e objetivos ........ 22 1.2 Justificativa da pesquisa.................................................................. 23 1.3 Metodologia da pesquisa................................................................. 27 2 REVISITANDO OS PRINCÍPIOS ARQUIVÍSTICOS.......................................... 30 1.1 Princípio da proveniência, ordem original e respeito aos fundos .... 33 1.2 Princípio da organicidade ................................................................ 45 1.3 Princípio da indivisibilidade ou integridade arquivística ................... 49 3 ARQUIVOS PRIVADOS, PESSOAIS E DE FAMÍLIA: QUESTÕES TERMINOLÓGICAS................................................................................................. 56 3.1 Arquivos privados: uma definição .................................................... 56 3.2 Arquivos pessoais: uma definição ................................................... 66 3.3 Arquivos de família: uma definição .................................................. 83 3.3.1 O caso do Brasil .......................................................................... 83 3.3.2 Os arquivos de família na perspectiva ibérica ............................. 88 3.3.3 Os arquivos de família nos EUA .................................................. 99 4 ESTUDO DE CASO – IEB USP ...................................................................... 107 4.1 Contextualização da instituição de guarda – o IEB-USP ............... 107 4.2 O Serviço de Arquivo do IEB-USP ................................................ 110 4.3 A política de acervos do IEB ......................................................... 114 4.4 Arquivos de casais no Arquivo do IEB-USP .................................. 120 4.4.1 Aracy de Carvalho e João Guimarães Rosa .............................. 124 4.4.2 Julieta de Godoy Ladeira e Osman Lins .................................... 129 4.4.3 Lídia Besouchet e Newton Freitas ............................................. 138 4.4.4 Emilie Chamie e Mário Chamie ................................................. 145 4.4.5 Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido ............................... 149 5 ARQUIVOS DE CASAIS ................................................................................. 159 5.1 Arquivo de casal: por uma definição ............................................. 160 5.2 Arquivo de casal: características ................................................... 173 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 178 20 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 183 APÊNDICES .......................................................................................................... 198 Apêndice A – Arquivos de casais: identificação de casos para além do IEB-USP ............................................................................................................................ 198 Apêndice B – Mapeamento de casais no Brasil, que detêm/detiveram parcerias na vida e no trabalho ................................................................................................ 221 Apêndice C – Mapeamento de casais no exterior, que detêm/detiveram parcerias na vida e no trabalho ........................................................................................... 225 Apêndice D - Mapeamento de casais que, no andamento da pesquisa, se separaram ........................................................................................................... 228 21 1 INTRODUÇÃO Desde o final da década de 1960, os arquivos privados vêm recebendo maior atenção em estudos da Arquivologia e alimentado investigações em outras áreas, como História, Literatura, Antropologia, Artes, Filosofia, Educação, Economia etc., como apontam Angela de Castro Gomes (2012), Paulo Roberto Elian dos Santos (2012a) e Patricia Ladeira Penna Macêdo (2018). Paralelamente, também é perceptível um crescimento nos volumes de recolhimento e guarda desses arquivos, em instituições originalmente concebidas para esse tipo de atividade ou em espaços inicialmente dedicados ao tratamento de arquivos públicos que expandiram seu escopo de atuação para a recepção dos chamados arquivos privados de interesse público. Cada vez mais, é possível rastrear a incorporação de arquivos dessa natureza, em várias entidades, inclusive em grandes instituições oficiais do país, entre as quais destacamos o Arquivo Nacional (AN)1 e o Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), nos quais a função primária é a recepção de arquivos administrativos de caráter público. Estudos de Renato Crivelli Duarte e Maria Leandra Bizello (2018, 2021), Ana Beatriz Colombo e Sonia Maria Troitiño Rodriguez (2019, 2021), bem como a reflexões de Fernando Henrique Cardoso (2005) nos auxiliam no levantamento desses dados. O interesse aumentado, a ampliação de locais de recepção e guarda e o processamento técnico dessa natureza de arquivo suscitam, portanto, a percepção de características específicas desses conjuntos. Com isso, impõem-se novos problemas para o tratamento documental e a necessidade de formulação e adoção de estratégias mais adequadas para o entendimento e o processamento desses materiais, na sua especificidade, tendo como base, eventualmente, uma teoria arquivística ligeiramente estendida ou adaptada para esse fim. Um desses problemas, na nossa visão, é alcançar uma melhor caracterização e aprimorar o tratamento documental do que aqui será conceituado como arquivo de casal. 1 A exemplo disso, ressalta-se que, em 2021 foi lançado o Centro de Referência de Acervos Presidenciais. Arquivo Nacional. Disponível em: https://www.gov.br/arquivonacional/pt- br/canais_atendimento/imprensa/copy_of_noticias/novo-portal-reune-acervos-dos-presidentes-da- republica. Acesso em: 07 out. 2023. 22 1.1 Identificação do problema de pesquisa, hipóteses e objetivos O problema-base desta pesquisa provém diretamente do trabalho prático diário de organização simultânea de fundos de pessoas que foram casadas entre si. Nesses processos, irrompeu reiteradamente uma mesma questão: a atribuição previamente realizada2 de um documento a um dos fundos, quando ele claramente tem relação com funções realizadas conjuntamente pelos cônjuges ou com contextos de que ambos participaram, é de fato legítima e devemos aceitá-la passivamente? Ou, ao contrário, é preciso superar essa divisão esquemática, inflexível e, muitas vezes, arbitrária, de maneira a incrementar a significação informacional dos documentos? Esta tese, portanto, propõe uma reflexão sobre a necessidade e a possibilidade de criação de um novo conceito – arquivo de casal –, motivada pelas seguintes indagações: 1. Constituiria o arquivo de casal um conjunto único de documentos de mesma origem, o qual, durante o procedimento padrão de institucionalização de arquivos pessoais ou no momento do processamento técnico, teria sido indevidamente desmembrado, mesmo tendo sido construído conjuntamente, no decorrer da vida doméstica de seus titulares e das operações de guarda associadas? 2. Um arquivo de casal separado em dois fundos pessoais individualizados daria origem a perdas informacionais e interferiria no desenvolvimento de pesquisas que teriam tais acervos como fonte? 3. Seria o arquivo de casal, na verdade, um espaço de interseção entre os fundos pessoais dos cônjuges? 4. Como realizar o tratamento documental de um arquivo de casal, de modo a sanar os problemas identificados, respeitando-se princípios como o da proveniência, ordem original, respeito aos fundos, organicidade e indivisibilidade ou integridade arquivística? 2 Em geral, os acervos incorporados em instituições de custódia já estão delimitados em termos de titularidade. No caso dos casais, quando um cônjuge sobrevive ao outro, prioritariamente, é ele quem efetua as separações. Familiares ou terceiros de confiança também podem assumir esse papel. Tais especificidades serão trabalhadas ao longo de nossa investigação, tendo como principal aporte os estudos de Aguinagalde (1991, 2013), Bellotto (2006) e Schellenberg (2006). 23 Diante de tais questões, desponta um problema prático a ser resolvido, cuja solução, supomos, passa pela consideração de proposta a ser amparada em um conceito formulado à luz da teoria arquivística e que poderá promover significativos avanços junto aos arquivos privados. Isso será feito. Tendo-se como prioridade o apoio junto ao princípio da proveniência. Nosso objetivo é ampliar a teoria pela introdução de uma possível nova categoria atinente aos arquivos privados, a qual chamaremos de arquivo de casal. Se a criação do conceito for efetivamente validada, ele estará localizado no mesmo nível dos arquivos de família e dos arquivos de pessoas. Neste trabalho, pretendemos identificá-lo como conceito a ser reconhecido, discutir e delimitar suas características e explorá-lo, a partir de corpus selecionado junto ao Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), configurando, assim, um estudo de caso. Isso posto, passaremos a justificar a pertinência da pesquisa, sua colaboração para a Arquivologia e possível impacto na área. 1.2 Justificativa da pesquisa Por reconhecer que os arquivos estão a serviço da sociedade na qual estão inseridos e manter-se ciente do intenso dinamismo pelo qual as sociedades passam, a Arquivologia, ciência dedicada aos estudos dos arquivos e de seus documentos, é constantemente impelida a acompanhar tais mudanças. Segundo José Ramon Cruz Mundet, [...] podemos conceptuar la archivística como una ciencia emergente. Es ciencia por cuanto posee un objeto, los archivos en su doble consideración: los fondos documentales y su entorno; posee, además, un método, compuesto por un conjunto de principios teóricos y procedimientos prácticos, cuya evolución constante la perfilan con mayor nitidez día a día. Y un fin: hacer recuperable la información documental para su uso (Cruz Mundet, 1994, p. 64).3 3 Em livre tradução: “[...] podemos conceituar a arquivística como uma ciência emergente. É ciência, porque tem um objeto, os arquivos, na sua dupla consideração: os acervos documentais e seu ambiente; possui também um método, composto por um conjunto de princípios teóricos e procedimentos práticos, cuja constante evolução o delineia com maior clareza dia a dia. E um objetivo: tornar a informação documental recuperável para seu uso” (Cruz Mundet, 1994, p. 64). 24 Neste século XXI, verificamos uma aceleração na dinamicidade social e, consequentemente, a imposição de novos desafios a serem enfrentados pela Arquivologia. O sociólogo espanhol Manuel Castells (1999, p. 39) aponta que “[u]ma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação começou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado” e classifica nossa sociedade como uma sociedade em rede. Nas palavras de Castells, os avanços tecnológicos e a informação estão intimamente ligados ou, melhor dizendo, interconectados, e são peças-chave dessa vitalidade social. Aldo Barreto (2003), pioneiro da Ciência da Informação, no Brasil, apresenta nossa era sob o nome de sociedade da informação, reconhecendo que nessa nomenclatura se encontra a consideração de um “[...] espaço em que se torna universal o acesso aos conteúdos de informação dos estoques de documentos, para todos os habitantes de uma realidade” (Barreto, 2003, s.p.). Em outras palavras, além do dinamismo e da tecnologia presentes nas reflexões de Castells, importa, para Barreto, a questão do acesso e da representação informacional associada aos interesses do usuário dessa informação, sendo esse um sujeito social ativo. Voltando um pouco no tempo, na década de 1950, Theodore R. Schellenberg (2006) já abordava os desafios a serem enfrentados pelos arquivos e arquivistas modernos. Ele contextualiza seu conceito, no tempo e na história, quando enfatiza que [n]ão se deve ser aceita uma definição que não corresponda à realidade. Uma definição que tenha surgido da observação de material da Idade Média não poderá atender às necessidades dos arquivistas que trabalham principalmente com documentos modernos (Schellenberg, 2006, p. 40). Em suma: quando a sociedade muda, a Arquivologia deve acompanhá-la e, com isso, surge a necessidade de ampliação de termos, conceitos, definições e caracterizações, considerando-se os arquivos e seus documentos. Também por essa razão, vimos colocar em exame a proposta de criação do conceito de arquivo de casal, o qual, até então, não existe na teoria arquivística, mas cuja existência pode ser legitimada por novas experiências de trabalho com a organização de arquivos pessoais, encontrando ainda correspondência em áreas afins. Na Biblioteconomia, área irmã da Arquivologia, não é rara a atribuição de dupla titularidade, representada por um casal, a uma coleção de livros. No Brasil, um 25 exemplo disso é a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin4 (BBM), hoje sob a guarda da Universidade de São Paulo (USP). Noutro âmbito, o Instituto Moreira Salles (IMS) guarda gravuras, desenhos e aquarelas do século XVI ao XIX pertencentes à Coleção Martha e Erico Stickel5. Entretanto, é sabido que parte dos manuais de Arquivologia leva em conta que, devido à questão da seleção, as coleções possuem caráter artificial, que nada mais é do que a delimitação daquilo que será incorporado, a partir de um tema ou de interesses curatoriais institucionais ou pessoais, enquanto os fundos teriam caráter natural ou orgânico (Schellenberg, 2006, p. 270). Acreditamos que vale pararmos por um minuto e nos debruçarmos sobre esses conceitos. Bellotto (2006, p. 128-129), recapitulará o conceito de fundo junto a manuais e autores franceses, holandeses, espanhóis, ingleses e norte-americanos, e resumirá: Admite-se como fundo o conjunto de documentos produzidos e/ou acumulados por determinada entidade pública ou privada, pessoa ou família, no exercício de suas funções e atividades, guardando entre si relações orgânicas, e que são preservados como prova ou testemunho legal e/ou cultural, não devendo ser mesclados a documentos de outro conjunto, gerado por outras instituições, mesmo que este, por quaisquer razões, lhe seja afim (Bellotto, 2006, p. 128). A autora apontará o fundo como conjunto documental que caracteriza a composição de arquivos como espaço de guarda, e traçará paralelo comparativo com outras instituições, como bibliotecas, museus e centros de documentação: As entradas paulatinas, entendidas como desenvolvimento de coleção, acabam constituindo, no caso da biblioteca, do museu e do centro de documentação, uma reunião artificial dos mais variados tipos. Já o arquivo, por suas próprias coordenadas de definição, é uma reunião orgânica: seu acervo faz-se natural e cumulativamente (Bellotto, 2006, p. 40). A dicotomia fundo e coleção, nem sempre tão simples de ser delimitada nos arquivos, suscita estudos até os dias de hoje. Exemplo disso está em Fukuhara e Troitiño (2022), que nos auxilia em nossa reflexão: 4 Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Disponível em: https://www.bbm.usp.br/pt- br/hist%C3%B3ria/. Acesso em: 07 out. 2023. 5 Disponível em: https://ims.com.br/titular-colecao/martha-e-erico-stickel/. Acesso em 13 jan. 2024. A Biblioteca do IEB-USP é depositária da coleção de livros do casal, também identificada por ambos os nomes. Disponível em: https://www.ieb.usp.br/martha-e-erico-stickel/. Acesso em: 13 jan. 2024. https://www.bbm.usp.br/pt-br/hist%C3%B3ria/ https://www.bbm.usp.br/pt-br/hist%C3%B3ria/ https://ims.com.br/titular-colecao/martha-e-erico-stickel/ https://www.ieb.usp.br/martha-e-erico-stickel/ 26 Não obstante, na comunidade arquivística, a dualidade entre fundo/arquivo e coleção tem sido constante, um debate contínuo que persiste desde pelo menos o surgimento do respect des fonds, no século XIX. Se na Biblioteconomia o termo coleção costuma ter uma conotação positiva, na Arquivologia, por vezes, a coleção é vista como algo menor, “[...] material impuro ou de segunda classe” (KIESLING, 2004 apud YEO, 2012, p. 50, tradução nossa). Sir Hilary Jenkinson (1980) afirma que todo arquivo é um conjunto de documentos, mas nem todo conjunto de documentos é um arquivo; com isso está claramente sinalizando para a diferença entre arquivo e coleção. A forma natural de acumulação dos documentos é apontada pelo autor como a qualidade essencial para distinguir o arquivo dos conjuntos de registros colecionados (JENKINSON,1980). Seria da competência do arquivista, assim, discernir o joio do trigo, a coleção do fundo (Fukuhara; Troitiño, 2022, p. 3-4). Dessa forma, observa-se que os fundos são agrupamentos documentais próprios e intrinsecamente ligados aos arquivos e à teoria arquivística: sua natureza está diretamente associada à Arquivologia. Embora as coleções estejam presentes em arquivos, por seu caráter seletivo e, em alguns casos, temático, ela se distancia da natureza arquivística. Essa breve explanação sobre a classificação de acervos documentais será aprofundada adiante, contudo, é apresentada aqui, pois visa a introduzir como a Arquivologia tratou essas questões até os dias de hoje, indicando que uma eventual ampliação dessas conceituações pode vir a ser útil para contemplar situações em que a produção e a acumulação de documentos, de maneira orgânica, envolva duas pessoas relacionadas por um vínculo afetivo, criativo e/ou legalmente reconhecido. A identificação de uma nova categoria social a ser considerada junto à Arquivologia – os casais – vem sustentar uma necessidade de alargamento conceitual que veja além da configuração do conjunto individual, como é o caso do conceito de arquivo pessoal, e de uma categoria supostamente coletiva, como é o de arquivo de família. Como este último é muito atrelado às casas reais e à manutenção de poder, na Europa, é preciso que a Arquivologia repense, por exemplo, como as especificidades do casamento, na contemporaneidade, têm influência no processo de produção e acumulação documental, tendo em vista, inclusive, que eventos como separações e mortes podem desestabilizar novamente a configuração dos arquivos com tais especificidades. Estudos dedicados a configurações familiares e ao estabelecimento de relacionamentos, no Brasil, de Thales de Azevedo (1961, 1980), auxiliam nossa reflexão, posto que versam sobre parcerias conjugais permeadas socialmente pela religião e manutenção de poderio financeiro e de status social, que vão do namoro ao casamento. 27 As novas configurações de agrupamentos sociais, a dinamicidade informacional pela qual passamos e os desafios tecnológicos sempre atualizados, conforme apresentam Castells (1999), Barreto (2003) e Schellenberg (2006), são questões que precisam ser constantemente avaliadas e revisitadas pela Arquivologia. O que a presente tese almeja é, em função da proposta de reflexão fundamentada na definição de arquivo de casal, ampliar as discussões e promover a revisão de conceitos, de modo que a área esteja, assim como os arquivos, cada vez mais próxima da sociedade a qual ela, como ciência, deve servir. 1.3 Metodologia da pesquisa Trabalhar na identificação de um possível novo conceito – por nós denominado arquivo de casal – exigiu que mais de um método de pesquisa fosse empregado. Primeiramente, fez-se necessária uma revisão de literatura que, tendo como escopo dicionários, glossários, vocabulários, enciclopédias e manuais da área de Arquivologia, propiciasse localizar o termo arquivo de casal. Como ele não foi encontrado em nenhuma das fontes selecionadas, procedeu-se ao mapeamento de termos a ele ligados, com base em análise comparativa da teoria e da prática de tratamento documental adotadas nas seguintes correntes arquivísticas: (i) Espanha e Portugal; (ii) Estados Unidos da América e (iii) Brasil. A partir de levantamento exploratório não exaustivo, focado nas similaridades e diferenças que distinguem o processamento de arquivos privados em cada um dos países supracitados, foram revistos os princípios arquivísticos, inicialmente considerando os princípios da proveniência, ordem original e de respeito aos fundos, ampliando-se a recapitulação, em um segundo momento, para os princípios da organicidade e da indivisibilidade ou integridade arquivística. É importante destacar a existência de várias vertentes e escolas, como a canadense, a australiana, a francesa, a holandesa, a italiana e a alemã, entre outras. Utilizaremos, para nossa argumentação teórica, as escolas brasileira, norte- americana e ibérica – portuguesa e espanhola –, sendo as duas últimas devido às proximidades históricas, que se refletem, por exemplo, nas semelhanças burocráticas e, consequentemente, de produção documental, muitas delas decorrentes da 28 colonização brasileira por parte de Portugal, e da Espanha, na América Latina. Em alguns temas pontuais, em função da relevância de estudos e estudiosos, lançou-se mão de nomes de referência para a Arquivologia para além das escolas definidas como bases, sendo que, nesses casos, o desvio metodológico foi devidamente apontado e justificado. Também se levaram em conta proximidades linguísticas, especialmente entre a língua portuguesa e a espanhola. Essa discussão está desenvolvida no capítulo “Revisitando os princípios arquivísticos”. Ainda no processo de revisão, foi possível apreender que, para além da categoria genérica arquivos privados, era necessário valer-se de algumas subcategorias, tais como os arquivos pessoais ou de pessoas e os arquivos de família ou familiares. A recapitulação de tais conceitos está elaborada no capítulo “Arquivos privados, pessoais e de família: questões terminológicas”, e seguiu o mesmo recorte metodológico que o capítulo anterior, dedicado aos princípios arquivísticos. Passamos ao estudo de caso que se propôs problematizar as características levantadas a partir da teoria revisitada, no escopo de dez arquivos pessoais que compõem o Serviço de Arquivo do IEB-USP, os quais constituem cinco conjuntos que poderiam ser interpretados como arquivos de casais: (1) Aracy de Carvalho Guimarães Rosa e João Guimarães Rosa; (2) Julieta de Godoy Ladeira e Osman Lins; (3) Lídia Besouchet e Newton Freitas; (4) Emilie Chamie e Mário Chamie; (5) Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido. Esses acervos foram, ao longo dos anos, efetivamente organizados de forma individualizada. Entretanto, a repetida constatação da existência de interconexões entre os fundos6 pertencentes a cônjuges, bem como a ocorrência de produção e acumulação documental conjunta dão abertura à possibilidade de visualizarmos, para cada vínculo matrimonial, um único fundo a ser categorizado como um arquivo de casal, passível de ser tratado e consultado como uma massa oriunda de uma única proveniência. Nesse momento, além da análise e caracterização dos conjuntos, aplicou-se o método de análise documental sobre os processos administrativos da USP concernentes aos acervos mencionados, tendo especial atenção aos protocolos de incorporação dos dez fundos. Também se lançou mão de instrumentos de pesquisa e de informações 6 Vale ressaltar que nosso estudo se restringe a arquivos de casais. Entretanto, é fato que outros tipos de fundos, mesmo de entidades diferentes, sempre mantêm interconexões entre si, com possibilidades de inúmeras ramificações. Por isso, mais uma vez, chama-se a atenção para a aplicação da teoria arquivística. 29 retiradas do site oficial do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Os dados obtidos poderão ser encontrados no capítulo “Estudo de caso – IEB- USP”. A ausência do termo arquivo de casal nos levou a balizá-lo e caracterizá-lo, de modo a delimitá-lo e apresentá-lo como um possível novo conceito a ser adotado na Arquivologia, junto aos arquivos privados. Nesse ponto, foram selecionados e apontados os principais atributos que o qualificam como um arquivo de casal, levando- se em conta sua gestão, produção e tipos documentais, estando em guarda doméstica e/ ou institucionalizada. Toda a reflexão estará concentrada no capítulo “Arquivos de Casais”. De sorte a demonstrar a existência de arquivos de casais e o potencial impacto desta pesquisa para além do recorte de análise de dados circunscrito no IEB7, de maneira exploratória e não exaustiva, exemplos de arquivos de casais foram levantados em várias instituições oficiais de guarda de acervos, tendo como recorte geográfico os Estados Unidos, Portugal e Brasil, recorte este que dialoga com nossa base teórica e metodológica. Os acervos encontrados gerariam arquivos de casais, conforme nosso estudo aponta. Parte deles estará na seção “Apêndice A – Arquivo de casais: identificação de casos para além do IEB-USP”. Para esse fim, foram considerados acervos institucionalizados e nossa reflexão parte de dados coletados on-line, com base em seus sites com informações biográficas dos titulares, históricos dos acervos e instrumentos de pesquisa. Os demais mapeamentos realizados estarão em “Apêndices B, C e D”. 7 As informações que foram coletadas e não compõem os capítulos de nossa pesquisa estão estruturadas em “Apêndices” e serão disponibilizadas, pois tivemos por objetivo apontar acervos com perfil semelhante aos aqui estudados, como forma de estimular futuras pesquisas e reflexões na área. O mapeamento traz exemplos nacionais e internacionais, em guarda institucionalizada ou em guarda doméstica, de casais de titulares vivos e já falecidos. Além disso, durante o desenvolvimento da tese, houve casais que eram observados e que, no decorrer dos quatro anos de trabalho, se separaram, mas seguiram identificados e apontados, tendo em vista que esse movimento é caro à reflexão sobre a gestão dos arquivos de casais e deve ser considerado como dado. 30 2 REVISITANDO OS PRINCÍPIOS ARQUIVÍSTICOS Partindo da constatação de que “[...] arquivos pessoais são arquivos” (Camargo, 2009, p. 27), a presente tese buscará, neste capítulo, balizar a sua argumentação, em função dos princípios arquivísticos, os quais, segundo Heloísa Liberalli Bellotto (2006, p. 88), “[...] estão na base da teoria arquivística e constituem o marco principal da diferença entre a arquivística e as outras ‘ciências’ documentárias”. Iremos nos apoiar inicialmente no chamado princípio da proveniência, considerado por grande parte dos estudiosos – como, por exemplo, Maria Paz Martín-Pozuelo Campillos (1996), Bellotto (2006), José Ramon Cruz Mundet (1994, 2011, 2012), Antonia Heredia Herrera (2013)8 –, como o princípio a partir do qual todos os demais derivam e se sustentam. Além dele, outros princípios que acreditamos orientar nosso trabalho serão revisitados, sendo eles o da ordem original, o de respeito aos fundos, o da organicidade e o da indivisibilidade ou integridade arquivística. Mesmo buscando pautar a nossa reflexão acerca dos arquivos de casais a partir de conceituações arquivísticas consolidadas, é importante destacar, de modo antecipado, que não existe um pleno consenso na terminologia arquivística. Conforme assevera Martín-Pozuelo Campillos (1996, p. 19, tradução nossa), “[...] a escassa normalização terminológica segue sendo um dos problemas fundamentais da Arquivologia”9. Entretanto, o que poderia ser uma deficiência da área, ao nosso olhar, reflete a importância do desenvolvimento de novos estudos, tendo como ponto de partida as palavras de Cruz Mundet, para quem a Arquivologia é “[...] uma ciência em formação e seu estudo, por consequência, deve estar sujeito a critérios intelectuais, racionais e científicos”10 (1994, p. 17, tradução nossa). Ainda assim, os princípios arquivísticos, do ponto em que estamos hoje, constituem um pilar incontornável para amparar a reflexão sobre o conceito em discussão. É vasta a lista de autores que consideram os princípios arquivísticos como fundamentos de toda a Arquivologia e a diferenciam como ciência. Trabalhos teóricos 8 Fora de nosso recorte metodológico de análise, destacamos os trabalhos de Duranti (2015), pesquisadora italiana, que hoje atua no Canadá. 9 Do original: “[...] la escasa normalización terminológica sigue siendo uno de los problemas fundamentales de la Archivística” (Martín-Pozuelo Campillos,1996, p. 19). 10 Do original: “[...] una ciencia en formación y su estudio, por consiguiente, debe estar sujeto a criterios intelectuales, racionales, científicos” (Cruz Mundet, 1994, p. 17). 31 e práticos, os quais envolvam a reflexão e a organização de arquivos e seus documentos, não devem ser realizados sem terem, como horizonte, tais princípios como basilares. Algumas autoras, como Troitiño (2023), têm se dedicado a eles, e são pelas palavras dela que iniciamos nossa reflexão: Do ponto de vista epistemológico, os princípios arquivísticos fazem parte do arcabouço teórico e sintetizam o conhecimento basilar próprio da ciência que lhes compete, a Arquivologia. Proporcionam identidade à ciência dos arquivos, na medida em que estipulam os fundamentos necessários para o desenvolvimento de método próprio, os quais, em conjunção com procedimentos específicos, viabilizam a prática e a produção de conhecimento arquivístico (Troitiño, 2023, p. 40). Ela completará sua argumentação, ao nos lembrar que [t]odo princípio arquivístico fundamental deriva de uma ou mais características inerentes ao documento de arquivo, remetendo ao respeito (preservação) de seus elementos essenciais. Objetiva, assim, a manutenção dos traços identitários dos registros, ao longo da trajetória custodial e diante das intervenções realizadas sobre os fundos e seus documentos (Troitiño, 2023, p. 42). Dessa forma, nosso trabalho atuará, à luz da Arquivologia, por meio de seus princípios e conceitos, como os de fundo e de documento, tendo como foco sua aplicação junto aos arquivos pessoais. Santos (2012a), em diálogo com Ana Maria Camargo, já realçava o desafio do emprego dos princípios arquivísticos junto aos arquivos pessoais: Para Camargo (1988; 1998) as dificuldades de aplicação dos princípios fundamentais da arquivística revela-se de forma especial na questão dos arquivos pessoais que oferecem uma variedade de peculiaridades que nos obrigam a rever princípios e conceitos. Para a autora, são três os pontos mais controvertidos: 1º a recontextualização dos documentos opera pelo próprio titular do arquivo ou por seus sucessores; 2º a própria constituição do universo coberto pelo arquivo que, nesse caso, envolve além daquelas ações que o vinculam às instituições sociais, outras “juridicamente irrelevantes”, cujas regras e formas são menos visíveis, como “relações de amizade e amor, opções intelectuais, obsessões e tantas outras”; 3º a inexistência de parâmetros normativos transforma o trabalho de classificação e descrição num esforço em que o levantamento de áreas de ação, funções e atividades como categorias classificatórias dos documentos é, simultaneamente, a construção de uma biografia (Santos, 2012a, p. 56). 32 Vemos que, no caso do arquivo de casal, o segundo ponto nos remete a características dos vínculos estabelecidos pelos titulares, os quais podem ser legalmente reconhecidos (ou não) e são permeados por “[...] relações de amizade e amor” (Santos, 2012a, p. 56) (ou não). E, apesar das citadas “peculiaridades” presentes nos arquivos pessoais, concordamos com Macêdo (2018), quando a autora pergunta: […] será que esses conjuntos documentais, que apresentam características de produção e acumulação expressas na necessidade individual, são tão diferentes assim dos conjuntos orgânicos provenientes das instituições públicas e/ou privadas, que não seja possível utilizar, na sua organização, os mesmos princípios? (Macêdo, 2018, p. 12-13). Nossa proposta é a de que, sim, isso é possível11. E, estando a problemática dos arquivos de casais centrada no reconhecimento destes, com base em dois conjuntos individuais, seja como um único conjunto resultante de uma soma simples, seja como um novo conjunto, fruto de uma parceria estabelecida após o vínculo do casamento, adotaremos inicialmente, como linha condutora, a revisitação do princípio da proveniência, alertando que, muitas vezes, o princípio do respeito à ordem original e o princípio de respeito aos fundos são tomados como sinônimos ou se imiscuem entre si. Por isso, eles serão apresentados conjuntamente, a partir da seção a seguir. Ressaltamos que, durante o presente capítulo, em alguns momentos, exemplos pontuais e questionamentos serão evidenciados como recurso reflexivo, tendo em vista a revisão dos princípios e sua aplicação, quanto ao que iremos considerar como um arquivo de casal. Contudo, a aplicabilidade e considerações de tais princípios junto a um arquivo de casal serão mais bem examinadas no capítulo “Arquivos de casais”, de modo a demonstrar, de forma pormenorizada, nossa tese. Será também nesse capítulo que nosso estudo se aprofundará na representação de casais, em nossa sociedade. Somos cientes das múltiplas possibilidades de configuração, representação e oficialização dessa parceria e, apesar de, em muitos momentos, o termo ser apresentado como sinônimo do vínculo matrimonial, reconhecemos e respeitamos sua pluralidade. 11 Neste ponto, é importante frisar que certas obras, como Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais, de Ana Maria de Almeida Camargo e Silvana Goulart (2007), e Arquivos pessoais: histórias, preservação e memória da ciência, organizado por Maria Celina Soares de Mello e Silva e Paulo Roberto Elian dos Santos (2012b), trazem exemplos de trabalhos que procuram aplicar técnicas de organização de arquivos pessoais à luz da teoria arquivística. 33 1.1 Princípio da proveniência, ordem original e respeito aos fundos O princípio da proveniência é considerado como conceito fundamental para a Arquivologia. Diversos autores, como Martín-Pozuelo Campillos (1996), Bellotto (2006), Cruz Mundet (1994, 2012), Heredia Herrera (2013) e Troitiño (2023)12, assim o conceituam. Iniciamos nossa reflexão pelo mapeamento de conceitos, levando em conta os seguintes dicionários brasileiros: Quadro 01 – Definições do princípio da proveniência presente nas principais obras de referência, no Brasil Autores Definição Obra de origem Ano de publicaçã o Associação dos Arquivistas Brasileiros; CENADEM. Princípio de proveniência: Princípio segundo o qual os arquivos (1) originários de uma instituição ou de uma pessoa não devem ser misturados aos de origem diversa. Termos equivalentes: principle of provenance, respect des fonds (I); principe du respect des fonds, principe de provenance (F); princípio de procedência, respect des fonds (E). (p. 85, grifos dos autores) Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística: contribuição para o estabelecimento de uma terminologia arquivística em língua portuguesa 1990 Associação dos Arquivistas Brasileiros – Núcleo Regional de São Paulo/Secretaria de Estado da Cultura – Departamento de Museus e Arquivos Princípio de proveniência: Princípio segundo o qual os arquivos (1) originários de uma instituição ou de uma pessoa devem manter sua individualidade, não sendo misturados aos de origem diversa. Termos equivalentes: principle of provenance, principle of “respect des fonds” (I); principe de provenance, respect des fonds, (F); princípio de Dicionário de Terminologia Arquivística 1996, 2012 12 Novamente, faz-se necessário apontar os estudos de Duranti (2015). 34 Autores Definição Obra de origem Ano de publicaçã o procedência (E). (p. 61, grifos dos autores) Gildenir Carolino Santos; Célia Maria Ribeiro - Não apresenta o conceito - Acrônimos, siglas e termos técnicos: arquivística, biblioteconomia, documentação, informática 2003 Arquivo Nacional (Brasil) Princípio da proveniência Princípio básico da arquivologia segundo o qual o arquivo (1) produzido por uma entidade coletiva, pessoa ou família não deve ser misturado aos de outras entidades produtoras. Também chamado princípio do respeito aos fundos (p. 136) Dicionário brasileiro de terminologia arquivística 2005 Murilo Bastos da Cunha; Cordélia Robalinho de Oliveira Cavalcanti Princípio da proveniência principle of provenance, respect des fonds ARQ. Princípio arquivístico fundamental, segundo o qual os documentos ou os arquivos originários de uma instituição, de uma corporação, de uma família ou de uma pessoa não devem ser incorporados a documentos ou arquivos de outras procedências; inclui, às vezes, o princípio do respeito à ordem original; princípio do respeito aos fundos, respeito aos fundos = integridade dos fundos, princípio do respeito à estrutura arquivística, princípio do respeito à ordem original, proveniência, proveniência territorial (p. 291) Dicionário de biblioteconomia e arquivologia 2008 Fonte: Elaborado pela autora. O Quadro 01 sintetiza as várias definições encontradas no vocabulário oficial da arquivística brasileira, que se mostra mais adepta ao termo princípio da proveniência e, apesar das variações conceituais, nos parece que tem decantado e mais bem estruturado o conceito, com o passar do tempo. Em Arquivo Nacional (2005) 35 e Cunha e Cavalcanti (2008), utilizam-se termos como “básico” e “fundamental”, os quais reforçam nossa argumentação. Os dicionários de 1990, 1996 e 2012 trazem semelhanças, devido a serem uma mesma publicação atualizada, ao longo das diferentes edições. Em todos os verbetes mapeados, acham-se, junto ao princípio da proveniência, os princípios da ordem original e/ou de respeito aos fundos, muitas vezes tomados como sinônimos. Por isso, eles serão apresentados nos Quadros 02 e 03. Quadro 02 – Variações do princípio da proveniência: definições do princípio da ordem original presentes em obras de referência, no Brasil Autores Definição Dicionário de origem Ano de publicação Associação dos Arquivistas Brasileiros; CENADEM. Princípio do respeito à ordem original: Princípio segundo o qual os arquivos (1) devem conservar a ordenação estabelecida no órgão de origem. Termos equivalentes: registry principle, principle of respect for original order (I); principe du respect de l´ordre primitif (F); princípio de procedência (E). (p. 85, grifos dos autores) Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística: contribuição para o estabelecimento de uma terminologia arquivística em língua portuguesa 1990 Associação dos Arquivistas Brasileiros – Núcleo Regional de São Paulo/Secretaria de Estado da Cultura – Departamento de Museus e Arquivos Princípio do respeito à ordem original: Princípio que, levando em conta as relações estruturais e funcionais que presidem a gênese dos arquivos (1), garante sua organicidade. Termos equivalentes: principle of respect for original order, registry principle (I); principe du respect de l´ordre primitif (F); principio de respeto al orden original (E); princípio de respeito pela ordem original (P). (p. 61-62, grifos dos autores) Dicionário de Terminologia Arquivística 1996 Gildenir Carolino Santos; Célia Maria Ribeiro Princípio do respeito à ordem original - Não apresenta o conceito - Acrônimos, siglas e termos técnicos: arquivística, biblioteconomia, 2003 36 Autores Definição Dicionário de origem Ano de publicação documentação, informática Arquivo Nacional (Brasil) Princípio do respeito à ordem original Princípio segundo o qual o arquivo(1) deveria conservar o arranjo dado pela entidade coletiva, pessoa ou família que o produziu. (p.137) Dicionário brasileiro de terminologia arquivística 2005 Murilo Bastos da Cunha; Cordélia Robalinho de Oliveira Cavalcanti Princípio do respeito à ordem original Original order, principle of respect for original order, principle of sancity of the original order, registry principle, restoration of the original order, sancity of the original order. ARQ princípio arquivístico fundamental, segundo o qual os arquivos que procedem, isto é, que provêm de uma mesma origem, devem manter o mesmo arranjo (ou ordenação) estabelecido pelo órgão de origem; princípio de reconstituição da ordem original, restabelecimento da ordem original = integridade dos fundos, princípio da proveniência, princípio do respeito à estrutura arquivística. (p. 291) Dicionário de biblioteconomia e arquivologia 2008 Fonte: Elaborado pela autora. Quadro 03 – Variações do princípio da proveniência: definições do princípio de respeito aos fundos, presentes em obras de referência, no Brasil Autores Definição Dicionário de origem Ano de publicaçã o Associação dos Arquivistas Brasileiros; CENADEM. Princípio do respeito aos fundos: Ver: princípio da proveniência. (p. 85, grifos dos autores) Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística: contribuição para o estabelecimento 1990 37 Autores Definição Dicionário de origem Ano de publicaçã o de uma terminologia arquivística em língua portuguesa Associação dos Arquivistas Brasileiros – Núcleo Regional de São Paulo/Secretaria de Estado da Cultura – Departamento de Museus e Arquivos Princípio do respeito aos fundos: Ver: princípio da proveniência. (p. 61, grifos dos autores) Dicionário de Terminologia Arquivística 1996 Gildenir Carolino Santos; Célia Maria Ribeiro Princípio do respeito aos fundos - Não apresenta o conceito - Acrônimos, siglas e termos técnicos: arquivística, biblioteconomia, documentação, informática 2003 Arquivo Nacional (Brasil) Princípio do respeito aos fundos - ver princípio da proveniência. (p. 137) Dicionário brasileiro de terminologia arquivística 2005 Murilo Bastos da Cunha; Cordélia Robalinho de Oliveira Cavalcanti Princípio do respeito aos fundos - Não apresenta o conceito - Dicionário de biblioteconomia e arquivologia 2008 Fonte: Elaborado pela autora. O Quadro 02 mostra que, no Brasil, de maneira predominante, o princípio da ordem original apresenta-se como subsidiário ao princípio da proveniência, enquanto o Quadro 03 trata o princípio de respeito aos fundos praticamente como um sinônimo. Em outras palavras, segundo os dados demonstram, o princípio de respeito aos fundos, diretamente ligado à tradição arquivística francesa de respect des fonds, é o menos adotado no Brasil13. Vê-se, junto aos dicionários brasileiros, que as entradas do termo são registradas, mas é feita uma remissiva para o princípio da proveniência. Essa característica também será percebida por Francisco Alcides Cougo Júnior 13 Registra-se, novamente, uma problemática identificada a partir das traduções, que não será aqui longamente trabalhada, porém, existe e deve ser considerada. 38 (2018), o qual destacará sua importância, ao mesmo tempo que identifica seu uso, em sinonímia com o princípio da proveniência: O princípio de respeito aos fundos é o mais básico preceito arquivístico, um dos poucos aceitos e enunciados quase que universalmente. Legitimado pelo campo arquivístico através de forte presença prática e teórica, o conceito é também um dos pilares do ensino e da pesquisa em Arquivologia. Sua consolidação terminológica pode ser expressa em certa unanimidade conceitual que o perfaz como o mais sólido substrato teórico do conhecimento na área, imediatamente acima de todos os demais preceitos conceituais e regramentos metodológicos existentes. Em linhas gerais, ele pode ser definido como sinônimo do princípio da proveniência [...]. (Cougo Junior, 2018, p. 343). Macêdo (2018) já assinala o que aqui é enfocado em mais de um momento, em seu estudo dedicado à aplicação do princípio da ordem original aos arquivos pessoais. A autora salienta: Destacamos também a dificuldade da área em separar o princípio de respeito à ordem original dos princípios de proveniência e de respeito aos fundos (Macêdo, 2018, p. 19). E: O próprio princípio de respeito à ordem original [...] em muitos trabalhos de referência não é reconhecido como um princípio autônomo. A formulação deste como um subprincípio ou parte de outro princípio arquivístico é comum para alguns autores (Macêdo, 2018, p. 23). Para fins de comparação com outra linha terminológica, Cruz Mundet (2011), em seu Diccionario de Archivística, considerará apenas dois princípios, sendo o de proveniência14 e o da ordem original: Principio de procedencia (ing. Principle of provenance; fr. Respect des fonds; al. Provenienzprinzip, Fondsprinzip; pt. Princípio de procedencia; cat. Principi de provinença; eus. Jatorriarenprintzipio; gal. Principio de procedencia) m. (Del fr. Respect des fonds) Principio fundamental de la Archivística enunciado por el archivero e historiador francés Natalis de Wally, jefe de la sección administrativa de los Archivos Departamentales del Ministerio del Interior, en la circular de 24 de abril de 1981 titulada: Instructions pour la mise en ordre et le classement des archives departamentales et comunales. En dicho texto se enunciaba la noción de fondo de archivo, consistente en “reunir los documentos por fondos, es decir, reunir todos los documentos que provienen de un cuerpo, de un establecimiento, de una familia o de un 14 É oportuno lembrar que, em espanhol, a tradução de proveniência será “procedencia”. 39 individuo, y arreglar estos fondos con sujeción a un orden determinado… Los documentos que apenas se relacionan con un establecimiento, un cuerpo o una familia, no deben mezclarse con el fondo de ese establecimiento, de ese cuerpo, de esa familia”. Un poco más tarde el autor aclararía que “la clasificación general por fondos es la única verdaderamente apropiada para asegurar el pronto cumplimiento de un orden regular y uniforme… Si en vez de este método, del cual pude decir que se funda en la naturaleza de las cosas, se propone un orden teórico… los archivos caerán en un desorden difícil de remediar. En cualquier clasificación distinta de ésta se corre el grave riesgo de no saber dónde se encuentra un documento”. De este modo nacía el principio de procedencia o respeto de los fondos, el primer fundamento teórico de la Archivística que dará lugar al periodo de pleno desarrollo o mayoría de edad. En esencia consiste en respetar el origen de los fondos, es decir, en mantener agrupados, sin mezclarlos con otros, los documentos de cualquier naturaleza procedentes de una entidad, ya sea una administración pública, privada, una persona, familia…, respetando la estructura o clasificación propria de dicha entidad (Cruz Mundet, 2011, p 289- 290, grifos nossos).15 Principio de respeto al orden original (ing. Principle of respect for original order; fr. Respect de l´ordre primitif; al. Registraturprinzip; pt. Princípio de proveniencia/respeito pela orden original; cat. Principi de respecte a l´ordre original; eus. Jatorrizkoordenarenerrespetokoprintzipio; ga. Prinzipio de respecto á orde orixinal) (Del al. Registraturprinzip) m. Principio de la Archivistica, complementario del de procedencia, enunciado por H. von Seybel, director de los Archivos del Estado de Prusia, partiendo de los planteamientos de su coetáneo en 1881: Regulativefür die ornungsarbeitenimgehermen Staatsarchiv, enunció nuevo principio: el registraturprinzip.En esencia dispone que los documentos de cada fondo deben mantenerse en el orden que leshubiera dado la oficina de origen u organismo productor. Así nace el denominado principio de respeto al orden original de los documentos, que indica el necesario respeto al que se ha dado enorigen a los documentos. Este principio permite conservar las relaciones existentes y la relevancia probatoria que se puede deducir del contexto de los documentos (Cruz Mundet, 2011, p 290-291, grifos nossos).16 15 Em livre tradução: Princípio de proveniência (ing. Principle of provenance; fr. Respect des fonds; al. Provenienzprinzip, fondsprinzip; pt. Princípio de procedencia; cat. Principi de provinença; eus. Jatorriaren printzipio; gal. Principio de procedencia) m. (Del fr. Respect des fonds) Princípio fundamental da Arquivística enunciado pelo arquivista e historiador francês Natalis de Wally, chefe da seção administrativa do Arquivo Departamental do Ministério do Interior, na circular de 24 de abril de 1981, intitulada: Instruções para a ordem e a classificação dos arquivos departamentais e comunitários. Nesse texto, foi enunciada a noção de fundo arquivístico, que consiste em “reunir documentos por fundos, ou seja, reunir todos os documentos provenientes de um órgão, de um estabelecimento, de uma família ou de um indivíduo, e organizar esses fundos sob uma determinada ordem… Documentos que apenas se relacionam a um estabelecimento, um órgão ou uma família, não devem ser misturados com o fundo desse estabelecimento, desse órgão, dessa família”. Posteriormente, o autor elucidaria que “a classificação geral por fundos é a única verdadeiramente adequada para garantir o pronto cumprimento de uma ordem regular e uniforme... Se em vez deste método – o qual, pode-se dizer, é baseado na natureza das coisas – propõe-se uma ordem teórica... os arquivos cairão numa desordem difícil de remediar. Em qualquer classificação diferente dessa existe um sério risco de não saber onde se encontra um documento”. Nascia, assim, o princípio da proveniência ou respeito aos fundos, o primeiro fundamento teórico da Arquivística, que dará origem ao período de pleno desenvolvimento ou maioridade. Sua essência consiste em respeitar a origem dos fundos, ou seja, guardar documentos de qualquer natureza de uma entidade, seja uma administração pública, uma administração privada, uma pessoa, uma família…, respeitando a estrutura ou classificação própria da referida entidade. 16 Em livre tradução: Princípio de respeito à ordem original (ing. Principle of respect for original order; fr. Respect de l´ordre primitif; al. Registraturprinzip; pt. Princípio de proveniencia/respeito pela orden 40 No dicionário do autor espanhol, vemos novamente a complementaridade do princípio da ordem original em relação ao princípio da proveniência, assim como praticamente uma sinonímia entre proveniência e princípio de respeito aos fundos. Mantendo nossa análise quanto à corrente espanhola, ao recorrermos a Martín- Pozuelo Campillos (1996), é possível identificar que a autora, a nosso ver, avança na explanação e especificação do princípio da proveniência, desdobrando-o de forma a evidenciar dois aspectos: La mayor parte de los autores parecen coincidir en conceder un doble valor al denominado Principio de Procedencia, por lo que podemos estabelecer su doble contenido; queda por determinar si ambos valores corresponden a un único principio o si, por el contrario, representan principios diferentes implícitos en el genérico de procedencia como íntimamente relacionados, pero con un contenido formalmente diferente: 1 – El respecto al origen de losfondos. 2 – El respeto a laestructura de aquellos fondos y al orden de los documentos en el interior de los mismos. […] La filosofía de ambos valores se recoge, entendiendo, en un postulado fundamental, el respecto a la procedencia, con un doble enunciado: el respeto a la procedencia de los fondos o grupos de documentos generados por una única institución, y el respecto a la estructura que dicha institución dio en origen a los documentos que integran dicho fondo. De tal manera que ambos enunciados derivan en significaciones distintas sostenidas por diversos conceptos, que se traducen por tanto en diferentes pasos en el tratamiento de la documentación de archivo (Martín-Pozuelo Campillos, 1996, p. 24, grifos nossos).17 original; cat. Principi de respecte a l´ordre original; eus. Jatorrizko ordenaren errespetoko printzipio; ga. Prinzipio de respecto á orde orixinal) (Del al. Registraturprinzip) m. Princípio da Arquivologia, complementar ao da proveniência, enunciado por H. von Seybel, diretor dos Arquivos do Estado Prussiano, baseado nas abordagens do seu contemporâneo, em 1881: Regulative für die ornungsarbeiten im gehermen Staatsarchiv, enunciou um novo princípio: o registrarprinzip. Dispõe basicamente que os documentos de cada fundo devem ser mantidos na ordem que o órgão de origem ou a organização produtora lhes atribuiu. Assim nasce o chamado princípio do respeito à ordem original dos documentos, que indica o respeito necessário que foi dado aos documentos, em suas origens. Esse princípio permite preservar as relações existentes e a relevância probatória que pode ser deduzida do contexto dos documentos. 17 Em livre tradução: A maioria dos autores parece concordar em atribuir um duplo valor ao chamado Princípio de Proveniência, pelo que podemos estabelecer o seu duplo conteúdo; resta determinar se ambos os valores correspondem a um único princípio ou se, pelo contrário, representam princípios diferentes implícitos no genérico de proveniência como intimamente relacionados, mas com conteúdo formalmente diferente: 1 – Respeito à origem dos fundos. 2 – Respeito à estrutura desses fundos e pela ordem dos documentos neles contidos. […] Está incluída a filosofia de ambos os valores, entendendo, num postulado fundamental, o respeito pela proveniência, com uma dupla afirmação: respeito pela proveniência dos fundos ou grupos de documentos gerados por uma única instituição, e respeito à estrutura que a instituição em questão deu durante a origem dos documentos que compõem o referido fundo. Dessa forma, ambas as afirmações apresentam significados diferentes apoiados em conceitos diferentes, que se traduzem, portanto, em 41 O basilar estudo de Maria-Paz Martín-Pozuelo Campillos (1996) recapitula as especificidades relativas à origem dos documentos, apontando para conceitos-chave – como o de fundo e de produtores de documentos –, a partir da análise de várias correntes arquivísticas, como a francesa, focada nos “respect des fonds” ou a italiana, que apresenta o “principio de territorialità”, ampliando, dessa forma, a importância do princípio da proveniência, que atuará junto a outros princípios arquivísticos. Segundo a autora (1996, p. 20), para os arquivistas franceses, o entendimento do princípio consiste em manter agrupados documentos que advêm de uma administração, uma instituição ou uma pessoa, sem misturá-los a outros documentos de outros fundos. Aqui, novamente, apontamos para nosso interesse junto aos arquivos pessoais. Martín-Pozuelo Campillos (1996), Cruz Mundet (2011) e Bellotto (2006), ao avaliarem as características do princípio da proveniência, evocarão os estudos de Michel Duchein, arquivista francês, o qual, apesar de fugir do nosso recorte metodológico, é citação incontornável ao nosso referencial de base. Seja para Bellotto (2006), seja para os autores espanhóis, o artigo “O respeito aos fundos em arquivística: princípios teóricos e problemas práticos” (Duchein, 1986) será importante apoio para o aprofundamento do conceito de fundo, fundamental para o desenvolvimento da análise quanto à aplicação do princípio da proveniência: A dificuldade de definir os Fundos em relação à hierarquia dos organismos produtores de arquivo fez-se praticamente sentir desde a sua origem e é fundamental. Exemplo: é fácil definir Fundos de arquivo de uma abadia de um hospital de um tribunal “o conjunto de documentos cujo acréscimo é efetuado no exercício das suas atividades”. Não há nenhuma dificuldade de interpretação, porque a abadia, o hospital, o tribunal são organismos bem definidos, possuindo uma personalidade jurídica precisa e estável. Mas paralelamente a casos tão simples como estes existem inumeráveis variedades de casos cuja complexidade funcional e laços de subordinação entre os diversos níveis do organismo dificultam a definição do Fundos (Duchein, 1986, s.p.). Acreditamos que, no caso do arquivo de casal, estamos exatamente diante de um cenário que apresenta “complexidade funcional” e, sobretudo, “laços de subordinação entre os diversos níveis do organismo” difíceis de serem estabelecidos, pois, em uma primeira análise, nosso estudo identifica uma relação que podemos etapas diferentes no tratamento da documentação de arquivos (Martín-Pozuelo Campillos, 1996, p. 24, grifos nossos). 42 chamar supostamente de horizontal e conjunta, advinda do estabelecimento de uma parceria. Dessa forma, Michel Duchein (1986) vem nos alertar para a dificuldade de definição de produtores e origem de produção documental, um embaraço que limitará o próprio conceito e definição de fundo e esbarrará no respeito ao princípio da proveniência. A partir dessa reflexão, nós nos damos conta da necessidade de ampliação de nossa análise, de forma a nos atermos a conceitos expandidos, para além dos dicionários utilizados. Com Bellotto (2006), relembramos que tal princípio […] fixa a identidade do documento relativamente a seu produtor. Por esse princípio, os arquivos devem ser organizados obedecendo à competência e às atividades da instituição ou pessoa legitimamente responsável por sua produção, acumulação ou guarda de documentos. Arquivos originários de uma instituição ou de uma pessoa devem manter a individualidade, dentro de seu contexto orgânico de produção, não devendo ser mesclados, no arquivo, a outros de origem distinta (Bellotto, 2006, p. 88, grifos nossos). Schellenberg (2006), por sua vez, ao refletir sobre a proveniência, tangenciará o princípio de ordem original, apesar de não o mencionar nesses termos: [...] quanto mais a coleção é o produto de atividades contínuas, mais importante é o seu arranjo original e mais própria se torna a aplicação do princípio básico da arquivística da “proveniência” pelo qual os documentos devem ser preservados na ordem que lhes atribuíram seus criadores (Schellenberg, 2006, p. 271)18 Ainda em nossa revisão quanto à aplicabilidade dos princípios da proveniência e do respeito à ordem original, segundo o manual do arquivista espanhol Cruz Mundet, é possível nos aprofundarmos, tendo em vista que [l]a organización de un archivo responde a una necesidad doble: proporcionar una estructura lógica al fondo documental, de modo que represente la naturaleza del organismo reflejado en él, y facilitar la localización conceptual de los documentos. Encuanto al primer aspecto, todo fondo es el resultado de la acción administrativa de un ente que a lo largo de 18 Do original: “The more a collection is the product of extended activities, the more significant is its original arrangement, and the more applicable is the basic archival principle or provenance that records should be preserved in the order given them by their creators” (Schellenberg, 1957, p. 3) Em um estudo que envolve a revisão de conceitos arquivísticos, mais uma vez faz-se necessário apontar que, para além das questões de terminologia já apontadas, é necessário considerar questões de tradução ou uso de termos por determinadas correntes e autores. Schellenberg (2006), por exemplo, em seu Arquivos Modernos, traduzido ao português, na parte dedicada aos arquivos privados, trabalhará com termos como coleção artificial e coleção natural, sendo que, no caso deste último, em nosso estudo, trataremos como fundo. 43 su historia desempeña una serie de funciones, para lo cual se dota de una estructura administrativa, variables ambas en el tiempo. Organizar el fondo de un archivo consiste en dotarlo de una estructura que reproduzca el proceso mediante el cuallos documentos han sido creados. Pero además, atendiendo a la función primordial, nos referimos a la informativa, debe facilitar la localización de los documentos, proporcionando con su estructura organizativa la información suficiente para orientar las búsquedas con acierto, conexclusividad, sin ambigüedades de ningún género; es decir, todas y cada una de las unidades archivísticas, todas y cada una de las series que lo integran, tienen asignada una ubicación conceptual posible y no otra, de manera que la interrogación al esquema organizativo de un fondo documental siempre encontrará respuesta cabal, siguiendo un camino lógico dentro delmismo y sólo uno, sin dar lugar a la ambigüedad ni a la disyuntiva (Cruz Mundet, 1994, p. 229, grifos nossos).19 Essa necessidade dupla à qual o pesquisador espanhol se refere se concilia com as ideias apontadas anteriormente por Martín-Pozuelo Campillos (1996, p. 24). A citação de Cruz Mundet (1994), a despeito de não tratar explicitamente do princípio da proveniência, vem, a nosso ver, reforçar algumas reflexões que tangenciamos, de uma forma ou de outra, até aqui: (i) a centralidade do princípio da proveniência junto à Arquivologia; (ii) que, a depender da corrente, a proveniência abarcará os princípios da ordem original e do respeito aos fundos; (iii) que haverá escolas e autores que consideração o princípio da ordem original e do respeito aos fundos como princípios autônomos e que se encontram em uma mesma linha hierárquica que o da proveniência e que (iv) a organização de arquivos, à luz da Arquivologia, evita ambiguidades, as quais, quando presentes no tratamento do fundo, gerarão problemas de recuperação informacional. Para nosso estudo, tais questões são caras, com especial atenção à presença de ambiguidades. Observando-se que, no caso do arquivo de casal, existem dois produtores de documentos unidos por um vínculo conjugal, como foi possível registrar até aqui, todas as definições do princípio da proveniência apresentadas insistem num 19Em livre tradução: A organização de um arquivo responde a uma dupla necessidade: fornecer uma estrutura lógica ao acervo documental, para que represente a natureza do organismo nele refletido, e facilitar a localização conceitual dos documentos. Quanto ao primeiro aspecto, todo fundo é o resultado da ação administrativa de uma entidade que, ao longo da sua história, desempenha uma série de funções, para as quais está dotada de uma estrutura administrativa, ambas variáveis ao longo do tempo. Organizar o acervo de um arquivo consiste em dotá-lo de uma estrutura que reproduza o processo de criação dos documentos. Mas, além disso, tendo em conta a função primária, referimo- nos à informativa, deve facilitar a localização dos documentos, fornecendo com a sua estrutura organizacional informações suficientes para orientar as buscas, de forma correta, com exclusividade, sem ambiguidades de qualquer espécie. Ou seja, a cada uma das unidades arquivísticas, a cada uma das séries que a compõem, foi atribuída uma localização conceitual possível e nenhuma outra, de modo que a questão do esquema organizacional de um acervo documental será sempre encontrar uma resposta completa, seguindo um caminho lógico dentro dela e apenas um, sem dar origem a ambiguidades ou dilemas (Cruz Mundet, 1994, p. 229). 44 mesmo ponto: não é possível simplesmente somar, de modo integral, os fundos dos dois indivíduos que representam o casal. Entretanto, mantê-los completamente separados nos parece dar margem a outro problema: quando um documento é produzido por ambos os membros do casal20, posto ser oriundo de uma função desempenhada conjuntamente, a prática tradicional obriga a guardá-lo em um dos fundos, pois, culturalmente, não é corrente a noção de posse compartilhada de documentos. Acreditamos também que atribuir determinadas funções de dupla responsabilidade a apenas um dos membros do casal é algo que precisa ser superado, especialmente quando se leva em conta um recorte de gênero. Para ficar menos abstrato, exemplificamos: em determinados recortes históricos e socioculturais, documentos ligados à criação dos filhos muitas vezes são atribuídos à guarda da mãe, creditado como um trabalho feminino. A “escolha” de em qual fundo será depositado o documento ou, melhor dizendo, os documentos produzidos e acumulados pelo casal, não pode ser subjetiva. Somos cientes, especialmente tendo em vista estudos pós-modernos ligados à Arquivologia, que autores como Joan M. Schwartz e Terry Cook (2002) nos mostram que há um poder inerente aos arquivos e aos profissionais que ali atuam, o qual começa nos processos de avaliação e alcançam as práticas de guarda: Historians since the mid-nineteenth century, in pursuing the new scientific history, needed an archive that was a neutral repositories off acts. Until very recently, archivists obliged by extolling their own professional myth of impartiality, neutrality, and objectivity. Yetarchives are established by the powerful to protector enhance their position in society. Through archives, the past is controlled. Certain stories are privileged and others marginalized. And archivists are an integral part of this story-telling (Schwartz; Cook, 2002, p. 1).21 Sabemos desse poder e não somos inocentes, quanto ao fato de que os profissionais e as instituições atuam ativamente junto aos acervos que têm sob a sua 20 Ressalta-se que, aqui, estamos atuando na esfera de documentação física e não digital ou natodigital, que não será completamente alheia à nossa reflexão, mas apresentará determinadas especificidades, as quais não serão por nós trabalhadas, no presente estudo. 21Em livre tradução: “Os historiadores, desde meados do século XIX, em busca da nova história científica, precisavam de um arquivo que fosse um repositório neutro de fatos. Até muito recentemente, os arquivistas eram obrigados a exaltar seu próprio mito profissional de imparcialidade, neutralidade e objetividade. No entanto, os arquivos são criados pelos poderosos para proteger ou melhorar sua posição, na sociedade. Por meio dos arquivos, o passado é controlado. Certas histórias são privilegiadas e outras marginalizadas. E os arquivistas são parte integrante dessa narrativa” (Schwartz; Cook, 2002, p. 1). 45 guarda. Mas nosso ponto aqui é que as decisões tomadas, especialmente no tratamento dos arquivos pessoais, não podem ser arbitrárias. Posto isso e seguindo nossa linha de raciocínio, além da revisitação aos princípios aqui discutidos, também é necessário absorver conceituações importantes da Arquivologia, como a de fundo, e questões relacionadas à produção de documentos, bem como das funções oriundas de tal produção. Tais conceituações e implicações de uso, no nosso estudo, serão aprofundadas no capítulo “Arquivos de casais”. A esta altura, podemos formular que aplicar o princípio da proveniência à estrutura dos arquivos de casais tem como meta prevenir as ambiguidades da origem documental e, portanto, zelar pela manutenção das características orgânicas da produção e acumulação documental, as quais também precisam ser consideradas. Mas ainda há pontos que precisam de apoio e embasamento teórico. Para isso, passaremos à revisão do princípio de organicidade. 1.2 Princípio da organicidade Assim como feito na seção anterior, partiremos da identificação do princípio de organicidade junto aos mesmos dicionários até aqui trabalhados. Vale destacar que, em um primeiro momento, no levantamento real