A V I A G E M S E M V O L T A RICHARD MISKOLCf Ao atormentado, a partida parece impossível, a volta não menos (Mann: 1963, p. 221). Proponho-me a abordar o tema da viagem na novela A Morte em Veneza (Der Tod in Venedig, 1913) de Thomas Mann (1875-1955). Esta obra talvez seja a mais perfeita do autor e é, sem dúvida, um marco literário deste século. O enredo de originalidade rara não permite um resumo que não seja empobrecedor. A mestria narrativa de Mann torna a estória do escritor Gustav von Aschenbach, que pressentindo a velhice toma a aparentemente inconseqüente decisão de viajar, uma viagem ao interior do homem moderno. Aschenbach é um artista, mas como mestre da forma está preso a ela. O homem moderno, cativo no mundo que ele próprio construiu e mantém, é apolíneo. O rompimento da forma pela arte moderna é sintomático. A busca de liberdade se dá de maneira conservadora. O mundo desencantado pela ciência e dominado pela técnica revelou-se aprisionante. O que há algumas décadas era chamado caos da vida moderna, hoje reconhecemos ser um sistema coeso e impositivo. Os complexos laços das relações sociais impedem a individuação ou tornam-na um processo de isolamento e autodestruição. A rejeição da sociedade aos seres não-comportamentais é introjetada e os próprios punem-se. * Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Itinerários, Araraquara, n° 8,1995. Aschenbach é um ser não-comportamental sublimado. O artista sublima esteticamente sua existência negada na realidade social. Realiza-se em sua obra. A origem de Aschenbach deixa clara sua hibridez, maléfica ao burguês. Por parte de pai: Seus antepassados eram oficiais, juízes, funcionários administrativos, homens que, nos serviços do rei e do Estado, levaram sua vida enérgica, decorosa e parca (Mann, 1963, p.184). A essa herança paterna de típica disciplina germânica une-se a da mãe, filha de um maestro da Boêmia. Assim: O casamento de consciência oficiosa e sóbria com impulsos acentuados e ardentes geraram um artista, este artista particular (Mann, 1963,p.l84). O próprio Mann afirmava ser de tal natureza. Herdara a disciplina e a sobriedade paterna e o amor materno pela arte. Sua mãe nasceu no Brasil e descendia pelo lado materno de brasileiros de origem portuguesa. Aschenbach representa a ambigüidade do homem moderno, no qual a aparência de disciplina e produtividade esconde um interior minado pela insatisfação. O escritor amava seu ofício, mas estava cansado e preocupado em não deixar que isso transparecesse em sua obra. Jamais conhecera a ociosidade, vivera uma vida regrada e previsível. Sua obra, tão exaltada por seus contemporâneos, escondia um segredo: Penetrando com os olhos neste mundo narrado, via-se: o elegante autodomínio que até o último momento esconde aos olhos do mundo uma minação interna (...) (Mann, 1963, p.186). Aschenbach, como ser não-comportamental sublimado, é insatisfeito com o mundo em que vive. Sente interiormente o que Robert Musil em outra obra capital deste século-O Homem sem Qualidades (Der Mann Ohne Eigenschaften, 1978)- faz seu protagonista observar: - O que ainda hoje se chama de destino pessoal está sendo substituído por fenômenos coletivos e, por fim, estatisticamente comprováveis-repetiu Ulrich (Musil, 1989, p.514). A previsibilidade da vida moderna e sua imperfeição o ferem. Acostumara-se a se alegrar com a meia perfeição de sua obra, mas, repentinamente, não conseguia mais. A insatisfação de Aschenbach com o cotidiano e a permanente exigência de produtividade é apresentada logo no início da novela: Sobreexcitado pelo difícil e perigoso trabalho nas horas matinais, que exigia, justamente agora / havia rumores sobre o que se revelaria a Primeira Guerra Mundial], extrema cautela, prudência, energia e precisão de vontade, o literato não conseguira deter o movimento do mecanismo produtivo no seu interior (...) tampouco conseguira detê-lo depois do almoço, não encontrando o sono reparador, que lhe era tão necessário durante o dia, quando suas forças se desgastavam (Mann, 1963,p.l79). Por isso, decide fazer um passeio. Anda pelas ruas de Munique observando o movimento do trânsito e das pessoas. Em frente ao cemitério do Norte pára, esperando o bonde. Do outro lado há uma capela em estilo bizantino. Sob o pórtico e acima de dois animais apocalípticos que parecem vigiar a escadaria vê um estranho que o incomoda interiormente: Evidentemente não era bávaro, como indicava, no mínimo, o chapéu de palha com aba larga e alta. que cobria sua cabeça dando-lhe um aspecto e caráter de estrangeiro vindo de longe. Porém, trazia a mochila, tão em uso no país, afivelada aos ombros(...) (Mann, 1963, p. 180). Um desejo inconfesso começava a revelar-se: Fosse que o aspecto de viajante do estranho tivera um efeito sobre sua imaginação ou outra qualquer influência física ou moral: surpreendido, ficou cônscio de uma estranha expansão de seu íntimo, uma espécie de vago desassossego, um desejo juvenil e sedento para distância, um sentimento tão vivo, tão novo há tanto tempo desacostumado e desaprendido, que ele, com as mãos nas costas e olhar para o chão, parou cativado, para examinar a natureza e o objetivo da emoção. Era desejo de viajar, nada mais; mas verdadeiramente um acesso e intensificado até a paixão, sim, até a alucinação (Mann, 1963, p.181). A viagem, o distanciar-se de tudo que é conhecido e previsível é a única saída frente à resignação da vida cotidiana. Caminhos conhecidos não levam a lugar algum. Assim, a viagem é também a procura de um sentido próprio e inclassificável para a vida, o qual denominaremos destino. A falta de perspectivas da vida no Velho Continente é expressa pelas várias imagens evocadoras da morte e da velhice. A Europa está pronta, barbarizada pela civilização. Não é por acaso que a imagem idealizada por Aschenbach para sua viagem é uma região tropical, cheia de mistério e exotismo: via uma paisagem, uma região tropical pantanosa sob um céu pesado, úmido, exuberante e descomunal, uma espécie de selva ante-diluviana, composta de ilhas, pântanos e braços fluviais lamacentos;-via, de viçosos fetos, dos solos floridos de plantas fartas, inchadas e excêntricas, elevarem-se aqui e acolá, hastes cabeludas de palmeiras; via esquisitas e informes árvores mergulharem suas raízes, da terra pelo ar, em águas paradas, espelhando sombras verdes (...) (Mann, 1963, p. 181). Uma viagem para o desconhecido é uma redenção ao destino. O afrouxamento dos laços com a sociedade ou o círculo de convivência e até mesmo sua suspensão é uma experiência tão poderosa quanto perigosa. Toda viagem, nesse sentido, não tem volta. Quem se rende ao acaso e à incerteza rejeita inexoravelmente o mundo de onde provém, o mundo do desencanto. Aschenbach buscava o estranho e o sem relação (Mann, 1963, p. 189); a viagem que o leva a Veneza também é uma viagem interior. Sua alma desperta para questões sobre a validade da obra artística ou de qualquer outra obra. Mann sugere que a satisfação humana não pode derivar da atividade artística, nem de qualquer outra atividade que resulte em um produto. A escolha de Veneza como destino é a aceitação de um desejo anteriormente contido de visitar a cidade que sempre representou para os alemães o fascinante e luminoso Sul. Muitos germânicos encontraram ai fonte de inspiração e impulso vital, entre os quais Goethe e Winckelmann, o qual aí também encontrou trágica morte. Quanto à significação de Veneza na novela, consideramos referir- se a uma nostalgia irônica e à consciência manniana da decadência européia. O cheiro sinistro das lagunas da cidade apodrecida, a indústria do turismo e, principalmente, a epidemia de cólera ocultada pela população local ratificam essa percepção. Aschenbach, como artista que ousa querer viver, está propenso ao indefinido. A solidão que lhe proporciona a inspiração criativa também o seduz para o absurdo e o proibido. Seu desejo de descansar observando o mar despreocupadamente significa a aceitação da ociosidade e do nada-uma forma do perfeito- tão opostos à sua tarefa, mas por isso mesmo sedutores. A insatisfação para com a mercantilização da vida é explicitada por Mann de modo a contrapô-la a um encantamento que estava tornando-se nostalgia. Certa vez, no caminho para o hotel: [Aschenbach] passou por tristonhas fachadas palacianas que espelhavam grandes letreiros comerciais nas águas que balançavam o lixo(...) [o gondoleiro] tentou fazê-lo descer em todos os lugares para visitação e compras; quando a excêntrica viagem por Veneza começava a exercer o seu encanto, então o ganancioso espírito comercial da rainha mergulhada fazia com que a mente voltasse à aborrecida sobriedade (Mann, 1963, p.209). Aschenbach não é um turista, é um viajante ocioso (Mann, 1963, p. 193) que busca a embriaguez dos sentidos. A decisão de ir embora de Veneza é sintomática da posição manniana frente à sádica civilidade ocidental. Por trás da decisão de partir está o auto-imposto controle dos sentimentos, a tentativa de fugir à paixão esboçada por Tadziu. O caminho para a estação é também o da autonegação: e o que se seguiu foi uma viagem penosa, aflitiva, através de todas as profundezas do arrependimento (Mann, 1963, p.210). A aguda visão de Mann sobre o artista e sua sublimação na obra revela sua insatisfação com a sociedade que em nome da coesão social esmaga os desejos individuais: Quem decifra o caráter e o cunho do artista! Quem entende a profunda fusão instintiva de disciplina e devassidão na qual se baseia! Pois não conseguir desejar a sanável desilusão i devassidão (Mann, 1963, p.219). O acaso do extravio das malas que impede a partida, ou melhor, serve de pretexto à permanência de Aschenbach em Veneza, é aceito e acolhido com felicidade. Ele começa a render-se sem limites ao acaso, ao sentimento sem mensuraçâo de conseqüências. Ao sucumbir à paixão pelo adolescente polonês inconscientemente aceita a viagem sem volta: Já não vigiava a expiração das férias que se concedera; a idéia de regressar para a pátria nem sequer o tocava.(Mann, 1963, p.220) Aschenbach não se preocupa com a volta porque interiormente assume sua tendência para o abismo. Ao contrário de Ulisses, que se amarrou ao mastro em atitude civilizatória para não sucumbir ao canto das sereias, Aschenbach liberta-se e sucumbe a Tadziu numa atitude descivilizatória. O amor por Tadziu tem significação dupla: representa a dissolução, por parte do artista, da disciplina moral imposta pela sociedade e a recusa de perpetuação desta mesma sociedade. A paixão homoerótica equivale ao amor que se consome na fruição e não na perpetuação da espécie. Em certo momento, Aschenbach sente-se espelhado na sociedade. Quando compara o segredo dos venezianos quanto à epidemia e seu secreto amor por Tadziu. É clara a percepção manniana de que a sociedade e o homem moderno estão corroídos por dentro. Sob a frágil superfície de produtividade e satisfação esconde-se a repressão interior do bacilo fatal. A fina ironia de Mann torna-se quase sádica, como no momento em que Aschenbach tenta convencer-se de que Eros manifestado no adolescente poderia ser favorável a uma vida do autodomínio e do 'apesar', uma vida áspera, constante e sôbria(...) (Mann, 1963, p.228). Eros é fruição livre, não pode levar a qualquer espécie de controle. Aschenbach caminha inexoravelmente para o abismo. Tem um sonho onde se entrega à loucura da decadência, perde o medo rendendo-se à paixão. Perde os sentidos. É pertinente observar a corrosiva análise manniana do artista e sua posição na sociedade sob um texto escrito goethianamente. A crítica freqüente ao autor por seu conservadorismo formal revela uma incapacidade de saborear a ironia de conteúdo tão demolidor residir numa linguagem tão tradicional. A metalinguagem refere-se à sociedade da belle époque, que por dentro da aparente vitalidade revela-se minada pelo bacilo da insatisfação que a levaria à autodestruição. Mann ironiza a incapacidade da sociedade de compreender a verdadeira natureza do artista, ao mostrar Aschenbach maquiado e consumido pelo desejo, ao mesmo tempo que faz referências à sua obra respeitada e seu estilo, que era considerado básico para a educação dos rapazes. A citação de Platão arremata sua exposição da natureza anti-social do artista: Vê você agora, que nós poetas não podemos ser sábios nem dignos? Que forçosamente nos perdemos, forçosamente continuamos devassos e aventureiros de emoções? A glorificação de nosso estilo é mentira e idiotice, nossa fama e posição de honra uma farsa, a confiança do povo em nós altamente ridícula; a educação do povo e da juventude pela arte é um arrojado e proibido empreendimento. Pois como poderia servir de educador aquele a quem é inata uma tendência incorrigível e natural para o abismo? (Mann, 1963, p.242-243). O artista pode negar a sociedade desencantada que retrata, mas não se liberta dela. Mann mostra-se atormentado pela possibilidade da arte revelar-se a fetichização do artista. Deste modo, a arte seria um meio de controle social dos seres não-comportamentais e o aspecto trágico da estória de Aschenbach residiria em sua velhice, sua tardia redenção à vida. A Morte em Veneza exalta o indivíduo-sujeito, a busca do destino pessoal. Como observa Otto Maria Carpeaux, a morte de Aschenbach no fim da novela não é um desfecho trágico, mas a natural realização de um destino. O aparelho fotográfico na praia, na cena final da novela, simboliza a troca do real vivenciado pela reprodução através da técnica. Para Mann, a obra humana não pode tomar o lugar da humana fruição da vida. R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S MANN, T. A Morte em Veneza. In: Novelas Alemãs Org.: Otto Maria Carpeaux São Paulo: Cultrix, I963(trad. por Maria Delling). MUSIL, R. O Homem sem Qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. B I B L I O G R A F I A C O N S U L T A D A ARENDT, H. A Condição Humana. Trad. de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985. MARCUSE, H. A Ideologia da Sociedade Industrial - O Homem Unidimensional. Trad. Giasone Rebuá . Rio de Janeiro: Zahar Editores, 6. ed. WEBER, M. A Ciência como Vocação In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1946.