UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "Júlio de Mesquita Filho" Instituto de Artes - Campus de São Paulo Amanda Gabriela de Oliveira AG d’Oliveira (RE)CONSTRUINDOMEMÓRIAS: Coisas descartadas, achadas, acumuladas e ressignificadas São Paulo - SP 2024 Amanda Gabriela de Oliveira AG d’Oliveira (RE)CONSTRUINDOMEMÓRIAS: Coisas descartadas, achadas, acumuladas e ressignificadas Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, São Paulo, para obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais, sob orientação da Profª Drª Renata Pedrosa Romeiro. São Paulo - SP 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. O48r Oliveira, Amanda Gabriela de (AG d’Oliveira), 2001- (re)Construindo memórias : coisas descartadas, achadas, acumuladas e ressignificadas / Amanda Gabriela de Oliveira. -- São Paulo, 2024. 218 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Pedrosa Romeiro. TCC (Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte na educação. 2. Identidade social. 3. Memória na arte. 4. Meio ambiente (Arte) I. Pedrosa, Renata, 1967-. II.Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 707 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 Amanda Gabriela de Oliveira AG d’Oliveira (RE)CONSTRUINDOMEMÓRIAS: Coisas descartadas, achadas, acumuladas e ressignificadas Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, São Paulo, para obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais. Defesa realizada em: 25/10/2024. Banca Examinadora Prof.ª Dr.ª Renata Pedrosa Romeiro Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - Orientadora Prof.ª Dr.ª Rejane Galvão Coutinho Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Para meus lugares de memória e afetividade. Agradecimentos Agradeço à minha orientadora Renata que aceitou me orientar e tornou essa pesquisa possível. À professora Rejane por me mostrar as possibilidades da arte educação, assim como o papel da memória no ensino da arte e aceitar fazer parte dessa banca. Ao Pedro, pela disponibilidade de integrar essa banca. À Camilla que entende e melhora minhas ideias, por me aguentar nesse processo de realização de TCC, pelas trocas e parceria em todo o processo. À minha irmã Isabella, por ser a melhor pessoa que conheço, ser minha melhor amiga, me entender como ninguém e se fazer disponível para ler e revisar meus textos quando necessário. Aos meus pais, Roseli e José Roberto por me manterem bem alimentada mesmo a 452 km de distância, serem meu lugar seguro e de conforto, por acreditarem no meu potencial e me incentivarem a fazer algo que me faz feliz, enquanto tiverem orgulho de mim eu sei que posso realizar qualquer coisa. Aos meus avós, Gercina e Ari, dos quais sinto muita falta. À minha tia Rosângela por estar presente nos momentos importantes e me contar histórias. Ao Don Frederico por ser o melhor gato do mundo e não me deixar me sentir sozinha. À minha Pandora que sempre está feliz em me ver. À Bárbara por ler e revisar esse trabalho. À Beatriz pelos cafés de cada dia e Ana pelas conversas de madrugada. À Fernanda por ter me ensinado a ser vulnerável, por rir e chorar comigo. À Bruna por ver o melhor de mim, ter os melhores abraços e por sua amizade sincera. Ao Iury por me considerar uma ótima artista e me tirar da minha zona de conforto. E agradeço também aos participantes da oficina por seu interesse e dedicação, e a todos que torcem por mim e desejam meu bem de alguma forma. Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade Resumo Com base na visão de arte educadora e nas minhas experiências com a prática artística, este trabalho visa explorar a importância da memória e afetividade na construção de uma identidade individual e coletiva. Ademais, evidenciar como a arte pode ser o conector que une esses fatores ao se relacionar com as experiências do indivíduo, considerando-a uma forma de expressão e um meio de transformação e criação, a partir de si e através da multiplicidade de possibilidades inerentes aos processos artísticos. Dessa forma, ao explorar o uso de materiais acessíveis, como objetos achados—desde os que carregam memórias afetivas, até aqueles que foram descartados e esquecidos—e empregando o processo de ressignificação através do uso de símbolos, analogias e associações, aliado ao método de assemblagem, busco preencher a lacuna entre a arte e a experiência cotidiana. Palavras-chave: arte-educação; memória; afetividade; assemblagem; ressignificação; cotidiano. Abstract Based on the perspective of art education and my experiences in artistic practice, this work aims to explore the significance of memory and affectivity in the construction of both individual and collective identity. Moreover, it aims to demonstrate how art functions as a connector, bringing these elements together through engagement with personal experiences, considering it as a form of expression and also a vehicle for transformation and creation from oneself and through the multitude of possibilities inherent in artistic processes. Therefore, by exploring the use of accessible materials, such as found objects—ranging from those that carry emotional significance to those discarded and forgotten—and employing the process of re-signification through the use of symbols, analogies, and associations, combined with the method of assemblage, I seek to bridge the gap between art and the everyday experience. Keywords: art education; memory; affection; assemblage; re-signification; everyday experience. Lista de Ilustrações Experiências didáticas anteriores Figura 1 - Davi e Isa durante uma atividade de desenho. 34 Figura 2 - Pyetro desenhando com giz de cera. 35 Figura 3 - Atividade durante o acompanhamento com crianças. 35 Figura 4 - Desenho realizado durante atividade de desenho colaborativo (1). 36 Figura 5 - Desenho realizado durante atividade de desenho colaborativo (2). 37 Figura 6 - Davi e Isa fazendo pintura facial. 38 Figura 7 - Lanche ao final do encontro. 39 Figura 8 - Unicórnio sentado, Laila. 43 Figura 9 - Unicórnio alado, Sara. 43 Figura 10 - Atividade de criar e colorir personagem. 45 Figura 11 - Interação com painel Snoopy. 46 Experiências com Arte Figura 12 - AG d’Oliveira. Identidade em construção, 2019. 51 Figura 13 - Vista das escadas da estação Anhangabaú. 53 Figura 14 - Vista do Theatro Municipal com placa Bela Vista. 53 Figura 15 - Vista da janela do prédio na Japurá, 94. 53 Figura 16 - AG d’Oliveira. Anhangabaú, 2019. 54 Figura 17 - AG d’Oliveira. Bela Vista, 2019. 55 Figura 18 - AG d’Oliveira. Rua Japurá 94, 2019. 56 Figura 19 - AG d’Oliveira. Coisas para se esquecer de lembrar, 2023. (1) 60 Figura 20 - AG d’Oliveira. Coisas para se esquecer de lembrar, 2023. (2) 60 Figura 21 - AG d’Oliveira. Coisas para se esquecer de lembrar, 2023. (3) 61 Figura 22 - AG d’Oliveira. Teia de memórias, 2023. (1) 62 Figura 23 - AG d’Oliveira. Teia de memórias, 2023. (2) 63 Figura 24 - AG d’Oliveira. Teia de memórias, 2023. (3) 63 Figura 25 - AG d’Oliveira. Em memória, 2020. 65 Figura 26 - Caixa de fotos e documentos. 66 Figura 27 - Fotomontagem (Quartinho da casa na Av. Pedro Origa. Documento de família. Foto de família). 67 Figura 28 - AG d’Oliveira. Em espaço, 2020. 68 Figura 29 - AG d’Oliveira. Em documento, 2020. 68 Figura 30 - AG d’Oliveira. O que restou, 2023. 70 Figura 31 - AG d’Oliveira. A Modelista, 2020. 72 Figura 32 - AG d’Oliveira. A Mãe, 2020. 73 Figura 33 - AG d’Oliveira. A Costureira, 2021. 74 Figura 34 - Fotomontagem (Janela da casa na Av. Pedro Origa. Fitas cassetes). 75 Figura 35 - AG d’Oliveira. Para o cargo de modelista, 2022. 76 Figura 36 - AG d’Oliveira. Para Roseli com todo carinho, 2022. 77 Figura 37 - AG d’Oliveira. Patinhos de concreto só fazem afundar, 2023. (1) 79 Figura 38 - AG d’Oliveira. Patinhos de concreto só fazem afundar, 2023. (2) 80 (re)Construindo memórias Figura 39 - Frida Kahlo. Las dos Fridas, 1939. 89 Figura 40 - Rosana Paulino. Imagem da série Bastidores, 1997. 92 Figura 41 - Rosana Paulino. Assentamento, 2013. 93 Figura 42 - Christian Boltanski. Réserve des enfants de Duisburg, 1993. 95 Figura 43 - Christian Boltanski. Réserve de Suisses morts, 1991. 97 Figura 44 - Placas dos quartos do Grand Hôtel Palais d'Orsay. 99 Figura 45 - Alguns dos objetos do hotel que Sophie Calle coletou. 100 Figura 46- Estúdio no porão de Cornell. 105 Figura 47 - Joseph Cornell. Soap Bubble Set, 1948. 105 Figura 48 - Louise Bourgeois. Cell II, 1991. 107 Figura 49 - Louise Bourgeois. Cell II, 1991 (detalhe). 108 Figura 50 - Louise Bourgeois. Cell (You Better Grow Up), 1993. 109 Figura 51 - Leonilson. Ninguém, 1992. 111 Figura 52 - Leonilson, acervo pessoal. 112 Figura 53 - Arthur Bispo do Rosário.Moedas I, 1992. 113 Figura 54 - Arthur Bispo do Rosário. Talheres. 114 Figura 55 - Julian Wasser.Marcel Duchamp And Eve Babitz (1963) Color, 1963. 118 Figura 56 - Hélio Oiticica. B16 Bólide Caixa 12, 1964-65. (1) 122 Figura 57 - Hélio Oiticica. B16 Bólide Caixa 12, 1964-65. (2) 122 Figura 58 - Hélio Oiticica. Bólide Apropriação, 1978. 124 Desenvolvimento de Oficina Figura 59 - Visita guiada durante a Etapa I (1). 138 Figura 60 - Visita guiada durante a Etapa I (2). 138 Figura 61 - Café da tarde durante a Etapa I. 140 Figura 62 - Interação com objetos trazidos na Etapa I (1). 141 Figura 63 - Interação com objetos trazidos na Etapa I (2). 141 Figura 64 - Visita à Feira de Antiguidades da Praça Dom Orione. 142 Figura 65 - Explorando itens à venda na Feira de Antiguidades. 144 Figura 66 - Beatriz e Camilla observando itens na Feira de Antiguidades. 145 Figura 67 - Vista superior dos participantes durante a Etapa III. 146 Figura 68 - Participantes realizando seus trabalhos na Etapa III. 146 Figura 69 - Exposição de trabalhos durante a Etapa III. 149 Figura 70 - Participantes interagindo com os itens trazidos na Etapa III. 150 Figura 71 - Beatriz ouvindo concha na Etapa II. 152 Figura 72 - Beatriz folheando álbum de cartões postais na Etapa II. 155 Figura 73 - Camilla segurando uma peça decorativa na Etapa II. 156 Figura 74 - Trabalho realizado por Camilla (1). 159 Figura 75 - Trabalho realizado por Camilla (2). 159 Figura 76 - Carolina realizando trabalho na Etapa III. 160 Figura 77 - Trabalho realizado por Carolina (1). 163 Figura 78 - Trabalho realizado por Carolina (2). 163 Figura 79 - Guilherme expondo seu objeto na Etapa I. 164 Figura 80 - Trabalho realizado por Guilherme (1). 167 Figura 81 - Trabalho realizado por Guilherme (2). 167 Figura 82 - Guilherme fotografando na Feira de Antiguidades. 169 Figura 83 - Itens expostos por Hanna na Etapa I. 170 Figura 84 - Trabalho realizado por Hanna (1). 173 Figura 85 - Trabalho realizado por Hanna (2). 173 Figura 86 - Trabalho realizado por Hanna (3). 174 Figura 87 - Hanna realizando trabalho na Etapa III. 175 Figura 88 - João expondo itens na Etapa I. 176 Figura 89 - Trabalho realizado por João. 179 Figura 90 - João realizando trabalho na Etapa III. 181 Figura 91 - Victoria realizando trabalho na Etapa III. 182 Figura 92 - Trabalho realizado por Victoria.. 185 Sumário 1. Ponto de partida: Experiência como método de ensino 21 2. Experiências didáticas anteriores 31 2.1. A necessidade de acolhimento e afeto 33 2.2. A interação com outros e o mundo 41 3. Experiências com arte 47 3.1. Luta contra o esquecimento 49 3.2. Colagem como processo de criação 81 3.3. Memória como estímulo criativo 83 4. (re)Construindo memórias 85 4.1. I. Reconhecendo lugares de memória e afetividade 87 4.2. II. Encontrando tesouros ao abrir gavetas e baús 103 4.3. III. Transformando e ressignificando todas as coisas 117 5. Desenvolvimento da oficina 125 5.1. Metodologia 127 5.2. Objetivos 129 5.3. Plano de atividades 131 5.4. Realização da oficina 135 5.5. Considerações sobre a oficina 187 6. Destino: O caminho ao lugar comum 189 Referências 191 Índice de Ilustrações 195 Apêndice A 209 Apêndice B 210 Apêndice C 211 Apêndice D 214 21 1. Ponto de partida A experiência como método de ensino A minha experiência e vivência com a arte é o ponto de partida inicial deste trabalho: para entender a forma que aprendi e ensino arte, mas também a importância da experiência na aprendizagem. Partindo principalmente do meu entendimento sobre o papel da memória e da auto identificação ao fazer e experienciar arte, partilho da ideia de que “as memórias do espaço de intimidade das relações familiares são fortes e significativas na composição das referências artísticas e estéticas que se situam na essência de cada sujeito” (COUTINHO, 2004, p. 148), dito isso, nesse trabalho a memória toma o papel de catalisadora para si, sendo a que inicia o processo de reflexão e de relacionar que culmina no fazer artístico. Carregamos nossas vivências em nossa memória, mas elas só passam a compor uma história e tornam-se experiências no momento em que nos dispomos a refletir, a relacionar e a tecer nossas singularidades. Carregamos vestígios comuns ao nosso meio, ao nosso contexto, à nossa época, mas a recepção e o acolhimento dessas vivências passam por filtros de forte teor afetivo e cognitivo que os singularizam. (Coutinho, 2004, p. 145) Dessa forma, ao trabalhar a construção da identidade do sujeito, se faz necessário entender como a subjetividade se constitui, especialmente a sua própria como professor, e dessa forma possibilitar que as próprias vivências possam ter parte nas experiências, que enriquecem o processo criativo e de ensino. O meu processo de reconstruir minha história de vida com a arte, se iniciou na disciplina de Ensino de Artes Visuais, ministrada pela docente Rejane Galvão Coutinho, no Instituto de Artes da Unesp, através da proposta de refletir sobre minhas vivências na arte, fazendo com que fosse possível identificar que as problemáticas nas formas como aprendi sobre arte foram as causas de dificuldades que encontrava no meu processo criativo. A partir disso pude perceber essas (re)Construindo memórias 22 mesmas dificuldades em outras pessoas, e por meio disso, pensar na forma com que lidei e tratei essas problemáticas, mas também em como transformar isso em parte do processo de educação. Essas possibilidades se apresentam principalmente na partilha, pois "comunicar é ensinar - tocar - realmente tocar outro ser humano é ensinar - escrever poemas de verdade é ensinar - cavar boas trincheiras é ensinar - viver é ensinar" (Lorde, p. 103-104). Ao refletir sobre minha história de vida com arte, encontro uma relação que apesar de sempre ter sido incentivada, foi suprimida por insegurança e medo de falhar, de não ser boa, do resultado não ser perfeito, e por consequência, a frustração causada por esses fatores, os quais carrego comigo desde minhas primeiras tentativas de expressão através da arte. O primeiro contato com o fazer artístico de que tenho memória vem da época do maternal, me lembro de brincar e misturar tintas com as mãos até tudo se tornar um grande borrão. Já a lembrança da minha mãe difere da minha, uma vez que se recorda da professora apontar que minhas pinturas em guache eram estranhas e obscuras, algo que ela não concordou e debateu com a educadora, defendendo o meu direito de descobrir como a tinta funcionava e usá-la como quisesse. Esse acontecimento tem importância pelo contraste entre o incentivo a me expressar, que experienciei em casa, e o abafamento do mesmo no ambiente escolar nos anos que se seguiram. Assim, a minha subjetividade se constitui em meio a relação entre ambas vivências, seus consensos e principalmente contrastes. No meu âmbito familiar me desenvolvi cercada de pessoas criativas, que criavam a partir do artesanato e outras práticas principalmente relacionadas ao fazer feminino, como a costura, o bordado, crochê, etc, os quais sendo parte da minha vida através das mulheres por quem nutria grande afeto, foram essenciais na minha formação. As artes tradicionais femininas geraram e continuam gerando encantamento para mim, no fato de ser Ponto de partida: A experiência como método de ensino 23 um trabalho que poderia ser meramente utilitário dentro de casa, mas que nas mãos de muitas mulheres brasileiras significam sua independência - principalmente financeira - ao expandir-se para além do seu ambiente doméstico a ponto de se tornar parte da sua economia, como é o caso da minha mãe. No entanto, a arte de mulheres feitas para mulheres dificilmente é considerada Arte, o problema não está nas técnicas e sim na produção feminina, Homens às vezes aventuram-se nas esferas femininas da mais baixa das artes baixas [low arts] - arte passatempo [hobby art] feita com sucata por amadores, em casa. Mas quando um homem faz, digamos, uma estatueta de macarrão ou uma Última Ceia de couro artesanal, isso tende a elevar a esfera mais do que rebaixar o homem e ele é bem capaz de ganhar um artigo no jornal local. (Lippard, 2020, p. 6-7) Essas questões são refletidas na minha arte, que só passou a fazer sentido e, com a qual pude me conectar mais profundamente quando foram introduzidos métodos de criação com os quais cresci cercada. Um padrão identificado é a presença no cotidiano, ou seja, a arte que me instiga e que me afeta é a arte pela qual tenho proximidade, que me fazem lembrar. Além disso, se encontram aqui também as práticas de história oral que compõem parte do meu universo imaginativo, e todos os momentos de afeto que acredito terem crédito na forma como me relaciono com o mundo. No mais, as pessoas apaixonadas por criar e imaginar que me cercam, foram responsáveis por eu ter encontrado meu caminho na arte e na educação. Em vista disso, no âmbito escolar, por sua vez, as referências eram outras, de forma embativa a arte não era aquela que via ao meu redor, ela estava em algummuseu muito distante ao qual, em Mirassol, a cidade que cresci no interior paulista, eu não tinha acesso, assim como os artistas não eram pessoas comuns, eram pessoas com um dom e que não precisavam aprender a fazer arte. Ao longo da minha trajetória percebo que muitos educadores que me tiveram como aluna acreditavam na ideia de que é (re)Construindo memórias 24 possível inferir que um desenho é bom ou é ruim a partir de parâmetros realistas e na existência de um dom pessoal para as artes, idéia essa que se enraizou em mim. Dessa forma, a arte só importa se você tiver talento, e confunde-se o impulso criativo da criança com habilidade inata, em que só é necessário os meios materiais para criar e com o tempo ela vai revelar um potencial artístico, ou não. Viktor Lowenfeld constata em Creative and Mental Growth, que esse conceito idealista da criança como uma artista inata, fez tanto mal à educação artística quanto ao impulso criativo da criança, que podemos identificar em aulas de arte que consistem em atividades de “desenho livre” ou baseadas em cópia e traceamento. A exemplo, me recordo das aulas de arte que sempre se centravam em torno do “desenho livre” o que causava desinteresse dos alunos por ser algo que não os estimulava suficientemente, e além disso, era vista pela maioria como espaço de recreação e descanso; também recordo do meu interesse por exercícios de copiar desenhos em folha quadriculada e assim conseguir desenhar bem próximo ao original, o que me proporcionou a admiração por parte de professores e colegas, e me dava alguma segurança ao produzir dessa forma, apesar de concomitantemente fazer com que me frustrasse ao não atingir padrões esperados e aumentasse minha insegurança ao tentar criar coisas que fossem pessoais ou não realistas. Com isso, posso concluir que uma cópia não é mais importante ou melhor do que uma tentativa de desenho, isto é, acredito que a aula de artes precisa incentivar a criança a se expressar, a criar e imaginar, o que não é feito apenas ao disponibilizar materiais sem qualquer orientação ou na busca de representações perfeitas da realidade, pois a habilidade artística não deve ser tida como um dom e sim, como um conhecimento, tendo em vista que o objetivo da educação artística não é identificar ou produzir artistas, mas estimular a curiosidade, a exploração e a reflexão crítica, permitindo que os indivíduos experimentem e expressem suas Ponto de partida: A experiência como método de ensino 25 vivências de maneira única. Assim, a arte não é apenas um fim estético, mas um meio de desenvolvimento integral, que conecta os indivíduos ao seu contexto e a si mesmos, ou seja, nos interessa que ensino de arte incentive os alunos a verem a arte em seu cotidiano e como parte de suas experiências diárias. A arte contemporânea abraça em diversos níveis essas visões de pluralidade e experimentação, seja ao desafiar a noção de que a arte deve imitar a realidade de forma precisa, ou no jeito que tenta aproximar a arte do público. Um exemplo disso são as instalações interativas e performances, em que o espectador não é apenas um observador passivo, mas participa ativamente da obra, como acontece nos trabalhos de artistas como Hélio Oiticica, no que chama de “arte ambiental”, em obras como os Núcleos (1960-1966), Penetráveis (1961-1980) e Bólides (1963-1979), assim como os Parangolés (1964-1979) que desafiam o lugar ao qual pertence a arte. Seria isto um golpe fatal no conceito de museu, galeria de arte etc., e ao próprio conceito de “exposição” - ou nós o modificamos ou continuamos na mesma. O museu é o mundo; é a experiência cotidiana: os grandes pavilhões para mostras industriais são os que ainda servem para tais manifestações: para as obras que necessitem de abrigo, porque as que disso não necessitarem devem mesmo ficar nos parques, terrenos baldios da cidade (como são bem mais belos que os parcotes tipo Aterro da Gloria no Rio) – a chamada estética dos jardins é uma praga que deveria acabar – os parques são bem mais belos quando abandonados, porque são mais vitais. (Oiticica, 1986, p. 79) No entanto, o ensino da arte muitas vezes não acompanha essas transformações. Muitas salas de aula ainda seguem métodos tradicionais que focam em técnicas rígidas e resultados estéticos previsíveis, deixando pouco espaço para a expressão pessoal ou para o diálogo com as correntes artísticas mais recentes. Dessa forma, a arte assim como o fazer artístico são elevados a um patamar praticamente inalcançável em um ambiente escolar em que ocorrem os primeiros contatos com os processos artísticos e, assim, surge a desconexão e desinteresse do indivíduo o qual não (re)Construindo memórias 26 consegue se enxergar nesse contexto em que a arte permanece como uma existência distinta da experiência humana. Embora muitas escolas ofereçam educação artística, a maioria dos alunos vivenciam as artes como um mundo de coisas preciosas, protegido e isolado do mundo real por sua presença nos museus. [...] A criação artística pessoal é frequentemente vista como algo de relevância privada, não para ser compartilhada com os outros. Discussões sobre arte contemporânea muitas vezes são revestidas de uma terminologia arcana ou esotérica da elite, que não parece ter relevância para a experiência vivida do aprendiz. (Efland, 2002, p. 8, tradução própria)1 A consequência dessa aura que cerca a arte pode ser observada no fato de que, ao visitar um museu, muitas pessoas, por erroneamente acharem que para consumir arte é necessário um intelecto superior, se sentem intimidadas ou incapazes de compreender as obras expostas, além disso, há ainda pessoas que atestam não se relacionarem com a arte e não reconhecem sua importância por não acreditarem que essa afeta de alguma forma sua vida. No entanto, essas pessoas não percebem, em sua maioria, que consomem formas de arte em seu dia a dia, que não conseguem identificar como tal por essas serem provenientes da cultura de massa, uma vez que elas se camuflam em seu cotidiano, “por sua imensa distância, os objetos reconhecidos pelas pessoas cultas como obras de belas-artes parecem anêmicos para a massa popular, a fome estética tende a buscar o vulgar e o barato” (Dewey, 2010, p. 64). Essa barreira colocada entre a arte e o lugar comum é do interesse de classes dominantes que enxergam na arte um indicador de prestígio, que estabelece um status cultural superior, sendo assim o que é mundano ou se conecta com o cotidiano se torna pejorativo. 1 Although many schools offer art education, most students experience the arts as a world of precious things, shelteret"and isolated from the real world by their accession to museums. Personal art making often is regarded as having private rel- evance, not to be shared with others. Discussions of contemporary art often are couched in the arcane or esoteric terminology of the elite, which bear no apparent relevance to the lived experience of the learner. Ponto de partida: A experiência como método de ensino 27 Esse desprezo pelo cotidiano fez com que a arte não mais copiasse a vida e sim a própria arte, na Grécia Antiga a arte era vista como um ato de reprodução ou de imitação, no entanto “não significava que a arte fosse uma cópia literal de objetos, mas sim que ela refletia as emoções e ideias associadas às principais instituições da vida social” (Dewey, 2010, p.66). Ademais, o uso da cópia e imitação como meio criativo não precisa ser desprezado, tendo em vista que, principalmente na infância, há uma tendência para a repetição, no entanto, é necessário se atentar para a forma que esses artifícios podem restringir a arte a um espaço que aparenta segurança à expressão, mas que prendem a expressividade em padrões estereotipados e não ajustados a uma experiência particular ou que não mostram um desejo consciente de expressão, tendo em vista que nos dias atuais a cópia não exatamente procura refletir a experiência, mas sim uma idealização compartilhada desta. Dessa forma, os padrões adquiridos através da cópia dificultam a flexibilidade de pensamento e criatividade, afetando, portanto, a adaptabilidade ao criar, e nesse cenário o indivíduo, principalmente a criança, não encontra no fazer artístico um meio de se expressar de forma livre. Aqui também, a criança muitas vezes é inibida por adultos e, incapaz ou relutante em expressar seu próprio mundo de experiências, ela escapa para um mundo de padrões. No entanto, o trabalho de cópia ou de traçar desenhos geralmente não surge da incapacidade da criança de enfrentar novas situações. [...] Acostumada a depender de padrões dados, a criança já não tem mais o desejo de se ajustar a novas situações; ela simplesmente escolhe o caminho de menor resistência. [...] Assim, quando o trabalho de cópia impede a criança de enfrentar e expressar seu próprio mundo de experiências, ela pode, em última análise, perder a confiança em seu próprio trabalho e recorrer a repetições estereotipadas como um visível mecanismo de escape. (Lowenfeld, 1957, p. 50-51, tradução própria)2 2 Here, too, the child often is inhibited by adults, and, unwilling or unable to express his own world of experiences, he escapes into a world of patterns. Yet, copy work or tracing most often does not grow out of the child’s inability to face new situations. [...] The child, accustomed to depending on given patterns, no longer has the desire to adjust to new situations; he merely chooses the point of least resistance. [...] Thus, when copy work prevents the child from facing and expressing his own world of experiences, the child may ultimately lose confidence in his own work and resort to stereotyped repetitions as a visible escape mechanism. (re)Construindo memórias 28 A mesma rigidez identificada no fazer artístico pode ser vista no emocional, por exemplo, é possível constatar a inflexibilidade causada por alguns métodos nas reações de frustração, resistência e irritabilidade esboçadas em algumas crianças quando são oferecidas a elas novas propostas de criação. Devido a isso é importante a persistência do educador ao lidar com essas situações, com o intuito de fazer com que a arte seja um espaço de autoidentificação, que ajude no desenvolvimento emocional e na flexibilidade ao se relacionar com o ambiente e outros indivíduos. Em face do exposto, somente quando começarmos com um currículo bem integrado na primeira infância seremos capazes de ter sucesso. Nesse cenário, integração não significa correlação, nem interpretação de outros assuntos fora da arte (Lowenfeld, 1957, p. 41), a integração sugerida só é possível através das experiências individuais e da auto identificação. Na Educação Artística, a integração ocorre quando os componentes individuais que levam a uma experiência criativa se tornam um todo inseparável, no qual nenhuma experiência individual permanece um fator isolado. [...] Quatro tipos de experiências parecem ser excelentes: (1) Experiências emocionais (2) Experiências intelectuais (3) Experiências perceptivas (4) Experiências estéticas (Lowenfeld, 1957, p. 37, tradução própria)3 Dessa forma, se faz necessário compreender o que é experiência, de forma que a interação, fruto desta, possa envolver esses diferentes aspectos. A experiência de acordo com John Dewey é um processo ativo e dinâmico que envolve reflexão e interação com o ambiente e com os outros indivíduos, ou seja, a experiência não é algo passivo que simplesmente acontece conosco, mas é uma relação contínua entre o sujeito e o mundo. Nesse sentido, a educação precisa promover 3 In Art Education integration takes place when the single components which lead to a creative experience become an inseparable whole, one in which no single experience remains an isolated factor. [...] Four types of experiences seem to be outstanding: (1) Emotional experiences (2) Intellectual experiences (3) Perceptual experiences (4) Aesthetic experiences Ponto de partida: A experiência como método de ensino 29 experiências que integrem emoção, intelecto, percepção e estética, para que o aprendizado seja significativo. A experiência, na medida em que é experiência, consiste na acentuação da vitalidade. Em vez de significar um encerrar-se em sentimentos e sensações privados, significa uma troca ativa e alerta com o mundo; em seu auge, significa uma interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos e acontecimentos. (Dewey, 2010, p.83) Portanto, ao ensinar arte é essencial valorizar a experiência pessoal e a autoexpressão, em vez de impor padrões ou técnicas rígidas. É necessário expandir o que se entende por arte e a conscientização visual, que ainda tem muito a evoluir para que todos os fazeres artísticos sejam vistos com a mesma consideração e como frutos iguais de “um impulso criativo que é tão socialmente determinado quanto é pessoalmente necessário antes que a ideia não seja mais transformar nadas em algos, mas sim transformar e dar significado a todas as coisas” (Lippard, 2020, p. 9), desse modo “o que é arte” e o que é “bom”, não será padronizado e exibido apenas em museus, mas no “lugar comum”, ou seja, no mundo. É a partir da interação genuína com o material, com as próprias emoções e com o mundo ao redor que a criatividade se manifesta, e essa vivência se torna um catalisador para a aprendizagem mais profunda e significativa. Portanto, ao compreender a arte como uma experiência, educadores podem criar ambientes que incentivem a liberdade criativa e o desenvolvimento pessoal, possibilitando, desde a infância, a encontrar na arte uma forma de expressar suas identidades e emoções de maneira plena e autêntica. Dito isso, ao buscar entender as origens dos problemas que experienciei ao tentar me expressar através da arte e também ao ensinar, entendo a aproximação da arte com a vida comum como algo essencial, assim como vejo na minha experiência, também um meio de ensinar. De forma que consiga utilizar o que aprendi ao desconstruir noções que afetaram minha conexão com arte, para ajudar outros indivíduos a fazer o mesmo, a partir da experiência como um estado (re)Construindo memórias 30 inicial da arte, trabalhando o processo de percepção em uma perspectiva que a inclua. Para além disso, situar a experiência estética, em um lugar que se inicia em um âmbito individual e se encontra no coletivo. Assim, a partir da minha experiência ao trabalhar com colagem e assemblagem, traço neste trabalho um roteiro que inclua a memória, a afetividade e a partilha, no processo de autoconhecimento e construção de uma identidade, a partir da utilização de objetos descartados, achados, acumulados, assim como materiais diversos de uso cotidiano, dessa forma, como dito por Lucy Lippard, tenho em mente além de “transformar nadas em algos”, que seja possível “transformar e dar significado a todas as coisas”. Após introduzir e contextualizar minhas experiências e trajetória na arte que estruturam e que definem os objetivos da proposta, apresento as três etapas deste roteiro. Inicia-se com as noções de memória individual e social, assim como os lugares de memória e as formas de abordagem do papel dos símbolos no processo de rememoração, definindo assim, como objetivo inicial a identificação de rastros e histórias em objetos descartados, achados, acumulados, tanto no âmbito pessoal, quanto no âmbito coletivo. Ao propor a busca por objetos em bazares e brechós, uma forma de resgate de objetos descartados, que perderam sua função, inicia-se a discussão sobre colecionismo e o ato de acumular. Chega-se, enfim, ao propósito que é a utilização dos métodos de colagem como assemblagem, por meio do uso de objetos encontrados e o processo de ressignificação, como forma de ajudar no processo de construção de uma identidade individual e coletiva. Concluo a proposta com um plano de atividades para a oficina: (re)Construindo memórias: Coisas descartadas, achadas, acumuladas e ressignificadas, o relato da realização da oficina com alunos do Instituto de Artes da Unesp e com algumas considerações a respeito de materialidade, partilha no processo de criação e a acessibilidade do fazer artístico. 31 2. Experiências didáticas anteriores (re)Construindo memórias 32 33 2.1. A necessidade de acolhimento e afeto Como já mencionado, a arte é importante para o desenvolvimento emocional e social das crianças, ela não apenas estimula a criatividade, mas também atua como um veículo para a expressão pessoal e o enfrentamento de desafios, especialmente em momentos de crise. No entanto, isso envolve muitas camadas, especialmente sociais e econômicas que definem a forma que os indivíduos são afetados. Outro ponto de reflexão é que, mais do que nunca, com a pandemia nos deparamos com a pluralidade das infâncias e dos contextos em que vivem as crianças brasileiras: algumas com seus pais ocupadíssimos trabalhando em casa, outras com familiares que precisam sair para trabalhar sem ter onde deixar seus filhos, ou ainda, os que estão sem emprego; aquelas que tem quintal para correr e fazer comidinha com flores e terra, outras que estão trancadas em apartamentos; as crianças que são filhos(as) únicos(as), e aquelas com irmãos com quem podem brincar. (Barbosa; Gobbato, 2021, p. 1436) Durante a pandemia de COVID-19, as desigualdades na educação se tornaram ainda mais evidentes, especialmente no ensino da arte. Por exemplo, nas escolas públicas de regiões mais carentes, a falta de infraestrutura tecnológica foi um obstáculo significativo. Em outras palavras, enquanto algumas crianças de famílias mais favorecidas podiam continuar seus estudos remotamente, aquelas em situação de vulnerabilidade não tinham acesso a equipamentos como computadores, internet estável ou mesmo materiais artísticos básicos. Um estudo publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2021 revelou que mais de 4,3 milhões de estudantes não tinham acesso à internet e desse total 95,9% estudavam em escolas públicas (Barros, 2021). Podemos dizer que essa falta de recursos não apenas ampliou a lacuna na educação, mas também impediu que muitos jovens tivessem contato com as artes durante um período crítico de suas vidas. (re)Construindo memórias 34 Nesse contexto, ocorreu o projeto de acompanhamento com crianças, realizado em conjunto com outra arte educadora, em espaço de educação não formal, com quatro crianças de 6 a 13 anos que residiam em Mirassol, cidade do interior paulista. Nesse projeto, fizemos propostas de atividades e acompanhamos o desenvolvimento artístico das crianças durante um período de dois meses, com encontros uma vez por semana, no segundo semestre de 2021. Foi uma experiência importante, principalmente por reconhecer em mim algumas das dificuldades que essas crianças tinham, além de proporcionar a oportunidade para refletir sobre o papel do educador na vida das crianças. Como Paulo Freire menciona, “a prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje.” (Freire, 1996, p. 53). Isso ficou evidente na relação que construímos com as crianças, que não nos viam apenas como educadoras, mas como figuras de apoio e afeto. Essa proximidade, facilitada pelo espaço de educação informal, permitiu que as crianças se sentissem seguras para compartilhar suas preocupações, medos e alegrias, e isso se refletiu diretamente nas atividades artísticas que realizaram. fig. 1 fig. 2 fig. 3 (re)Construindo memórias 36 O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem. (Freire, 1996, p. 20) No decorrer das oficinas foi possível notar que as crianças experimentaram os materiais que foram providenciados por nós, com liberdade, tendo contato com alguns pela primeira vez. Ademais, havia outro obstáculo para além do acesso aos materiais, que residia na falta de referências visuais, causadas pelo acesso restrito a televisão, internet ou outras mídias, desse modo, mesmo as que consideramos comuns a crianças, como desenhos animados e livros ilustrados, lhes eram estranhos. Realizamos atividades nas quais foi possível introduzir algumas dessas referências de forma orgânica, relacionando a temas de interesse deles e, apresentando meios de criar a partir disso. fig. 4 A necessidade de acolhimento e afeto 37 Além disso, foi notado que o que impedia algumas crianças de se aventurarem na arte era o medo de errar, assim como a noção de que existe um "desenho certo" ou uma única forma correta de expressar-se artisticamente, uma ideia que, é amplificada pela inacessibilidade da arte que enfrentam, fazendo com que as crianças acreditem que só algumas pessoas têm o poder de criar. Essa questão precisa ser trabalhada com educadores, de forma que esses profissionais entendam o ensino da arte de maneira mais aberta, de modo a evitar a perpetuação dessas concepções danosas e, em vez disso, criar um ambiente seguro para que os alunos sintam-se livres para explorar, errar e aprender com o erro. Ao mesmo tempo, sinto que é preciso repudiar ações que parecem incentivos, mas são só elogios vazios, que apenas se referem a elementos estéticos ou que elevam apenas um aluno, criando um ideal entre os outros a ser seguido. fig. 5 (re)Construindo memórias 38 Dito isso, é necessário valorizar o processo criativo de cada criança, reconhecendo que o caminho para o aprendizado artístico não é linear, mas feito de tentativas e experimentação. Acolher e entender as singularidades também envolve o meio de cada criança interagir com o material, sem que o uso dos mesmos seja restringido a uma forma “correta”, mesmo que isso acarrete em “sujar” o espaço ou a elas mesmas, tendo em vista que “o olhar sensível acolhe as transgressões das crianças, pois elas são experimentos, são tentativas, são os sentidos em movimento” (Printes; Bissoli, 2021, p. 19). Considerando que no fazer artístico não há certo ou errado, para ensinar flexibilidade é preciso ser flexível, ou seja, um professor capaz de reconhecer a pluralidade de formas de expressão, sem promover comparações ou competitividade desnecessária. fig. 6 A necessidade de acolhimento e afeto 39 Ao final do projeto, conseguimos notar o impacto direto de um ambiente de apoio e encorajamento na autoconfiança das crianças, que pode ser visto no semblante orgulhoso com o qual receberam os cadernos com os seus desenhos realizados e páginas em branco para que continuassem criando, ademais, ao organizar o que antes eram folhas soltas houve a intenção de mostrar a importância de cada desenho na trajetória delas, que esses mereciam ser guardados e que poderiam se orgulhar do que criaram; foi possível também perceber novas perspectivas sendo formadas através das novas ideias e referências as quais foram apresentadas. Além dos cadernos, os materiais artísticos utilizados durante as oficinas foram presenteados às crianças, o que simbolizou muito mais que um simples gesto. Ele representou, para aquelas crianças, a possibilidade de continuar explorando sua criatividade e expressando suas emoções, mesmo após o término dos encontros. Muitas delas não tinham lápis de cor, canetinhas ou tintas em casa, e esse presente foi uma forma de garantir que a arte continuasse sendo uma parte de suas vidas. Me senti realizada quando nas ocasiões em que os reencontrei, todos mostraram entusiasmo em me contar e mostrar o que vinham fazendo desde o término do projeto. fig. 7 (re)Construindo memórias 40 41 2.2. A interação com outros e o mundo No meu estágio em educação formal em uma escola privada com ensino integral, de classe média em São Paulo, trabalhei com uma faixa etária semelhante à do projeto anteriormente citado, no entanto, o contexto em que essas crianças estavam inseridas era totalmente diferente, o que era refletido nos recursos e na referências visuais que possuíam. Ainda que em um contexto de arte relativamente mais acessível, a abordagem artística enfrentava desafios, alguns semelhantes aos da educação pública, como por exemplo, mesmo que fossem oferecidas aulas de arte com um especialista, as quais propunham atividades que envolviam tanto contextualização quanto a prática artística, com incentivo à experimentação através de diferentes técnicas e materialidades, essas aulas ocorriam apenas uma vez por semana, sendo restringidas ao ateliê e nesse contexto de ensino integral não havia momento reservado para que os alunos colocassem em prática e testassem o conhecimento aprendido na aula de artes, a não ser no horário de estudo em que as atividades de arte não se alinhavam com as aulas ministradas pelo especialista. Dessa maneira, a arte, no contexto diário, quando não era parte de uma atividade de outra disciplina, como desenhos ilustrativos, era tratada mais como uma forma de recreação, com os diversos desenhos produzidos pelos alunos sendo frequentemente descartados ou ignorados, sem qualquer orientação que pudesse diversificar ou complementar o aprendizado das aulas de arte. Dito isso, mesmo que nessa fase inicial seja crucial que as crianças sejam incentivadas a explorar sua criatividade com liberdade, isso não significa abdicar de direcionamentos. (re)Construindo memórias 42 É comum nas crianças o desejo de se expressarem pelo desenho e pela cor. Se nos limitarmos a deixá-las dar vazão a esse instinto permitindo que atue sem controle, o desenvolvimento da criança será puramente ocasional. É necessário, mediante crítica, sugestões e perguntas, excitar nela a consciência do que já fez e do que deve fazer. (Dewey apud Barbosa, 2015, p. 83) Além da aula semanal e atividades durante o horário de estudo, também era oferecida uma aula extracurricular de artes, onde pude identificar as tentativas do professor de tratar essa questão da arte ficar isolada no ateliê, assim como aos “desenhos livres” da sala de aula, no entanto haviam poucas adesões, já que os pais não viam sentido em pagar a mais por essas aulas extras que não vêem como úteis, do mesmo modo que os alunos não se interessavam por uma aula que não tinha foco em ensiná-los a “desenhar bem”, nessas aulas tinham atividades envolvendo colagem, trabalho com cores e formas, projetos tridimensionais com materiais diversos, etc. Uma diferença notável entre os alunos da escola e do projeto, era que os primeiros não tinham receio ao desenhar, isto é, existia confiança e firmeza nos traços, assim como familiaridade com os materiais artísticos, e muitos desenhos eram feitos por dia, mesmo que o uso dos materiais acabasse sendo limitado e sem muitas novas experimentações. Notava-se padrões, que se repetiam nos desenhos da maioria das crianças, que mudavam de acordo com o que era mais relevante ou chamava mais atenção das crianças no momento, como um filme novo, um desenho famoso, etc, o que pode ser considerado um reflexo da influência da mídia e cultura de massa que são as referências às quais, essas crianças têm acesso, e “os contextos determinam os interesses e ‘dominam o espírito do tempo”, principalmente o tempo lúdico das crianças” (Coutinho, 2011, p. 154). Além disso, o mundo com o qual elas interagiam estava praticamente reduzido à escola e às quatro paredes da sala de aula, no que ficava a responsabilidade aos professores de apresentar novas referências e possibilidades. fig. 8 fig. 9 (re)Construindo memórias 44 Apesar da grande quantidade de desenhos que eram realizados todo dia, o processo era muito individual e com poucas trocas positivas entre os alunos, era possível notar comparações entre eles e um ar competitivo para mostrar quem fazia o “melhor desenho”, seguida de uma expectativa de aprovação externa, vinda dos professores. A respeito disso, eu tentei instruir sempre que possível os educadores com as quais trabalhava de não reagir com comentários e elogios sobre elementos estéticos, ao invés disso, que fizessem perguntas e se mostrassem interessados pelo processo, métodos e elementos, para que se instigasse mais as crianças a explorarem a prática do desenho e não tivessem como único objetivo que seu trabalho fosse "melhor" que dos demais. Também não existiam muitas oportunidades para incentivar a colaboração ou trabalho em coletivo entre as crianças, pois muitas atividades propostas recaiam no uso de desenhos impressos, elaboração de painéis e lembrancinhas celebrativas, nessas ocasiões muito do trabalho criativo partia dos educadores e a interação dos estudantes no processo era limitada. Houve poucas ocasiões em que recebi permissão e liberdade para propor atividades, mas entre as que realizei, a maioria teve um caráter colaborativo. Meu objetivo era tirar as crianças de sua zona de conforto e estimular a interação, tendo em vista que esse tipo de atividade era recebida com resistência por elas e, por isso, muitas vezes evitada pelas educadores. Na posição de arte educadora, entendo a frustração dos alunos como parte do processo, já que ao evitar essas experiências, acabamos limitando as oportunidades de crescimento e aprendizagem que surgem naturalmente da interação. Com as duas experiências distintas relatadas, pude perceber que o ambiente social e cultural em que as crianças estão inseridas e a forma como interagem com ele tem um impacto considerável nas diferentes e similares dificuldades observadas. Além disso, o modo como o ensino de arte ocorre nas escolas públicas e privadas desempenha um papel A interação com outros e o mundo 45 importante, no caso de muitas escolas públicas, a falta de especialistas em arte e a escassez de recursos criam barreiras adicionais ao desenvolvimento das capacidades criativas dos alunos, no entanto, em algumas escolas privadas, apesar do maior acesso a materiais e de um contexto cultural mais favorável, a ausência de uma pedagogia em sala de aula integrada ao que é ensinado na aula de artes pelos especialistas, limita a plena exploração dessas oportunidades. [...] no Ensino Fundamental, o componente Arte tem sido ministrado por professores/as pedagogos/as sem formação artística, na Educação Infantil –onde a Arte não é caracterizada como um componente separado –a presença de profissionais capacitados/as artisticamente é ainda menor. Nesse ponto, as crianças são ensinadas a partir de concepções de Arte fundamentadas em gostos pessoais e em estéticas e temas agradáveis e adocicados –o que tende a recair no uso de desenhos impressos, produções de lembrancinhas para datas comemorativas e elaboração de painéis com formas e representações estereotipadas. (Rocha; Baliscei, 2021, p. 8) fig. 10 fig. 11 47 3. Experiências com arte (re)Construindo memórias 48 49 3.1. Luta contra o esquecimento Considerando alguns dos fatores já apontados, como a forma que arte me foi ensinada e as dificuldades que encontrava no fazer artístico e em me expressar, assim como as que encontrei nas minhas experiências didáticas anteriores, gostaria de contar sobre o meu processo em desconstruir essas noções que me eram empecilhos, enquanto construía conhecimentos que foram essenciais para me identificar nesse lugar de artista e além disso, ver na Arte um meio de me expressar. Em 2018, em meio a inscrições de vestibulares e decisões importantes, me sentia perdida e desanimada com minhas prospecções. Sabia que gostava de Arte e que era o que tenderia a estudar, mas não achava ser uma opção e tentava me imaginar em cursos mais “sérios”, assim, em uma conversa com minha mãe e irmã mais velha eu relatei sobre meus desejos e recebi incentivo para realizá-los. Não foi a primeira vez que o encorajamento da minha família foi essencial, acredito que sem isso eu não teria tanto interesse e fascínio por arte, uma vez que desde os primeiros sinais e demonstrações de interesse, sempre houve um estímulo, dentro do que era possível, para que eu continuasse a fazer aquilo que me interessava. Quando eu prestei o vestibular para artes visuais e posteriormente ao ingressar na faculdade, eu era insegura e inflexível ao fazer e apresentar minha produção, que era em sua maioria desenhos realistas em lápis grafite e não conseguia me conectar completamente com esses trabalhos, além de que o processo de fazê-los era muito focado em uma perfeição impossível de atingir, o que me causava frustração. Como consequência, no meu primeiro ano de faculdade, em 2019, me sentia uma farsa e uma intrusa, não me sentia capaz ao me comparar aos outros estudantes. (re)Construindo memórias 50 Foi no fim do ano, quando fui atingida por vários acontecimentos e com grande necessidade de expressar a confusão de sentimentos que vinha sentindo, que experienciei a arte sem tanta pressão e preocupação. Não tentei replicar a realidade com formas e sombras perfeitas, mas tentei me ver na minha arte, expressar a confusão, expurgar todos os sentimentos que me incomodavam; esse foi o início do meu reconhecimento como indivíduo e como artista. Dessa forma, desde então, minha produção artística passou a refletir meus sentimentos, as tentativas de compreensão de mim mesma, ou seja, um meio de dizer e expressar coisas que nunca havia conseguido antes. Acredito que o fato de ter saído totalmente da minha zona de conforto e, de certo modo, me encontrar desamparada em uma cidade como São Paulo, teve grande influência nas minhas escolhas ao criar e pensar em arte. Uma mudança grande e repentina como essa, costuma ser impactante, sobretudo quando se está no fim da adolescência e em meio ao processo de descobrimento de si mesmo. Dessa maneira, pode-se dizer que meus sentimentos, principalmente os de insegurança e de não pertencimento, foram a força motriz para que se iniciasse o processo de descobrimento, para que entendesse quem estava me tornando e onde pertencia. Todo esse processo, é, com certeza, algo complicado, lento e que necessita de paciência, tal qual recolher seus rastros de fios de cabelo deixados pela casa e colar, um a um, com cola branca em uma folha de papel, com intenção de formar uma imagem específica. E esse foi o método de criação escolhido em Identidade em construção (2019) quando decidi que a melhor forma de construir a minha identidade, poderia ser literalmente recolher fios de cabelos deixados a esmo e colá-los delicadamente em papel, enquanto o tempo desprendido para realizar tal tarefa culminaria em um momento de introspecção, para que realmente começasse a entender quem eu era. (re)Construindo memórias 52 Durante semanas recolhi meus fios de cabelo, verdadeiros rastros deixados por mim dentro de casa e, ao analisar o que aquilo poderia se tornar, a conexão entre identidade, genética e indivíduo me fizeram pensar sobre o que nos fazia ser quem somos e o que nos distinguia, de forma palpável; o cabelo, carrega uma assinatura genética tal como uma digital, que é, em si, também um exemplo de rastro. Sendo assim, fazia sentido que os fios de cabelo nesse trabalho se tornassem uma digital que representasse a construção de uma identidade, ou seja, a minha identidade através dos meus rastros. Em meio a essa jornada de autoconhecimento, descobri que a cidade era um encontro de rastros e trajetos, meus e de todos os outros passantes; encontrei conforto em lugares, que mesmo na inconstância característica de São Paulo, eram constantes no trajeto entre a faculdade e os locais que morei. Algumas das minhas primeiras obras nascem desse sentimento de conforto, uma série de três colagens a partir de notas fiscais e linha de bordado que chamei de Rastros e trajetos (2019). Cada uma das colagens representa um lugar específico nesse trajeto e o que chamava minha atenção toda vez que o percorria, sendo elas Anhangabaú (2019), Bela Vista (2019) e Rua Japurá 94 (2019). O meu interesse por essa temática teve influência da produção da artista Sophie Calle, mais especificamente trabalhos como L’Hôtel (The Hotel) (1981-1983), em que ela ao se infiltrar em um hotel e fotografar os quartos, tenta captar os comportamentos dos habitantes dos quartos, dessa forma, tomando o papel de antropóloga, que faz um estudo comportamental de seus espécimes, através dos pertences; e La Filature (The Shadow) (1981), que é fruto da preocupação da artista em deixar rastros, evidências de sua existência, Calle pediu que para a mãe contratar um detetive para que a seguisse, fotografasse e registrasse por escrito tudo o que ela fizesse, enquanto isso, ela manteve seus próprios registros escritos e fotográficos. Luta contra o esquecimento 53 A escolha de materiais para a criação das obras em Rastros e trajetos se deu por diversos motivos, mas principalmente pela tentativa de capturar, não apenas, a particularidade biológica dos rastros que deixamos no decorrer da vida, mas como esses vestígios são impactados pela sociedade em que estamos inseridos, nesse caso em específico, a sociedade capitalista. À vista disso, as notas fiscais que acumulava há algum tempo, demonstrava como objetos que compramos no decorrer das nossas vidas são evidências que deixamos no mundo. O hábito de acumular materiais, objetos e coisas esteve desde a infância presente e encontrei na colagem um meio de dar sentidos a esses acúmulos. A linha de bordado, por sua vez, foi escolhida pelas possibilidades de criação e uso que vejo na linha, seja um fio de cabelo, um fio de arame ou uma linha de costura ou bordado, essas linhas me trazem a sensação de conforto, me fazem lembrar das linhas que achava grudadas nas minhas roupas e coisas, lembram-me a minha casa, minha mãe que, sendo costureira, deixou em mim essa sensação. A partir disso, consegui ver conexões claras entre o trajeto que queria representar e as linhas ou, ainda, entender os trajetos como linhas. fig. 13 fig. 14 fig. 15 Luta contra o esquecimento 57 Esse hábito de acumular e guardar, que encontrou nessas obras seu uso, teve e continuou tendo um propósito, isto é, um meio de recordar e manter registro que começou de forma inconsciente, mas que prosseguiu, sobretudo depois que percebi o que esses objetos me faziam sentir e criar. Além disso, minha memória consegue ser tão frágil que sinto a necessidade de guardar e salvar alguma coisa do dia vivido, como um diário informal construído a partir de restos. Desse modo, só posso concluir que se trata de um caminho sem volta pensar nos vestígios que deixamos, na forma como esses se tornam um caminho em direção à memória, além disso, que o motivo esteja nessa fragilidade da memória, que assim como o rastro pode possuir tanto significado e nenhum ao mesmo tempo. Porque a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. (Gagnebin, 2006, p. 44) A partir das minhas reflexões acerca da memória, iniciou-se o meu fascínio e obsessão pelo tema e pelo que é deixado para trás. No decorrer da história da humanidade, nos deparamos com diversas figuras históricas que performaram grandes feitos com o intuito de permanecerem lembradas, demonstrando portanto, como a obsessão com a memória não é individual, assim como o desespero em esquecer, o qual também constitui-se como uma experiência coletiva, haja vista que quando nos deparamos com a possibilidade de sermos acometidos com uma doença, como o Alzheimer, nossa maior preocupação se torna em não apenas esquecermos pessoas e lugares que uma vez conhecemos, mas sim, de perder a nossa identidade, isto é, esquecermos de nós mesmos, considerando que temos uma percepção de que parte da nossa personalidade é formada por experiências pessoais e coletivas. De acordo com Jan Assmann em Memória comunicativa e memória cultural, (re)Construindo memórias 58 “Lembrar-se é uma realização de pertencimento, até uma obrigação social. Uma pessoa tem que lembrar para pertencer” (Assmann, 2016, p. 122). No filme Para sempre Alice, adaptação do livro de mesmo nome de Lisa Genova, percebemos essa luta pela memória e a aceitação do esquecimento enquanto a personagem, interpretada por Julianne Moore, ao ser diagnosticada com Alzheimer precoce, tenta ainda se reconhecer e como isso afeta suas relações e a forma que ela experiencia o mundo ao seu redor. Reconheço que existe em mim essa mesma preocupação e um medo de esquecer até a mínima lembrança que possa parecer insignificante e irracional para alguém de fora. Esse medo é justificado pela falta de controle do que é lembrado e o que é esquecido; existe uma ansiedade, que cresce pela forma que o tempo age e da maneira como minha memória não reage da forma esperada. Assim, assumo, para mim, sob diversas perspectivas, que lembrar é uma forma de resistência, no entanto, a luta contra o esquecimento é em vão, o esquecer é inevitável. Como poderia, então, lutar pela minha memória e tentar preencher essas lacunas? A resposta para essa pergunta é o que tento atingir com todas as minhas obras em que abordo essa temática. Essa percepção sobre a minha preocupação, ou até mesmo, medo do esquecimento, foram recentes e surgiram na minha despedida da infância, da casa da minha avó materna, que se tornou da minha tia após seu falecimento, e que agora em sua estrutura já frágil não conseguia mais ser um lar. A casa, que fazia parte constante da minha memória e, é cenário das minhas histórias de infância, ao ser demolida em 2023, passou a viver apenas no meu imaginário. Quando a casa foi aos poucos se tornando uma casca oca e sem vida, ao ter seus objetos e móveis retirados, recolhi algumas coisas para mim, os cacarecos e objetos aleatórios que foram esquecidos e deixados para trás. Luta contra o esquecimento 59 Alguns desses objetos que recolhi dessa casa, tão importante para mim na infância, juntamente com outros que encontrei ao explorar potes de cerâmica e gavetas da casa dos meus pais, foram utilizados como materiais para a criação de Coisas para se esquecer de lembrar (2023), uma obra interativa, de composição simples que, de certa forma, marca uma passagem dos trabalhos com colagem no plano bidimensional, para as tentativas de tornar minha produção mais espacial. Esse trabalho há relação com a pintura Lo que el agua me dio (Lo que vi en el agua) (1938) de Frida Kahlo, a obra é um reflexo da vida da artista e mostra diversas imagens que emergem da água do banho, os quais são fragmentos e símbolos que a constituem. Na obra Coisas para se esquecer de lembrar, no entanto, o que está espalhado são coisas consideradas insignificantes, objetos sem valor e apesar disso, em sua insignificância me constituem. A composição consiste em objetos, que são colocados em três esferas feitas a partir de cacos de vidro de garrafas, que estão em uma caixa; já o título, remete ao que os objetos são, isto é, coisas que eram relevantes ou importantes o suficiente para se guardar em um pote ou gaveta, mas que ao serem colocados lá, foram esquecidos. Em um processo como o de abrir e explorar o fundo de uma gaveta, redescobrindo seu conteúdo, acontece a separação do objeto e seu significado, sendo possível imaginar e criar um sentido a esses elementos. Assim como as esferas de caco de vidro, constituídas por partes de um todo, a garrafa, que foi quebrada em cacos e então remontada, os cacarecos são fragmentos de memórias, partes de um indivíduo, que são constantemente remontados e bagunçados. (re)Construindo memórias 62 Ademais, como já citado anteriormente, há uma ideia de memória como algo coletivo: de que formas esses objetos poderiam despertar memórias em outras pessoas, assim como despertavam emmim e o quão diferentes ou semelhantes poderiam ser? Essa ideia se manifesta de forma mais concreta em Teia de memórias (2023), um trabalho colaborativo e, em parte, de caráter performático, que aconteceu de forma digital a partir de um grupo de pessoas que foram instruídas a compartilharem fotos e relacionarem essas fotos com as dos outros participantes. O resultado foi o compartilhamento de lembranças e experiências em comum, que possuíam suas distinções e singularidades, ainda que fossem similares. O emprego da fotografia nesse trabalho veio da experimentação e pesquisa de projetos anteriores, mais especificamente relacionados à forma como a fotografia constrói memórias com ajuda das histórias e experiências compartilhadas pelas pessoas dos nossos círculos sociais ou familiares. A partir disso, os questionamentos a respeito do que seria o conceito de "memória real", os quais viriam a ser abordados em trabalhos futuros, iniciou-se em 2020, a partir de uma série de trabalhos com cianotipia que tratavam da construção da memória através das histórias que me foram contadas por pessoas ao meu redor. Luta contra o esquecimento 63 (re)Construindo memórias 64 Nesses trabalhos com cianotipia minha intenção era entender o que constituía a minha memória em meio às histórias que cresci ouvindo, e o que, portanto, poderia tornar uma memória real, isto é, quais eram os processos para se construir uma memória e como ela tornava-se real. A partir disso, invoco novamente a produção de Calle, dessa vez True Stories, treze livros publicados desde 1998, que contém textos e fotografias que são elaborados como fragmentos de autobiografia real-falsa, a verdade e ficção para ela são inseparáveis e, formam uma realidade própria, as histórias reais são tão reais quanto Sophie Calle e totalmente dependentes de sua verdade; de forma similar Conceição Evaristo, segundo ela mesma, trabalha com ficções da memória em Becos da Memória, em que ela confunde a realidade com ficção, “minha memória ficcionalizou lembranças e esquecimentos de experiências que minha família e eu tínhamos vivido, um dia. [...] E, como a memória esquece, surge a necessidade da invenção.” (Evaristo, 2017, p. 10-11). O fator desencadeante da produção dessas obras, foi o acesso a fotografias e documentos que minha avó paterna guardou e deixou para trás quando morreu, no fim de 2019. Tal acontecimento me fez querer procurar e saber mais, entender melhor todas as pessoas que me antecederam cujas histórias ouvia ao longo de minha infância. A pandemia propiciou essa situação ao me forçar a retornar para minha casa em Mirassol, no interior paulista. Com muito tempo para mim mesma, passei a revisitar minhas memórias que estavam principalmente ligadas a objetos e lugares da cidade, assim como as histórias, o que ficou dos que vieram antes de mim e as memórias que hoje ainda restavam nos objetos que tinha acesso, por causa disso, me coloquei em uma posição de quem observa e coleta rastros, histórias e memórias alheias. [...] a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. (Benjamin, 1987, p. 239) (re)Construindo memórias 66 Nesse processo de revisitar o passado, percebi que sabia muito pouco sobre meus bisavós e os seus antecedentes. Em consequência, as histórias contadas sobre eles passaram a ter um valor muito maior, pois poder trabalhar a partir dessas fotografias, mapear essas pessoas, esses rostos e construir uma árvore genealógica que me permitisse entender melhor a história da minha família, foi uma das atividades que mais me motivou a produzir durante um período tão complicado quanto a pandemia. Naquele momento, era algo importante para a minha relação comigo mesma e também com os meus pais, pois pude durante esse processo, olhar para eles e suas memórias, pude perguntar e ouvir. Nas gavetas, caixas de recordação e álbuns, em meio a fotos e pequenos recados, às vezes deixados no verso, certidões e documentos, me senti saudosa de muita gente e precisei lidar com um luto, diferente do que vinha sentindo pela minha avó. Um luto por pessoas que nunca conheci, apesar da sensação de saber como elas eram através das lembranças e memórias daqueles que elas deixaram para trás e que, de certo modo, foram responsáveis pela pessoa que sou hoje. fig. 26 Luta contra o esquecimento 67 Em Parede da Memória (1994-2015), obra de Rosana Paulino, a artista utiliza retratos de família que se multiplicam, como uma forma natural dela investigar a própria identidade a partir de seus ancestrais, eu relaciono o meio que Paulino utiliza para isso com a minha experiência em desvendar a minha identidade por meio do estudo dos meus antecessores. A partir dessa busca no passado, surge a série de cianotipias Desencontros (2020), que se inicia com a primeira cena de que tenho memória: a visão da sala da minha avó materna, através da cortina que servia de porta para o seu quarto, e o seu caixão, onde deveria estar o sofá, e a sensação de não entender o que estava acontecendo. É nessa mesma casa que outras cenas retratadas tomam forma, nas histórias sobre meu avô e sua sanfona, as teorias a respeito da sua garrucha, sobre minha avó que se estende desde sua aparência e temperamento, que tantos comparam a mim. Nessa série, meu pensamento se resume em como o tempo separou essas pessoas de mim, enquanto tento, por meio dos meus trabalhos, recolher seus rastros, vejo nesse processo a casa da minha avó e a casa que eu morei toda minha vida como meus lugares de memória. Coisas não “têm” uma memória própria, mas podem nos lembrar, podem desencadear nossa memória, porque carregam as memórias de que as investimos, coisas tais como louças, festas, ritos, imagens, histórias e outros textos, paisagens e outros “lieux de mémoire”. (Assmann, 2016, p. 118-119). fig. 27 Luta contra o esquecimento 69 Em 2023, voltei a revisitar esse sentimento confuso de luto, com a notícia de que a casa da minha avó seria demolida e, também, com a notícia do furto da sanfona do meu avô que aconteceu em meio a desocupação da casa. Por si só, a demolição era uma notícia devastadora, pois era a mesma casa que foi a responsável por me fazer entender um pouco sobre aqueles que vieram antes de mim e também me proporcionou autoconhecimento. Essas notícias me trouxeram a sensação de que estavam me arrancando essas memórias à força. O que restou (2023) representa essa frustração e tristeza em me despedir de símbolos tão importantes. A obra em questão, se trata de uma gravura da garrucha do meu avô que me pertence, com detalhes feitos com o meu sangue que deixam marcas no papel, fazendo menção à minha ascendência e herança genética, é uma afirmação e ainda um questionamento: o que resta para mim dessas pessoas que conheço apenas as histórias? E o que vai restar quando já não houver rastros a seguir? Os restos da casa, antes para mim um lugar de memória, pairam em um lugar suspenso de nostalgia se tornando por um breve momento minhas ruínas, em outras palavras, em algum momento o espaço que antes era a casa será ocupado e se tornará algo que já não me é mais identificável; os restos que sobraram agora são detritos esperando para serem descartados, “as coisas, transformadas em mercadorias, envelhecem mal. Tornam-se obsoletas, atiram-se para o lixo ou são recicladas. Os edifícios são destruídos ou restaurados.[...] A ruína do século XXI é detrito ou restauração” (Huyssen, 2014, p. 90-91). É fácil se prender a esses lugares de memória, objetos e lugares específicos que carregam histórias, é preciso de um lembrete constante que o material não é o único meio de conexão com o passado, com as memórias. Luta contra o esquecimento 71 Para além do lugar físico, existe o lugar situacional, os lugares de afetividade que ficam entre passado e presente, na partilha, lugares onde memórias se encontram na afetividade, como acontece ao ouvir histórias dos mais velhos, dos familiares e amigos. É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas ideias, não são originais: foram inspiradas nas conversas com os outros. Com o correr do tempo, elas passam a ter uma história dentro da gente, acompanham nossa vida e são enriquecidas por experiências e embates. (Bosi, 1979, p.331) Posso citar a experiência de me sentar no ateliê de costura da minha mãe, poder falar sobre minhas histórias e então ouvi-la falar das suas. A série de cianotipias A costureira (2020-2021) representa esses momentos de troca, com uma máquina de costura entre nós. Houve uma inspiração na pintura de Djanira, titulada Costureira (1951), vejo muito da minha mãe na representação feita pela pintora que também era costureira, existe uma visão do ofício artesão como um fazer artístico, que é interpretado como não intencional pelo artista autodidata, ela expressa bem isso em um depoimento ao Museu da Imagem e do Som em 1967, “Uma moça da Suíça francesa me pediu para lhe fazer um vestido, chegou ao meu ateliê, viu aquela porção de desenhozinhos na parede e perguntou: ‘De quem são?’. Eu disse: ‘São meus’. Ela: ‘Não, eu quero saber quem fez’. Eu disse: ‘Fui eu’. E ela: ‘Então você é uma artista!’. Eu falei: ‘Não, isso é brincadeira minha’.” (Djanira apud Furlaneto, 2014) Minha intenção é transmitir o meu olhar sobre minha mãe, que é a primeira artista com a qual tive contato, e é alvo do meu fascínio e admiração, mas, também, transmitir o sentimento de acolhimento e conforto que ela me proporciona. Encontro na minha mãe a liberdade de explorar nossa relação, em parte pelo reconhecimento mútuo que encontramos uma na outra, mas também pela abertura que encontro na nossa partilha. Meus trabalhos sobre ela são a representação da construção do nosso vínculo como mãe e filha, do meu olhar infantil ao olhar adulto, que se deu início em A Costureira. Luta contra o esquecimento 75 A continuidade do que é explorado em A Costureira, ocorre na série Eu te enxergo (2022), onde busco materializações de histórias da minha mãe e da sua juventude, através da serigrafia e da colagem. A primeira obra da série, Para o cargo de modelista (2022), se trata de uma representação da janela, que hoje em dia está guardada comigo e que já havia retratado em A costureira; a segunda, Para Roseli com todo carinho (2022) é a reprodução das fitas cassetes antigas que pertenciam a ela, algumas com as suas músicas favoritas da época, gravadas do rádio ou que lhe foram presenteadas, como é o caso da fita que leva a mensagem dedicatória “Para Roseli com todo carinho” que dá nome à obra. Ambos os trabalhos têm como base a serigrafia que é sobreposta por acetato, acrescentando uma nova camada através de detalhes feitos a partir da colagem de linha de bordado. O acetato faz o papel de uma lente, algo pelo qual você enxerga através, mas também adiciona informações. Eu te enxergo, não só é continuidade do processo iniciado em A Costureira, como também uma forma de afirmar, da minha parte, o vínculo entre minha mãe e eu. fig. 34 (re)Construindo memórias 78 De certa forma, posso concluir que tenho perseguido um tipo de arte autobiográfica, ou seja, olhar para mim, para o meu cotidiano e, então, para as pessoas ao meu redor; vejo esse processo como um meio de autoconhecimento, de descobrir o mundo de dentro para fora, gradativamente. Como já mencionado anteriormente, fazer arte para mim é uma forma de expressar e processar meus sentimentos, um fazer artístico, talvez um tanto narcisista, mas, como Carlos Fuentes, na introdução de O diário de Frida Kahlo, escreve sobre a produção da artista, “aquilo que vivia era aquilo que pintava. Mas nenhuma experiência humana, por mais dolorosa que seja, torna-se arte por si mesma”. E a arte autobiográfica não é só um retrato dos traumas e experiências de um artista, é uma análise e um destrinchamento, uma dissecação, muitas vezes, ao ponto de abstração, trabalhado através de simbologias, analogias e alegorias. Dessa forma, o observador é arrastado para dentro do universo construído na obra, convidado a dissecar e fazer associações e, o que antes poderia parecer uma experiência individual isolada, as sensações de um artista, encontra identificações em outros indivíduos, no âmbito coletivo. A artista Louise Bourgeois, que assim como Frida usou sua vida e traumas como temática de suas produções, diz que “[...] o artista deve dizer o que sente. O meu trabalho cresce do embate entre o indivíduo isolado e a consciência compartilhada do grupo” (Bourgeois, 2000, p. 66), um dos seus trabalhos mais íntimos e que me relaciono, principalmente pelo uso de coisas acumuladas através dos anos, é Ode à l'Oubli (2002) que se trata de um livro composto inteiramente de peças de tecidos que ela usou ou guardou, desde a década de 1920, incluindo camisolas, cachecóis, toalhas de mão e guardanapos de mesa de seu enxoval de casamento monogramados com suas iniciais. Luta contra o esquecimento 79 Além disso, me identifico e me inspiro nas formas da artista de se expressar, “A busca (instigando) da verdade é o que me faz ir adiante. O segredo de minha ansiedade. O que aconteceu desde a infância? Tem a ver com hostilidade o que há de errado comigo” (Bourgeois, 2000, p. 72). Foi nesse cenário que elaborei o trabalho Patinhos de concreto só fazem afundar (2023), que existe na fronteira entre memória, trauma e experiência. A base que constitui esta obra está na ideia de censura e do olhar infantil que tenta processar o fim da infância e a quebra da inocência, resultando da inadequação social e sensação de desamparo em momentos de confusão e transição. Os trabalhos do artista brasileiro José Leonilson, como Não tenha medo meu rapaz (1988), Leo não pode mudar o mundo (1991), já vinham de certo modo influenciando a minha produção tanto esteticamente quanto no âmbito da arte autobiográfica, mas nesse trabalho consigo pontuar com mais clareza, principalmente nas gazes bordadas que fazem parte da obra e que são a realização de um desejo já antigo de integrar a escrita a uma produção artística . Assim, em um lavatório de plástico, patinhos de concreto desempenham o papel de alegoria em meio a faixas de gaze, bordadas com linhas vermelhas, com trechos de músicas e um conto que fazem parte da cultura popular infantil. 81 3.2. Colagem como processo de criação A escolha da colagem, mais especificamente a assemblagem como técnica a ser utilizada no processo proposto na oficina dá-se, principalmente, pelas minhas experiências já mencionadas, ao identificar materiais nos vestígios do cotidiano e através deles criar algo que se comunica com seu meio e com si próprio. Ao identificar questões que restringem a expressão artística de pessoas adultas, como a insegurança causada pelas noções de arte que buscam o realismo, perfeição e originalidade, vejo nesse meio uma forma de arte que não se prende a parâmetros de "bom" ou "ruim", comuns no desenvolvimento artístico de muitos. Ao que as técnicas como o desenho, a pintura e a escultura são muitas vezes vistas como uma habilidade que requer precisão, domínio técnico e padrões estéticos, a colagem se destaca por sua liberdade e fluidez. A partir de fragmentos de materiais pré-existentes, a colagem permite que a pessoa reorganize o mundo ao seu redor de uma maneira mais espontânea, menos julgada por perfeição técnica. John Dewey, em Arte como Experiência, sugere que a arte está intimamente conectada à experiência cotidiana, e que a criação artística é parte do processo de interação com o mundo. Nesse sentido, ao usar objetos encontrados e materiais do dia a dia, a colagem torna-se um reflexo da experiência humana de conectar e reorganizar o mundo de forma ativa. Em Criatividade e Processos de Criação, Fayga Ostrower relaciona a motivação humana de criar à busca de ordenações e de significados, na qual o ser humano é impelido como um ser consciente a compreender a vida e, também, a se formar. Por isso, estamos o tempo todo fazendo associações, interpretando signos e fazendo justaposição de informações, Ostrower diz que o ser humano, (re)Construindo memórias 82 [...] é capaz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que ocorrem ao redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele se configura em sua experiência de viver e lhes dá um significado. Nas perguntas que o homem faz ou nas soluções que encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre o homem relaciona e forma. (Ostrower, 2001, p. 9) O método da colagem utiliza essas funções, que nos são naturais inconscientemente, por isso, a colagem é um meio criativo que pode ser trabalhado, tanto com pessoas iniciantes ou experientes artisticamente, quanto com aqueles que nunca tiveram contato com a técnica. Trata-se de um método que funciona sem a pressão de começar com uma folha branca, dado que já faz parte de algo pré-existente. Por isso, provoca um movimento de organização de ideias e significados, partindo de uma aparente desorganização inicial, resultando em diversas possibilidades de expressão, que consegue abraçar melhor as falhas. [...] o uso da colagem permitiu-lhes encontrar uma forma de ver as coisas com clareza, de apresentar as coisas de forma diferente, até mesmo enganosa, e de falar sobre algo sem ter que mencioná-lo explicitamente. (Cran, 2016, p. 10, tradução própria)4 Devido a essas características, vejo na colagem um potencial de ajudar pessoas jovens e adultas a desconstruir muitas das noções que atrapalham a expressão artística e criativa. Para além do gesto de recortar e colar, pensando na variedade de materialidade, no método de assemblagem a partir de objetos encontrados, o qual parte dos mesmos princípios da colagem, mas ganha a espacialidade, em que objetos e coisas do cotidiano podem ter seus propósitos e significados repensados e integrados a outros elementos para que formem um significado para além das partes que os compõem. 4 [...] the use of collage enabled them to find a way of seeing things clearly, of presenting things differently, even deceptively, and of talking about something without having to mention it explicitly. 83 3.3. Memória como estímulo criativo A memória é um sistema que possui potente capacidade de ordenar, organizar e selecionar informações, “se não houvesse essa possibilidade de ordenação, se viessem anarquicamente à tona todos os dados da memória, seria impossível pensarmos ou estabelecermos qualquer tipo de relacionamento” (Ostrower, 2001, p .19). A memória, portanto, está intimamente relacionada à forma que acessamos e associamos nossas experiências e desse modo ela desempenha um papel fundamental como estímulo criativo. As intenções se estruturam junto com a memória. São importantes para o criar. Nem sempre serão conscientes nem, necessariamente, precisam equacionar-se com objetivos imediatos. Fazem-se conhecer, no curso das ações, como uma espécie de guia aceitando ou rejeitando certas opções e sugestões contidas no ambiente. Às vezes, descobrimos as nossas intenções só depois de realizada a ação. (Ostrower, 2001, p. 18) No contexto da colagem, a memória é reinterpretada através de signos, símbolos e associações, conectando esses fragmentos do passado ao presente. Há o resgate de fragmentos de experiências, objetos e símbolos, cujas histórias pessoais e coletivas se tornam matéria-prima para a expressão artística. Através das associações simbólicas, os objetos ganham novos significados, rompendo com seu contexto original e participando de um diálogo entre o pessoal e o coletivo. Assim, a memória se torna um fio condutor, tanto no nível individual quanto coletivo, para a criação artística. Acompanhamos a interpretação da memória no poder imaginativo do homem, e, simultaneamente, em linguagens simbólicas. A consciência se amplia para as mais complexas formas de inteligência associativa, empreendendo seus vôos através de espaços em crescente desdobramento, pelos múltiplos e concomitantes passados-presentes-futuros que se mobilizam em cada uma de nossas vivências. (Ostrower, 2001, p. 19) (re)Construindo memórias 84 4. (re)Construindo memórias (re)Construindo memórias 86 87 4.1. I. Reconhecendo lugares de memória e afetividade Todas histórias que escutei Memórias e derrotas que vivi Todos os livros e os cantos que cantei Nas praças que passei Todas as curtas prosas Velhas conversas que iam até A hora do café sair Já vai sair Cantar Olá, Projeto Rivera Nesse trabalho encaro a memória principalmente como fenômeno social, tanto em sua dimensão individual quanto coletiva. Dessa forma considero a memória um componente essencial da construção da identidade, que abarca a multiplicidade de experiências e relações que moldam os indivíduos e os grupos sociais. Diversos teóricos, como Maurice Halbwachs, Jan Assmann, Pierre Nora e Jacques Le Goff, exploraram como a memória é formada, comunicada e mantida ao longo do tempo, influenciando aspectos da vida e sociedade, essa primeira etapa pretende identificar as diferentes formas de memória, a utilização de objetos externos como veículos de rememoração e como é possível se relacionar com elas e criar a partir disso. Normalmente é feita uma distinção entre memória coletiva e individual. A memória individual refere-se à capacidade pessoal de reter e recordar experiências, emoções e informações vivenciadas diretamente pelo indivíduo, sendo intrinsecamente ligada à identidade pessoal. No entanto ela não existe de forma isolada, como Halbwachs argumenta em Memória Coletiva, sempre estamos inseridos em grupos sociais que influenciam e moldam essas recordações, portanto as memórias pessoais são mediadas por contextos sociais, culturais e históricos. (re)Construindo memórias 88 Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. (Halbwachs, 2006, p. 30) Na arte, muitos artistas trabalham a partir da memória, a exemplo Frida Kahlo que abordou e explorou sua memória, temas de trauma e identidade a partir da própria imagem e símbolos de sua cultura, dessa maneira, sua arte se relaciona intrinsecamente com a sua memória individual enquanto apresenta influências de uma memória coletiva. Em Las dos Fridas (1939), - feita no ano em que se divorciou do marido Rivera - a pintora se divide em duas na tela, representando sua dualidade - o passado e o presente - a Frida solteira, que usa um vestido em estilo europeu e representa “a que Rivera havia amado” e a Frida “a quem não mais amava”, divorciada, que segura um retrato do marido e traja um vestido Tehuano que representa suas raízes mexicanas. No seu diário Frida escreve uma entrada que é titulada “ORIGEM DAS DUAS FRIDAS”, neste ela conta uma reminiscência da infância, em que encontra liberdade e segurança junto à sua “amiga imaginária”, ou melhor, seu outro eu. [...] E com um dedo desenhava uma “porta” ......... Por essa "porta"' eu saía na imaginação, com grande alegria e muita pressa, cruzava o amplo terreno que dali eu via até chegar a uma leiteria que se chamava PINZÓN… Eu entrava pelo O de PINZON e descia impetuosamente às entranhas da terra, onde "minha amiga imaginária" estava sempre à minha espera. Não me lembro da sua imagem nem da sua cor. Sei, porém, que era alegre - que ria muito. Silenciosamente. Era ágil e dançava como se não tivesse peso nenhum. [...] Pasma de estar sozinha com minha grande felicidade e a nítida lembrança da menina. Passaram-se 34 anos desde que vivi aquela amizade mágica e cada vez que a recordo, mais ela se aviva e mais cresce dentro do meu mundo. PINZON 1950, Frida Kahlo (Kahlo, 1995, p. 245-247) Reconhecendo lugares de memória e afetividade 89 fig. 39 Frida Kahlo Las dos Fridas, 1939 Óleo sobre tela 173,5 x 173 cm. col. Museo de Arte Moderno de Mexico Fonte: Historia/Arte https://historia-arte.com/obras/las-dos-fridas (re)Construindo memórias 90 Em relação ao conceito de memória coletiva, Jan Assmann sugere uma divisão entre memória comunicativa e cultural. A memória comunicativa é mais fluida e difusa, mantida viva pelas interações cotidianas, sendo compartilhada em interações familiares, entre amigos ou dentro de pequenos grupos. É uma forma de memória transitória e geralmente cobre até três gerações, não é formalizada, institucionalizada ou comemorada em rituais específicos, A participação de um grupo na memória comunicativa é difusa. Alguns, é verdade, conhecem mais, alguns menos, e as memórias dos mais velhos alcançam mais longe do que as dos mais novos. Todavia, não há especialistas de memória comunicativa informal. O conhecimento que é comunicado na interação diária é adquirido por seus participantes junto com a língua e a competência social. (Assmann, 2016, p. 122) Já a memória cultural é duradoura e formalizada, de forma que se estende além do ciclo de vida de gerações, abrangendo séculos ou até milênios, como os mitos fundadores de uma nação ou as tradições religiosas que perduram ao longo do tempo. Ela é preservada e transmitida através de monumentos, rituais, museus, arquivos e outras instituições que funcionam como depositários de memória coletiva. Esses espaços físicos, eventos, práticas ou objetos que servem como âncoras da memória coletiva são o que Pierre Nora se refere como lugares de memória (ou lieux de mémoire). Esses lugares são muitas vezes produzidos em momentos em que há uma sensação de que a memória está desaparecendo, “porque grupos que, é claro, não “têm” uma memória tendem a “fazê-la” por meio de coisas que funcionam como lembranças, tais como monumentos, museus, bibliotecas, arquivos e outras instituições mnemônicas” (Assmann, 2016, p. 119). Reconhecendo lugares de memória e afetividade 91 Muitas vezes a construção desses lugares é, além de uma ação social, uma atitude política, como por exemplo, Jacques Le Goff afirma que o controle sobre a memória e o esquecimento é uma ferramenta de poder. Governos, instituições e grupos dominantes podem determinar o que é lembrado e o que é esquecido, influenciando a percepção histórica e a identidade social, “os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva” (LE GOFF, 1990, p. 426). Em suas obras, a artista brasileira Rosana Paulino questiona esses silêncios da história oficial, ela utiliza objetos comuns e técnicas tradicionalmente vinculadas ao universo feminino, como o bordado e a costura, assim como a apropriação de fotografias, para explorar a ausência e silenciamento da história e memória das mulheres negras e da diáspora africana no Brasil. Um exemplo desse processo é sua série Bastidores (1997), em que ela se apropria de retratos de mulheres negras e os transfere sobre tecidos emoldurados em bastidores de costura. Essas fotos são distorcidas por linhas que costuram os rostos das figuras retratadas, simbolizando a violência histórica; olhos e bocas são costurados retratando mulheres que foram reprimidas, negadas de ver e do direito a sua voz. Esses corpos, privados de sua expressão, remetem à exclusão dessas narrativas na memória oficial do país. Dentro desse pensar, faz parte do meu fazer artístico apropriar-me de objetos do cotidiano ou elementos pouco valorizados para produzir meus trabalhos. Objetos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do domínio quase exclusivo das mulheres. Utilizar-me de tecidos e linhas. Linhas que modificam o sentido, costurando novos significados, transformando um objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados para o mundo e, principalmente, para sua condição no mundo. (Paulino, 1997, p. 113-114) (re)Construindo memórias 92 fig. 40 Rosana Paulino Imagem da série Bastidores, 1997 Imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de costura 30,0 cm diâmetro Fonte: Rosana Paulino Podemos dizer que em seu processo artístico, Rosana Paulino denuncia a forma como a memória de certos grupos foi deliberadamente excluída ou colocada em segundo plano. Por exemplo, na Instalação Assentamento (2013), a artista examina a violência estrutural imposta às mulheres negras e às suas histórias através da apropriação de fotografias científicas do século XIX, do fotógrafo August Stahl, em que Paulino constrói uma narrativa visual que restaura a dignidade e visibilidade do corpo escravizado feminino. Na obra temos o corpo de uma mulher negra e escrava, que foi cortado e tenta-se juntar as partes a partir de uma costura bruta que deixa lacunas, dessa forma temos a imagem de um trauma geracional, o trauma de escravidão, que paira na memória coletiva de um grupo marginalizado e o racismo estrutural que ainda perdura na sociedade contemporânea. https://rosanapaulino.blogspot.com/2009/07/textos-de-minha-autoria.html Reconhecendo lugares de memória e afetividade 93 fig. 41 Rosana Paulino Assentamento, 2013 Instalação. Impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado. Tecidos 180 x 68 cm Fotos: Celia Antonacci Fonte: Rosana Paulino “O Brasil é um país que não se enxerga”: a frase foi dita, com a necessária contundência, por Rosana Paulino durante a 8ª Conferência FAPESP 2023 [...] Paulino fez e faz de sua obra um instrumento para que o país consiga enxergar a si mesmo. Ou, como ela diz, para “colocar o país sobre a mesa”, no sentido de discutir e superar as marcas do passado que ainda sobrevivem no presente e abrir caminho para o futuro. Para ela, essas marcas todas configuram um grande trauma: o trauma da escravidão. “Enquanto não formos capazes de olhar e discutir a fundo a escravidão, não seremos capazes de realizar todo o nosso enorme potencial”, disse. (Arantes, 2023) https://www.rosanapaulino.com.br/blank-5 (re)Construindo memórias 94 Outro artista que trabalhou com as temáticas da memoria e do esquecimento foi Christian Boltanski, que criou instalações compostas por fotografias, roupas e objetos que evocam o conceito de "lugares de memória", suas obras refletem uma tentativa de preservar, arquivar e materializar o que poderia ser perdido para o esquecimento, também sobre a fragilidade da existência humana e as cicatrizes do passado, particularmente no contexto do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial. Desse modo, seus trabalhos ecoam questões em torno da memória, do esquecimento e da ausência, propondo o entrelaçamento entre a memória individual e a memória coletiva. Ao serem expostas as obras simulam uma espécie de memorial, do qual fotografias antigas, peças de roupas ou outros itens tornam-se parte, atravessando o tempo e desafiando o esquecimento. As questões do tempo, da memória e da morte estão no cerne da obra de arte de Boltanski, de modo ainda mais rico e expressivo na construção da obra como relíquia que une o individual e o coletivo num tempo inventado, porém mais do que nunca efetivo e real. (Ripoll, 2013, p. 138) Como exemplo dos trabalhos de Boltanski, há a instalação Réserve du Musée des Enfants I et II (1989), que através de roupas acumuladas em estantes de metal e fotos de crianças anônimas em preto e branco, age como um lembrete de corpos ausentes e de uma infância que se foi. A estética visual da obra pode ser comparada às pilhas de roupas e outros itens pessoais encontrados no museu do holocausto do campo de concentração de Auschwitz, em que o acúmulo de uma grande quantidade de itens deixam uma impressão de choque em quem observa. A instalação posterior Réserve des enfants de Duisburg (1993), funciona de maneira similar, pairando sob uma infância suspensa entre passado e presente, no entanto, os itens diversos que foram doados por crianças e etiquetados com retratos, apresentam um aspecto mais semelhante a de um arquivo, como se fossem provas de um crime que foram armazenadas, identificadas e arquivadas. Reconhecendo lugares de memória e afetividade 95 fig. 42 Christian Boltanski Réserve des enfants de Duisburg, 1993 Instalação. Objetos (roupas, brinquedos, cadernos, etc.), etiquetas com fotos de retrato e estantes de madeira. col. Lehmbruck Museum © VG Bild-Kunst Fotos: Dejan Saric Fonte: Lehmbruck Museum Esse aspecto de arquivo também está presente em Réserve de Suisses morts (1991), em que Boltanski cria uma instalação composta por recipientes de metal que se assemelham a caixas de armazenamento e carregam a foto de um cidadão suíço falecido, como se fosse um arquivo memorial. As caixas são empilhadas e organizadas de modo a formar um corredor que é iluminado por lâmpadas de escritório. A estrutura parece sugerir um infinito acervo de mortos, que transparece a frieza da morte e suas burocracias mundanas, e expõe o contraste entre esse aspecto institucional e o pessoal, assim como entre a memória e o esquecimento. Dessa maneira, é como se o artista instigasse o público a pensar no que é deixado após a morte, isto é, o material e imaterial que mantém nossa essência, através do questionamento: Se você pudesse colocar em uma caixa as coisas que te fazem o que você é, o que encontraria? Boltanski usa da ideia de que enquanto uma pessoa for lembrada algo dela ainda vive. https://lehmbruckmuseum.de/nachruf-christian-boltanski/ (re)Construindo memórias 96 A grande memória pode ser encontrada nos livros de história, mas o acúmulo de pequenos pedaços de conhecimento que cada um de nós acumulou compõe o que somos. Sei que estou engajado em uma luta. Alguém disse: “hoje em dia morremos duas vezes: primeiro no momento da nossa morte e, novamente, quando ninguém mais nos reconhece em uma fotografia”. Costumo compilar listas de nomes (suíços mortos, operários de uma fábrica no norte da Inglaterra no século XIX, artistas que participaram da Bienal de Veneza…) porque tenho a impressão de que dizer ou escrever o nome de uma pessoa lhe dá vida por alguns momentos; se alguém os nomeia, reconhece sua existência individual. (Col·lecció, 1996, tradução própria)5 Se os lugares de memória são marcadores objetivos da memória coletiva, os lugares de afetividade são mais subjetivos e estão conectados a experiências vividas e sentimentos individuais, muitas vezes vinculados à nostalgia, ao apego emocional e às relações afetivas, tomando forma nas situações cotidianas ou objetos pessoais. No entanto, devo pontuar que neste trabalho considero os lugares de afetividade como parte dos lugares de memória, este abrangendo as duas formas de materialização da memória, a física - os lugares, espaços e objetos - e a situacional - sentimentos, emoções, acontecimentos e celebrações -, dessa forma, ao me referir aos objetos de memória, tem-se em mente itens que são representações tangíveis, assim como ativadores de uma lembrança ou um evento marcante. Objetos externos como portadores de memória já desempenham um papel no nível da memória pessoal. Nossa memória, que possuímos enquanto seres dotados de uma mente humana, existe somente em interação constante, não apenas com outras memórias humanas, mas também com "coisas", símbolos externos. (Assmann, 2016, p.118). 5 Tradução da transcrição em inglês do MACBA. “The great memory can be found in history books, but the hoard of small bits of knowledge that each one of us has accumulated makes up what we are. I know that I am engaged in a struggle. Someone has said: “nowadays we die twice : first at the time of our death, and again when nobody recognizes us in a photograph any more”. I often compile lists of names (dead swiss, workers in a factory in northern England in the XIX century, artists who participated in the Venice Biennale…) because I have the impression that saying or writing a person's names gives them life for a few moments; if one names them, one recognizes their individual existence.” Reconhecendo lugares de memória e afetividade 97 fig. 43 Christian Boltanski Réserve de Suisses morts, 1991 Objeto. Caixas de lata, impressão em prata coloidal, papelão e lâmpadas elétricas 288 x 46 x 238 cm; 2380 caixas: 12,1 x 21,8 x 23, 3 cm cada Col. Museu d'Art Contemporani de Barcelona © Christian Boltanski Fonte: MACBA https://www.macba.cat/en/obra/r0088-reserve-de-suisses-morts/ (re)Construindo memórias 98 Os objetos de memória são “coisas” que ganham valor simbólico ao representarem algo maior do que sua função original, encapsulando memórias e emoções que transcendem o tempo. Por exemplo, um brinquedo da infância guardado por alguém por anos, que representa não apenas a diversão que ele proporcionou, mas as em