UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP DANILO PORFÍRIO DE CASTRO VIEIRA Modernidade e os projetos de secularização de comunidades religiosas, seus acertos e problemas: uma análise comparativa entre os modelos nacionais sionista e o panarabista São Paulo – SP 2024 DANILO PORFÍRIO DE CASTRO VIEIRA Modernidade e os projetos de secularização de comunidades religiosas, seus acertos e problemas: uma análise comparativa entre os modelos nacionais sionista e o panarabista Relatório de pós-doutorado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), realizado entre dezembro de 2023 e novembro de 2024. Supervisor: Luís Alexandre Fuccille São Paulo – SP 2024 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO......................................................................................................3 2 PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA.........................................................................9 2.1 Projeto filosófico de modernidade e a nacionalidade: de um recurso liberal para um movimento contra-liberal (nacionalismo).............................................9 2.2 Comunidades religiosas em transição: judaísmo e islã......................................17 2.3 Identidade religiosa tradicional e sua secularização: o sionismo......................39 2.4 Identidade religiosa tradicional e sua secularização: o (pan) arabismo................................................................................................................55 3 ATIVIDADES ACADÊMICAS REALIZADAS................................................72 4 RELATO FINAL..................................................................................................75 REFERÊNCIAS....................................................................................................81 3 1 INTRODUÇÃO A formação de Israel como um Estado Nacional laico fundamenta-se no sionismo, movimento político com várias vertentes, que defendia o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado nacional judaico independente. Como movimento nacionalista, opunha-se à assimilação cultural da comunidade judaica por outros sociedades, tendo como bandeira o fim da Diáspora, com o retorno integral à Palestina (Sião ou Sion, colinas que cercam a Terra Santa). Influenciado pelo movimento nacionalista europeu, Theodor Herzl fundou o movimento sionista, defendendo a necessidade da construção da soberania nacional dos judeus em um Estado próprio. A estratégia era imigração e a compra de terras. Mesmo estabelecendo parâmetro propriamente modernos contraliberais, a adesão vinha pelo apelo religioso. Porém, em contraponto ao sionismo religioso e ao sionismo tradicional, desenvolveu-se o sionismo socialista, assumindo protagonismo na primeira metade do século XX, tornando-se o principal núcleo político dos fundadores do Estado de Israel, a exemplo de lideranças como David Ben-Gurion, Golda Meir, Yitzhak Rabin e Shimon Peres, que tinha sólidas bases marxistas, defendendo um estado laico do povo judeu, o que pode ser visto como uma contradição. São esses tensionamentos e contradições que ainda assombram o Estado de Israel, a exemplo das alianças com o governo do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que buscam reviver uma Israel “histórica”, ou bíblica, restringindo acesso a direitos políticos a drusos e palestinos. De outra forma, o panarabismo busca a modernização sem perder a coesão, pela construção da nacionalidade pela língua (o árabe). Em resposta ao fim do modelo religioso do califado, que justificou a existência do Império (Sultanato) otomano. Atribuindo, o fim do Império e a presença neocolonial ocidental na Asia Central e Oriente Médio ao Islã, o panarabismo oferecia a modernidade (de inspiração contraliberal – de inspiração positivista ou marxista) a Ummah, não mais ligada a fé, mas a nacionalidade. Gamal Abdel Nasser, principal ideólogo do panarabismo defendia a união de todos os países de maioria árabe-muçulmana como forma de se contrapor ao domínio neocolonial ocidental. 4 Mesmo sendo um movimento nacionalista, de índole secular, com características eu transitam entre o socialismo e o positivismo, também recorreu a ao apelo religioso por diversos momentos políticos O principal movimento opositor do panarabismo foi a Irmandade Muçulmana, movimento político inspiração político-religiosa (Islã sunita). O recurso de secularização, tanto para o sionismo, quanto para o panarabismo, foi a secularização das comunidades religiosas pelo recurso da nacionalidade. A transição da estrutura comunitária tradicional para modelo societário, moderno, se faz pela substituição da linguagem tradicional pela língua nacional-oficial (culta, elitizada, adotada no ensino formal, meio de difusão da identidade nacional), da constituição de sacralidades institucionais vinculadas a imaginários (que se legitimam, na história e ancestralidade forjadas, na assimilação de regionalidades e folclore e a critérios pseudocientíficos como etnia/raça), sob autoridade estatal e territorialidade. Por sinal, o Romantismo do século XIX foi responsável por esse processo de bucolização de um passado que nunca existiu, a mitificação e alegorização de uma cultura ancestral maltrapilha. Há também a nacionalidade estabelecida no patriotismo cidadão, que não se prende às origens (pelo contrário, renúncia), sacralizando a terra que acolhe o cidadão e as suas instituições jurídico-políticas (república, constituição), a exemplo dos EE.UU. A nacionalidade de Estado tem como o culto agregador o Poder estatal em si e suas origens pretensamente ungidas, ou seja, as Monarquias. A autoridade do monarca funda-se na nação e a agregação entre os cidadãos (ou súditos) se faz de forma orbital ao monarca. A emancipação, portanto, afirma-se no encontro com seu grupo jurídico- político-social (coletivismo). No nacionalismo, acredita-se que a nação é um fenômeno concreto, fator de formação do Estado-Nacional, sendo a emancipação um fenômeno orgânico. É importante salientar: os movimentos nacionalistas, com índole emancipatória, “secularizaram” comunidades religiosas, transformando-as em grupos étnicos, a exemplo do movimento sionista do final do século XIX, que transformou os judeus de comunidade de fiéis em nação étnica, ou o panarabismo, que, na negação do Islã, ao qual se atribuía o atraso do Oriente Médio, uma comunidade pautada na unidade de fé (Ummah e Tawhid), pela língua comum e tradições, tornou-se uma grande etnia que se estende da Mesopotâmia ao norte da África. 5 O termo “sionismo” foi utilizado pela primeira vez em 1892 por Nathan Birnbaum em um debate em Viena, sendo utilizado com frequência a partir do I Congresso Sionista, ocorrido na Basileia, quando o sionismo assumiu um caráter de movimento nacionalista judeu. Buscou-se a formação de um sentimento unidade em função da ideia de identidade nacional e o retorno a “Terra prometida”. Theodor Herzl lançou o livro “O Estado Judeu” dando uma nova face ao nacionalismo judaico, fazendo de uma tradição comunitária religiosa, uma identidade de dimensões étnicas. Seria a opção contemporânea de preservação da existência cultural judaica. A original distinção entre a concepção religiosa de comunidade, com o modelo étnico-secular de nacionalidade, fez com que os judeus da classe média não fossem receptivos a proposta de Herzl. Logo o I Congresso Sionista teve como objetivo popularizar a proposta, criando a Organização Sionista Mundial. No discurso de abertura do Congresso Sionista, Herzl conclamou que o apoio devia partir do próprio povo, uma questão de autodeterminação. O esforço identitário homogêneo, em detrimento das diferenças linguísticas, sociais, políticas e religiosas. O sionismo está diretamente relacionado aos movimentos nacionais europeus do século XIX, não só por absorver seus elementos, como por ser uma reação ao antissemitismo gerado por aqueles movimentos. Trata-se, conforme o projeto moderno de nação, de uma emancipação coletiva, inspirado na formação dos Estados italiano e alemão. Os recursos homogeneizadores foram dois: a língua hebraica e a religião judaica, elementos forjados por interesses políticos. Especificamente as tradições religiosas assumem a função mobilizadora poderosa. O fator religioso justifica a Palestina como terra de escolha (povo escolhido, terra prometida, pátria histórica). O retorno a “Terra Santa” não seria por vias políticas, mas pela vontade de Deus. A Bíblia assume a condição de livro de História, uma construção que remonta o cristianismo protestantes. O sionismo se aproveitou do mito cristão do mártir Justino, que foi o primeiro a afirmar (século III) que Deus puniu os judeus com o exílio. Na verdade, os romanos não permitiram aos judeus viverem em Jerusalém, mas os cristãos criaram o mito do exílio judeu. Esse ímpeto do retorno retomou força, após a Segunda Guerra, com a tragédia do Holocausto (os nazistas, em seu antissemitismo, utilizaram-se na ideia de raça e etnicidade judaica). 6 Ainda hoje o sionismo conserva o seu carácter etnorreligioso. O Estado de Israel se apresenta como o Estado do povo judeu e que é um Estado democrático e judeu, o que expõe, uma contradição. Um Estado democrático, dentro de pilares seculares e plurais, pertence a todos os seus cidadãos. O panarabismo é uma corrente anticolonialista com matriz secular, desenvolvida com o fim do Império Otomano e subsequente colapso do califado. Suas origens remontam a ocupação europeia no Oriente Médio, porém seu apogeu na década de 50, tendo como principal expoente o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser. O panarabismo é um movimento que tem como premissa de que os povos do mundo árabe são uma única nação. Todos ligados ao património linguístico, cultural e histórico comum, recorrendo a preceitos nacionalistas, seculares e estatizantes. Trata-se de um movimento de natureza emancipatório, pois se opõe ao colonialismo tardio ocidental e à política ocidental, e secularista pois é contrário à tradição otomana, ao califismo e Islã político, considerados as causas de decadência e atraso do Oriente Médio. Tratou-se de movimento com forte influência europeia e norte-americana. Nos anos 30, a hostilidade árabe contra o sionismo emergente é causa de engajamento dos nacionalistas árabes. Dentro deste ímpeto de unidade étnico-cultural (mais político-cultural e linguística), foi criado a Liga Árabe, porém, a solidariedade entre os integrantes do grupo árabe é em regra aparente. No dia 1º de fevereiro de 1958, Egito e Síria constituíram a República Árabe Unida (RAU), que recebeu a adesão do Iêmen poucas semanas depois. Em 1961, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser anunciou o fim da aliança. O principal instrumento do panarabismo a partir dos anos 50 foi o partido Baas, que se tornou dominante no poder na Síria e no Iraque. O baasismo foi banido pelo líder egípcio, Gamal Abdel Nasser, assumindo o protagonismo pan-arábico. No projeto de Nasser, os árabes deveriam se unir num grande projeto de Estado Nação, no intuito de se oporem aos norte-americanos, vistos como sucessores do imperialismo europeu, impressão agravada com a criação e apoio ao Estado de Israel. Nasser se inspirou nos preceitos islâmicos de Unidade (Tahwid) e Comunidade (Ummah), porém, com retórica avessa ao argumento religioso, importando critérios próprios do modelo de Estado Nacional: secularidade (laicidade), etnicidade, entretanto sem democracia. 7 Com a morte de Nasser em 1970, o panarabismo entra em decadência. No início dos anos 70, o projeto de união entre o Egito e a Líbia terminou. A decadência do modelo de identidade étnico-cultural, com fundamento secular, apresentado pelo movimento panarabista, deu condições do ressurgimento e fortalecimento de movimentos políticos religiosos no Oriente Médio, conhecidos como neocalifistas . É importante salientar que o neocalifismo apresenta nuances: movimentos ortodoxos como os salafitas do Jihad Islâmica, ou mais moderados e defensores de uma modernidade autêntica islâmica, como o Irmandade Muçulmana. Há também movimentos neocalifistas, como o neo-otomanismo, que questiona o modelo secular nacionalista turco, e os movimentos insurgentes no Paquistão e Afeganistão, inspirados nas ideias de Abul A’la Mawdudi . Deve-se ressaltar que paralelamente a agonia do panarabismo e de outras formas de nacionalismo em espaço islâmico sunita, os movimentos identitários religiosos na Revolução Islâmica Iraniana, com inspiração xiita. A Revolução, liderada pelo líder religioso (aiatolá) Sayyid Ruhollah Musavi Khomeini, foi uma resposta contra a ocidentalização feita por Xá Reza Pahlev no Irã, tendo seu regime político associado à corrupção e à violência. Há também uma resposta a associação entre secularidade e autoritarismo, a tentativa de uma construção vertical de uma identidade étnico-secular associado a um imaginário persa (Pahlev se autodenominava sucessor de Ciro e Dario) e estigmatização do Islã ao atraso. Perseguições a líderes religiosos eram comuns. Com a queda do regime, Khomeini retornou do exílio na França e estabeleceu uma República Islâmica, inspirada no imamado. Houve o restabelecimento de padrões de condutas públicas e privadas inspiradas na Sharia e os poderes institucionais foram submetidos a uma estrutura religiosa composta por um Conselho de Peritos (clérigos), Conselho dos Guardiões (doutores na Sharia) e o Líder Supremo (Chefe de Estado). E sobre este prisma que emerge a pergunta, os modelos de secularização de identidades coletivas religiosas estariam fadados ao fracasso? Seria possível a transformação de uma matriz comunitária religiosa em societária étnico-secular? Logo, busca-se analisar os movimentos sionista e panarábico, suas causas e fundamentos, os recursos de secularização de tradições religiosas e a transição de comunidades encantadas para sociedades nacionais (étnico-seculares). Observar as 8 similitudes, seja nos meios, êxitos e contradições das propostas com o projeto filosófico de modernidade. Para se alcançar os escopos delineados, foi adotado o método exploratório, pela pura pesquisa bibliográfica, com a utilização de metodologia lógica e dedutiva. Recorrendo aos referenciais teóricos liberais e pós-colonialista de relação internacional, a pesquisa evoluirá no sentido de: compreender as causas de formação dos movimentos sionista e panarabista, seus fundamentos comuns, os problemas e contradições e o risco de um refluxo religioso ortodoxo. Para tanto, recorrer-se-á a métodos comparativos, inclusive à linguagem de tradução para se identificar e definir os modelos. Recorrer-se-á a hermenêutica diatópica. O reconhecimento e busca de entendimento e diálogo, pressupõe autoconfirmação sobre a “incompletude” das culturas pelos seus titulares (“hermenêutica diatópica”), o que viabiliza a abertura para a reciprocidade de traduções, para comutatividade cognitiva. 9 2 PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA 2.1 Projeto filosófico de Modernidade e a nacionalidade: de um recurso liberal para um movimento contra-liberal (nacionalismo) Modernidade é uma construção ocidental, de panfleto emancipatório, desenvolvido e operacionalizado ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, assumindo uma expressão de mundo da vida ou de superestrutura, repercutindo nos sistemas, instituições e valores, ditando práticas de vida, a forma de pensar uma existência social e de uma ordem moral (Taylor, 2010, p. 11 e 31). Os três pilares da modernidade são: a emancipação; pluralidade e secularidade. O emancipacionismo, movimento individual de libertação, essência do pensamento moderno, reivindica a autodeterminação do homem, sua soberania individual (autenticidade), tendo como fim a busca da felicidade, ou seja, a autorrealização existencial. O fundamento do emancipacionsimo encontra-se no primitivismo, no desprendimento das convenções, das tradições, dos princípios e valores postos, na aversão ao determinismo. A individualidade e sua autonomia, se experimenta na vida simples, regida pela própria vontade, pela moralidade racional, procedimental (nobre selvagem). O homem, sua autonomia e a plenitude existencial (juridicamente chamada de dignidade da pessoa) ultrapassam as virtudes e valores predeterminados, culturas e tradições, tendo como o fim o homem, não apenas como gênero, mas como entidade individual onto- antropológica (Berman, 1986, p.15). Essa ruptura com tradições mostrou-se no grande marco político da modernidade, a Reforma religiosa. A conciliação do homem “objeto do mundo” com o homem “valor”, firmando a primazia da identidade subjetiva. O homem deixa de se rum pertencimento do mundo, do grupo das instituições e se torna soberano de sua vida, senhor do seu microcosmo, fazendo da parte de uma coletividade em que busca voz em paridade (comunidade é substituída pela sociedade). A emancipação na Reforma Religiosa é presente nas concepções de fé subjetivada e de autossacerdote, da autoconsciência, individualização da crença pelo fiel. O fim da mediação ritualística (monopólio da Igreja), em função da austeridade da liturgia (Lutero, 1998, p. 31), e do fim da hierarquização sacerdotal, outrora condição de um 10 equilíbrio cósmico-transcendental. A compreensão “verdades” do Evangelho, é construída individualmente (autoconsciência /“self-awareness”). A efetividade de um projeto emancipatório e de uma organização coletiva societária pressupõe o redimensionamento sobre noções como igualdade e pluralidade. Immanuel Kant afirmava que a igualdade era um pressuposto da liberdade. A igualdade em questão é isonômica, não distributiva/retributiva aristotélica, quem se estabelece na impessoalidade formal, na nivelação dos indivíduos, na garantia da pessoalidade/personalidade (person, voz). O fundamento para a isonomia, portanto, é primitivista, especificamente o estado de natureza, como se observa nas reflexões de John Locke (1991, p.217), como também de Barão de Montesquieu (1997, p.39) e Rousseau (1991, p. 22 e 26). A condição niveladora é o critério secular da humanidade (que substituiu o Estado de Criatura da Idade Média). A ordem cósmica outrora pré-constituída agora é mutante progressiva, sujeita a vontade humana. Logo, a composição de uma coletividade societária, interindividual deve garantir a pluralidade, o reconhecimento da diversidade, distinção, diferença dos indivíduos (autenticidade como diferença), o respeito aos méritos da pessoa, sua autodeterminação e autorrealização. A igualdade garante a autenticidade das pessoas, a diferença em si não pode ser fonte de exclusão e perseguição, nem de arbitrariedades advindas de pessoas, grupos, classes e do poder político institucional. A pluralidade e a igualdade impõem no espaço societário a tolerância. Na Carta sobre a tolerância, John Locke tratou que em sociedade livre e voluntária, as questões religiosas restringem-se à individualidade da pessoa, ao seu livre-arbítrio e à reta razão (Locke, 2000, p. 92). O pluralismo afiança a emancipação e viabiliza a organização societária, estabelecida numa ordem coletiva sem hierarquia, tendo com liga, forma de sustentação, os laços de interesses e benefícios recíprocos (contrato social kantiano, interindividual e infinito). A coesão societária se estabeleceria na “ética da racionalidade”, formal, dessubstancializado e desencantada (negação ao “old sacred”), comprometida com o inconformismo, mutualidade e realização pessoal (autenticidade), submetida a uma racionalidade normativa (Taylor, 2010, p. 123-126). No projeto filosófico existe a convicção em uma racionalidade prática de alto teor moral, sujeita ao binômio Razão e Vontade (“vontade boa em si mesma”), que se 11 impõe no espaço público (nos espaços de deliberação/ secularidade). A Moral seria uma expressão apriorística, um imperativo categórico, pois não se funda na experiência, sendo universal e necessária, não se prendendo a finalidades específicas, pontuais, reais. Outra fonte de coesão para a Modernidade é o Direito, imperativos de conduta coercitivos, criados institucionalmente pela sociedade, garantindo ordem, estabilidade segurança, validado pela Racionalidade Prática. A Modernidade apresenta-se, portanto como um projeto acultural, universalista, tendo como pilares a emancipação do homem/Humanidade, uma ordem plural e societária estabelecida numa racionalidade procedimental de alto valor moral, que legitima uma ordem jurídica também universal em seus princípios, um Direito Cosmopolita. O modelo de Direito Cosmopolita e paz perpétua de Immanuel Kant prima pela construção de uma societas, pautada numa fraternidade humana universal e numa ordem racional-formal, uma comunidade assentada na Humanidade, Moralidade e Publicidade. Os homens, como seres racionais e autônomos (a liberdade é um atributo natural ao homem) merecem dignidade e respeito (Sandel, 2011, p. 135). A Moral está “fundamentada no respeito às pessoas como fins em si mesmas” (Sandel, 2011, p. 137), que oferece meios formais/procedimentais para a boa tomada de decisão (autolegislação do homem). O destino de todos os homens é que se unam a moralidade universal procedimental, independentemente de origem, etnia, religião ou nacionalidade, na busca de uma Constituição Civil (Kant, 2003, p. 6, 15-16.). A uniformização de condutas far- se-ia pela constituição de um Direito racional-moral, constituído em espaço público (Publicidade). Porém esse processo, reconhece a necessidade de um processo de transição e adaptação entre o modelo pré-moderno comunitário determinista e o societário moral racional universal e solidário humanamente. Primeiramente, deve-se reconhecer a importância das nações e de seus Estados, como um momento de consolidação dos preceitos liberais nas sociedades nacionais, enquanto comunidade políticas (procedimentais) internas. Esses Estados nacionais deveriam se constituir em torno de princípios republicanos (emancipação, pluralidade, secularidade), tendo seus sistemas de direito público, força institucional unificadora da vontade moral-racional dos homens, ou seja, a 12 Constituição (Kant, 2004, p.125), delegando direitos e atribuições políticas a todos que pertençam à comunidade política (cidadania), ou seja, a República (forma regiminis). Essas condicionantes viabilizariam a criação do Direito das Gentes (o Direito Internacional), de um Direito entre Estados, de relações interindividuais, mas entre entes nacionais. Tratar-se-ia de uma fase pré-contratual como se os Estados fossem homens singulares, em estado natural, no sentido hobbesiano. Após esse processo, os Estados deveriam constituir seu próprio contrato social, e sua Constituição, viabilizando uma federação de povos (foedus pacificum), suprimindo o estado de natureza (Hruschka,; Byrd, 2008, p. 622), substituindo o unilateralismo em publicidade (conduta racional, consensual e colegiada dos Estados). Consolidado esse processo, a última etapa seria a construção da paz perpétua e do Direito cosmopolita, seria a constituição de uma comunidade política sem fronteiras, estabelecida no estado universal da humanidade, na solidariedade e na hospitalidade universal. A formação de uma Constituição voltada para homens, uma cidadania universal não mais vinculada a nacionalidades, constituindo um Direito Público da Humanidade. Não existiria sentido na distinção entre estrangeiro e autóctone, pois o critério de titularidade jurídica encontra-se na humanidade, avocando o direito da propriedade comum sobre a superfície (comunidade do solo) e o direito de tráfico (ius commercium), de interação pessoal. O mundo, como já visto no estoicismo, é a residência comum de todos os homens (globus terraqueus). Cada pessoa, independentemente de suas origens, possui quota em relação ao todo (comunidade do solo – cidadão da terra / prius jurídico). O exercício da ius commercium, exige mutualidade, reciprocidade, a tolerância com o “outro”. Porém, esse modelo liberal, per si, ainda se mostra utópico (utopias contemporâneas cosomopolitas0, pela insuficiência ou até mesmo ausência de elemento concretos de coesão societária. Imaginemos em pleno século XVIII, num momento de ruptura de uma organização coletiva milenar comunitária, tradicional, encantada, critérios como racionalidade moral, juridicidade, fraternidade humana, fundada no direito do solo e de convivência, mantém-se no estado de abstração, conduzindo a arquitetura societária à ruína e ao caos. 13 Daí os recursos da nação e do Estado Nacional, que trarão aos elementos racionais e republicanos da modernidade o fundamento necessário para a coesão, o sentido, o sensível. Como já tratado, a nação e nacionalidade foram instituições desenvolvidas dentro do berço moderno liberal para se evitar fragmentações possíveis resultantes do societarismo e do pluralismo, visando, assim, coesão e sentido entre os cidadãos. A nação seria um recurso transitório da modernidade, primeiramente, para assimilação de organizações comunitárias pré-modernas e para o enraizamento, consolidação e coesão dos preceitos liberais (emancipação; pluralidade; secularidade) nas organizações sociais estabelecidas, sob determinada autoridade estatal e territorialidade (Hobsbawn, 2011, p. 51). A nação, portanto, tornar-se-ia o fundamento justificador dos conceitos político-jurídicos de Povo e de Democracia (o povo se autogoverna). O povo, representado por uma Assembleia Constituinte, estabelece um regime jurídico que tutela plenamente os direitos entre titulares de nacionalidade. O estrangeiro sediado no país, possui direitos, mas não de forma plena, pois não faz parte do povo (Müller, 2003, p.53- 57). A segunda função criar bases para uma segunda onda de universalização, transcendendo fronteiras territoriais, o Cosmopolitismo e a cidadania do mundo (Weltbürger) ou da humanidade (dimensão global de povo) pelos direitos humanos. Sobre o Cosmopolitismo jurídico-político e a paz perpétua, Immanuel Kant defendia a ocorrência necessária de três momentos. O primeiro momento seria que todos os Estados nacionais se sujeitassem a preceitos republicanos. Os Estados devem possuir seu direito público, que unifique os homens em torno de uma Constituição Civil (Kant, 2004. p. 125; Kant, 2004. p. 127). O segundo momento é formação do Direito das Gentes e uma comunidade de Estados Livres/Soberanos (Volkerrecht), ainda em estado natural (potencial de guerra), havendo a necessidade de um contrato social entre eles, de uma Constituição e da organização de uma federação de povos (foedus pacificum). E o último momento seria a paz perpétua e o direito cosmopolita, com uma Constituição para o homem, uma cidadania universal, estabelecida na humanidade (Direito Público da Humanidade). Logo não existiria mais estrangeiro (comunidade do solo e ius commercium). A formação da nação, como comunidade imaginada (invenção política), pressupõe a adoção de uma língua nacional, culta, originária da classe dominante, adotada no ensino formal, um instrumento difusor e ratificador da identidade nacional. Forja-se 14 história, ancestralidade, recorrendo a elementos locais/regionais ou até mesmo a critérios pseudocientíficos como etnia/raça, para afirmar um senso de pertencimento comum, uma origem que amalgama a todos. Assimila-se tradições, modifica-se cultura folclórica institucionalizando. Cria-se um sentido de sacralidade civil/secular (não religiosas) como ritos nacionais, a exemplo de festividades, paradas, feriados, desfiles, cultos, símbolos como a bandeira, o hino etc (Crippen, 1988; Evans, 2003; Bourdieu, 2012, p. 140). 2.1.1 Nação e nacionalidade: a forja de tradições como recurso entre a comunidade pré- moderna e a organização societária moderna O discurso emancipatório liberal, sustentado pelas concepções de autonomia e autenticidade do indivíduo, pluralidade (com a promessa de equiparação na diversidade/autenticidade) e secularidade (coesão racional advindo do consenso/contrato entre pessoas livre e iguais) pressupunha (e ainda pressupõe) a constituição de um espaço de convivência política societária, rompendo com os padrões deterministas pré- modernos, sustentados com suas nuances históricas, basicamente pelos elos de pertencimento regionais, com tradições próprias (ancestrais), vínculos linguísticos, comunhão religiosa, familiar e até étnica. Como se percebe há uma hermeticidade no processo de pertencimento e reconhecimentos, uma organização coletiva comunitária que se sustenta na adesão a formas de vida, de uma moral posta, de crenças e papéis. A experiência comunitária na história, de fato é mais longa do que o societarismo moderno e sua substituição, por ruptura, para um modelo societário- emancipatório, abstratamente racional-contratual, poderia conduzir ao caos, inviabilizando a própria consolidação do projeto liberal. Tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos, buscou-se construir uma nova perspectiva de comunidade política, mas estabelecida numa identidade difusa e compartilhada, que paradoxalmente nega as regionalidades, porém se apropria de seus referenciais com vista a uma sociedade, que respeita as liberdades individuais, delimitada por um território, soberana, porém, obediente a um Estado de Direito: a Nação. Nacionalidade é uma expressão de consciência de si mesmo, uma autopercepção e um parâmetro de reconhecimento e pertencimento dentro da coletividade, justificado num sentido de naturalidade (natureza comum) e defesa do bem comum (Detienne, 2013, p.11 e 29). A construção da Nação pressupõe a apropriação de 15 um legado de lembranças, tratado como uma herança cultural, e o culto aos mortos, a honra ao sacrifício e ao heroísmo. A nação que se substancia no passado, se institucionaliza num instrumento necessariamente moderno, o Direito (ou Estado de Direito). O reconhecimento jurídico de um corpo político, que constitui e é conduzido por um governo comum, com um território definido e protegido por esse Estado, a sociedade civil nacional institucionalizada e ordem jurídica nacional (Hobsbawn, 2011, p. 27; Kelsen, 1990, p. 185), possibilitando a legitimidade do poder, dominação tradicional e jurídica (Weber, 2001, p. 128-135; 2010. p. 36;), pela coesão e cooperação. Protegendo a nova ordem política e o capitalismo locais. Na Europa, a política identitária de unidade recorreu a aniquilação e assimilação de outras identidades regionais, mediante homogeneização (pela língua e etnicidade). Nesse sentido, memória é uma forja padronizada do passado e do conhecimento, facilitando o processo de criação de elos dialógicos, de compartilhamento de percepções identitárias, do pertencimento e coletivização, princípio espiritual da uma nação (Candau, 2012, p. 16-17). A homogeneização foi seguida pela sacralização das tradições e memórias, tendo como espaços de consolidação do projeto as escolas, as casas editoriais, casas de cultura, aos fomentos de estudos da língua, e no século XX, as redes de rádio e televisão. A nação era tratada como uma fórmula do progresso (regionalismo era associado ao atraso, ao provincianismo), um processo que se iniciou com as famílias/gens, passando pelas regionalidades, sendo a nação a ponte para o futuro: a identidade humana. A construção do imaginário nacional norte-americano segue a diretriz de er uma nação de pessoas, entes individualizados, organizados em torno da ancestralidade, da língua, de um ideal e anseios. Os norte-americanos agregam-se em torno de uma modelo político-jurídico e de uma forma de vida, que considera as relações econômicas, considerados excepcionais, por si só autênticos, em ruptura com a tradição europeia e seus problemas (Anderson, 2015, p. 13). Os Estados Unidos não possuem uma “pátria mãe” (Karnal, 2017, p. 85-86) e seu modelo de república era uma leitura própria das propostas iluministas. A república não se materializa no solo, mas nas convicções e na adesão de seus cidadãos (república da liberdade), assumindo dimensões ultraterritoriais, pois há a pretensão de se expandir pelo mundo, com o nobre propósito (altruísta) de levar as 16 liberdades aos homens (há uma vocação sagrada), sendo a Constituição o termo constitutivo da nova ordem, a referência de unidade (E pluribus unum). Há um ideal deísta, justificado na Razão e na dignidade (autenticidade) das pessoas, assumindo um status de religião secular, com símbolos, hinos ritos, heróis/mártires que dão transcendentalidade a República (Karnal, 2017, p. 92; Magnotta, 2016, p.27). Assim, ser norte-americano aderir a um compromisso ideológico. O patriotismo não está preso a ancestralidade ou tradições imemoriais, mas as instituições e os valores que as inspiram (Lukacs, 2006, p. 399). Modelo que é único, mas pode inspirar outros povos, como é a identidade norte-americana tivesse uma vocação messiânica, o Destino Manifesto, um projeto divino de conquista de mentes e corações à causa da liberdade. 2.1.2 Nacionalismo como expressão moderna contra-liberal O Nacionalismo é resultado malfadado, o filho bastardo da modernidade liberal, pois sua base ideológica, a nação, tinha com fim consolidar os valores do projeto liberal da modernidade dentro de espaço territoriais específicos, o que para Kant seria a primeira exigência para uma paz perpetua: Uma República Nacional, sendo a soberania sustentada pela representatividade democrática. A Criatura acabou se voltando contra o criador, justificando exclusão e violência. No século XIX, sob inspiração do romantismo, observa-se a bucolização dos símbolos nacionais e da história, de um passado forjado, inventado, inexistente. Há a sacralização pela mitificação de uma cultura ancestral que, em verdade, foi apropriada e manipulada como uma colcha de retalhos (Hobsbawn, 2012). A experiência norte-americana sacraliza o trinômio terra, destino e institucionalidade. Sob a crença da ocupação da terra virgem, que acolhe pessoas e grupos excluídos de sua terra natal, numa missão transcendental de se construir o espaço da liberdade, da igualdade, do progresso. No ineditismo e autenticidade de um modo de vida, que rompe com o passado/origem, que se institucionaliza no Direito, na cidadania. No caso do Brasil, nacionalidade de Estado teve com referência agregadora, originalmente, no Poder estatal e em suas origens sacras, mesmo com conotações constitucionais, ou seja, a Monarquia. O monarca como o pater (no nosso exemplo, o 17 monarca não é rei, mas imperador, pois agrega, une vários povos) que afiança e conduz a nação, une cidadãos-súditos. No nacionalismo esses recursos perdem a funcionalidade de meio, tornando- se fim, deixam de ser transitórios para tornarem-se definitivos. A universalidade fenece em função da internalidade, justificando retóricas de unidade, totalidade, supressão da individualidade, supremacia de grupos, validação de hierarquia e discriminação. O nacionalismo tem com meios de justificação as teorias da unidade e a teoria da liberdade. Na teoria da unidade a soberania é de um corpo coletivo, de uma vontade geral e homogênea, tendo o Estado a função de catalisar, representar e conduzir essa união popular. A teoria da liberdade reconhece uma composição harmônica, um reconhecimento interno dos seus cidadãos, desconsiderando a vontade do estrangeiro (hierarquizada). Essa superioridade e hierarquia também se expõe na relação entre nações (superioridade/hegemonia), justificando o poder estatal. No final do século XIX e durante o século XX, observa-se que o Nacionalismo também foi instrumento de emancipação coletiva, legitimando movimentos de independência no continente americano, na África, no subcontinente Indiano e na China. Os movimentos nacionalistas, com índole emancipatória, “secularizaram” comunidades religiosas, transformando-as em grupos étnicos, a exemplo do movimento sionista do final do século XIX, que transformou ou judeus de comunidade de fiéis em nação étnica, ou o panarabismo, que, na negação do Islã, ao qual se atribuía o atraso do Oriente Médio, uma comunidade pautada na unidade de fé (Ummah e Tawhid), pela língua comum e tradições, tornou-se uma grande etnia que se estende da Mesopotâmia ao norte da África, os árabes. 2.2 Comunidades religiosas em transição: judaísmo e islã Este capítulo tem como objeto fazer uma análise descritiva e comparativa sobre a comunidades religiosas Judaica e Islâmica, suas origens, fundamentos, e seus desenvolvimento, apresentando um gradual processo de desprendimento sobre quesitos e questões étnico-regionais, como a assunção de retóricas universalistas (Schlesinger, 2011). Comunidades organizadas em torno de tradições, ritos e moralidade mítica. 18 2.2.1 Judeus, Judaísmo, suas origens e o processo de superação da etnicidade O povo judeu, tem suas origens justificadas na tradição religiosa, sendo originalmente vinculado a um grupo étnico semita, da região do Levante (hoje Síria/Iraque), mas sua organização e unidade fundamentam-se na tradição comunitária religiosa, apresentando momentos de abertura para conversão, assumindo uma conotação universalista. A sua história se estabelece em registros religiosos e crenças, especificamente na entrega da Lei, da Torah (תּוֹרָה), por Deus (Sand, 2011, p. 39). O termo "judeu" tem sua origem no nome Judá, especificamente os filhos de Judá (יְהוּדִי -Yehudi), descendente de Jacó, e após a cisão do reino de Israel em dois, são aqueles nascidos na terra de Judá (Judéia). Os judeus, originariamente eram de origem étnica semita, que vem de Shem, filhos de Shem (filhos de Noé) abarcando povos como hebreus, árabes, babilônios, assírios, arameus, cananeus e fenícios, que em grande parte (Sobel, 1983), cultuavam a divindade El (Elohá, Elohim - אלהים , אֱלוֹהִים אֱל )/ Il (Illah, Allah - الل), criadora do Cosmos (Shama, 2015, p.73). Os hebreus eram um povo semita nômade proveniente da cidade de Ur, migrando para a região da Cananéia, no segundo milênio a.C. O termo hebreu provavelmente deriva da palavra eber ou ibri (עִבְרִי), que significa “além rio”, avar, traduzido como passar ou Éber (Évér - עברים), ascendente do patriarca Abraão ( אברהם), que estabeleceu o culto a um único Deus, El Shadai ( שדי אל ). Os hebreus sobre a liderança dos patriarcas Abraão, Isaac (יִצְחָק) e Jacó/Israel ( יִשְרָאֵל/יעקב ) constituíram, dentro da crença e tradições judaicas, a bases de uma ordem política e moral, em torno da religião em formação e dos costumes, fechada nas doze tribos de Israel. Com a ida ao Egito, motivada pela fome que assolou a comunidade, e a posterior escravização, a comunidade judaica sofreu assimilou a cultura e direito religioso dos egípcios, inclusive recepcionando elementos do fracassado projeto monoteísta, culto ao Deus Solar Aton. Em um texto especulativo, Sigmund Freud levanta hipótese de que Moisés não fosse hebreu, um nobre, príncipe ou alto sacerdote do Antigo Egito, seguidor de Akhenaton e adorador do deus solar Aton. Freud, em sua obra, especulou que o Moisés (Mos És – filho do Deus Mós) foi responsável por conduzir o povo cativo à liberdade, buscando e alguma maneira, pela https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/transcoded/9/98/Ar-Allah.oga/Ar-Allah.oga.mp3 19 identificação como do culto a um único Deus, de perpetuar o legado do Deus solar egípcio. Posteriormente, Moisés egípcio morreu ou foi morto pelo povo, que se reuniu com tribos canaanitas, da região de Midiã, que adoravam um deus dos raios e do vulcão, Yahweh (fusão de Aton com Yahweh). O líder midianita foi também denominado de Moisés. Com o Êxodo, a figura monoteísta de El foi substituída pela figura de Yahweh ,outrora um daimon (demiurgo) sujeito a El, relacionado ao fogo e trovão (Dever ,(יהוה) 2023; Kaiser Jr, 2017; Miller, 1986, p. 2). Com a formação de uma estrutura institucional política central (Estado), que se iniciou com o governo dos juízes e, a seguir, com o reino de Israel, Yahweh assumiu não somente o status de Deus nacional, como também de soberano de Israel (Yahweh Shabaoth / Adonai Melekh), guardião da segurança do povo escolhido e legislador, que pela Direito (mischpath) sujeita a comunidade aos seus desígnios (tsedeka – justiça). David, segundo rei do Israel (destronou Saul e sujeitou seus sucessores / 1055 a 1015 a.C.), consolidou o reino de Israel, tornando Jerusalém a capital política e centro religioso da comunidade, abrigando a Arca da Aliança, principal relíquia do judaísmo (Josefo, 2004, p. 327-330). David consolidou o território por meio de alianças e guerra com povos vizinhos, organizou uma estrutura governamental por meio de um conselho de sábios e um composto compulsoriamente por todas as tribos do reino. As tribos acataram um novo modelo político poliárquico (com características assemelhadas ao feudalismo), com distribuição de terras feita pela coroa (Halpern, 2004, p. 107-120 e 200-226; Wright, 2014, p. 51-65, 117-130 e 135-140). Salomão seu filho e terceiro rei de Israel (970-930 a.C) expandiu o território, fortaleceu o reino e construiu o Templo de Jerusalém, a casa de Deus, a simbólica materialização de Shekhinah (שכינה), a presença divina na Comunidade, materializando a concepção de corregência (Josefo, 2004). Nos reinados de David e Salomão, a unidade é étnica e religiosa, sustentada pela concepção de Rei Sacerdote ou Rei Arauto, aquele que fala pelo verdadeiro soberano, Deus, sistematizando o direito revelado (Mischipath), resultando na Torah (תּוֹרָה /a Lei), e zelando por sua aplicação. A unidade (Echad - אֶחָד ou Yachid - יָחִיד) está em Deus (Shemá Israel - ישראל שמע / Ouça Israel) e sua palavra está na Lei é conexão entre o reino dos homens e o reino dos céus. Davi e Salomão foram ungidos na condição de reis- 20 sacerdotes (I Coríntios 15:27 e 16:1-13) e seu poder advinha da obediência aos desígnios de Deus (Tsedeka) e Seu Direito (Mischipath). A dinastia davídica se justificava na história de Melquisedeque (ou Melquisedec / מַלְכִי־צָדֶק / מַלְכִי־צֶדֶק ), o rei de Salém, unindo-se em aliança com Abraão. Adorador do Deus El (אל), enquanto Abraão adorava Shaddai (שדי), reconheceram as duas entidades como uma, El Shaddai ( שדי אל ). O nome do lendário rei de Salém resulta da composição entre malk (malka) e tsedek, significando coroado ou rei da justiça. Um governante e sacerdote (Gênese 14:18- 19; Hebreus 7:1-13), não governando por e para si, mas por Deus, pois ele é o Seu arauto (Tourniac, 2006, p. 35-37 e 81-84). Nas concepções de Rex Deus e do Rei Sacerdote quando a índole sacerdotal (de onde o rei se faz arauto) se perdia, entendia-se que a comunidade estava corrompida, desvirtuada. Aos olhos da comunidade, Deus indicava profetas para advertir, repreender e indicar a reordenação/reconciliação (Hopkins, 2002, p. 47-53). Quem dá as costas à Comunidade, dá as costas à Deus. Se a comunidade ou o governante negassem a Deus, o destino seria a ruína. Logo, ao rei era guardião da Comunidade e sua Unidade (Crossan, 1994). O processo de unidade étnica e religiosa do reino terminou com cisão do reino de Israel, no reinado do filho de Salomão, Roboão, em função de um levante liderado por Jeroboão e motivado pela sobrecarga de impostos, acarretando na separação das 10 tribos do Norte e a proclamação de um novo reino de Israel (931a.C). As duas tribos ao sul formaram o Reino de Judá. Jeroboão estabeleceu um novo centro político Siquém e dois centros de peregrinação religiosa em Betel e Dã, com o culto ao Bezerro Deus (Josefo, 2004, 400-404). Em 722 a.C. os Assírios conquistaram o Reino de Israel e em 586 a.C. o Reino de Judá foi conquistado pelos Babilônicos (Josefo, 2004, p. 461-462 e 481-490). A comunidade de Judá viveu em exílio na babilônia durante por aproximadamente 50 anos, em função da conquista de império babilônico pelos persas. No período de exílio a comunidade uniu-se em torno das tradições e na fé em Yahweh, inicialmente como Deus doméstico. O povo exilado denominava-se israelita, restringindo casamentos com estrangeiros (Brenner, 2013, p. 20-21.). Ao longo do exilo, entretanto, Yahweh assume a condição de criador do universo e soberano do universo o verdadeiro Deus de todo o mundo (Eakin Jr., 1971, p.39-47 e 116-122). Isso abre portas para uma religião com pretensões universalistas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Divindade_criadora https://pt.wikipedia.org/wiki/Divindade_criadora https://pt.wikipedia.org/wiki/Deus 21 2.2.2 Do período pós-exílio Com o fim do cativeiro da Babilônia (538 A.C) Zorobabel, príncipe de Judá (agora a comunidade não mais se denominava como israelita, mas de Judeus), neto de Joaquim o rei de Judá (prisioneiro de Nabucodonosor, rei da Babilônia), assumiu a liderança no retorno dos exilados e pela reconstrução do Templo e a restauração da ordem político-religiosa, tornando-se a Judéia um principado tutelado pelo império Persa. O intuito era a restauração a ordem Davídica, e a restauração de uma ordem cósmica, fundada na Mischpath e na Tsedeka. O restabelecimento do Reino de Deus, do “Rex Deus”, coma soberania de Yahweh e do monarca corregente, em consonância com as tradições, porém impregnada de forte influência do zoroastrismo. Nesse período, a formação identitária dos judeus firma-se em torno do histórico religioso, devido a sistematização e acessibilidade da Escrituras (Sand, 2011, p. 129-130). Porém, a ortodoxia identitária da comunidade e da religião judaicas foram modificadas, abrindo-se para universalismo, com a ascensão do Império Alexandrino / Helenista (egípcio-ptolomaico / selêucidas). Entre os séculos IV a III a.C os textos sagrados foram traduzidos para o grego, acessibilizando o conteúdo para os gentios (Attali, 2003, p. 77). Nesse período os judeus sofreram forte processo de helenização, inserindo ao modo de vida grego, tanto os de origem aristocrática, como de camadas inferiores da comunidade. A identidade dos judeus helenista conservava a ética e a religiosidade, inserindo, porém, a filosofia grega. O entendimento das escrituras sujeito à luz do logos e da gnose, sob forte influência do pitagorismo, do silogismo platônico e do estoicismo. O judaísmo helenizado relativizou e mitigou práticas e hábitos ritualísticos judaicos, como a circuncisão, desenvolvendo uma retórica de universalização da religião, possibilitando a conversão de gentios ao judaísmo. Nesse contexto, os pilares da fé eram: viver a lei, servir a Deus e viver em amor. Ser judeu, na concepção helenística, não estava associada a um povo, mas a uma forma de vida. No judaísmo helenizado, a sabedoria (Sophia), inclusiva a razão prática (Phronesis) não se reduzia a especulação, a reflexão, ou a uma moralidade prática racional, sendo emanações divinas, a presença de Deus (Shekhinah). Da gnose grega, 22 desenvolveu-se uma vertente esotérica do judaísmo, que inspiraram o desenvolvimento Cabala, a sabedoria como princípio ordenador do Universo e da vida (fundamento moral) Hokhmah (חכמה / sabedoria) tem origem no radical hebraico hakam, que significa habilidade, especificamente o bom viver. Ensinamentos teóricos e práticos, universalistas. Apesar de não negligenciar o aspecto religioso tradicional, o seu foco está na vida, na arte de viver harmonicamente. Para os ortodoxos, associados ao grupo dos fariseus e saduceus, o helenismo era tratado como uma ameaça as tradições judaicas, associada a corrupção, justificando a perseguição na Judéia e motivando a dispersão. A helenização, inclusive imposta por soberanos, foi a causa da Revolta dos Macabeus (167-160 a.C). O rei Antíoco IV se autoproclamou “deus manifesto” e perseguiu as tradições judaicas a exemplo dos rituais de purificação. O Sumo Sacerdote Matatias, liderou a resistência, com apoio dos seus João Gadis, Simão Martés, Eleazar Auram, Jônatas Afo e Judas Macabeus (Josefo, 2004, p.563). Judas Macabeu, liderou a conquista de Jerusalém e a reedificação do Templo (164 a.C). Com o fim do Império Selêucida (116 a.C) e apoio da ascendente república romana, a Judéia tornou-se independente com a liderança da descendência de Matatias, os hasmoneus (Josefo, 2004, p.566-572). Parte dos judeus helenizados, excluídos dos círculos políticos e perseguidos pelos hasmoneus, formaram o grupo dos Essênios (Issi'im / איסיים), ascetas messiânicos e escatológicos, acusados pelos fariseus e saduceus de se afastarem da ortodoxia judaica. Perseguidos pelos Hasmoneus, os essênios se retiraram para o deserto conclamando o devido cumprimento da lei e dos Profetas, se autoproclamando defensores da restauração dravídico-salomônica (a ordem de Melquisedeque), mas de uma forma gnóstica (gnose persa e grega), se considerando filhos da Luz (Logos). Possuíam certos rituais, como a da saudação ao Sol, do fogo, ao Ser Cósmico, ao Logos Solar. Acreditavam na vinda de um Messias (um líder político) e um Sacerdote ungido, que estabeleceram o reino dos Céus, restaurariam a Tsedeka, banindo a esterilidade, o mal e a corrupção. A soberania da Shekhinah seria restaurada, transformando o mundo em “cidade-templo”. Os fariseus eram apoiadores da dinastia dos hasmoneus. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei https://pt.wikipedia.org/wiki/Profetas 23 Os fariseus ( פרושים /prushim, os separados) originaram-se do grupo religioso judaico dos hassidim (חסידות /os piedosos), apoiadores da Revolta dos Macabeus. de grande influência em Israel devido ao ensino religioso e político. Aceitavam a Torá escrita e nas tradições, na unicidade do Criador, na ressurreição dos mortos, em anjos e demônios, no julgamento final e na vinda do rei Messias. Mesmo puristas e legalistas quanto as tradições judaicas, aceitavam a conversão, a exemplo da gradual integração dos edomitas, que assumiram posições de destaque, a exemplo de Antipas, nomeado governador da Idumeia por Alexandre Janeo. Antipas foi sucedido por seu filho Antipater, pai de Herodes, o Grande. Herodes foi homem de confiança de rei Hircano II, que disputava a hegemonia política com seu irmão Aristóbulo. Na era dos hasmoneus o governo era organizado em torno de um rei e de um sumo sacerdote, no caso irmãos, sendo Aristóbulo, o rei, e Hircano II, o sumo sacerdote, compartilhando a tradição do Rex Deus, ambos descendentes de Melquisedeque, mas com as funções fragmentadas e interdependentes. A divisão de atribuições apenas intensificou o conflito entre os dois, abrindo espaço aos Idumeus. No ano de 61 a.C, os romanos liderados por Pompeu ocuparam a Judéia, administrando com habilidade o conflito entre os irmãos Hircano e Aristóbulo. Esse momento foi visto por diversos setores da comunidade judaica como a profanação da Terra Sagrada e o fim da ordem cósmica (fim da Shekhinah). Roma e seu domínio por todos os grupos judaicos, sejam fariseus, saduceus, essênios e zelotas, ao mal, à opressão e a corrupção. Deve-se lembrar que Roma, na fase imperial, por meias de uma vez tentou impor o culto ao Imperador (Augusto, Calígula, Nero), transformando aquela convulsionando a população. O governo de Herodes, o Idumeu (ou Edomita, ou o Grande) é marco inicial dessas tensões. Herodes aproveitou-se do conflito, somado às boas relações com a república romana, derrubando o regime asmoneu. Os partos, no ano 40 a.C, invadiram as províncias romanas orientais e os estados títeres – entre eles a Judéia -, reconduzindo os hasmoneus ao poder (Antígono Matatias), o que não durou muito, pois os romanos retomaram os territórios e nomearam Herodes como soberano, ficando no poder por 34 anos. No seu governo, Herodes reformou e ampliou o Templo de Jerusalém (Josefo, 2004, p. 676-680). 24 Seu reinado foi tirânico e no seu fim, caracterizado por violência e paranoia, em função da constante ameaça de perda do poder e o descontentamento da população quanto a dominação romana. Após a morte de Herodes, a Judeia e Iduméia foram divididas em uma tetrarquia, entre os seus descendentes, porém, com poderes restritos, regionalizados e subservientes a autoridade imperial de Roma, representado por um Prefectus e, posteriormente, um Procurator (representante do governador da Síria). A sujeição da Judeia a autoridade romana, somada a empáfia do dominador, que menosprezava a cultura e religião locais, exigindo por mais de uma vez o culto divino ao Imperador (Augusto, Calígula e Nero), acarretaram numa sucessão de levantes: as três revoltas judaicas ou três guerra romano-judaicas. A primeira revolta, conhecida como a Grande Revolta Judaica, ocorrida entre os anos de 66-73 d.C., com a tomada da fortaleza de Massada, pelas forças do general e futuro imperador Vespasiano e seu filho Tito. A revolta motivada pelas arbitrariedades do procurador Géssio Floro e liderada pela facção político-religiosa dos zelotes (sicários) teve início com o homicídio do sumo sacerdote e o entrincheiramento da tropa romana localizada no palácio de Herodes. Os revoltosos se renderam como a promessa de anistia, porém foram mortos exemplarmente. A partir daí, Roma e a elite farisaica e sacerdotal sofreram com uma dura guerra de guerrilha. O desejo era a independência, por sinal utópico, pois, sob liderança de Vespasiano e Tito, Jerusalém foi cercada, sitiada e tomada (70 d.C). As forças de Tito saquearam e destruíram a cidade, inclusive o Templo (Josefo, 2004, p. 1167,1366, 1385). Em 74 d.C o último bastião de resistência caiu, a fortaleza de Massada. Percebendo a derrota certa, os sicários decidiram pelo suicídio coletivo (Josefo, 2004, p. 1252-1254 e 1418-1419). Praticamente, metade da população local foi dizimada (600.000 pessoas) e o restante foi sujeita à Diáspora, fixando-se na Partia, Mesopotãmia latina, Armênia, Síria, Egito, norte da África, Grécia, Roma e península itálica e Gália (França) e península Ibérica. A segunda revolta ou Guerra de Kitos, na era dos Antoninos, especificamente no governo de Trajano, entre os anos 115-117 d.C, promovida por comunidades judaicas oriundas da Diáspora, ou seja, os insurgentes não estavam na Judéia, levantando-se contra Roma em cidade como Cirene, Alexandria e Salamis. 25 A terceira revolta, conhecida como a Revolta de Barcoquebas (132-135 d.C), aconteceu no governo do sucessor de Trajano, o imperador Adriano, insuflada por Simão Barcoquebas dentro do território da Judéia. Simão era considerado Messias pelos seus seguidores judeus. A consequência foi a expulsão do remanescente judeu na região e a completa destruição de Jerusalém, reconstruída e romanizada (colônia romana) com o nome de Élia Capitolina. 2.2.3 A grande diáspora e o mito do judeu errante: o fortalecimento identitário pela tradição e fé e as retóricas universalistas e exclusivistas Os romanos após a repressão contra os levantes judeus promoveram uma política de dispersão da população judaica ou judeana (atribuição dada àqueles que faziam parte do reino da Judéia), conhecida como a Grande Diáspora, e a romanização da região. Inclusive o nome da região foi rebatizado como província Sírio-Palestina (Schäfer, 2003, p.33; Mor, 2016, p.487). A população dispersou-se para o Império Sassânida (Mesopotâmia e Pérsia), Arabia, norte da África e para regiões do Império Romano, especificamente em centros urbanos próximos ao Mediterrâneo, na Anatólia, Síria, ao norte da África (Cirenaica), Gália (França) e nas penínsulas Helênica, Ibérica e Itálica. A então Gália, especificamente Languedoc, era associado a um espaço de exílio de políticos e outras autoridades caídas, inclusive judeus. Arles, Bordeaux e em Lyon foram os principais centros de assentamentos judaicos. Nos séculos I e II d.C, diversos assentamentos judaicos foram estabelecidos em Avignon e Bordeaux, exercendo atividades econômicas como o comércio, agricultura e vinicultura. No século IV d.C, já existiam 35 localidades, principalmente litorâneas, como Marselha e Narbona, e entrepostos comerciais como Clermont-Ferrande e Poitiers. Mesmo com os levantes de resistência da comunidade judaica e da repressão implacável dos romanos, a exemplo das ações de Adriano (posteriormente revogadas pelo imperador Antonino Pio), a identidade judaica manteve reconhecida e respeitada no Império Romano (Goodman, 2016, p.75). A comunidade judaica aproveitou-se da Édito de Caracala (212 d.C), que deu a todos os “peregrinos” (súditos do império romano / homens e mulheres livres sem a cidadania romana) o status civitatis. 26 Nesse período, aflorou o judaísmo de rabínico de inspiração farisaica, que se abriu não só a conversão, mas ao proselitismo e se confrontando com um movimento considerado pelos judeus apostata: o cristianismo. Os fundamentos sobre o cristianismo remontam o movimento judaico nazareu (nasuraiia, נזיר, os consagrados), vinculado ao partido dos essênios e considerado herético pelos saduceus. Os nazareus acreditavam que João Batista (Yohanna) foi o primeiro líder e Jesus é considerado seu sucessor, ou mesmo que ambos eram, dentro da crença do Rex Deus, o Sumo Sacerdote e o Rei (Pereira, 2009, p. 92-120). Os nazareus (ou também nasareus), tinham proximidade com os judeus essênios, praticando a circuncisão, restrições alimentares, vegetarianismo e observando o Shabbath. Dos nazareus surgiu a Igreja Ebionita, a Igreja dos pobres (Ἐβιωναῖοι / Ebionaioi; Evyonim – אביונים), ou dos “filhos do Pai”. Um movimento judaizado que se desenvolveu no século II d.C. Acreditavam que Jesus era o Messias, o Ungido, com ascendência davídica, que instauraria o reino da justiça (Tsedeka) com olhos para os mansos (os filhos de Deus), caracterizado pela abundância e prosperidade. Os ebionitas eram obedientes a Torah, porém, eram dispostos em dois grupos: o que aceitam (toleravam) os que não observassem os preceitos mosaicos, possibilitando a acolhida de pessoas de origem gentil; e os que exigiam de forma irrestrita aos preceitos judaicos (estes chamados de nazarenos). Em ambos os casos, não acolhiam dos textos proféticos judaicos, mesmo os considerados canônicos. Logo, apresentavam práticas judaicas, como a circuncisão, observavam o Shabath e preceitos alimentares. Acreditavam que o caminho crístico advinha do cumprimento a mischpath (o Direitos revelado), o caminho da Tsedeka (a Justiça de Deus). Condenavam Paulo de Tarso, considerando-o um apóstata (Silva, 2010, p. 58-70). O cristianismo pauliano, aos olhos judeus era considerado apostata, pois defendia que não somente Jesus era o Messias, mas como Deus encarnado (Carrol, 2002, p.157). Paulo de Tarso, um judeu de formação farisaica, convertido ao discipulado nazareu, pregava a construção de uma nova Israel, incluindo judeus e não judeus. Também, até o Concílio de Nicéia, que autoriza e uniformiza o Cristianismo em Roma, sob controle do Império, os ritos e práticas entre cristãos e judeus eram comuns, a exemplo do Kiddush (קידוש /a santificação do vinho) e do Challah (חלה), utilizados no Shabath e no Peshá, e assimilados na eucaristia cristã. 27 O judaísmo rabínico se abriu para o proselitismo e conversão de gentios, assumindo uma postura universalista, para responder à expansão cristã, a ponto de tolerar relativizações ritualísticas, como a não circuncisão. Na região da Cirenaica, as comunidades originais locais (berberes) converteram-se ao judaísmo, caindo por terra o mito que os sefarditas são judeus étnicos (Wexlet, 1966, p. 15). Sefarditas ou sefaraditas ( ספרדים) é o termo usado para referir os descendentes de judeus originários do Mediterrâneo. Acredita-se que a presença judaica no Norte da África, Península Ibérica e na região da Gália (França) remonta o período das rotas comerciais navais fenícias (séculos XVI a VII a.C), intensificando-se com a Diáspora. Os sefarditas são associados aos judeus étnicos ou originais, também como conhecidos como Mizrahim ( מזרחים / vindos do Oriente). Comunidades árabes e berberes, após a diáspora, foram convertidas pela judeus assentados, da mesma forma que comunidades na Europa mediterrânea. A segunda e tão importante ação das lideranças rabínicas, que em função da diversidade de expressões de fé, geradas pela conversão e pela dispersão da comunidade original, que se pulverizou no território romano, desenvolvendo costumes, ritos e até dialetos próprios, foi a organização da Mishná. A Mishná (משנה / repetição), tem como fim a unidade da comunidade judaica, resultado de um longo processo de debate de uniformização das tradições no judaísmo, que perduraram entre os anos 70 e 200 d. C. Diante da dispersão da comunidade, costumes e regras orais seriam esquecidos ou cairiam em contradição. Fora dos limites territoriais romanos, o processo de conversão também aconteceu dentro do Império Sassânida, no Ásia Central e até mesmo na China. Importante, é salientar a formação de outros ramos judaico importante no mundo ocidental, mas que teve sua origem fora do Império Romano: os Asquenazes. Os asquenazes ( אַשְכְנַז יְהוּדֵי ) são as comunidades judaicas residentes na região central e oriental da Europa. O termo asquenaze deriva de Asquenaz, o primeiro filho de Gomer, neto de Jafé, bisneto de Noé. O asquenazes são associados ao povo que expulsou os cimérios da Armênia (Straten, 2011, p. 5-21). Os asquenazes, seriam khazares (cazares) convertidos pelo judaísmo prosélito entre os séculos VIII e IX d. C. O reino Khazer (ou Khazaria) tinha origem turcomana, localizada entre os mares Negro e Cáspio e parte do leito do rio Volga, sendo aliados do 28 Império Romano do Oriente (Bizantino). Teriam migrado para o leste europeu com as invasões mongóis (Golden, 2007, p. 123–161). Com a institucionalização do Cristianismo, agora a igreja universal (católica) romana, um projeto de poder perpetrado por Constantino I, a ruptura com o Judaísmo tornou-se definitiva, com sua condenação à condição de movimento herético, justificando sua perseguição com nuances de revanche. Em resposta às perseguições, as comunidades judaicas novamente se fecham, justificando-se no mito exclusivista do povo escolhido. Na Idade Média, refugiam-se na Europa em regiões que garantem certa segurança como França, regiões da península Itálica, Espanha, Portugal e leste europeu (Polônia). As comunidades desenvolvem um sistema de gestão autônoma da vida coletiva, semelhante às guildas. Organizações corporativas, próximas de pessoas jurídicas (assoaciativos – universitas personarum), com conselhos, tribunais e fundo de solidariedade. Um longo período de instabilidade e insegurança, que perdurou até o advento das revoluções liberais do século XVIII d.C. 2.2.4 A crença na comunidade messiânica O elo místico religioso, como fator amalgamador da comunidade, ainda é presente o Judaísmo contemporâneo, reformista, que não crê em um Rei Messias (Malack Mashiah), seja Davídico ou Cósmico, no povo messias, a integração do povo judeu como condição de uma era de paz universal. A Comunidade conduzindo a Humanidade a Deus. Sob vocação judaica, a Humanidade deve estabelecer ordem no mundo caótico, tornando-o o reino de Deus, conforme profecia de Sofonias 3,9: “Sim, então darei aos povos lábios puros, para que todos possam invocar o nome de Yhwh e servi-lo sob um mesmo jugo” (Silva, 2017, p. 249-267). Vertente do sionismo religioso se inspira no messianismo coletivo, por meio da união dos judeus em torno ao Estado de Israel. O messianismo judaico também sua dimensão político-secular, recorrendo a uma sacralidade ou religiosidade “herética. Com inspiração marxista, sob o aspecto do conflito de classes, no confronto entre oprimidos e opressores, e da emancipação de econômico-política, a comunidade judaica deve assumir um protagonismo político- moral. 29 O povo judeu, historicamente sujeito a Diáspora, perseguições, assimilações e até mesmo tentativas de aniquilação, deve a assumir a sua causa emancipatória como uma questão de justiça social, com dimensões morais universais. O próprio sistema capitalista utilizou a causa antissemita, como um instrumento de fragmentação, dispersão e alienação classe proletária. Inclusive provocou rusgas entre os judeus proletários e as classes elitizadas judaicas, que foram assimiladas de forma mitigada às sociedades locais (sempre vista como ameaças potenciais e estrangeiras). A vocação do messiânica do povo judeu, portanto, é, voltando-se para o passado, reconhecendo sua condição de excluídos a partir da Diáspora, e reconhecendo sua ancestralidade, sua história e moralidade, restaurando sua identidade e unidade (autoconsciência do homem coletivo) e se tornar o “farol do mundo”, sendo o exemplo e liderança contra o sistema opressor vigente. Essa vocação é a expressão de redenção do povo judeu, que se materializaria com o retorno ao Sião (Laor, Bentzi; Pelbart, São Paulo: 2004, p. 83-96). Secularizando os preceitos da mística judaica, ou seja, a Cabala, a vocação do povo Judeu é ser o agente do Tikun olam ( עולם תקון ), a restauração do mundo, a responsabilidade não apenas pela sua espiritualidade, moralidade e bem-estar comunitária, mas de toda a Humanidade. O reino do Céus é para todos e prima pela justiça entre os homens (Löwy, 2012, p. 19-16 e 141-156). 2.2.5 Islã: comunidade e unidade na universalidade O Islã, que nasceu como uma religião uniformizadora do povo árabe, mas inspirado no universalismo cristão, apresentou uma vocação para conversão, seja de forma pacífica (a exemplo da Asia Menor e Extremo Oriente, onde a fé foi levada por mercadores) ou militarizada (em momentos da expansão dos califados Omíada e Abássida), sendo uma comunidade aberta, receptiva a adesões. O Islã ou Al Islam ( الاسلام / casa do Islã) significa submissão, especificamente ao soberano maior, senhor e criador do universo, Allah, que significa: O Único que deve ser adorado. O nome Allah ( الل) vem do termo Illah, a Divindade, que vem do radical Il em que se origina outros ,(אל) que tem a mesma origem semita da palavra hebraica El ,(ال) nomes divinos no judaísmo (Eloah -אלוה; Elohim - אלוהים). 30 Tratar-se-ia da continuidade do Deus Abraâmico, El Shadai ( שדאי אל ), de uma transmissão profética, iniciada por Abraão, passando pelo seu sucessor Ismael (não acreditam na legitimidade de Isac), alcançando Jesus (Issá) e sendo concluído por Mohammad (Maomé), considerado o último e definitivo profeta. Após a Hégira, conforme a fé islâmica, Maomé recebeu revelações de Deus, por intermédio do anjo Gabriel (Esposito, 2002, p. 4-5; Peters, 2003, p. 9), com a missão inicial de unificar os povos da península Arábica, em torno de um único Deus, senhor e soberano ( الل إلا بحق معبود لا - La ilaha ila Allah, Só há uma Deus e este é Allah / أكبر الل - Allahu Akbar, Allah é Grande). A unidade do povo, se fez pela unidade da fé e de seu modo de vida (دين /diin). Maomé, ou Mohammad, foi a voz do Deus Soberano, na condição de Profeta (semelhante a concepção judaica de rei sacerdote/rei arauto ou Rex Deus), até seu falecimento em 629 d.C, aos 62 anos. Começou a se formar a Dawla Islamiyya ( الإسلامية الدولة ), a governança ou Estado Islâmico, fundado no califado ou khilapha (الخلافه), sistema político caracterizado pela regência do sucessor ou representante do Profeta (Khalipha), eleito pela Comunidade de fiéis, guardião do Islã e do povo (Hourani, 2005, p. 25.), em tese, comprometido com o interesse coletivo (Isbelle, 2007, p.23) e resguardado, assim, a autossuficiência da Ummah (أمة). O Estado Islâmico, como nos fundamentos da fé, apresentava preceitos universalistas, com fronteiras fluidas (Nussbaum, 1999, p.17; Beck; Grande, 2006, p.70.), possuindo o dever sagrado de zelar pelos integrantes da Ummah onde quer que eles estejam (Musaui, 2006. p.42.). Seus deveres eram basicamente manter a estabilidade e segurança na Comunidade (Ijtmáa / الاجتماعي), empreender obras que atendessem a demandas da coletividade, gerisse os fundos de solidariedade em prol dos incapazes e miseráveis, conservasse e mantivesse eficiente o sistema jurisdicional (Khazraji, 2006. p. 84.). O poder estatal derivava diretamente de Allah (wilaya), por meio do seu Direito e da Comunidade. O Califa era escolhido livre (ihtiyar) e consensualmente (ijmá) pela Comunidade (Lopes, 2010, p.193), e seus atos passavam pelo crivo da Consulta, ou Shura (الشورى), sendo apreciados e ratificados (al baiyah) pelo conselho de notáveis (Ahl Al Ijtihad), ou seja, juristas de renome, e por representantes da Comunidade (Ahl Al Aqd). A Shura, é consenso coletivo. Pela shura, o khalifah era eleito, e por ela o governante recorre na tomada de decisões. No Corão determina-se que: “atendem ao seu 31 Senhor, observam a oração, resolvem os seus assuntos em consulta e fazem caridade daquilo com que agraciamos” (Corão 42:38). O governante segue o Direito Revelado, fundamento jurídico e moral da Comunidade, não agindo pela sua vontade, mas em nome de Deus. Logo, suas ações devem se pautar por duas formas: al siyasa al Sharia, governar de acordo com a Sharia; al siyasa al aqliyya, governar segundo a razão (Esposito, 2001, p. 121; Pereira, 2012, p. 79-81). Caso o Estado não cumprisse suas funções ou se corrompia subverta a ordem os seus baleghs (titularidade político-jurídica muçulmana) não estavam obrigados a respeitá o Califa, reivindicando o direito de resistência: “Minha comunidade não concordará no erro”; “quando as pessoas veem um opressor e não chamam a prestar contas, Allah não demorará em puni-los a todos”1. Entre os anos 632 a 661 d.C se estabeleceu o Califado Ortodoxo, sendo os primeiros sucessores Abu Bakh, Omar, Otomão e Ali, discípulos do Profeta (al-khulafā' ar-rāshidūn, الراشدون الخلفاء , califas bem guiados / Esposito, 2010, p. 40). Com o assassinato de Ali por um carijitas, uma vertente extremista do Islã, e a renúncia de seu filho Haçane ibne Ali em favor de Moáuia, teve início o Califado Omíada, que durou entre os anos de 661 à 750 d.C., caracterizado pela consolidação dos fundamentos dos políticos e jurídicos do Islã (Malique ibne Anas escreveu um dos primeiros livros sobre jurisprudência islâmica / Hakam, 2015, p. 54-59) e da primeira grande expansão (Oriente Médio, Norte da Africa e península Ibérica). A ostentação, corrupção e desvios de função do califado, somados à pobreza e pesadas cobranças de impostos, provocaram levantes fundados no direito de resistência, gerando a queda dos omíadas e a ascensão dos abássidas (Lapidus, 2014, p. 56.). O Califado Abássida (750-1258 d.C) foi um período de segunda consolidação do Islã, uniformizando fundamentos jurisprudenciais, o entendimento da Hadiths e dos Costumes (Sunas), além de se ser uma fase expansão territorial e de grande desenvolvimento cultural. 1 Abu Bakr, primeiro califa, afirmava: “Obedecei-me enquanto obedecer a Deus e ao Seu mensageiro, se desobedecer, desobedecei-me”; “Sou o seguidor não inovador. Se agir direito, obedecei-me, e se me desviar, desobedecei-me; Omar Ibn Alkhatab, segundo califa, disse: “Combatei-me, se me desviar”; “Não há utilidade numa decisão tomada sem consulta” 32 Foi um momento de sucessivas turbulências, levantes e fragmentações a exemplo da criação do califado Fatímida (945 a 1055 d.C), liderado por uma vertente xiiita denominado de ismaelita, e o Império Turco Seldjúcida (1037 a 1194 d.C). 2.2.6 Comunidade, unidade e a presença de Deus Ummah (أمة), significa Comunidade, oriundo palavra Umm (أم), mãe, sendo o espaço onde a providência divina estabelece seus desígnios, seus propósitos junto aos homens (espaço de ação de Deus / Fernandes, 2006, p. 36). No princípio da Ummah ou Comunidade, o fundamento agregação, na cooperação e a solidariedade entre os seus integrantes. Ao muçulmano há a pretensão de se alcançar a unidade da Comunidade, à imagem da unicidade Divina (tawhid / توحيد). Ao muçulmano existe o dever de cooperação (ta’awun / التعاون) e de solidariedade / ‘asabiyya .comprometido com a harmonia coletiva ,(عصبية - Os sunitas (سني), grupo majoritário no Islã, dão valor jurídico destacado às sunnas, os costumes sociais, pois acreditam que as tradições da comunidade de fiéis (Ummah) resultam da inspiração divina, da presença de Deus no espaço coletivo (Sakinah Inclusive, o fundamento do Califado está nas sunnas, da escolha e aclamação pela .(سكينة / consulta (Shura) e consenso (Ijmá). Quando Maomé estabeleceu o tratado de paz com os Coraixitas, em Meca, atribuiu a Sakinah, a paz e o restabelecimento da ordem (Corão 48:4). Sakinah equivale à crença judaica da Shekhinah ( שכינה). O elo de unidade da comunidade nunca se vinculou a questões étnicas ou a regionalidades, tendo como elo Islã e seus fundamentos (Annadyy, 1990, p. 202-204). A unidade não só tem seu alicerce em Deus, Senhor e Criador do Universo e de todas as criaturas, mas na Humanidade, enfatizando a natureza universalista do Islã. A Ummah, portanto, tem como princípios a tawhid (unidade), o jama’a (totalidade /جماعة) e o istikhlaf (responsabilidade pessoal e comum). O muçulmano tem como profissão de fé (shahada) que só há único Deus (La Ilaha Illa Allah) e a comunidade está unida na fé, na submissão aos desígnios divinos, que incidem sobre si (Maududi, [1990], p. 89-90). Adorar Allah e vivenciar os conhecimentos da fé, pelas ações virtuosas na Comunidade (Tantawi, 1992, p.64), esse é o sentido no Islã, como no judaísmo e cristianismo político é estabelecer a ordem ao caos 33 e trazer o reino dos Céus (Rex Deus). A Unidade, portanto, confere “dignidade ao homem e salva-o do medo e do desespero, do pecado e da confusão” (Abdalat, 1998, p.33). A Unidade com Deus e seus deveres incidirão na vida do muçulmano em Comunidade (totalidade), repercutindo universalmente. Cada muçulmano deve zelar pela Comunidade (Musaui, 2006. p. 43), sendo parte de um grande corpo coletivo. O sentido existencial do muçulmano é viver em Allah e pela Ummah: “Ele não difere de ti e tu não diferes d’Ele; se por ignorância julgas que és distinto d’Ele, que dizer que tens uma mente não educada” (Ibn Arabi. [1980], p.50). Na Ummah, pelo elo divino e humano, acredita-se no estabelecimento de um senso de fraternidade com alto teor moral e jurídico, como expresso no Corão: “Os fiéis e as fiéis são protetores uns dos outros; recomendam o bem, proíbem o ilícito”; “Sabe que os fiéis são irmãos uns dos outros; reconciliai, pois os vossos irmãos, e temei a Deus, para vos mostrar misericórdia” (Corão: 9:71; 49:10). Mohammad proferiu que: o muçulmano é o irmão do Muçulmano, não deve enganá-lo ou traí-lo, nem falar dele o que não quer ou não gosta que seja falado entre pessoas, e nem deve tirar nada dentre suas propriedades, somente com sua permissão. E seu sangue lhe é sagrado” (Riadhussálihim) Logo, no Islã, impõe-se, em tese, o dever de responsabilidade coletiva entre os fiéis, em prol da sanidade do corpo comunitário (alteralidade e totalidade). Hadiths ratificam a responsabilidade coletiva: “Quem não se preocupar com os assuntos dos muçulmanos, não é muçulmano”; “Todos são pastores e cada um é responsável pelo seu rebanho”; “Aquele que dorme satisfeito enquanto o seu vizinho está faminto, não é muçulmano” (Riadhussálihim). Os deveres solidários junto à Comunidade são concretos, resumindo-se ao rateio dos ônus sociais e na Jihad. O muçulmano é chamado, em nome do bem-estar e da equidade agir em favor dos menos afortunados, pela contribuição do Zakat ( زكاة) e complementarmente no sadaqa (صدقة). O Zakat é um tributo que incide sobre 1/40 (2,5%) sobre todos os ganhos e transações anuais de um muçulmano, destinado à formação de um fundo de benemerência, voltado a pessoas em pobreza (Corão 2:43,83,110,177,254,267; 4:77), propriamente os Fakir, os muçulmanos desempregados; os Miskin, os muçulmanos empregados, mas que não se sustentam; os Gharmin, os muçulmanos endividados; os Ibnus Sabil, muçulmano que estão em terras estrangeiras e não tem condições de retornar 34 à sua comunidade de origem; os Muallaf, convertidos ao Islão, que, pelo credo, perderam seus bens. A contribuição excedente ao Zakat, exercida de forma espontânea, é denominada de sadaqa (Corão 9:60). Outro dever solidário no Islã é a Jihad (Esforço ou Guerra / جهاد). A jihad kubra ou al-akbar (esforço maior - جهاد الکبری) consiste em um processo de interiorização, autoconsciência, um esforço, uma luta subjetiva, para a constante construção de uma em prudência, do caminho reto (Al umma al wasat), virtude (ihsan). A jihad sughra ou al- asghar (esforço menor - جهاد الصغری) é o dever de defesa do muçulmano com a Comunidade, pegar em armas contra perigos estrangeiros, opressões e arbitrariedades: “E combatei, pela causa de Deus, os que nos combatem. Mas não sejais os primeiros a agredir. Deus não ama os agressores” (Corão, 11:190-193). O fio condutor da Comunidade a vontade de Deus é Direito (Fiqh), o elo entre a Comunidade e a Justiça Divina (Adallah), o que possibilita a Sakinah, a presença de Deus no espaço coletivo, o espírito de paz, ordem e tranquilidade, que se manifesta na relação, nos deveres, papéis e garantias recíprocos entre o homem e a Comunidade. Analogamente, as noções de Ummah e Adallah assemelham-se ao judaísmo no que se refere às concepções de Kehilah (ou Ouma) e Schekhiná., a filha da Biná (entendimento) e Hokhimá (sabedoria). Este espírito divino está presente na comunidade (Kehilah), tendo a função mediadora entre Deus e o Homem (Scholem, 2009, p. 73-75 e 129-131). Na concepção muçulmana, o Fiqh, é uma revelação divina, pois o Direito foi ditado pelo próprio Allah (ألله), por intermédio do anjo Gabriel, para Maomé (Muhammad .(ال مهدى/o Mensageiro) ”sendo a “mão de Deus ,(محمد / A Sharia (شريعه /fonte ou a lei) é o pilar principiológico do Fiqh (usul al-fiqh), tendo como fonte imediata o Corão, ou Qu’ran (قرآن), o Livro revelado, e como fonte complementar a Sunnah (سثه), ou tradições da comunidade, e o Hadith (Narração / الحديث), as transcrições dos ditos e atos do Profeta. O Corão, na fé islâmica, é a própria palavra de Deus (kalimat Allah / کلمة الله), organizado em Suras (capítulos) e versículos escritos ao longo da vida profética de Maomé, especificamente, durante 22 anos. O Corão foi escrito em prosa rimada, demonstrando intensa relação entre a transcendentalidade (fim) e a poética (meio). O livro sagrado apresenta, em suas 114 Suras e 6.666 versículos, 205 preceitos jurídicos expressos em 600 versículos. 35 O Corão, além de ser a principal fonte religiosa, jurídica e moral do Islã, também teve um papel ímpar na uniformização e expansão a língua árabe (árabe clássico ou fusha (فصحى). Consequentemente, foi um recurso a serviço da Tawhid, pois a comunidade uniu-se em torno da fé e da palavra. Povos não semitas, como os do norte da África, da região do Cáucaso e parte da Asia Central, como também europeus dos Balcãs e da península Ibérica, recepcionaram o árabe como sua língua principal, em função do Islã. O árabe clássico é ainda considerado normativo, respeitando-se os critérios sintáticos e gramaticais. Os muçulmanos consideram impossível o Corão em outra língua, pois isso alteraria o teor exato de sua mensagem. A sua própria natureza sagrada impede a tradução (parcial ou por completo). Sua difusão transcendeu a comunidade de fiéis, atingindo cristãos e judeus orientais e outras minorias religiosas que foram acolhidas historicamente pelo Islã político (Ah al Dhimmah, الذمة, povos do contrato). Outra fonte, secundária, são os hadiths, compilações de ditos e feitos do Profeta, que se tornaram fontes jurídicas e imperativos de conduta na comunidade. A Sunnah (سثه) é o conjunto de costumes, experiências, hábitos, práticas e valores compartilhados pela Ummah, adquirindo natureza jurídico-moral. Entende-se que a Comunidade de fiéis, ao viver a virtude da fé, e sendo o espaço dos desígnios de Deus (Sakinah), suas tradições possuem inspiração divina (Allah fala e age por meio da Comunidade). A Ijma ou o Consenso (اجماع) é uma fonte uniformizadoras dos princípios do Islã, indispensável para aplicação do Direito, sendo convergência, a concordância sobre o entendimento, a comunhão de interpretações por parte da comunidade muçulmana (ijma al Ummah) e dos peritos (juristas e religiosos / ijma al aimmah), saneando lacunas e contradições no Corão e Sunnah. O intuito, portanto, e a manutenção da coerência hermenêutica no Fiqh, uma questão de unidade. O ijma é tratado uma revelação, Sakinah inspirando os peritos. Outras fontes que abrem margem para amutabilidade no Islã e estão intimamente ligadosa a ação da presença divina na Comunidade são a qiyas (قياس), a ijtihad ( اجتهد) e a ra’y . A Ijtihad é a interpretação jurisprudencial, resultado do esforço prático (eupraxia) de contextualização da norma jurídica, pela interpretação, ao caso concreto, 36 recorrendo à razão prática, mas como um recurso inspirado na sabedoria divina. Não se trata de uma simples repetição ou imitação de entendimentos (taqlid / تقليد), mas um exercício de superação das limitações da gramaticais e das compreensões tradicionais. A interpretação visando contemporizando os enunciados, atualizando suas compreensões, primando pela exatidão de critérios (regras de escolha / Yusuf, 1982, p.206, 216), a serviço da vontade de Deus (racionalidade como recurso revelatório), observando os preceitos religiosos (‘Ibadat) e atendendo as demandas sociais (Mu’amalat / Muslehuddin, 1980,p. 125 e130) e bem público ou Maslaha (مصلحة). A Qiyas é um recurso analítico comparativo, ou seja, a analogia, a busca de causas e fundamentos jurídicos comuns, para se responder a determinadas demandas. De forma equitativa (Hakim, 1974, p.227). 2.2.7 Unidade fragmentada: sunismo e xiismo Após morte de Mohammad, o processo de Unidade do Islã, começou a se fragmentar, pela formação de diversos grupos, que divergiam em dogmas (causa para a Ijmá) e questões políticas. Ao final do califado ortodoxo, dois grandes grupos se formaram, os Sunitas e Xiitas. Com a morte do profeta, a forma de escolha da sucessão tornou-se um objeto de disputa de poder, entre os descendentes do profeta, liderados por Ali, genro e primo do profeta, que defendiam a transmissão por parentesco, e os partidários de Aisha, viúva do profeta, que defendiam a escolha do profeta por consulta e consenso. Ali ibne Abi Talibe, tornou-se o quarto califa, enfrentando dura oposição, daqueles que se denominaram de Sunitas, liderados por Aishá. Politicamente, defendiam que o califa seria indicado por consulta (Shura) e consenso (Ijmá) da Comunidade, dentro da concepção da revelação divina (Sakinah), que Deus fala por meio dos virtuosos. Religiosamente, defendiam que Unidade com Deus estaria na vivência inspirada nas hadiths, nas práticas do Profeta e de seus discípulos (sahaba) e nos costumes da Ummah (Sunnah). Dois outros grupos, em oposição aos sunitas, denominados de xiitas e os carijitas (dissidentes). Os xiitas ( شيعة , Shīʿah), termo que vem da abreviatura de Shīʻatu ̒ Alī, partido de Ali ( علي شيعة ), politicamente acreditavam que a liderança legítima vinha da linhagem 37 sanguínea do Profeta (dinastia fatímida – Imamado), não reconhecendo a legitimidade dos califas indicados anteriormente a Ali. Os xiitas, portanto, são adeptos do imamado, acreditando que, em princípio, a autoridade de profeta deveria ser transferida à sua descendência (sangue ungido por Deus), os imãs, líderes político-religiosos predestinados a governar (Hourani, 2005, p. 25). O califado de Ali foi breve (656-661) e instável, com três conflitos armados. Com a morte de Ali, seu filho, Haçane ibn Ali o sucedeu, não aceitou prestar fidelidade ao opositor de seu pai Moáuia I. Haçane foi morte em conflito e sucedido por seu irmão Huceine ibn Ali, que se negou a prestar juramento de fidelidade a Iázide, filho de Moáuia I e por isso foi, com toda sua família, massacrado na Batalha de Carbala. O xiismo é dividido em seguidores dos doze Imãs, os ismaelitas e os zaiditas, divergindo sobre a sucessão de Hussein como Imã. Os seguidores dos doze defendem que o neto de Hussein, Mohammad Albaquir foi imã, enquanto os zaiditas creem que o sucessor foi o irmão de Albaquir, Zaíde. Os ismaelitas têm este nome, pois reconhecem como imã, Ismael, filho Jafar Sadique (sucessor de Mohammad Albaquir), sucedido por seu filho Maomé ibn Ismael. O último dos imãs será Muntadar (o esperado), o Mahdi (vice-regente da Comunidade, a voz de Deus), o Imã oculto que reaparecerá no final dos tempos, que trará justiça e unificará o Islã. Os ismaelitas tornaram-se influentes chegando a constituir o Califado Fatímida, no norte da África (Egito e Líbia / 909–1171 d.C). O califado foi severamente enfraquecido com a disputa de poder entre os irmãos Nizar e Almostali, filhos do califa Almostancir (Abu Tamim Maade Almostancir Bilá). Dogmaticamente, acreditam que o Islã tem quatro fontes jurídico morais: O Corão; as Hadiths relatadas sobre o Profeta e as práticas de sua família; a Ijmá; e a razão externada na Ijthad (Shirazi, 2009, p.8-14). Contemporaneamente, em países de população ou governo sunitas, os são marginalizados, fazendo parte da parcela mais pobre da sociedade. Em ações fundamentalistas sunitas, a exemplo de movimentos jihadistas como o ISIS (Estados Islâmico do Iraque e Levante), os xiitas foram uma das principais vítimas de perseguição e opressão. Pauta xiita e o antagonismo com o sunismo, no Islã político, foram retomados a partir de 1979, com a Revolução Iraniana. O regime xiita iraniano, apresentou um plano estratégico de gradual influência e presença em países e regiões com maioria xiita no 38 Oriente Médio, aproveitando-se de eventos como a Guerra Civil do Líbano (1975-1990) a invasão do Iraque em 2003, a Primavera Árabe em 2010 e as ações do ISIS entre 2014 e 2017. A Revolução Islâmica Iraniana, liderada pelo aiatolá Sayyid Ruhollah Musavi Khomeini, foi um movimento de resistência contra o regime autoritário Xá Reza Pahlev, associado à ocidentalização do Irã. Um regime político, que no seu final era conhecido como corrupto, economicamente exclusor e opressor. O fundamento da Revolução Islâmica está no Jihadismo xiita, com retórica religiosa de oposição e resistência contra o regime vigente e a influência israelense (Israel era a principal aliada do regime do Xá, na região) e norte-americana, relacionada ao mal cósmico (Vieira, 2019, p. 153-173). O “islamismo revolucionário” xiitas sustentava-se na insatisfação da juventude e no papel político da religião como forma de resistência anticolonial. Com a vitória da Revolução, o Irã exportou o seu modelo político a outros países muçulmanos, sob a diretriz do combate ao “mal ocidental”. O Irã, atualmente, tem forte influência no denominado “Arco Xiita”, região que abarca países como Líbano, Síria, Iraque, Bahrein e Iêmen, possuindo relações próximas com países e movimentos sunitas com índole neocalifista e não alinhadas à Arábia Saudita, como Turquia, Qatar e Irmandade Muçulmana, Hamas e Jihad Islâmica. Seus braços proxis no Oriente Médio são os movimentos de jihadistas xiitas Hezbollah, no Líbano, e Houths no Iêmen. A potência regional sunita, antagônica ao Irã, é a Arábia Saudita, reino fundado por Abd al-Aziz Al Saud, ou Ibn Saud, em 1932, resultado da unificação dos reinos de Hejaz e Négede, tendo como nome oficial al-Mamlakah al-Arabīyah as- Suūdīyah ( السعودية العربية المملكة ) ou Reino Árabe Saudita. A palavra Saudi tem do termo as-Suʻūdīyah, um adjetivo (nisba), associado a família/dinastia Al Saud ( سعود آل ), indicando que o país é uma posse da família real (Graham, 1984, p. 48-53). A palavra Al Saud reporta ao antepassado Muhammad bin Saud, no século XVIII, apoiador da linha sunita ortodoxa desenvolvida por Muḥammad ibn ʿAbd al-Wahhāb ibn Sulaymān al- Tamīmī. Trata-se uma monarquia absoluta, com inspiração teocrática, pois a família Saud se considera guardiã das cidades sagradas de Meca e Medina, e defensor do Islã sunita, seguindo a linha ortodoxa Wahabita (Vieira, 2019, p. 160). 39 A Arábia Saudita, aliada histórica dos norte-americanos, desde o Pacto Saudita-Americano de 1941, assumiu posição de defesa de seus interesses políticos, sob a bandeira religiosa, financiando governos (Paquistão, Afeganistão Talebã, atual governo do Egito) e movimentos de insurgência política, inclusive contra Israel, como o movimento Organização de Libertação da Palestina (secular), Irmandade Muçulmana (movimento neocalifista, que no final da década de 1980 rompeu com o governo saudita) e, no governo do primeiro-ministro saudita (e então príncipe herdeiro) Muhammad bin Nayef bin Abdulaziz Al Saud, o ISIS. O Jihadismo sunita foi apoiado pelos sauditas contra os soviéticos no Afeganistão (1979 / Keppel, 2003, p. 210). Com apoio norte-americano, os sauditas, financiaram os mujahadins, preparados no Paquistão, pelo movimento local Jama’at-e islam. Dessa ação, surgiram outros movimentos como o Al Qaeda, Jabhat Fateh al-Sham e ISIS, estes dois últimos comprometidos é combater o “mal” xiita no Iraque e na Síria. 2.3 Identidade religiosa tradicional e sua secularização: o sionismo A identidade secular judaica é uma construção de memórias em “mosaico”, com vários fragmentos e características, trazendo elementos seculares e religiosos, características modernas, como a autonomia, e tradicionais (como visão de mundo comunitária), não se restringindo à tradição judaica, mas também a elementos culturais europeus, inclusive valores religiosos cristãos (Sand, Shlomo, 2011, p. 41). Há a recuperação do mito do retorno, já existente no século XV entre a comunidade sefardita ibérica, com a Guerra da Reconquista Espanhola, que buscava retornar à “Terra dos Ancestrais”. No século XIX, o retorno foi reavivado, com a reivindicação do Estado Judeu, uma unidade política assentada na Terra Sagrada (Eretz Israel), que abrigaria o povo disperso no mundo. Não mais um povo fundado na ideia de fé ou tradição, mas de raça. Conforme a Declaração de Independência de Israel: A Terra de Israel é o lugar onde nasceu o povo judeu. Foi lá que se transformou seu caráter espiritual religioso e nacional. Foi lá que se realizou sua independência, criou-se uma cultura de alcance nacional, quanto universal que deu ao mundo inteiro a Bíblia Eterna (Declaração de Independência de Israel, 1948). 40 2.3.1 Uma questão de (in)tolerância Com o advento das revoluções liberais na Europa Continental, a começar pela Revolução Francesa, as comunidades judaicas, receberam o estatuto de cidadania conforme os preceitos da emancipação, pluralidade e secularidade, surgindo a expectativa de que o longo processo de intolerância ou tolerância mitigada e inconsistente terminasse (Brenner, 2013, p.174-175). O estado religioso na laicidade do espaço político tornou-se, em tese, uma questão doméstica ou comunitária sujeita a supremacia das nacionalidades locais (judeu alemão, judeu francês). Entre os séculos XVIII e XIX o crescimento demográfico judeus foi acompanhado com editos de tolerância, com na Áustria-Hungria (1781/1782), possibilitando o desenvolvimento intelectual e patrimonial da comunidade judaica, o que foi denominado de “Iluminismo Judeu” (Shapira, 2018, p. 22-23.). Percebeu-se, pela onda secularizadora, o afastamento de parcela da população da vida religiosa e assimilação da identidade nacional local. Porém, os anseios de igualdade e emancipação não se materializaram em função do antissemitismo do século XIX, que estabeleceu, velada ou violentamente, a distinção de identidade e a exclusão social, sob o argumento que os judeus seriam uma ameaça à unidade nacional (comunidades fechadas, que não se abrem à adesão e que não permitem acolhimento, não tendo interesse e socializar-se), associado à corrupção e à destruição do modo de vida europeu-liberal. O antissemitismo se intensificou na segunda metade do século XIX, devido aos regicidos acontecidos, promovidos por movimentos insurgentes e revolucionários, associados aos judeus. Nesse contexto, o sionismo nasceu como resposta às perseguições, afirmando-se como um discurso emancipatório. 2.3.2 A ciência como recurso de legitimidade A secularização da identidade judaica como nacionalidade, desenvolveu-se em torno de uma retórica científica, dentro de círculos acadêmicos alemães, denominando-se Ciência do Judaísmo (Wissenschaft des Judentums). 41 Esse movimento estabeleceu uma distinção entre os judeus tradicionalistas, que defendiam uma identidade vinculada às leis religiosas e sua ortodoxia (tradição talmúdica/rabínica), e os judeus liberais que se apegavam a construção secularizada de uma nação, em torno da noção hegeliana de moralidade. A proposição hegeliana de Estado é “a realidade de ideia moral, a totalidade ética, a realização da liberdade, o verdadeiro organismo, o infinito real, o espírito na sua racionalidade absoluta e na sua realidade imediata”. Hegel critica a democracia liberal que estabelece a vontade individual como pilar do Estado, que não será sólido por um contrato, segundo a vontade puramente dos sujeitos. A felicidade da pessoa está vinculada à totalidade moral do Estado, do todo racional e místico, não no individual. O Estado hegeliano apresenta-se como poder e função tendo como fim o trato da coisa pública, para a satisfação do indivíduo, por via da sociedade. A subjetividade nos moldes liberais apresenta de desagregação anárquica da sociedade. O caminho é a integração do sujeito a uma corporação, desenvolvendo um sentido de dignidade comunitária (ethos coletivo), fonte da segurança, pela atividade compartilhada e solidária, pela constituição do sentimento de cidadania, de pátria, de organicidade. Só assim ele tem plena consciência, assim ele compartilha da moral, da vida legal e moral do Estado, pois a Verdade é a união da vontade universal com a vontade particular. O objeto primeiro da ciência do judaísmo é o “resgate” (ou melhor, construção) da História Judaica e a recuperação (criação) do caráter judeu, forjado no clima e pelo ambiente cananeu, representado por seus heróis (Sand, 2011, p. 141-142). Estudar as tradições religiosas, a origem dos espaços familiares, a organização tribal/gentílica, que seria a semente da nação (justificativa de etnicidade). O estudo sobre a destruição do segundo Templo de Jerusalém e Diáspora, que reforçava a unidade identitária étnica dos judeus modernos. Na verdade, uma construção justificadora, construída em torno do mito cristão do povo errante, castigado pelos seus atos (purgação e o retorno do povo com sinal de purificação), pois se questiona a possibilidade e interesse dos romanos de expulsar uma população em massa de seu território, existindo de fato o aprisionamento e escravização de insurgentes e resistentes à dominação romana (Sand, 2011, p. 234-243). Construiu-se o mito do povo martirizado. 42 Isso é reproduzido na Declaração de Independência de Israel (1948), que expressa: Obrigado a se exilar, o povo judeu permaneceu fiel ao país de Israel durante todas as suas dispersões, sempre rezando para voltar, sempre com a esperança de ali restaurar sua liberdade nacional. Motivados por esse apego histórico, os judeus se esforçaram ao longo dos séculos para voltar ao país de seus ancestrais (Declaração de Independência de Israel, 1948). Outra missão das Ciências Judaicas foi a uniformização da linguagem pela restauração e modernização do hebraico. As comunidades judaicas ao longo de séculos desenvolveram linguagem e dialetos próprios (o conflito de línguas entre o ídiche, outros dialetos e hebraicos é chamado de Riv Haleshonot), cabendo aos centros de estudos judaicos nas universidades, pelo desenvolvimento da literatura, apoiados pela mídia judaica da época, uniformizar e democratizar a língua nacional (Steinberg, 2015). 2.3.3 Sionismo: fundamentos e desenvolvimento O Sionismo é um processo originário de articulações dos judeus proletários, estabelecido na retórica emancipatória, tendo com berço as organizações associativas de inspiração sindical. No século XIX o problema judeu não se restringia a questões econômicas, mas político-sociais, a ausência de reconhecimento cívico, da discriminação que predominou até o final do século XVIII. Esses desafios eram estandartes do Iluminismo e de sua retórica de Emancipação, que demandavam respostas modernas, que a tradição judaica num primeiro momento não foi capaz de entender e se adaptar. O Iluminismo e a secularização da vida política acabaram por transformar a sua percepção identitária, seja sua autocompreensão e visão de mundo, inclusive da sociedade “gentil”. Antes do Iluminismo e da Revolução Francesa, a maioria da comunidade judaica não se considerava pertencente à Comunitas Christiana ou à Ummah, sendo tratada com um grupo com hábitos e crenças distintas, que não se conformavam com a ordem vigente. Até então a separação dos judeus com a comu