UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” – CAMPUS FRANCA CAIO ALVES DA CRUZ GOMES ATENUAÇÃO AO TRATAMENTO PENAL DESPENDIDO AO TRÁFICO DE DROGAS PELAS CORTES SUPERIORES: EFETIVIDADE E REFLEXOS POLÍTICO-CRIMINAIS FRANCA 2022 CAIO ALVES DA CRUZ GOMES ATENUAÇÃO AO TRATAMENTO PENAL DESPENDIDO AO TRÁFICO DE DROGAS PELAS CORTES SUPERIORES: EFETIVIDADE E REFLEXOS POLÍTICO-CRIMINAIS Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em Direito, junto ao Conselho de Curso Direito, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca. Orientador: Professor Doutor Paulo César Corrêa Borges FRANCA 2022 G633a Gomes, Caio Alves da Cruz Atenuação ao tratamento penal despendido ao tráfico de drogas pelas Cortes Superiores : efetividade e reflexos político-criminais / Caio Alves da Cruz Gomes. -- Franca, 2022 79 p. : tabs. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Direito) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Paulo César Corrêa Borges Coorientador: Gilson Miguel Gomes da Silva 1. Direito. 2. Jurisprudência. 3. Tráfico de drogas. 4. Tribunais Superiores. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. CAIO ALVES DA CRUZ GOMES ATENUAÇÃO AO TRATAMENTO PENAL DESPENDIDO AO TRÁFICO DE DROGAS PELAS CORTES SUPERIORES: EFETIVIDADE E REFLEXOS POLÍTICO-CRIMINAIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Bacharel em Direito. BANCA EXAMINADORA Presidente: Prof. Dr. Paulo Cesar Corrêa Borges, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, campus de Franca, SP. 1º Examinador: Me. Gilson Miguel Gomes da Silva, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, campus de Franca, SP. 2º Examinador: Me. Thales Braghini Leão Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, campus de Franca, SP. Franca, de de 2022. AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais, Maria Francisca e José Maria. A ela, pelo carinho, ao deixar um recado sempre que saía para o escritório enquanto eu dormia, ainda no raiar do dia, para prover o melhor que estivesse ao alcance; pelo apoio, a cada pequeno progresso que obtive ao longo da vida; e pela verdadeira inspiração, a nível profissional e humano, ao me mostrar o quanto o Direito é magnífico e essencial para que tenhamos um mundo mais justo e equânime, ao ponto de me motivar na escolha de minha carreira. E a ele, por todo o resguardo, para que nossa família se desenvolva do melhor modo possível; e pela força, sendo o cerne para que lidássemos com quaisquer adversidades nos momentos mais difíceis. Ao Paulo Henrique, meu querido irmão, que me inspira a ser cada vez melhor e tanto me ensina, e que me fez compreender as razões de tantas preocupações de meu pai: o desejo de auxiliar na formação de um indivíduo íntegro, independente e verdadeiro. Aos três, obrigado pelo amor, e por me ensinarem o que é o amor. Agradeço à Rosana e ao Anderson, mãe e irmão que a vida me deu, ao lado dos quais cresci, me desenvolvi, e me inspirei, os quais vibram e se orgulham com minhas conquistas – bem como faço com as deles –, e a quem amo incondicionalmente. Vocês são a base da família, e as pessoas mais fortes e amáveis que eu poderia conhecer. A toda minha família, em especial meus padrinhos, por serem espelho de trabalho duro e companheirismo, e pessoas com as quais sempre pude contar. E este agradecimento se estende especialmente ao Pedro e à Isabella, que compuseram nosso quinteto da infância e, à vida adulta, sempre estiveram lá quando preciso. Às minhas avós, Rosa e Maria, e ao meu avô Sebastião, que guardo com carinho em meu coração, por terem me auxiliado, cada um a seu modo, em minha formação. Agradeço à Leticia, que sempre esteve – e está – incondicionalmente ao meu lado: nos momentos mais difíceis, como um pilar de afeto e resiliência para me auxiliar a seguir em frente; e nos mais brandos, tornando-lhes os mais agradáveis e lindos. Com ela, aprendo a ser cada vez melhor, e me permito vivenciar as experiências de maior amor e paz que poderia sonhar em ter, as quais sei que somente crescerão em nossas vidas. Respeito, admiração e carinho recíprocos são sinônimos do que temos. Agradeço aos meus amigos que tornaram-se família, Thiago Barsotti, Deivid Galdini, Rafael de Mello e Felipe Ondei, com os quais criei laços que apenas se estreitam. Ao Thiago, pelo crescimento acadêmico que nos auxiliamos a obter, e por todas as tardes que passamos juntos no colégio, sempre nos fazendo melhores e fortalecendo cada vez mais essa amizade; ao Deivid, um professor da vida, que se deixou ser aluno e me deu o prazer de poder chamá-lo de irmão, e que transparece verdadeira orgulho a cada uma de nossas conquistas; ao Rafael, o que mais se parece comigo em personalidade, razão pela qual discordamos com tanta frequência, mas verdadeiro e genuíno amigo em quem deposito toda a confiança; e ao Felipe, rapaz puro e de bom coração, para o qual sempre busquei passar o melhor de mim, por saber que é merecedor. Me desenvolver ao lado de vocês só me faz mais forte. Independentemente de distância ou quaisquer intempéries que a vida nos impuser, estaremos sempre juntos. À República Tortuga e aos grandes irmãos que esta casa me proporcionou, com os quais tive o prazer de morar ao longo desses cinco anos. Pelos tantos ensinamentos nos primeiros anos da Universidade – e que se estendem até hoje –, fundamentais na transformação de um rapaz, ainda em sua menoridade, no indivíduo que sou hoje. Pelo acolhimento e verdadeiro sentido de coletividade que me despertaram, por todos os dias e noites de risadas e conversas a fio, e por terem me permitido deixar um pouco de mim em cada um deles, assim como fizeram comigo. Vou, mas levo a todos, pois sei que as amizades que construí ao longo desses anos, assim como a Instituição República Tortuga, são eternas. Agradeço ao professor Paulo César Corrêa Borges, grande mestre com quem desenvolvi trabalhos ao longo de toda a graduação: do primeiro deles, como integrante do Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em Direitos Humanos, o NETPDH, ao último enquanto graduando: este trabalho, no qual me orgulho de tê-lo como orientador. Professor, o senhor foi grande responsável pela afeição que nutri pelo Direito Penal. Ao Doutor Rodrigo Miguel Ferrari, por ter me acolhido em seu gabinete e me ensinado questões salutares para meu crescimento profissional: a verdadeira essência da magistratura; a necessidade de ater-se à técnica jurídica e de se amplificar conhecimentos ao máximo, a transbordar para além dos ramos do direito; e, não menos, a importância da conciliação entre família e trabalho duro. A todos os integrantes da equipe do gabinete, especialmente aos queridos Vinícius Borges; Beatriz Machado; Rosamaria Araujo e Silvana Dallaqua, que estiveram comigo ao longo de tantas tardes de trabalho, com atenção e dedicação ímpares. A vocês, meu muito obrigado. Agradeço à Unesp em sua totalidade, gestores, professores, servidores e colaboradores, pois esta, mesmo perante de diversas dificuldades estruturais, me mostrou o verdadeiro sentido da Universidade Pública, tendo sido a grande responsável pelos melhores anos de minha vida. Por fim, sou grato aos que comigo estiveram quando ingressei na Universidade, embora, por questões que a vida nos impõe, não mais estejam neste plano para ler essa declaração. No entanto, ao falar sobre eles, tenho a clareza, sem sombra de dúvidas, da felicidade genuína que sentem com minhas conquistas. Ao meu Vô Dito, homem trabalhador e correto, carente de estudos, mas de conhecimento incomensurável, que trabalhou até quando pôde, mesmo tendo vivido vida das mais difíceis. Seus ensinamentos e vivências estarão sempre comigo. À Mah Sônia, que teve parte em minha criação desde o primeiro momento, com doçura, carinho e amor incondicionais, fazendo de mim e de meu irmão verdadeiros filhos, e a quem tivemos como mãe. Em mim, só há gratidão por todos os dias que tivemos lado a lado, ao longo de meus vinte e dois anos, e alegria por te imaginar ao lado do Matheus. E à Déia, minha prima que se fez irmã, tão amorosa e competente quanto se pode pensar, tanto para com nossa família quanto com seus clientes, no curto e marcante período em que pôde realizar o sonho de ser advogada. Ela é, e sempre foi, o Sol que nos mantém unidos e fortes. Nos três me inspiro incondicionalmente, e trabalharei a cada dia para orgulhá-los. São amor eterno, e tenho-lhes sempre comigo. GOMES, Caio Alves da Cruz. Atenuação ao tratamento penal despendido ao tráfico de drogas pelas cortes Superiores: efetividade e reflexos político-criminais. 2022. 79f. Monografia – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, 2022. RESUMO O presente trabalho tem como alicerce a política antidrogas no ordenamento jurídico brasileiro, com base na Lei 11.343, de agosto de 2006, e nas normas a esta correlatas, as quais trouxeram- lhe pertinentes alterações desde sua elaboração e complementam sua aplicação. A metodologia de pesquisa empregada é diversificada, partindo de revisões bibliográficas através do método dedutivo, suplementado por pesquisa empírica documental, acessando jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e Supremo Tribunal de Justiça, além do estudo quantitativo de dados sobre os índices de encarceramento no Brasil. Assim, traz-se à luz as principais modificações, jurisprudenciais e legais, no âmbito de aplicação da Lei 11.343/06, quais sejam, a inconstitucionalidade da vedação à liberdade provisória; a obrigatoriedade de cumprimento da pena em regime integralmente fechado; a vedação à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; a impossibilidade de consideração de inquéritos e ações penais em curso para constatação de dedicação do agente a atividades criminosas, para inviabilizar o reconhecimento da minorante do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06; o afastamento da hediondez do tráfico minorado; além de pedido inovador para afastamento da hediondez do tráfico de drogas propriamente dito para fins de progressão de regime. Posteriormente, busca- se compreender os reflexos de tais alterações nos índices de encarceramento do país, a elucidar sua efetividade na política criminal brasileira, bem como os rumos normativo-jurídicos dos crimes de drogas país, com especial enfoque ao traficante não habitual. Palavras-chave: tráfico de drogas; jurisprudência; política criminal; tráfico privilegiado. GOMES, Caio Alves da Cruz. Atenuação ao tratamento penal despendido ao tráfico de drogas pelas cortes Superiores: efetividade e reflexos político-criminais. 2022. 79f. Monografia – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, 2022. ABSTRACT The present work is based on the anti-drug Policy in the Brazilian legal system, founded at the Law 11.343, of august 2006, and the norms related to it, which have brought relevant changes since its elaboration and complements its application. The research methodology used is diversified, starting from bibliografic reviews through the deductive method, supplemented by documental empircal research, acessing jurisprudence of the Federal Supreme Court and Supreme Court of Justice, as well as the quantitative study about data on incarceration rates in Brazil. Therefore, it brings to light the main changes, jurisprudential and legal, in the scope of Law 11.343/06 application, which were the unconstitutionality of the prohibition of provisional freedom and the obligation to serve the sentence in a fully closed regime the prohibition to the replacement of the custodial sentence by a restriction of rights; the impossibility of considering ongoing investigations and penal process to verify the agent's dedication to criminal activities, to rule out the recognition of the minor of art. 33, § 4, of Law 11,343/06; the removal of the hideousness of the reduced traffic; and an innovative request to remove the hideousness of drug trafficking itself for the purposes of regime progression. Subsequently, an analysis of the reflexes of the incarceration rates in Brazilian criminal policy is made, as well as an analysis of the direction of legal drug crimes, with a special focus on non-habitual drug dealer. Keywords: drug trafficking; jurisprudence; criminal policy; privileged traffic. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 1 DO TRÁFICO DE DROGAS À VIGÊNCIA DA LEI 11.343/06 ................................ 14 1.1 Inspirações e exposição – as leis de drogas no brasil ............................................ 14 1.2 Equiparação do tráfico de drogas a crime hediondo ............................................ 16 1.2.1 DISPOSIÇÃO LEGAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............... 17 1.3 O tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e sua modalidade minorada ... 20 1.3.1 CARACTERIZAÇÃO NA LEI 11.343/06 ......................................................... 20 1.3.2 CONCEITUAÇÃO E BEM JURÍDICO TUTELADO ...................................... 23 1.3.3 DO TRÁFICO MINORADO – ART. 33, § 4º, LEI 11.343/06 .......................... 25 2 CONSEQUÊNCIAS JURISDICIONAIS À PROMULGAÇÃO DA LEI 11.343/06 E SUAS ALTERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS ................................................................... 30 2.1 Da vedação à liberdade provisória e da obrigatoriedade ao regime fechado ..... 30 2.2 Do tráfico privilegiado ............................................................................................. 34 2.2.1 DA VEDAÇÃO À SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS... ...................................................... 35 2.2.2 AFASTAMENTO DO TRÁFICO PRIVILEGIADO COM FUNDAMENTO EM INQUÉRITOS POLICIAIS E AÇÕES PENAIS EM CURSO .................................. 38 2.2.3 DA (NÃO) HEDIONDEZ DO TRÁFICO PRIVILEGIADO ............................ 41 2.2.3.1 O advento do HC 118.533/MS ....................................................................... 43 2.2.3.1.1 Sessão plenária de 23/06/2016 ................................................................. 43 2.2.3.1.2 Sessão Plenária de 01/06/2016 ................................................................. 48 2.3 Afastamento da hediondez do tráfico de drogas propriamente dito para fins de progressão de regime .......................................................................................................... 55 3 CONSEQUÊNCIAS E MEDIDAS POSTERIORES À LEI 11.343/06: REFLEXOS NA POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA ........................................................................ 59 3.1 Do advento da lei 11.343/06 ..................................................................................... 59 3.2 Modificações ao rigor do tratamento despendido ao traficante e seus reflexos práticos ................................................................................................................................. 63 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 71 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 75 11 INTRODUÇÃO O Direito Penal é norteado pelo princípio da ultima ratio, que se consubstancia na ideia de que a lei penal somente deverá ser aplicada para a solução das desavenças e lides sociais mais quistas e salutares por determinada comunidade, e que não seriam satisfatoriamente resolvidas através de outros meios que não pela criação de uma norma penal incriminadora, com sanções penais àquele que infringi-las (NUCCI, 2020, p. 105). No ponto, Greco destaca que, por intermédio de um critério político que oscila de acordo com as circunstâncias e momentos vividos por cada sociedade, o legislador, ao realizar que outros ramos do direito não se mostram aptos a proteger adequadamente determinados bens, há de selecionar as condutas, omissivas ou comissivas, que deverão ser tuteladas pelo Direito Penal (2017, p. 127). Nucci inclui esta rigidez do direito penal na própria conceituação deste ramo do direito, definindo-lhe como o conjunto de normas dedicado à determinação dos limites do poder punitivo do Estado, incumbido de instituir infrações penais, suas sanções e as regras que adequadas à sua aplicação, sendo as punições estabelecidas pelo direito penal das mais graves para o ser humano, a exemplo da privação de liberdade (2020, p. 73). Também salutar a diferenciação entre direito penal e política criminal, em vista que esta última reserva consigo um viés analítico-crítico da aplicação do Direito penal, essencial para uma justa aplicação das leis penais e de sua observação perante os anseios e necessidades de uma determinada comunidade, de modo que, em face das constantes metamorfoses sociais que se operam no Brasil e no mundo, especialmente no último século, uma política criminal equilibrada emerge da síntese entre o direito penal positivado e da sociedade a quem esta seara do direito se presta. E alerta-se que uma política criminal bem definida é essencial para o bom funcionamento de um ordenamento penal, notadamente que uma política criminal falha e desatualizada sobrecarrega e obriga o Poder Judiciário de interpretações que lhe permitam a devida aplicação das leis, a fim de evitar erros e injustiças (NUCCI, 2020, p. 75/76). Posto isso, a mutabilidade do Direito Penal é salutar para sua devida e justa aplicação, seja para exasperar a reprimenda cominada a uma conduta típica ou, em sentido oposto, para a descriminalização de determinado fato anteriormente tipificado, a depender da gravidade que se extrai de determinadas condutas e da valoração de seu bem juridicamente tutelado por uma sociedade. A título exemplificativo deste último, tem-se a revogação do crime previsto no artigo 12 240 do Código Penal, que tipificava o adultério; já no tocante à exasperação do tratamento penal, cita-se a Lei nº 8.072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos, os quais recebem este tratamento por serem tidos como os mais ignóbeis e vis do ordenamento jurídico brasileiro. E este quadro, de incremento e sutilização das sanções, também se apresenta no âmbito das legislações penais de proibição ao comércio ilícito de entorpecentes1. O presente trabalho busca trazer à luz as nuances relacionadas à legislação de drogas no Brasil, especialmente à vigência da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, e almeja compreender as motivações, consequências e os reflexos do dispositivo legal na política criminal brasileira. Com intuito de alcançar um melhor entendimento sobre as leis de drogas no Brasil, de início, faz-se breve explanação acerca do histórico legislativo concernente à vedação do comércio ilícito de entorpecentes, destacando-se as principais modificações quanto aos meios e à intensidade das reprimendas impostas aos traficantes. Relevante questão também mostra no que tange às metamorfoses jurisprudenciais e legais operadas a partir do texto promulgado da Lei 11.343/06, a fim de compreender a efetividade do dispositivo em comento na repressão dos crimes de drogas. Para tal, far-se-á, mediante emprego do método dedutivo – com revisões bibliográficas diversas – e de pesquisa empírica e documental, uma análise aos principais entendimentos dos Tribunais Superiores, Supremo Tribunal Federal e Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de aplicação da Lei 11.343/06, de sua promulgação à atualidade, principalmente no que diz respeito à constitucionalidade de vedações e exasperações operadas aos crimes de drogas, em especial atenção à proporcionalidade da Lei de Drogas com relação ao “tráfico privilegiado”2, modalidade criada pelo referido códex. Para além, busca-se compreender, a partir do método quantitativo, as consequências de tais modificações de cunho político-criminal nos índices de encarceramento no Brasil, em recortes específicos ao tráfico de drogas, dos artigos 12, da Lei 6.368/76, e 33, da Lei 11.343/06, e ao tráfico internacional de drogas, dos artigos 18, da Lei 6.368/76, e 33 e 40, inciso I, da Lei 11.343/06. Ainda, almeja-se constatar seus reflexos nos índices de aprisionamento feminino, em razão do expressivo contingente de mulheres aprisionadas por tráfico ilícito de entorpecentes no país. 1 Conforme será explicado no primeiro capítulo do trabalho, a despeito de o termo “entorpecentes” ter sido substituído pelo termo “drogas” na Lei nº 11.343/06, faz-se o emprego de ambas nomenclaturas ao longo deste estudo, a fim de evitar reiteradas repetições. 13 Ao final, pretende-se concluir, com base nos fatos expostos e dados analisados, a efetividade das interpretações judiciais operadas sobre os dispositivos que tratam dos delitos de drogas, essencialmente no que concerne à redução da superlotação dos estabelecimentos prisionais a partir da readequação do tratamento despendido ao traficante de entorpecentes – faça este do tráfico seu meio de vida ou não. 14 1 DO TRÁFICO DE DROGAS À VIGÊNCIA DA LEI 11.343/06 1.1 INSPIRAÇÕES E EXPOSIÇÃO – AS LEIS DE DROGAS NO BRASIL “A história das drogas é, assim, antes de tudo, a história de suas regulações, da construção de seus regimes de circulação e das consequentes representações culturais e políticas de repressão, incitação ou tolerância.” (CARNEIRO, 2019, p. 10). Esta postulação é feita a fim de afastar a difundida ideia de que a regulação destinada a diferentes substâncias se baseou em sua potencialidade lesiva, alegação esta que, segundo Carneiro, não se mostra cientificamente fundada2, uma vez que, conforme esclarece o autor, os “países centrais”, ao longo dos séculos XIX e XX, foram os norteadores na definição das substâncias psicoativas a serem combatidas, tendo essa influência sido importada para a legislação de drogas no Brasil (ibid., p. 10). O combate às drogas origina-se no Brasil com a instituição das Ordenações Filipinas, com a determinação de que “ninguém tenha em caza rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso”, de modo que, embora o Código Penal do Império, de 1830, tenha se mantido silente no ponto, o Código Penal de 1890, ao regulamentar os crimes contra a saúde pública, passou a prever o delito de “expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas nos regulamentos sanitários”, em seu artigo 159, ainda apenas com pena de multa (CARVALHO, 2016, p. 41). A despeito das referidas legislações, é a Consolidação das Leis Penais, de 1932, que amplia a gama de condutas abarcadas pelo artigo 159 do Código Penal de 1890, substituindo o termo “substâncias venenosas” por “substâncias entorpecentes”, bem com adicionando pena de prisão ao tipo penal (DAVID, 2018). Na década posterior, operou-se uma exasperação no tratamento criminal aplicado ao usuário e ao comerciante de drogas ilícitas. Com o advento Código Penal de 1940, em seu artigo 281, culminado com o Decreto-Lei 4.720/42 e a Lei 4.451/624 – estes últimos que, respectivamente, dispuseram sobre o cultivo e introduziram o núcleo “plantar” ao referido artigo – e, principalmente, com o Decreto-Lei 385/683, deu-se verdadeiro início a um tratamento 2 Para tecer tal afirmação, Carneiro fundou-se em um ranking publicado pela revista Lancet, em 2006, acerca dos danos causados por diversas drogas, que apontou a inexistência de um critério objetivo na classificação jurídica internacional das substâncias entorpecentes. 3 O qual igualou, em contrariedade à interpretação prévia do Supremo Tribunal Federal, o consumidor e o traficante de drogas na órbita penal, imputando-lhes as mesmas penas. 15 repressivo aos crimes de drogas, e, segundo Salo de Carvalho (2016, p. 42), ao “(des)controle da sistematicidade da matéria criminal”. A Lei 6.368/76, legislação especial destinada à repressão ao tráfico e uso de drogas, deu novo entendimento à referida norma, diferenciando a reprimenda aplicada ao traficante de drogas e ao usuário. Todavia, tinha-se cominada a pena de prisão em ambos os casos, e, para além, diferenciação não havia entre a pena aplicada ao traficante contumaz, que utiliza do tráfico como seu meio de vida, em relação ao traficante “de primeira viagem”. Embora a legislação em questão tenha exaltado o discurso médico jurídico, mediante a separação entre “consumidor-doente” e “traficante-delinquente”, agregou-se gradualmente a esta um discurso jurídico-político no âmbito da segurança pública, a justificar as subsequentes exasperações de pena operadas aos crimes de drogas. Fatores que teriam se desenvolvido, em exposição consonante à de Carneiro (2019, p. 10), acompanhados das orientações político- criminais dos países centrais refletidas nos tratados e convenções internacionais (CARVALHO, 2016, p. 46). Já no século XXI, a Lei 10.409/02 almejava, em seu projeto inicial, substituir integralmente a Lei 6.368/76. Ocorre que, diante da carência de definições satisfatórias na tipificação dos crimes, o Capítulo III do projeto, “Dos Crimes e das Penas”, foi vetado pelo poder executivo, além de, à presença de tais impropriedades, ter se vetado também o artigo 59 do dispositivo legal, que traria a revogação do diploma até então vigente. Assim, a despeito das divergências acerca do rito processual que deveria ser aplicado na prática, a Lei 10.409/02 teve seu segmento processual aprovado, havendo, entretanto, anseios pela elaboração de uma nova legislação que atendesse às necessidades sociais no âmbito do combate ao tráfico de drogas (GRECO FILHO e RASSI, 2017). Com o advento da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que revogou os dois dispositivos legais supracitados, instituiu-se o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, o Sisnad. Segundo Damásio de Jesus (2010, p. 7), a Lei 11.343/06, atualmente vigente, apresentou-se, dentre outras funções, diante da necessidade de reconhecer no usuário de drogas não apenas um infrator, mas, além disso, um membro da sociedade com direito a cuidados especiais relativos ao uso indevido de drogas. Assim, a legislação em questão isentou o usuário de drogas da pena de prisão, ao tipificar o crime de porte/posse de droga para consumo próprio, em seu artigo 28, com penas diversas das privativas de liberdade: 16 Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (BRASIL, 2006). Persistiu, porém, a subjetividade para a caracterização e diferenciação entre o traficante e o usuário de drogas, com discricionariedade – desde o agente policial até o magistrado – para a imputação do criminoso nestes delitos, baseada em diversos fatores que envolveram as condições da apreensão do entorpecente, como fracionamento, diversidade e quantidade de drogas apreendidas, bem como diante das condições fáticas nas quais a prisão houver se dado. A Lei 11.343 de 2006 alterou a pena de prisão disposta ao traficante de drogas, exasperando a reprimenda mínima, antes de três anos de reclusão, para cinco anos, e aumentou também as penas de multa cominada ao delito, mínima e máxima, de cinquenta a 360 dias- multa, na Lei 6.368/76, para 500 a 1.500 dias-multa no novo dispositivo (BRASIL, 1973 e 2006), de modo incrementar expressivamente o tratamento aplicado ao tráfico de drogas no país. Lado outro, passou-se a prever, de modo inédito, a figura do tráfico privilegiado, ou tráfico minorado, consistente em uma causa de diminuição de pena capitulada no § 4º, artigo 33, da Lei 11.343/06. Tal modalidade emergiu como um meio de diferenciação entre o traficante habitual, que faz tráfico seu meio de vida, e o ocasional, ou pequeno traficante, com base em critérios subjetivos e objetivos que virão a ser destrinchados neste trabalho, e trazia como benefício, em um primeiro momento, uma suavização no quantum da pena aplicada, que poderia ser reduzido de um sexto a dois terços. Ocorre que a Lei 11.343/06, embora tenha inovado ao criar referida figura para o crime de tráfico de drogas, manteve rígidos tratamentos penais e processuais penais, fazendo persistir um comportamento estatal fortemente repressivo ao tráfico, mesmo quando minorado, a gerar reflexos importantes nos índices de encarceramento no Brasil e na política de combate às drogas. 1.2 EQUIPARAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS A CRIME HEDIONDO 17 O presente subcapítulo trata das origens da equiparação do tráfico ilícito de entorpecentes a crime hediondo. Para tal, faz-se uma exposição das inspirações que levaram o ordenamento jurídico brasileiro a positivar esta definição de hediondez, além da efetiva criação deste rol paralelo aos crimes essencialmente hediondos. Expõe-se os modos de conceituação dos crimes tidos como hediondos, sua definição e, especialmente, as consequências penais e processuais penais – à época da promulgação dos dispositivos que tipificaram tais delitos – quando do cometimento dos crimes elencados no rol dos hediondos e de seus equiparados. 1.2.1 Disposição legal na Constituição Federal de 1988 A Constituição Federal vigente, promulgada em 5 de outubro de 1988, trouxe, em seu artigo 5º, inciso XLIII: XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (BRASIL, 1988). A redação do referido inciso figurou como a origem de um tratamento mais severo aos crimes a que se compreendia, ao menos à época, necessárias tais medidas, por “serem revestidos de maior repulsa” (GOMES e CUNHA, 2010, p. 495). Porém, nota-se que o dispositivo não determinou quais seriam os crimes hediondos, e, consequentemente, não inseriu os crimes de tráfico de drogas, tortura ou o terrorismo neste rol. Segundo Gomes e Cunha (2010, p. 494), ao trazer que seriam insuscetíveis graça, anistia ou fiança não somente os três crimes elencados, mas também os “definidos como crimes hediondos”, em momento prévio à edição de lei que lhes determinasse ou estabelecesse fatores para a caracterização de tal hediondez, a Constituição Federal de 1988 vinculou o Brasil ao critério legal, no qual é de competência do legislador a enumeração de um rol taxativo para a 18 determinação de crimes hediondos, optando por este em detrimento dos critérios judicial4 e misto5. Insta salientar a dificuldade de estabelecer um critério “correto” para a definição dessa categoria de crimes: Para nós nenhum dos critérios é justo: o primeiro (legal) trabalha somente com gravidade do fato em abstrato, desconsiderando, lamentavelmente, o caso concreto; o segundo (judicial) deixa ao exclusivo império do juiz a análise da hediondez, ferindo, consequentemente, o mandamento da certeza e segurança jurídica (um comportamento tido como hediondo para um juiz pode, nas mesmas circunstâncias, não ser para outro); o terceiro (misto), a exemplo do anterior, não garante a necessária segurança ao cidadão, partindo de exemplos dado pelo legislador, podendo o magistrado encontrar outros casos semelhantes (ignora a taxatividade). Diante desse quadro, sugerimos um quarto sistema, mais justo (e seguro), no qual o legislador, num primeiro momento, enuncia num rol taxativo (GOMES e CUNHA, 2010, p. 494). A exemplificar tal dificuldade, Lima (2020, p. 331) traz o crime político de matar o Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal ou da Câmara dos deputados, tipificado no artigo 29 da Lei 7.170/83, recentemente revogada, o qual, por não ser referido na lista dos crimes hediondos, não poderia assim ser considerado, a despeito da elevada gravidade destes fatos e repulsa que incutiriam na sociedade. Em suma, as circunstâncias do caso concreto não são empregadas, no Brasil, como fator determinante à caracterização da hediondez, tendo o legislador ordinário se ocupado pela criação e manutenção deste rol, nele inserindo os delitos que sejam compreendidos como merecedores de um tratamento jurídico-penal mais gravoso. Em mesmo sentido, elucidam Moraes e Smanio: Crime Hediondo, no Brasil, não é o que no caso concreto se mostra repugnante, asqueroso, depravado, horrível, sádico, cruel, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execuções, ou pela finalidade do agente, mas sim aquele definido de forma taxativa pelo legislador ordinário. Ressalta-se que a Constituição Federal, por meio de norma constitucional de eficácia limitada, previu algumas consequências penais e processuais aos crimes hediondos, autorizando, porém, que o legislador ordinário os definisse (2006, p. 59). 4 “judicial: é o juiz quem, na apreciação do caso concreto, diante da gravidade do crime ou da forma como foi executado, decide se a infração praticada é ou não hedionda” (GOMES e CUNHA, 2010, p. 494). 5 “num primeiro momento, o legislador apresenta um rol exemplificativo de delitos hediondos, permitindo ao juiz, na análise do caso concreto, encontrar outros fatos assemelhados (interpretação analógica)” (GOMES e CUNHA, 2010, p. 494). 19 Dessa maneira, a completar a norma de eficácia limitada prevista no inciso XLIII, art. 5º, da CF, foi promulgada, em de 25 de julho de 1990, a Lei 8.072, chamada de Lei dos Crimes Hediondos, de modo que, para concluir sobre a hediondez de um delito, e, por conseguinte, aplicar a este as consequências dessa definição, basta a consulta ao artigo 1º deste dispositivo, no qual constam, em sua redação vigente, os seguintes crimes: a) homicídio simples (art. 121, caput), apenas quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por um só agente; b) homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII); c) lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2º) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição; d) roubo circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, § 2º, inciso V); e) roubo circunstanciado pelo emprego de arma de fogo (art. 157, § 2º-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito (art. 157, § 2º-B); f) roubo qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte (art. 157, § 3º); g) extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, § 3º); h) extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1º, 2º e 3º); i) estupro (art. 213, caput e §§ 1º e 2º); j) estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º); k) epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º); l) falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º, § 1º-A e § 1º-B, com a redação dada pela Lei n. 9.677, de 2 de julho de 1998); m) favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º); n) furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155, § 4º-A); o) genocídio, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei n. 2.889, de 1º de outubro de 1956; p) posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003; q) comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003; r) tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição, previsto no art. 18 da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003; s) organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado (ANDREUCCI, 2021, p.286/287). Em análise às infrações listadas, não se encontram as de tráfico de drogas, terrorismo e tortura, razão pela qual a técnica não permite que estes sejam considerados como hediondos. Lado outro, ante o tratamento constitucional idêntico a eles empregado, lhes é dada a definição de “crimes equiparados a hediondos” (LIMA, 2016, p. 57). Tal diferenciação estipulada pelo constituinte originário, de acordo com Lima (2020, p. 350), se fez com o intuito de assegurar maior severidade na punição dos crimes equiparados a 20 hediondos, uma vez que eventual alteração do rol dos hediondos pode ser realizada a partir de Lei Ordinária, enquanto aos equiparados restringe-se tal discricionariedade, notadamente o fato de que a própria Constituição Federal obriga um tratamento mais severo a este: Como o constituinte inseriu a conjunção aditiva “e” logo após fazer referência à tortura, ao tráfico e ao terrorismo, fazendo menção, na sequência, aos crimes definidos como hediondos, depreende-se que, tecnicamente, tais delitos não podem ser rotulados como hediondos. Logo, como o dispositivo constitucional determina que lhes seja dispensado tratamento idêntico, tortura, tráfico e terrorismo são tidos como crimes equiparados a hediondos. A justificativa para o constituinte originário ter separado os crimes hediondos dos equiparados a hediondos está diretamente relacionada à necessidade de assegurar maior estabilidade na consideração destes últimos como crimes mais severamente punidos. Em outras palavras, a Constituição Federal autoriza expressamente que uma simples Lei Ordinária defina e indique quais crimes serão considerados hediondos. No entanto, para os crimes equiparados a hediondos, o constituinte não deixou qualquer margem de discricionariedade para o legislador ordinário, na medida em que a própria Constituição Federal já impõe tratamento mais severo à tortura, ao tráfico de drogas e ao terrorismo (LIMA, 2020, p.350). Posto isso, ressalta-se que a Lei 8.072, no caput de seu artigo 2º, reforça esse entendimento, ao prever, em consonância ao mandamento constitucional, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e a tortura como inafiançáveis e insuscetíveis de graça, anistia e indulto. O texto original do artigo também impedia a concessão de liberdade provisória aos referidos delitos, bem como obrigava o integral cumprimento da pena em regime fechado. Estes entendimentos penais e processuais penais agravados demonstram, segundo Carvalho (2016, p. 222), o evidente tratamento díspar despendido aos referidos crimes, de forma que o legislador teria ultrapassado mandamentos constitucionais básicos, relacionados aos princípios da individualização da pena e da humanidade das penas, para atingir esta finalidade. 1.3 O TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E DROGAS AFINS E SUA MODALIDADE MINORADA 1.3.1 Caracterização na Lei 11.343/06 Com a instituição do Sisnad pela Lei 11.343/06, firmou-se o posicionamento legal aplicado pelo ordenamento jurídico brasileiro às drogas. O principal objetivo do órgão é evidenciado em seu artigo 1º, qual seja, “conferir tratamento jurídico diverso ao usuário e ao traficante de drogas” (LIMA, 2016, p. 695). 21 Do artigo 3º do texto legal, extrai-se as finalidades deste órgão, consistentes, à época da promulgação: (I) na prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas, bem como (II) a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas. Já os artigos 4º e 5º determinam os princípios e os objetivos do Sisnad, como vê-se: Art. 4º São princípios do Sisnad: I - o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade; II - o respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes; III - a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro, reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros comportamentos correlacionados; IV - a promoção de consensos nacionais, de ampla participação social, para o estabelecimento dos fundamentos e estratégias do Sisnad; V - a promoção da responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, reconhecendo a importância da participação social nas atividades do Sisnad; VI - o reconhecimento da intersetorialidade dos fatores correlacionados com o uso indevido de drogas, com a sua produção não autorizada e o seu tráfico ilícito; VII - a integração das estratégias nacionais e internacionais de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito; VIII - a articulação com os órgãos do Ministério Público e dos Poderes Legislativo e Judiciário visando à cooperação mútua nas atividades do Sisnad; IX - a adoção de abordagem multidisciplinar que reconheça a interdependência e a natureza complementar das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas; X - a observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito, visando a garantir a estabilidade e o bem-estar social; XI - a observância às orientações e normas emanadas do Conselho Nacional Antidrogas - Conad. Art. 5º O Sisnad tem os seguintes objetivos: I - contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas, seu tráfico ilícito e outros comportamentos correlacionados; II - promover a construção e a socialização do conhecimento sobre drogas no país; III - promover a integração entre as políticas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao tráfico ilícito e as políticas públicas setoriais dos órgãos do Poder Executivo da União, Distrito Federal, Estados e Municípios; IV - assegurar as condições para a coordenação, a integração e a articulação das atividades de que trata o art. 3º desta Lei (BRASIL, 2006). O artigo 2º do Decreto nº 5.912/2006 enuncia que são integrantes do Sisnad o Conselho nacional de Drogas (CONAD; órgão normativo e de deliberação coletiva do sistema, vinculado ao Ministério da Justiça); a Secretaria Nacional Antidrogas - SENAD, na qualidade de secretaria-executiva do colegiado; o conjunto de órgãos e entidades públicos que exerçam atividades relacionadas à prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e 22 dependentes de drogas e à repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas; além das “organizações, instituições ou entidades da sociedade civil que atuam nas áreas da atenção à saúde e da assistência social e atendam usuários ou dependentes de drogas e respectivos familiares, mediante ajustes específicos” (BRASIL, 2006). Há de se destacar as tendências político-criminais empregadas no mundo atual em relação às drogas e, por consequência, ao seu usuário. Dentre essas, encontram-se os modelos norte-americano6, que compreende as drogas como um problema policial e militar, pregando a abstinência, a tolerância zero e o encarceramento em massa dos envolvidos com drogas; o liberal radical, no qual se defende a necessidade de uma liberação total das drogas, sobretudo no tocante ao usuário; o da redução de danos, que trata a droga como problema de saúde, empregando medidas de mitigação dos males causados aos usuários de drogas, a exemplo de assistência médica e entrega de seringas; além de, por fim, o modelo da justiça terapêutica, o qual “centra sua atenção no tratamento e, por conseguinte, propugna pela disseminação dessa reação como a forma adequada para cuidar do usuário ou do usuário/dependente” (GOMES e CUNHA, 2010, p. 212-215). Ao analisar a Lei 11.343/2006, constata-se uma aproximação do modelo nela empregado ao da redução de danos (CARVALHO e ÁVILA, 2016, p. 189; GOMES e CUNHA, 2010, p. 215; CARVALHO, 2016, p. 158). Nesta senda, extrai-se do dispositivo em vigência a completa incompatibilidade de pena de prisão ao usuário de entorpecentes. No ponto, leciona Lima: Sob a premissa de que a pena privativa de liberdade em nada contribui para o problema social do uso indevido de drogas, o qual deve ser encarado como um problema de saúde pública – e não “de polícia” –, a Lei nº 11.343/06 inovou em relação à legislação pretérita, abolindo a possibilidade de aplicação de tal espécie de pena ao crime de porte de drogas para consumo pessoal. Noutro giro, entre os artigos 20/26, a Lei de Drogas também busca implementar ações destinadas à redução os riscos e dos danos à saúde através da controversa política da redução de danos (2016, p. 695). Acerca desta incompatibilização, parte da doutrina vislumbra os aspectos positivos desta isenção de pena de prisão ao usuário, em consonância à política europeia de redução de danos (GOMES e CUNHA, 2010, p. 215). Contudo, há autores que não compreendem completude a 6 Modelo este adotado pela ONU à época da promulgação da Lei 11.343/06, declarado no relatório anual de 2002, pelo Comitê Internacional de Controle de Narcóticos. 23 partir da medida, ante a lógica proibicionista que foi reforçada pela Lei 11.343/06. É o que se extrai da explicação de Salo de Carvalho: Ocorre que os princípios e diretrizes previstos na Lei 11.343/06, notadamente identificados com políticas de redução de danos, acabam ofuscados pela lógica proibicionista, não representando senão mera carta de intenções direcionada ao sistema de saúde pública. É notório que em matéria de direitos sociais, sobretudo aqueles relativos às áreas da educação e da saúde, se a legislação não determinar claramente as ações e os órgãos competentes, prevendo mecanismos de responsabilização administrativa, a tendência é de as pautas programáticas restarem irrealizadas (2016, p. 159). Diante disso, tem-se, com o advento da lei em análise, um viés binário no âmbito jurídico, entre usuário e traficante; repressão e redução de danos; assistência social e saúde; e, por fim, prisão e clínica (BRANDÃO, 2021). 1.3.2 Conceituação e bem jurídico tutelado Diferentemente da Lei 6.368/76, que utilizava em seu preâmbulo o termo “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”, a Lei 11.343/06 fez o uso da palavra “drogas”, definindo-lhe, no parágrafo único de seu artigo 1º, como “substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.” (BRASIL, 2006), em congruência à nomenclatura preferencialmente empregada7 pela Organização Mundial da Saúde (LIMA, 2016, p. 696). A “lista” a que se atém para a definição das substâncias caracterizadas como drogas encontra-se prevista na Portaria 344/98, da Secretaria de Vigilância Sanitária e Ministério da Saúde, o que se evidencia no artigo 66 da Lei 11.343/06: Art. 66. Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS n. 344, de 12 de maio de 1998” (BRASIL, 2006). 7 A nova nomenclatura espelha a terminologia adotada pela Organização Mundial de Saúde – OMS, que abandonou o uso dos termos ou das expressões “narcóticos”, “substâncias entorpecentes” e “tóxicos”. Mesmo a Convenção Única sobre Entorpecente, da ONU, promulgada em 1961, e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de Viena, de 1988, ao se referirem às substâncias tóxicas ou entorpecentes utilizam simplesmente o termo drug (ANDREUCCI, 2021, p. 325). 24 Em face disso, tem-se que os crimes capitulados pela Lei de Drogas configuram normas penais em branco heterogêneas, uma vez que carecem de complementação por meio da portaria em questão. Neste sentido, Greco faz clara explicação: Normas penais em branco ou primariamente remetidas são aquelas em que há necessidade de complementação para que se possa compreender o âmbito de aplicação de seu preceito primário. Isso significa que, embora haja uma descrição da conduta proibida, essa descrição requer, obrigatoriamente, um complemento extraído de um outro diploma – leis, decretos, regulamentos etc. – para que possam, efetivamente, ser entendidos os limites da proibição ou imposição feitos pela lei penal, uma vez que, sem esse complemento, torna-se impossível sua aplicação. (...) Diz-se em branco a norma penal porque seu preceito primário não é completo. (...) Diz-se heterogênea, em sentido estrito ou heteróloga, a norma penal em branco quando o seu complemento é oriundo de fonte diversa daquela que a editou. No caso do art. 28 da Lei Antidrogas, por exemplo, estamos diante de uma norma penal em branco heterogênea, uma vez que o complemento necessário ao referido artigo foi produzido por uma autarquia (Anvisa) vinculada ao Ministério da Saúde (Poder Executivo), que integra o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) – art. 14, I, do Decreto nº 5.912, de 27 de setembro de 2006 –, e a lei nº 11.343/2006 foi editada pelo Congresso Nacional (Poder Legislativo) (2017, p. 99-101). A despeito de o exemplo citado pelo doutrinador se dar em relação ao crime de porte ou posse de drogas, certo que este se estende aos delitos tipificados no artigo 33 da Lei de Drogas, notadamente que ambos compartilham da mesma definição de drogas para que sejam imputados ao infrator. Salutar destacar que, para a configuração do tipo penal do tráfico de drogas, previsto no art. 33, caput, da Lei 11.343/06, desnecessária a efetiva mercancia de entorpecentes, bastando sua disponibilidade ou acessibilidade, ainda que remota. Isto se dá porque o referido artigo, tal qual seu precursor8, é de conteúdo múltiplo, contando com dezoito ações nucleares que descrevem diversas condutas, sendo suficiente a prática de apenas uma delas para sua caracterização, quais sejam: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa (BRASIL, 2006). 8 Art. 12, da Lei 6.368/1976 25 A confirmar o teor do delito em questão, foi editada a Tese nº 13, da edição nº 131 de Jurisprudências em Teses do Supremo Tribunal de Justiça: “13) O tráfico de drogas é crime de ação múltipla e a prática de um dos verbos contidos no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 é suficiente para a consumação do delito” (STJ, 2019). Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 1049) destaca a possibilidade de se utilizar das interpretações jurisprudenciais vigentes à Lei 6.368/76 para caracterização no crime de tráfico de drogas, para além do caput, do art. 33, da Lei 11.343/06, os do § 1º deste, bem como os crimes previstos nos artigos 34, 36 e 37 do dispositivo legal, tendo em vista que as condutas tipificadas nos artigos e parágrafo referidos eram expostas nos artigos 12 e 13 da Lei de Drogas anterior. Esta nominação extensiva aos delitos elencados tem como consequência primeira sua equiparação aos crimes hediondos, o que se reforça pela leitura do artigo 44 da Lei de Drogas: “Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e §1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos” (BRASIL, 2006). Denota-se, para Lima (2020, p. 1049), a prevalência do entendimento jurisprudencial à legislação anterior em detrimento do artigo 44 da Lei de Drogas, pois compreende que, perante a ausência do crime de associação ao tráfico9 como hediondo previamente à Lei 11.343/06, este não pode ter equivalência ao delito de “tráfico de drogas” e, por conseguinte, não traz consigo equiparação a crime hediondo. No que diz respeito ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal do tráfico de drogas, observa-se, primariamente, a saúde pública e, subsidiariamente, a vida e a saúde individual de cada cidadão (ANDREUCCI, 2021, p. 341), tendo-se que o objetivo da Lei é evitar o dano para a saúde causado pelo uso de drogas (MARCÃO, 2015 p. 94). Em complemento, lecionam Gomes e Cunha: “O bem jurídico protegido é a saúde pública (tutela imediata) e a saúde individual de pessoas que integram a sociedade (tutela mediata). A saúde pública é um bem jurídico supra-individual que deve sempre ter como referência última os bens jurídicos pessoais” (2010, p. 250). 1.3.3 Do tráfico minorado – art. 33, § 4º, Lei 11.343/06 9 Art. 14 da Lei nº 6.368/76 e art. 35 da Lei nº 11.343/06 26 Conforme pontuado alhures, importante inovação legislativa foi instituída pela Lei 11.343/06 com a criação da causa especial de diminuição de pena ao crime de tráfico de drogas, prevista no artigo 33, § 4º, do texto legal, a qual, em seu texto original, trazia: § 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em pena restritiva de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa (BRASIL, 2006). Renato Brasileiro salienta que a criação da minorante citada é fundada em questões relacionadas a política criminal, figurando como um “favor legislativo” ao pequeno traficante, que ainda não se envolveu profundamente no mundo criminoso, possibilitando-lhe uma mais célere ressocialização. O autor ainda vislumbra uma impropriedade técnica na denominação da referida causa de diminuição de pena como tráfico privilegiado, notadamente o fato de que não houve a criação de reprimenda mínima e máxima cominada ao agente, mas apenas a possibilidade de redução de um sexto a um terço à pena aplicada ao crime do art. 33, caput, da Lei 11.343 de 2006, a ser considerada na terceira fase da dosimetria da pena (2020, p. 1069). Nesse espeque, exemplifica-se como verdadeiro “crime privilegiado” o infanticídio, que, a despeito de ser um crime autônomo, enquadra-se como “homicídio privilegiado”, por possuir preceito secundário próprio, com penas inferiores às imputadas ao autor de homicídio simples (GANEM, 2018). Em observância ao artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/06, extrai-se a necessidade de preenchimento de quatro requisitos nos quais o agente deve se enquadrar para que haja a possibilidade de configuração da minorante, os quais devem ser caracterizados cumulativamente (MASSON e MARÇAL, 2019, p. 84). A primariedade deve ser interpretada a contrario sensu do conceito de reincidência, previsto no artigo 63 do Código Penal10, de modo que, não sendo reincidente, trata-se de agente primário. Insta salientar que, por este critério, não se exige que o autor nunca tenha cometido um crime, mas tão somente que não o tenha feito após o trânsito em julgado de uma condenação anterior (LIMA, 2020, p. 1070). Ademais, Masson e Marçal destacam que o agente tecnicamente primário preenche o presente requisito: 10 Art. 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. 27 Em sede jurisprudencial, contudo, criou-se a figura do tecnicamente primário, que seria a pessoa que possui condenação definitiva, sem ser reincidente. A primariedade estaria limitada aos casos em que o agente não ostenta nenhuma condenação. Em nosso sistema penal, o tecnicamente primário poderia ser visualizado em duas hipóteses: (a) o sujeito possui uma ou diversas condenações definitivas, mas não praticou nenhum dos crimes depois da primeira sentença condenatória transitada em julgado; e (b) o indivíduo ostenta uma condenação definitiva, e depois dela praticou um novo crime. Entretanto, entre a extinção da punibilidade do crime anterior e o novo delito decorreu período superior a 5 (cinco) anos (CP, art. 64, I). Seja como for, para o preenchimento desse requisito da causa especial de diminuição de pena, basta que o agente não seja reincidente (2019, p. 85). Segundo Lima, maus antecedentes são “aqueles que merecerem a reprovação de autoridade pública e que representam expressão de sua incompatibilidade para com os imperativos ético-jurídicos” (LIMA, 2020, p. 1071). É considerada pacífica a inviabilidade da utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso como maus antecedentes para agravar a pena-base, tendo sido firmado este entendimento pela Súmula 444 do Supremo Tribunal de Justiça11 e reiteradamente reforçado por jurisprudências do Supremo Tribunal Federal. Destarte, somente há de se falar em maus antecedentes quando o agente contar com condenação prévia transitada em julgado, em respeito ao princípio da presunção de inocência12. Todavia, divergência doutrinária existe no que tange à consideração de condenação extinta – ou cumprida – há mais de cinco anos13 como maus antecedentes. Uma primeira corrente doutrinária e jurisprudencial compreende que o prazo depurador do artigo 64, inciso I, do Código Penal, aplica-se somente à reincidência, persistindo a possibilidade de se considerar condenação anterior ao prazo de cinco anos como maus antecedentes14 (MASSON e MARÇAL, p. 85). Já um segundo entendimento, defendido por Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 1070) e inspirado no HC 119.200/PR, do STF, julgado em 11/02/2014, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, compreende que a existência de condenação nos termos supracitados extinguiria não somente os efeitos da reincidência, mas também seus maus antecedentes. Para esta segunda corrente, há maior flexibilidade para o reconhecimento do tráfico minorado, pois subsistiria “como maus antecedentes somente uma condenação definitiva por fato anterior – jamais posterior – ao crime cuja pena se esteja a individualizar, pouco importando o momento do 11 É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base (STJ, Súmula 444, Terceira Seção, julgado em 28/04/2010, DJe 13/05/2010). 12 Artigo 5º, inciso LVII, Constituição Federal de 1988. 13 Em relação à data do novo fato criminoso. 14 Ressalvada a Súmula 241 do STJ, que veda a caracterização bis in idem de reincidência como circunstância agravante e, concomitantemente, circunstância judicial desfavorável. 28 trânsito em julgado”, com a ressalva de que, em havendo mais de uma condenação irrecorrível, sem que tenha transcorrido o prazo de cinco anos, pode-se considerar uma delas para fins de reincidência e a outra como maus antecedentes, figurando como circunstância desfavorável na primeira fase da dosimetria (LIMA, 2020, p. 1070). De todo modo, o agente que almeja a aplicação do benefício do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06, não poderá ser reincidente ou contar com maus antecedentes. O terceiro quesito, a não dedicação a atividades criminosas, é fator que, a princípio, se presume ao acusado primário e de bons antecedentes. Dessa forma, à presença de dúvida no ponto, a questão se solucionará em benefício do réu (LIMA, 2020, p. 1072). A comprovação de exercício de atividade remunerada lícita é fator a se sopesar em favor do autor do ilícito na consideração deste quesito. Lado outro, é recorrente nas cortes superiores o entendimento de que a condenação do agente pelo crime de associação voltada para o tráfico de drogas – ou de associação criminosa –, culminado com o de tráfico de drogas, impede a concessão do benefício, independentemente, segundo Lima (2020, p. 1073) de o autor comprovar atividade laborativa lícita, tendo em vista que não se exige a exclusiva dedicação à atividade criminosa para o afastamento da benesse. Questão controvertida no ponto reside na possibilidade de utilização de ações penais em curso e inquéritos policiais para a formação de conclusão do julgador de que o agente se dedique a atividades criminosas, a impedir a concessão do benefício, sendo que Renato Brasileiro (2020, p. 1072) e Masson e Marçal (2019, p. 86) militam em favor da referida possibilidade. Por fim, requer-se que o autor não seja integrante de organização criminosa, definida na Lei nº 12.850/13, artigo 1º, § 1º: § 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional (BRASIL, 2013). À leitura do § 4º, do artigo 33, da Lei 11.343/06, extrai-se que, dada a ausência de especificações relativas à natureza das infrações penais, basta que o agente integre organização criminosa para o afastamento da causa de diminuição, não sendo necessário vínculo desta com o comércio ilícito de entorpecentes. 29 Há de se ressalvar que os dois últimos critérios elencados devem favorecer o agente à ausência de prova concreta, sob pena de inviabilidade de afastamento da minorante, desde que preenchidos os demais requisitos legais (ANDREUCCI, 2021, p. 348). Assim, cabe à acusação o ônus da prova quanto ao descumprimento dos quesitos finais elencados no art. 33, § 4º, da Lei 11.343. 30 2 CONSEQUÊNCIAS JURISDICIONAIS À PROMULGAÇÃO DA LEI 11.343/06 E SUAS ALTERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS Diante da eliminação do emprego da pena de prisão para o porte de drogas15, em acréscimo à criação da minorante prevista no artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/06, inconteste que emergiram, com o advento do texto legal, institutos que, em tese, atenuariam o tratamento aplicado aos recém ingressos no mundo do tráfico de drogas e, principalmente, aos usuários de drogas. Dessa maneira, difundiu-se na opinião pública, ao menos no primeiro momento, a ideia de que o ordenamento jurídico-penal brasileiro estaria caminhando para formas menos conservadoras de lidar com a complexa problemática dos usos e mercados de substancias psicoativas (VERÍSSIMO, 2010, p. 332). Ocorre que, em face da equiparação do tráfico de drogas, minorado ou não, a crime hediondo; do tratamento aplicado aos crimes hediondos à época da promulgação da Lei 11.343/06; bem como a determinadas disposições elencadas no corpo do dispositivo legal da Lei de Drogas aos crimes nela tipificados, houve, em verdade, um enrijecimento das consequências penais e processuais penais ao traficante de drogas (VERÍSSIMO, 2010, p. 332; CAMPOS e ALVAREZ, 2017, p. 47). No presente capítulo, será feita exposição acerca das principais alterações – jurisprudenciais e legislativas – aplicadas ao condenado pelo tráfico de ilícito de entorpecentes, com perpasse pelas que se apresentaram quase imediatamente à promulgação da Lei 11.343/06 e aprofundando-se às mais hodiernas, a fim de demonstrar os rumos legais deste crime no Brasil. 2.1 DA VEDAÇÃO À LIBERDADE PROVISÓRIA E DA OBRIGATORIEDADE AO REGIME FECHADO A Lei dos Crimes Hediondos, em seu artigo 2º, inciso II, previa, em sua redação original, que os crimes elencados no rol do artigo 1º e seus equiparados – dentre estes o tráfico de drogas – seriam insuscetíveis de fiança e liberdade provisória. 15 Tendo tal fato culminado, na visão de Luiz Flávio Gomes (2013, p. 111), na impossibilidade de consideração do artigo 28 da Lei de Drogas como crime, passando a se apresentar como uma infração penal sui generis. 31 Como já elencado, a Lei 11.343/2006, em seu artigo 44, reforçou a proibição da liberdade provisória, com ou sem fiança, aos crimes previstos nos artigos 33, caput e §1º, 34 e 37 do dispositivo. Interessante ponderação é feita por Nucci neste ponto, ao apontar incoerência no artigo 5º, inciso LXVI, da Constituição Federal/1988, no qual se estipula que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, uma vez que, sendo a liberdade provisória instituto típico da prisão em flagrante, o disposto no inciso constitucional acaba por punir de modo mais rígido o indivíduo preso em tais circunstâncias: Se o indivíduo é preso em flagrante, quando a lei veda a liberdade provisória, não poderá receber o benefício da liberdade provisória, mesmo sendo primário, de bons antecedentes e não oferecendo maiores riscos à sociedade. Mas se conseguir fugir do local do crime, apresentando-se depois à polícia, sem a lavratura do flagrante, poderá ficar em liberdade durante todo o processo, pelo mesmo crime, pois o juiz não está obrigado a decretar a prisão preventiva. Parece-nos incompreensível essa desigualdade de tratamento. Assim, o correto é exigir uniformidade de raciocínio e de aplicação da lei processual penal a todos os indiciados e acusados, não sendo cabível vedar a liberdade provisória, única e tão somente porque o agente foi preso em flagrante, pela prática de determinados delitos (2014, p. 707). Assim, ante o caráter permanente de diversas condutas previstas no artigo 33 da Lei de Drogas vigente, culminado com a necessidade de apreensão a droga para a configuração da materialidade do crime (LIMA, 2020, p, 1052), via de regra, ocorrerá a caracterização do flagrante nas prisões por tráfico de drogas, e, desse modo, a reiteração de vedação à liberdade provisória ao agente deste delito, independente da presença dos requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, para a manutenção ou decretação da prisão preventiva, sendo que o indivíduo permaneceria encarcerado, sob risco de verdadeira antecipação de pena. Diante desse fator, a vedação à concessão de liberdade provisória, segundo doutrina majoritária, é inconstitucional: Em homenagem aos princípios da presunção de inocência e da legalidade estrita da prisão cautelar, não se pode mais aceitar que o legislador promova a vulgarização da proibição à liberdade provisória. O dispositivo constitucional do art. 5.º, LXVI, menciona que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Ora, a situação é nítida: a prisão cautelar é exceção; a liberdade, regra. Dessa forma, é completamente incoerente – e inconstitucional – vedar, sem qualquer justificativa plausível e sem o estabelecimento de requisitos a serem preenchidos na situação concreta, a liberdade de quem está aguardando o deslinde do seu processo criminal (NUCCI, 2016, p. 381). 32 Ainda, expõe-se que essa “obrigação à prisão cautelar” contrariaria o princípio da presunção de inocência, afastando do Poder Judiciário a possibilidade de análise no âmbito da tutela cautelar, obrigando uma prisão ex lege e elencando a interpretação do inciso LXVI16 do art. 5º da Constituição Federal de 1988 sobre os demais ditames constitucionais, a impedir a devida aplicação do princípio da individualização da pena pelo magistrado. Vê-se: Em outras palavras, ao restringir a liberdade provisória em relação a determinado delito, estar-se-ia estabelecendo hipótese de prisão cautelar obrigatória, em clara e evidente afronta ao princípio da presunção de não culpabilidade. De mais a mais, ao se vedar de maneira absoluta a concessão da liberdade provisória, tais dispositivos legais estariam privando o magistrado da análise da necessidade da manutenção da prisão cautelar do agente, impondo verdadeira prisão ex lege. Criar-se-ia, então, um juízo prévio e abstrato de periculosidade, feito pelo Legislador, retirando do Poder Judiciário o poder de tutela cautelar do processo e da jurisdição penal, que só pode ser realizado pelo magistrado a partir dos dados concretos de cada situação fática. (...) Não é dado ao legislador ordinário legitimidade constitucional para vedar, de forma absoluta, a liberdade provisória. A manutenção da prisão em flagrante deve, necessariamente, ser calcada em um dos motivos constantes dos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal, e, por força do art. 5º, XLI e 93, IV, da Constituição da República, o magistrado, ao negar a liberdade provisória, está obrigado a apontar os elementos concretos que dão legitimidade à medida (LIMA, 2020, p. 360). Valemo-nos do mesmo argumento já utilizado em nossa tese Individualização da pena: se a Constituição Federal menciona que a lei regulará a individualização da pena (art. 5º, XLVI), é natural que exista a referida individualização. Os critérios para a concessão (ou negação) são legislativos, mas não se pode fazer desaparecer o direito. Por isso, foi proclamada inconstitucional, pelo STF, a proibição, pura e simples, da liberdade provisória, no cenário do Estatuto do Desarmamento e noutros casos similares (NUCCI, 2014, p. 708). Posto isso, embora ainda não impedisse referida vedação, a Súmula 697 do STF, aprovada em Sessão Plenária de 29/09/2003, já versava que “A PROIBIÇÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA NOS PROCESSOS POR CRIMES HEDIONDOS NÃO VEDA O RELAXAMENTO DA PRISÃO PROCESSUAL POR EXCESSO DE PRAZO.” (STF, 2003). Meses após a promulgação da Lei 11.343/06, no rumo dos entendimentos doutrinários mencionados, operou-se alteração da Lei dos Crimes Hediondos pela Lei 11.464/07, pela admissão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, criando-se uma dissonância, portanto, entre o tratamento disposto ao tráfico de drogas em relação aos crimes elencados no artigo 1º da Lei 8.072/90. Essa diferenciação fez emergir maior insegurança jurídica acerca do tema, até que, em 10 de maio 2012, o Plenário do STF, no HC nº104.339, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, decidiu pela inconstitucionalidade da expressão “liberdade provisória” prevista no 16 LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (BRASIL, 1988). 33 artigo 44 da Lei de Drogas, passando a admitir, finalmente, a prisão cautelar para os crimes de tráfico de drogas somente à presença de requisito elencado no art. 312 do Código de Processo Penal (STF, 2012). A tornar mais concreto o referido entendimento, o Supremo Tribunal Federal, em 2017, reafirmou a inconstitucionalidade do referido trecho do artigo 44 da Lei 11.343/06, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.038.925, em tese de repercussão geral. Eis a ementa da decisão: Recurso extraordinário. 2. Constitucional. Processo Penal. Tráfico de drogas. Vedação legal de liberdade provisória. Interpretação dos incisos XLIII e LXVI do art. 5º da CF. 3. Reafirmação de jurisprudência. 4. Proposta de fixação da seguinte tese: É inconstitucional a expressão e liberdade provisória, constante do caput do artigo 44 da Lei 11.343/2006. 5. Negado provimento ao recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal. Decisão: O Tribunal, por maioria, reputou constitucional a questão, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestou a Ministra Cármen Lúcia. O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestou a Ministra Cármen Lúcia. No mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestou a Ministra Cármen Lúcia (STF - Repercussão Geral No Recurso Extraordinário 1.038.925 São Paulo – Relator: Gilmar Mendes. Julgado em 18/08/2017). O julgamento do RE em análise foi salutar à pacificação jurisprudencial do tema, ante a inércia do Senado Federal em editar resolução para suspender a execução da lei declarada inconstitucional, de modo a fixar a tese: “É inconstitucional a expressão e liberdade provisória, constante do caput do artigo 44 da Lei 11.343/2006.” (STF, 2017). Como se vê à manifestação do Ministro Relator Gilmar mendes: É que, até o presente momento, não foi editada pelo Senado Federal, resolução com fins a suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Assim, manifesto-me, uma vez mais, pela existência de repercussão geral da questão constitucional debatida e pela reafirmação da jurisprudência desta Corte, de modo a fixar o entendimento no sentido da inconstitucionalidade da vedação legal à liberdade provisória contida no artigo 44 da Lei 11.343/2006 (STF - Repercussão Geral No Recurso Extraordinário 1.038.925 São Paulo – Relator: Gilmar Mendes. Julgado em 18/08/2017). Outrossim, a Lei 11.464/07 também operou mudança no § 1º, artigo 2º, da Lei dos Crimes Hediondos, superando-se a previsão do regime integralmente fechado para cumprimento de pena aos crimes hediondos e equiparados, para que passasse a se ter a 34 obrigatoriedade de regime apenas inicialmente fechado17, estendendo esta previsão ao crime de tráfico de drogas. Ainda neste rumo, em 2012, o Supremo Tribunal Federal declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da obrigação do regime inicial fechado aos condenados por crimes hediondos e assemelhados, em julgamento do HC 111.840, por maioria dos votos, em sessão extraordinária realizada no dia 27 de junho. O fundamento deste entendimento se consubstanciou, principalmente, na afronta que o § 1º, do artigo 2º, da Lei 8.072/90 ofereceria ao princípio da individualização da pena. Vê-se: Habeas corpus. Penal. Tráfico de entorpecentes. Crime praticado durante a vigência da Lei nº 11.464/07. Pena inferior a 8 anos de reclusão. Obrigatoriedade de imposição do regime inicial fechado. Declaração incidental de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n.º 8.072/90. Ofensa à garantia constitucional da individualização da pena (inciso XLVI do art. 5º da CF/88). Fundamentação necessária (CP, art. 33, § 3º, c/c o art. 59). Possibilidade de fixação, no caso em exame, do regime semiaberto para o início de cumprimento da pena privativa de liberdade. Ordem concedida. (...) 2. Se a Constituição Federal menciona que a lei regulará a individualização da pena, é natural que ela exista. Do mesmo modo, os critérios para a fixação do regime prisional inicial devem-se harmonizar com as garantias constitucionais, sendo necessário exigir-se sempre a fundamentação do regime imposto, ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado. [...] Ordem concedida tão somente para remover o óbice constante do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 11.464/07, o qual determina que ‘[a] pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado’. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da obrigatoriedade de fixação do regime fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo ou equiparado. (STF - HC 111.840, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/06/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-249 DIVULG 16-12-2013 PUBLIC 17-12-2013) Ressalta-se que, embora superada esta obrigação ao regime inicial fechado para cumprimento de pena pelos crimes em questão, não há impedimento de que o magistrado estabeleça mais severo regime, desde que fundamente a decisão em elementos individualizados do caso concreto que demonstrem a necessidade do rigor mais ferrenho, em observância aos critérios dos artigos 33, §§ 2º e 3º, do Código Penal, e artigo 42 da Lei 11.343/2006 (MASSON e MARÇAL, 2020, P. 60). 2.2 DO TRÁFICO PRIVILEGIADO 17 § 1o A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007) (BRASIL, 2007). 35 2.2.1 Da vedação à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos O Código Penal elenca, em seu artigo 44, os requisitos necessários para que o magistrado possa operar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, os quais devem ser considerados cumulativamente para seu efetivo preenchimento. Entende-se, ademais, os incisos I e II do artigo como de ordem objetiva, e o III como de ordem subjetiva (GRECCO, 2017, p. 259). São eles: Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998) I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;(Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998) II – o réu não for reincidente em crime doloso; (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998) III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998) (BRASIL, 1940). Finalizadas as três fases da dosimetria – com base no critério trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal – e fixado o regime inicial para cumprimento de pena, não sendo o agente condenado a pena superior a quatro anos ou apontada a reincidência em crime doloso, faz-se necessária uma reavaliação das circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código penal18, com a finalidade de se decidir pela substituição da pena, sendo esta tida como direito subjetivo do sentenciado, desde que se enquadre às exigências legais (GRECO, 2017, p. 262). Em minuciosa explicação: A lei impõe várias condições para a substituição, uma delas de valoração subjetiva (a indicação da suficiência da medida). Todavia, caso o acusado preencha os requisitos legais da substituição, esta não lhe pode ser negada, arbitrariamente, pelo juiz. Se o julgador entender que falta algum requisito para a concessão, deve fundamentar a negativa da substituição (CR, art. 93, IX), pois ela é direito público subjetivo do acusado, desde que este preencha todas as condições exigidas pela lei. Sendo o condenado reincidente genérico em crime doloso, a lei exige, ainda, que a substituição seja socialmente recomendável em face da condenação anterior (DELMANTO et al., 2016, p. 228). Com a edição da Lei 11.343/2006, a análise acerca da substituição deixou de ser pertinente ao tráfico propriamente dito (art. 33, caput), ante o aumento da pena mínima aplicada 18 Excetuados o comportamento da vítima e as consequências do crime, notadamente porque sua análise não foi demandada pelo inciso III do art. 44 do Código Penal. 36 ao delito de três para cinco anos, ultrapassando o primeiro critério objetivo do inciso I, do artigo 44, do Código Penal. E o mesmo vale para os crimes hediondos e demais equiparados, uma vez que estes delitos – ainda que alternativamente – terão pena mínima superior a quatro anos ou serão cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa (NUCCI, 2020, p. 580). Ante este fator, o direito subjetivo em tela somente seria cabível, em tese, quando reconhecido o tráfico minorado. Contudo, conforme previamente suscitado, a redação original do artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/06, trazia expressa a vedação à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando da aplicação desta causa de diminuição de pena (LIMA, 2016, p. 756). Em 01 de setembro de 2010, entretanto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no HC 97.256/RS, decidiu pela inconstitucionalidade do impedimento à referida substituição, por ofensa ao princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CRFB/88), admitindo-se, portanto, a aplicação da pena restritiva de direitos ao tráfico crime de tráfico de drogas – mesmo quando da condenação pelo caput do artigo 33 da Lei de Drogas – desde que preenchidos os requisitos do artigo 44 do Código Penal (MASSON e MARÇAL, 2019, p. 84; NUCCI, 2020, p. 580). O Relator Ayres Brito, em seu voto, salientou que o artigo 5º, XLIII, da CF/88, ao versar sobre os crimes hediondos e equiparados, não restringe a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Além, o Ministro destaca que o Poder Judiciário é o detentor do poder-dever de “impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, se afigurar como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação (...) de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo” (STF, 2010, p. 23), não podendo o legislativo substituí-lo nesta análise. E acrescenta, a reforçar a aplicação do princípio da individualização da pena: O que estamos a ajuizar não é senão o seguinte: o direito penal bem pode cumular penas, inclusive a privativa e a restritiva de liberdade corporal (vide o §4º do art. 37 da CF, emblemático em tema de cumulação de sansões), mas lhe é vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória. Uma coisa é a lei estabelecer condições mais severas para a concreta incidência da alternatividade, severidade jurisdicionalmente sindicável tão-só pelos vetores da razoabilidade e da proporcionalidade. Outra coisa, porém, é proibir ao julgador, pura e secamente, a convolação da pena supressora de liberdade em pena restritiva de direitos. Opção que a encarecida garantia da individualização da reprimenda, exatamente por ser a antítese da desindividualização, não tolera (STF. HC 97.256/SC –Relator Ministro Ayres Brito. Julgado em 01/09/2010. Publicado em 16/12/2010, p. 25). 37 Insta salientar que esta inconstitucionalidade foi decidida em sede de controle constitucional difuso. Diante disso, tendo em vista que, à época, o STF adotava a concepção “tradicional” do artigo 52, X, da CRFB/8819, a inconstitucionalidade em tela possuía apenas eficácia inter partes, bem como efeitos não vinculantes. A fim de que se conferisse eficácia erga omnes ao entendimento do STF no HC 97.256/SC, havia a necessidade de edição de Resolução pelo Senado Federal, para que se suspendesse a execução do trecho julgado inconstitucional do § 4º, art. 33, da Lei 11.343/06. Conforme explica Alexandre de Moraes: Outra relevante atribuição do Senado Federal enfeixava-se sobre a suspensão de eficácia de lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, também denominada “suspensão de execução”, delineada como ato político do Senado Federal, veiculado pela Resolução de que trata o art. 52, inc. X, da CRFB, que conferia efeitos erga omnes à decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal perante a Constituição Federal (2018, p. 1183). Desta feita, a presidência do STF remeteu ofício ao Senado em fevereiro de 2011, tendo sido promulgada, em 15 de fevereiro, a Resolução nº 5/2012 do Senado Federal, para suspender, em seu art. 1º, a execução da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos” prevista no artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/06, conferindo efeito erga omnes e ex nunc à possibilidade da conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos para o traficante quando reconhecido o tráfico privilegiado. A Resolução, todavia, não suspendeu a vedação à substituição prevista no artigo 44 da Lei, sob o argumento de risco de benefício ao traficante de maior periculosidade. Reitera-se que, embora o Supremo Tribunal Federal tenha julgado constitucional a substituição da pena inclusive ao tráfico de drogas propriamente dito, tal medida não consubstancia alterações práticas ao sentenciado no caput do artigo 33 da Lei de Drogas, em face seu preceito secundário, que determina uma pena mínima de cinco anos e, portanto, não se enquadra ao primeiro critério objetivo para a substituição. Destarte, certo que tal medida somente se aplica, na prática, quando reconhecido o tráfico minorado, e em fração que reduza a reprimenda a patamar não superior a quatro anos, de modo a preencher o requisito objetivo do art. 44, inciso I, do Código Penal. Não é 19 Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1988). 38 resguardada de consequências atualmente aplicáveis, portanto, a opção pela não suspensão do trecho julgado inconstitucional do artigo 44 da Lei de Drogas. Independente do reconhecimento parcial pelo Senado, inquestionável que a promulgação da Resolução nº 5/2012 mostrou-se fundamental a abrandar o tratamento disposto ao pequeno traficante, para atuar, em tese, como via de redução ao encarceramento em massa pelos delitos de drogas. 2.2.2 Afastamento do tráfico privilegiado com fundamento em inquéritos policiais e ações penais em curso No que tange à possibilidade de consideração de inquéritos policiais e ações penais em curso para o convencimento do magistrado de que o autor do crime de tráfico de drogas dedica- se atividades criminosas, a fim de impedir a concessão da causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06, há doutrinadores que coadunam da referida possibilidade: Finalmente, a existência de inquéritos policias e/ou ações penais em curso pode (e deve) ser utilizada pelo magistrado como circunstância apta a afastar a figura privilegiada, pelo fato de indicar a dedicação do agente a atividades criminosas, nada obstante seja vedado utilizar tais fatores como circunstância judicial desfavorável, na dosimetria da pena-base, uma vez que não caracterizam maus antecedentes (MASSON e MARÇAL, 2019, P. 86). Conquanto não seja possível a utilização de inquéritos policiais e processos penais em curso para se concluir que o acusado tenha maus antecedentes, admite-se a utilização desse critério para formar a convicção de que o réu se dedica a atividades criminosas, de modo a afastar o benefício legal previsto no art. 33, §4º, da Lei n. 11.343/06. Não se trata de avaliação de inquéritos ou processos penais para agravar a situação do réu condenado por tráfico de drogas, mas sim uma forma de se afastar um benefício legal, porquanto existentes elementos concretos para concluir que ele se dedica a atividades criminosas, sendo inquestionável que, em determinadas situações, a existência de investigações e/ou ações penais em andamento possam ser elementos aptos para formação da convicção do magistrado. Ademais, como os princípios constitucionais devem ser interpretados de forma harmônica, não merece ser interpretado de forma absoluta o princípio da inocência (LIMA, 2020, P. 1072). Referido entendimento baseia-se na síntese de que, embora inquéritos policiais e ações em curso não possam ser irrestritamente utilizados para o afastamento da benesse, a vedação de sua utilização não poderia se dar de modo geral, ideia esta apresentada por orientação firmada no julgamento do EREsp 1.431.091/SP, da 3ª Sessão do STJ, de relatoria do Ministro Felix Fischer, julgado em 14/12/2016. Este fundamento, inclusive, foi empregado no voto do Ministro Fischer no julgamento de AgRg no Habeas corpus nº 621.828/RS, de sua relatoria, no 39 qual a Quinta Turma do STJ decidiu unanimemente neste sentido, em julgamento realizado em 09/03/2021. Ocorre que o Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou mudança de ares no tocante à possibilidade em questão, sob argumento de infração ao princípio constitucional da presunção de inocência: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CRIMINAL. INQUÉRITOS POLICIAIS E PROCESSOS CRIMINAIS EM CURSO. ANTECEDENTES CRIMINAIS. ART. 33, § 4º, DA LEI 11.343/2006. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO CULPABILIDADE. RE 591.054-RG/SC. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. II – A aplicação da causa de diminuição pelo tráfico privilegiado, nos termos do art. 33, § 4°, da Lei 11.343/2006, não pode ter sua aplicação afastada com fundamento em investigações preliminares ou processos criminais em andamento, mesmo que estejam em fase recursal, sob pena de violação do art. 5º, LIV, da Constituição Federal. III- Agravo regimental a que se nega provimento (STF. RE 1.283.996 AgR, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 11/11/2020, DJe 02-12- 2020 PUBLIC 03-12-2020). Em consonância a este posicionamento, deu-se o julgamento do HC 199.309 no STF, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgado pela Primeira Turma em 24/05/2021. Diante disso, a impossibilidade de tal utilização também veio a ser acolhida pela Sexta Turma do Supremo Tribunal de Justiça, nos HCs 654.773/MT e 673.030/SP, ambos julgados em agosto de 2021: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. SENTENÇA. TRÁFICO DE DROGAS (69,05 G DE MACONHA, 52,8 G DE COCAÍNA E 12,87 G DE CRACK). DOSIMETRIA. TERCEIRA FASE. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA DO TRÁFICO PRIVILEGIADO (ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006). INDEFERIMENTO. FUNDAMENTAÇÃO. AFASTAMENTO DO TRÁFICO PRIVILEGIADO. EXISTÊNCIA DE UMA ÚNICA AÇÃO PENAL EM CURSO. NÃO APREENDIDA GRANDE QUANTIDADE DE ENT ORPECENTE. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DA SEXTA TURMA. PENA REDIMENSIONADA. REGIME INICIAL. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. ENUNCIADO N. 440 DA SÚMULA DO STJ. AGRAVAMENTO. GRAVIDADE CONCRETA. REGIME SEMIABERTO FIXADO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA LIMINARMENTE. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTE. ILEGALIDADE MANIFESTA NÃO EVIDENCIADA. AGRAVO IMPROVIDO (STJ. AgRg no HABEAS CORPUS Nº 673030/SP. Relator Ministro Sebastião Reis Júnior. Julgado em 10/08/2021. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA DO ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. EXISTÊNCIA DE PROCESSOS CRIMINAIS EM CURSO. FUNDAMENTO INIDÔNEO PARA AFASTAR O 40 BENEFÍCIO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A mais recente orientação de ambas as turmas do Supremo Tribunal Federal é a de que, em regra, inquéritos policiais e ações penais em andamento não constituem fundamentação idônea apta a respaldar a não aplicação do redutor especial de pena relativo ao reconhecimento da figura privilegiada do crime de tráfico de drogas. Além disso, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente pronunciamento, apresentou entendimento alinhado à Suprema Corte. 2. Nessa esteira de entendimento, constata-se que a Corte de apelação não apresentou fundamentação válida para afastar a causa especial de redução de pena, razão pela qual se conclui pela incidência da referida minorante em seu grau máximo, notadamente em virtude da pequena quantidade de entorpecentes apreendida. 3. Agravo regimental a que se nega provimento (STJ. AgRg no AgRg no HABEAS CORPUS Nº 654.773/MT. Relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro. Julgado em 10/08/2021, DJe 16/08/2021). Em razão das efervescentes alterações de posicionamento das cortes superiores, em julgamento mais recente, no HC nº 664.284/ES, a Quinta Turma do STJ modificou seu entendimento prévio, unificando a posição dos colegiados da Turma – e, consequentemente, dentro da Terceira Seção da Corte, notadamente a consonante cognição da Sexta Turma – pela impossibilidade de se afastar a aplicação do tráfico privilegiado com fundamento em investigações ou ações penais em andamento, vê-se: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA DO ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. RÉU QUE RESPONDE A OUTRA AÇÃO PENAL EM CURSO. FUNDAMENTO INVÁLIDO. MANIFESTA ILEGALIDADE VERIFICADA. UNIFORMIZAÇÃO DE ENTENDIMENTO ENTRE AS TURMAS. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. (...) 3. Habeas corpus não conhecido. Contudo, concedo a ordem, de ofício, para fazer incidir a causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 no grau máximo, redimensionando a pena do paciente para 1 ano e 8 meses de reclusão mais 166 dias-multa, bem como para estabelecer o regime aberto e substituir a pena privativa de liberdade por restritivas de direito, a ser definida pelo Juízo de Execução. (STJ - HC nº 664.284/ES, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 21/09/2021, Dje em 27/09/2021). A demonstrar essa consolidação jurisprudencial pela Terceira Seção, o órgão julgador, em consonância ao posicionamento majoritário do STJ, firmou o Tema 1.139: “É vedada a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06” (STJ, 2022). Diante do exposto, reputa-se que as cortes superiores apresentam um uma tendência de consolidação do entendimento pela impossibilidade de consideração de inquéritos e ações em curso para constatação de dedicação do agente a atividades criminosas, o que, associado à impossibilidade de utilizá-los para fins de reincidência e maus antecedentes (Súmula 444 do STJ), resultará na plena inviabilidade de sua utilização para impedir o reconhecimento do tráfico privilegiado. 41 2.2.3 Da (não) hediondez do tráfico privilegiado Principalmente nos anos subsequentes ao advento da Lei de Drogas vigente, a jurisprudência era rigorosa no sentido da compatibilidade do tráfico privilegiado a crime hediondo. A sustentar a compatibilidade do tráfico minorado a crime hediondo, Renato Brasileiro de Lima (2016, p. 756) utilizava-se do fundamento – reiteradamente empregado pela doutrina – de que, tratando-se de mera causa especial de diminuição de pena, o previsto no § 4º, do artigo 33, da Lei 11.343/06 não se diferenciaria do tráfico propriamente dito quanto à sua natureza hedionda. Este foi, por extenso período, o posicionamento jurisprudencial adotado pelos Tribunais Superiores acerca do tráfico privilegiado, tornando-se unânime no Supremo Tribunal de Justiça. Primeiramente, consolidou-se o entendimento pela hediondez do tráfico minorado com o julgamento de recurso especial representativo de controvérsia20, REsp n. 1.329.088/RS no qual a 3ª Seção do STJ decidiu pelo reconhecimento do caráter hediondo do capitulado no artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. O fundamento para tal se baseou no não reconhecimento de uma redução da gravidade da conduta do tráfico minorado, além da não existência de uma figura privilegiada do crime de tráfico de drogas, se admitindo tão somente que esta causa de diminuição teria o intuito de promover mais célere ressocialização do pequeno traficante à sociedade: RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA (ART. 543-C DO CPP). PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. APLICAÇÃO DO ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. CAUSA DE DIMINUIÇÃO. CARÁTER HEDIONDO. MANUTENÇÃO. DELITO PRIVILEGIADO. INEXISTÊNCIA. EXECUÇÃO DA PENA. PROGRESSÃO. REQUISITO OBJETIVO. OBSERVÂNCIA. ART. 2º, § 2º, DA LEI N. 8.072/1990. OBRIGATORIEDADE. 1. A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas, uma vez que a sua incidência não decorre do reconhecimento de uma menor gravidade da conduta praticada e tampouco da existência de uma figura privilegiada do crime. 2. A criação da minorante tem suas raízes em questões de política criminal, surgindo como um favor legislativo ao pequeno traficante, ainda não envolvido em maior profundidade com o mundo criminoso, de forma a propiciar-lhe uma oportunidade mais rápida de ressocialização.3. Recurso especial provido para reconhecer o caráter hediondo do delito de tráfico de drogas, mesmo tendo sido aplicada a causa de diminuição prevista 20 “O recurso representativo de controvérsia, ou RRC, é o processo escolhido dentre vários outros que possuam a mesma questão de direito, e que servirá como caso concreto paradigma para que o Superior Tribunal de Justiça fixe a tese jurídica, tornand