UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS UNESP – UNICAMP – PUC/SP Laís Forti Thomaz A INFLUÊNCIA DO LOBBY DO ETANOL NA DEFINIÇÃO DA POLÍTICA AGRÍCOLA E ENERGÉTICA DOS EUA (2002-2011) SÃO PAULO 2012 Laís Forti Thomaz A INFLUÊNCIA DO LOBBY DO ETANOL NA DEFINIÇÃO DA POLÍTICA AGRÍCOLA E ENERGÉTICA DOS EUA (2002-2011) Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais, San Tiago Dantas, UNESP, UNICAMP, PUC/SP, sob a orientação do Professor Doutor Tullo Vigevani. Área de concentração: Política Externa. Apoio: CAPES SÃO PAULO 2012 Thomaz, Laís Forti. T368i A influência do lobby do etanol na definição da política agrícola e energética dos Estados Unidos (2002-2011) / Laís Forti Thomaz. – São Paulo, 2012. 113 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Programa San Tiago Dantas de Pós- graduação em Relações Internacionais, 2012. Bibliografia: f. 101-110. Orientador: Tullo Vigevani. Política comercial. 2. Estados Unidos – Comércio exterior. 3. Lobby. 4. Etanol. I. Autor. II. Título. CDD 382.30973 A INFLUÊNCIA DO LOBBY DO ETANOL NA DEFINIÇÃO DA POLÍTICA AGRÍCOLA E ENERGÉTICA DOS EUA (2002-2011) Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais, San Tiago Dantas, UNESP, UNICAMP, PUC/SP. Aprovada em: 28/02/2012. Banca Examinadora: Titulares: ______________________________________________ Prof. Dr. Tullo Vigevani (UNESP) – Orientador ______________________________________________ Profa. Dra. Janina Onuki (USP) ______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferreira de Carvalho (PUC/SP) Suplentes: Prof. Dr. Amâncio Jorge Silva Nunes de Oliveira (USP) Prof. Dr. Celso Roma (INCT-INEU) Dedico esta dissertação ao meu falecido tio Jorge Luiz Thomaz AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus o dom do discernimento e a inspiração para superar as dificuldades. Agradeço a toda minha família, especialmente a meus pais, Eduardo e Marta, e ao meu irmão, Laio, que sempre estiveram ao meu lado, apoiando e servindo de exemplo. Agradeço os ensinamentos e a confiança do meu orientador, Prof. Tullo Vigevani, que sempre se mostrou solícito em todas as fases do meu aprendizado. Agradeço ao Prof. Carlos Eduardo Carvalho e à Profa. Janina Onuki a criteriosa avaliação da primeira versão do texto e as pertinentes recomendações feitas durante o exame de qualificação do mestrado. Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação de Relações Internacionais San Tiago Dantas, o conhecimento transmitido por eles na sala de aula e nos seminários. Agradeço ao Prof. Celso Roma a revisão do texto desta dissertação. Agradeço às funcionárias do Programa de Pós-Graduação, Giovana Vieira, Isabela Silvestre, Graziela de Oliveira e Paula Nobumoto, que sempre me atenderam quando foi necessário. Agradeço aos colegas que foram minhas referências, Thiago Lima, Filipe Mendonça, Haroldo Ramanzini Jr. e Débora Prado. Agradeço aos meus colegas do mestrado, especialmente Arthur Welle, Camila Luis, Cintia Ribeiro, Guilherme Casarões, Katiuscia Espósito, Jefferson Aviles, Juliano Aragusuku, Lucas Leite, Priscila Pereira, Paulo Watanabe, Policarpo Fontes e Tainá Neves, a troca de experiência e os momentos de confraternização. Agradeço ao Prof. Marcelo Fernandes de Oliveira, meu orientador no curso de graduação em Relações Internacionais da UNESP/Marília, por ter acreditado no meu potencial. Agradeço ao Prof. Marcelo Suano e a Daniela Alves, o apoio e a oportunidade de colaborar com o Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI). Agradeço a todos os meus amigos que sempre pude contar, Guilherme Lopez, Carolina Furlan, Bruna Coimbra, Daniele Mendonça, Bianca Picado, Thaís Oliveira, Taluhama Neves, Paula Santini, Gustavo Pereira, Oswaldo Losi, Giovani Stefanini, Ricardo Braga, Eduardo Dorico. Agradeço aos organizadores do Projeto AGORA a concessão do Prêmio Top etanol, o qual me incentivou a continuar estudando questões relacionadas à agroenergia. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) a concessão da bolsa de pesquisa. Energy has to be seen in terms of larger relationships. At the same time, the energy dimension of the overall relationships also needs to be recognized—and taken with the seriousness it deserves. Daniel Yergin Chairman, Cambridge Energy Research Associates (CERA) Executive Vice President, Information Handling Services, Inc. RESUMO: A forma como os atores domésticos defendem seus interesses econômicos pode influenciar os rumos da política de comércio internacional. Sob tal perspectiva de análise, esta dissertação tem por objetivo demonstrar como os lobistas dos produtores de etanol influenciaram a definição da política agrícola e energética dos Estados Unidos na última década. Com base no modelo de dois níveis proposto por Robert Putnam, foram identificados os grupos ligados à cadeia produtiva do etanol, bem como mapeadas as estratégias adotadas por eles para fazer valer seus interesses tanto na arena eleitoral como nas arenas decisórias dos poderes Executivo e Legislativo. As evidências sugerem que o lobby do etanol utilizou seus recursos financeiros e canais de influência para pressionar os membros do Congresso dos EUA a aprovar leis que concedessem benefícios setoriais na forma de subsídio. Os produtores do etanol fizeram doações aos candidatos em defesa de uma agenda agrícola, aumentando as chances de elegê-los para que representassem seus interesses na Câmara dos Representantes e no Senado; contrataram lobistas e custearam atividades em prol da indústria agrícola nacional; emplacaram representantes em agências do governo; apresentaram a pauta de reivindicações durante os trabalhos dos comitês agrícolas da Câmara e do Senado; e fizeram contribuições para a campanha de reeleição dos congressistas às vésperas das votações dos projetos de lei. Essa estratégia do lobby do etanol se revelou eficiente, visto que no período estudado foram aprovadas peças legislativas que atenderam às suas reivindicações. Por outro lado, o sucesso dos produtores americanos de etanol em suas iniciativas produziu distorções no comércio internacional de produtos agrícolas, prejudicando países em desenvolvimento como o Brasil. Palavras-chave: Lobby; Etanol; Política de energia; Política agrícola; Estados Unidos. ABSTRACT: The way in which domestic actors defend their economic interests can influence international trade. From this perspective of analysis, this Master’s thesis aims to demonstrate that ethanol lobbyists influenced the features of U.S. agricultural and energy policy in the last decade. The two-level model proposed by Robert D. Putnam allowed identifying the lobbying groups for the ethanol industry and the strategies by asserting their interests, especially in the electoral arena and in decision arenas in Executive and Legislative decision-making. Evidence suggests that the ethanol lobby has used its financial resources and channels of influence for pressuring Members of U.S. Congress to pass laws providing benefits in the form of sectorial subsidies. Ethanol producers donated money to candidates in defense of agricultural issues, increasing the chances of electing congressional representatives to represent their interests in the House and in the Senate. They engaged in lobbying and financed activities in agricultural defense. They had representatives in government agencies. They presented a list of demands during the work time of the agricultural committees. They contributed to Members of Congress’ reelection campaign on the eve of voting of the bills. This strategy of the ethanol lobby was effective because representatives and senators enacted pieces of legislation towards the parochial demand. On the other hand, the triumph of American producers of ethanol created distortions for international trade of agricultural products, harming developing countries like Brazil. Keywords: Lobby; Ethanol; Energy policy; Agricultural policy; the United States. LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Rodadas das Negociações Multilaterais de Comércio ............................................ 31 Tabela 2 - Gastos destinados ao VEETC, 2005 a 2011 ............................................................ 47 Tabela 3- Participação dos Estados na produção de etanol nos Estados Unidos, abril 2011 ... 56 Tabela 4 – Gastos com financiamento de campanhas dos grupos de interesse ligados ao etanol, 2002-2011 ..................................................................................................................... 66 Tabela 5 - Média das doações eleitorais da indústria do etanol a candidatos federais, 2002- 2010 (em US$) ......................................................................................................................... 66 Tabela 6 - Distribuição partidária das doações eleitorais do setor de colheita e processamento do etanol, 2002-2010 (em %) ................................................................................................... 67 Tabela 8 - Distribuição partidária das doações eleitorais do setor de serviços e produtos da indústria do etanol, 2002-2010 (em %) .................................................................................... 69 Tabela 9- Ranking dos candidatos mais favorecidos pelos grupos de interesse ligados ao etanol, 2002-2011 ..................................................................................................................... 73 Tabela 10 - Despesas de lobby dos grupos ligados à cadeira produtiva do etanol, 2002-2011 (em US$) .................................................................................................................................. 78 Tabela 11 - Despesas de lobby destinadas a congressistas para votações no EISA de 2007, Farm Bill de 2008 e ARRA de 2009 ........................................................................................ 85 Tabela 12 – Congressistas beneficiados pelo setor de Energia Alternativa, 2005-2011 .......... 88 Tabela 13 – Congressistas beneficiados pelo setor de trigo, milho e soja, 2005-2011 ............ 88 Tabela 14 - Média das contribuições dos PACs, segundo posicionamento dos grupos de interesse, por características dos congressistas. 2007-2010 (em US$)..................................... 90 Tabela 15 - Programas de energia presentes na recomendação para do Comitê de Agricultura do Senado para o Super Comitê, 2011 ..................................................................................... 94 Tabela 16 – A1- Contribuições a campanhas dos produtores de milho e etanol nos Estados Unidos, posição no setor de Colheita e Processamento Básico, 2002-2011 .......................... 111 Tabela 17 - A2 - Contribuições a campanhas dos produtores de etanol e biocombustíveis nos Estados Unidos, posição no setor de Energia Alternativa, 2008-2010 ................................... 111 Tabela 18 - A3 - Contribuições a campanhas dos produtores de milho e etanol nos Estados Unidos, Posição no setor Serviços e Produtos Agrícolas, 2002-2010 .................................... 112 Tabela 19 - A4- Valor das doações eleitorais da indústria do etanol a candidatos federais, 2002-2010 (em US$) .............................................................................................................. 113 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Produção mundial de etanol combustível (milhões de galões), 2007-2010 ........... 51 Gráfico 2 - Produção, consumo e importação de etanol nos Estados Unidos, 1998-2010 ....... 51 Gráfico 3 – Número e capacidade de produção das usinas e etanol de propriedade dos agricultores e de não propriedade dos agricultores, 2002-2010 ............................................... 52 Gráfico 4- Impacto econômico estimado da indústria de etanol nos EUA, 2010 .................... 55 Gráfico 5 - Gastos com lobby e número de lobistas da indústria do etanol, 2002-2010 .......... 77 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 - Mapa dos incentivos e leis estaduais .................................................................. 49 Ilustração 2- Processo de moagem úmida do milho para fabricação de etanol ........................ 53 Ilustração 3 - Processo de moagem seca do milho para fabricação de etanol .......................... 53 Ilustração 4 - Esquema do sistema de distribuição do etanol por trens e caminhões ............... 54 Ilustração 5 - Produção de milho por distrito e localização das usinas de etanol nos EUA em 2009 .......................................................................................................................................... 57 Ilustração 6 - Mapa dos resultados eleitorais dos governos estaduais em 2010 ....................... 70 Ilustração 7 - Mapa dos resultados eleitorais no Senado em 2010 ........................................... 71 Ilustração 8 - Mapa dos resultados eleitorais na Câmara dos Representantes em 2010 ........... 71 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AAA - Agricultural Adjustment Act ADM - Archer Daniels Midland AFDC - Alternative Fuels and Advanced Vehicles Data Center AFRI - Agriculture and Food Research Initiative ARRA - American Recovery and Reinvestment Act ATAC - Agricultural Technical Advisory Committee CAFTA-DR - Dominican Republic-Central America-United States Free Trade Agreement CARB - California Air Resources Board CCC - Commodity Credit Corporation DDGS - Distillers Dried Grains With Solubles DoE - United States Department of Energy DOI - United States Department of the Interior DoN- United States Department of the Navy EERE - Office of Energy Efficiency and Renewable Energy EISA - Energy Independence and Security Act EPA - Environmental Protection Agency GATS - General Agreement on Trade and Services GATT - General Agreement of Trade and Tariffs GEEs - Gases de Efeito Estufa iLUC - Indirect Land Use Change IRS - Internal Revenue Service ITAC - Energy and Energy Services do Industry Trade Advisory Committee JOBS Bill - The American Jobs Creation Act of 2004 LCFS - Low Carbon Fuel Standard NAFTA - North American Free Trade Agreement NASS - National Agricultural Statistics Service NCGA - National Corn Growers Association NIFA - National Institute of Food and Agriculture OIC - Organização Internacional do Comércio OMC - Organização Mundial do Comércio ONU - Organização das Nações Unidas OSC - Órgão de Solução de Controvérsias PACs - Political Action Committees REAP - Rural Energy for America Program RFA - Renewable Fuels Association RFS - Renewable Fuel Standard SCPP - Structure-Conduct-Performance Paradigm SNAP - Supplemental Nutrition Assistance Program TPA - Trade Promotion Authority TPRG - Trade Policy Review Group TPSC - Trade Policy Staff Committee TRIMs - Agreement on Trade Related Investment Measures TRIPs - Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights UNICA - União da Indústria de Cana-De-Açúcar USDA - United States Department of Agriculture USDA - United States Department of Agriculture USTR - United States Trade Representative USTR - United States Trade Representative VEETC - Volumetric Ethanol Excise Tax Credit WDGS - Wet Distillers Grains With Solubles SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 16 1.FUNDAMENTOS DA ANÁLISE INTERNA DA POLÍTICA EXTERNA .................. 20 1.1.Atores domésticos na disciplina das Relações Internacionais .................................. 20 1.2.O Jogo de Dois Níveis de Putnam ............................................................................ 22 1.3.Lobby como ator doméstico e influente na política externa ..................................... 24 2.A DUALIDADE DA POLÍTICA COMERCIAL DOS ESTADOS UNIDOS ............... 27 2.1. Entre o livre-comércio e o protecionismo ................................................................ 28 2.2. O padrão protetor ao setor agrícola .......................................................................... 39 2.3. O histórico do protecionismo ao etanol ................................................................... 46 3.INTERESSES E ESTRATÉGIAS DA CADEIA PRODUTIVA DO ETANOL ............ 50 3.1. A indústria do etanol: economia, geografia e organização ...................................... 50 3.2. Doações eleitorais e contratação de lobistas ............................................................ 65 3.3. A relação entre doações eleitorais e votos ............................................................... 78 3.4. O efeito provável do fim dos incentivos federais .................................................... 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 101 ANEXOS .......................................................................................................................... 111 16 INTRODUÇÃO Aprovado em julho de 2001, o Terceiro Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas alertou sobre a ocorrência de aquecimento global. Quatro anos depois, em 2005, entrou em vigência o Protocolo de Kyoto, cujo conteúdo reforçou não somente a preocupação com o meio ambiente como também a necessidade de os países investirem em fontes de energia limpa, como os biocombustíveis. Formou-se um consenso de que reduzir a emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa implica substituir os combustíveis fósseis por outra matriz energética. A partir desse momento, os governos dos países passaram a vincular a política energética à política ambiental. Os signatários dos acordos de proteção ambiental estão reavaliando as matrizes de energia contempladas em seus planos de desenvolvimento econômico. Dentre as alternativas para conciliar política agrícola e política energética, os governantes destacaram o Mercado internacional de biocombustíveis. Entretanto um país já tinha sido pioneiro no assunto. Em 1975, o Brasil já explorava o mercado de biocombustível, por meio da implementação do programa Proálcool, criado com a finalidade de privilegiar o uso do etanol como fonte de energia renovável, com base na cultura de cana de açúcar. Devido a essa iniciativa, a matriz energética brasileira é composta atualmente por 45,3% de fontes renováveis, das quais 17,7% são provenientes do cultivo da cana-de-açúcar, o que evitou a emissão de mais de 850 milhões de toneladas de gases poluentes (AMADO, 2010; BRASIL, 2011). O resultado positivo levou o Brasil a se tornar uma referência mundial no mercado agrícola, desenvolvendo conhecimento sobre o etanol, formando técnicos para o setor e exportando o produto. O sucesso brasileiro inspirou vários chefes de Estado, como o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que sugeriu a outros países seguirem o exemplo: Imagine se conseguíssemos deixar de ser dependentes do petróleo internacional. O Brasil conseguiu. Eles fizeram uma simples mudança em seus carros. Mudaram para etanol, fabricado no próprio país. E é 33% mais barato que a gasolina. […] Se o Brasil pode fazê-lo, a Califórnia também pode” (ENERGY INDEPENDENCY, 2006; GARCEZ, 2006). Recentemente, durante a sua campanha na eleição presidencial, Barack Obama defendeu que os Estados Unidos privilegiassem o biocombustível como uma matriz energética compatível com a defesa do meio ambiente: And if all we’re doing is cutting and we’re not thinking about investments, then over time we’re going to fall behind to countries like Brazil, where they’ve already got a third, I think, of their auto fleet operates on biofuels. Well, that’s — there’s no reason why we should fall behind a country like Brazil when it comes to developing alternative energy. I want to be number one in alternative energy, and that’s good for the farm economy (WHITE HOUSE, 2011). 17 Em realidade, desde os choques do petróleo de 1973 e 1979, os EUA adotaram políticas para a produção de combustíveis alternativos ao petróleo, vislumbrando, entre outros objetivos, diminuir a dependência em relação aos países do Oriente Médio e aumentar a segurança energética do país. Por exemplo, na década de 1980, o presidente Jimmy Carter apoiou – ainda que de forma parcial e limitada – a estratégia de mudança da matriz energética americana. O apoio do presidente Carter à iniciativa foi declarado de forma explícita em seu discurso proferido em 11 de janeiro de 1980: Our overall gasohol program will spur the investments that we, together, must make for a more secure energy future. We will create new markets for our farmers. We will no longer have to throw away waste materials which can be turned into profitable essential fuels (THE CLEAN FUELS DEVELOPMENT COALITION, 2011). Para cumprir a meta, desde 1978, em maior ou menor grau, o governo americano vem concedendo subsídios ao setor agrícola para incentivar a produção de etanol. Essa intervenção fez com que os produtores agrícolas, principalmente de milho, criassem uma dependência em relação aos subsídios, seja para desenvolver tecnologia mais eficiente ou para aumentar a margem de lucro de seus negócios. O protecionismo ao setor agrícola americano cria problemas no plano interno e no plano externo. Internamente, a concessão de benefícios para o setor agrícola tem efeito negativo tanto para os consumidores, que pagam pelos produtos agrícolas um preço maior do que seria praticado em condições de livre mercado, quanto para os contribuintes, que arcam com os impostos que financiam os subsídios (STOSSEL, 2007; PASOUR JR., 2008). Na última semana de julho de 2010, um relatório do escritório de análise orçamentária do Congresso norte-americano (CBO) calculou o alto custo da política de subsídios norte- americanos ao etanol de milho. Segundo o relatório, “In fiscal year 2009, the biofuel tax credits reduced federal excise tax collections by about $6 billion below what they would have been if the credits had not been in effect” (CONGRESS OF THE UNITED STATES, 2010, p. 9). Externamente, a política protecionista americana distorce a formação do preço de mercado agrícola, prejudicando países exportadores dos produtos (BRASIL, 2007). Para ilustrar, o governo dos EUA impunha uma tarifa de importação de US$ 0.54 por galão de etanol. Essa medida que fortaleceu o mercado interno de biocombustíveis e ao mesmo tempo reduziu o volume das exportações brasileiras de etanol. Se a política agrícola praticada pelo governo dos Estados Unidos é prejudicial aos concidadãos e ao funcionamento do mercado agrícola internacional, por que foram aprovadas 18 leis favoráveis aos produtores de etanol na última década? Que força econômica e política sobrepõe o interesse da indústria agrícola ao interesse coletivo do país? Como os lobistas do etanol mobilizam recursos financeiros e acessam canais de influência para persuadir os membros do departamento do governo? O lobby do etanol obteve sucesso na representação de seus interesses perante o Congresso americano? Quais leis consolidaram o protecionismo ao setor agrícola americano? O objetivo desta dissertação é demonstrar como os lobistas do etanol articularam seus interesses de uma forma eficiente tanto nos distritos eleitorais como nas instâncias decisórias da Câmara dos Representantes, Senado e burocracia do governo dos Estados Unidos. A hipótese de pesquisa a ser avaliada é que há uma relação de interdependência entre lobistas, congressistas e eleitores do cinturão agrícola americano. As evidências a serem apresentadas atestam que o lobby do etanol pode ser considerado eficiente na defesa de seus interesses, na medida em que os lobistas conseguiram benefícios em forma de subsídios concedidos pela legislação agrícola e energética dos EUA nos últimos dez anos.1 A análise pretende mostrar como o círculo do protecionismo à produção americana de etanol é estabelecido. Eleitores da região agrícola defendem a geração de empregos e estão propensos a votar em candidatos cujas propostas sejam favoráveis à produção do etanol. Por sua vez, os produtores de etanol pretendem expandir seus negócios em condições vantajosas, por isso eles fazem doações aos candidatos à Câmara dos Representantes e ao Senado afinados com as suas propostas e contratam lobistas para defender seus interesses em várias instâncias do governo. Uma vez eleitos, representantes (deputados) e senadores pretendem manter o apoio tanto dos eleitores de seus distritos como dos financiadores de suas campanhas. Por sua vez, membros dos departamentos do governo utilizam o discurso em defesa da preservação do meio ambiente para justificar o favorecimento à indústria do etanol. Essa conexão pode revelar quais são os obstáculos da política doméstica a serem vencidos para corrigir as distorções no funcionamento do comércio agrário internacional. O conteúdo deste estudo sobre a influência do lobby do etanol na definição da política agrícola e energética dos Estados Unidos no período entre 2002 e 2011 está dividido, além dessa introdução, em três capítulos e uma conclusão. O Capítulo 1 apresenta os fundamentos do modelo de dois níveis de Putnam, que será tomado como referência para a análise do papel dos atores domésticos e suas estratégias para 1 Esta pesquisa de mestrado dá continuidade à iniciação científica realizada como uma das atividades da graduação em Relações Internacionais da UNESP/Marília. Sob a supervisão do Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Oliveira, o estudo resultou na monografia de graduação “As influências dos produtores estadunidenses de milho na formulação da política de comércio internacional agrícola dos EUA entre 2002 e 2009”. 19 influir nas políticas externas de seus países. A aplicação do modelo nesta pesquisa permitiu identificar os grupos econômicos do setor agrícola; mapear os recursos e os canais institucionais usados pelo lobby da indústria do etanol; monitorar a atuação dos lobistas nas instâncias decisórias das agências governamentais e instituições representativas; e avaliar o sucesso da indústria agrícola na defesa de seus interesses. O Capítulo 2 apresenta a dualidade da política comercial dos Estados Unidos, discutindo, de um lado, os avanços e os recuos do protecionismo agrícola observado nas últimas décadas e, de outro lado, a contradição do governo em defender a retórica do livre comércio e pôr em prática barreiras tarifárias à produção agrícola de países como o Brasil. Será destacado, em uma seção, o papel desempenhado pelo United States Department of Agriculture e pelo United States Trade Representative na formulação e na aprovação das medidas protetivas ao setor agrícola do país. O Capítulo 3 reconstitui, em sua primeira parte, a formação de grupos econômicos da cadeia produtiva do etanol, entre eles a National Corn Growers Association, a Renewable Fuels Association e a Growth Energy, bem como revela o relacionamento dessas entidades com os departamentos do governo e as consultorias que participam da definição da política agrícola e energética do país, incluindo o United States Departmente of Agriculture, o Department of Energy, o United States Trade Representative e Environmental Protection Agency. A segunda parte deste capítulo analisa as características do funcionamento do sistema eleitoral no cinturão agrícola, a relação entre os grupos de interesse com os membros da Câmara dos Representantes e Senado e, por último, a tramitação e a votação das Farm Bill de 2002 e 2008, Energy Policy Act de 2005, Energy Independence and Security Act de 2007, American Recovery and Reinvestment Act de 2009 e Tax Relief e Unemployment Insurance Reauthorization, and Job Creation Act de 2010. As Considerações Finais apresentam os elementos da influência do lobby do etanol sobre a definição das políticas agrícolas e energéticas dos Estados Unidos na última década, bem como discutem o alcance do corte dos subsídios agrícolas, devido à falta de renovação da tarifa de importação e do Volumetric Ethanol Excise Tax Credit para 2012. 20 1. FUNDAMENTOS DA ANÁLISE INTERNA DA POLÍTICA EXTERNA Esta pesquisa sobre as influências do lobby do etanol na política agrícola e energética dos Estados Unidos parte do pressuposto de que os atores domésticos desempenham um papel fundamental na tomada de decisão sobre assuntos externos. Essa relação será analisada com base no modelo de dois níveis concebido por Robert D. Putnam, considerando seu potencial e sua limitação aos objetivos do estudo. O quadro analítico será completado com a incorporação ao modelo de Putnam da literatura sobre grupos de interesse e política internacional. 1.1. Atores domésticos na disciplina das Relações Internacionais Até a década de 1970, predominava nas Relações Internacionais uma perspectiva do realismo segundo a qual o Estado-nação é a única entidade relevante no cenário internacional. Na abordagem dos teóricos realistas, os movimentos sociais e as organizações políticas, entre os quais estão incluídos os grupos de pressão, devem ser relegados ao segundo plano nas análises das ações dos Estados no cenário internacional. Entretanto, logo no início da década de 1970, o estudo pioneiro de Robert Keohane e Joseph Samuel Nye sobre movimentos transnacionais já destacava as estratégias e ações dos atores domésticos como elementos relevantes para entender o modo como a política externa é definida. Nessa perspectiva, atores não estatais se destacavam na política externa como unidades de interação com o meio internacional. Esses novos atores deveriam ser reconhecidos em um cenário onde há um contínuo crescimento de comércio entre os Estados, aumentando assim tanto os fluxos de capital quanto a mobilidade de bens, informações e pessoas. A passagem a seguir atesta o ponto: Focuses on these "transnational relations - contacts, coalitions, and interactions across state boundaries that are not controlled by the central foreign policy organs of governments. It treats the reciprocal effects between transnational relations and the interstate system as centrally important to the understanding of contemporary world politics (p.331). KEOHANE e NYE (1971) apontam, ainda, como esses atores transnacionais afetam o as negociações no contexto internacional: We summarize these effects under the following headings: 1) attitude changes, 2)international pluralism, 3) increases in constraints on states through dependence and interdependence, 4) increases in the ability of certain governments to influence others, and 5) the emergence of autonomous actors with private foreign policies that may deliberately oppose or impinge on state policies. Our categorization does not pretend to be exhaustive or definitive but is rather designed systematically to suggest some effects of transnational relations on interstate politics (KEOHANE e NYE, 1971, p.337) 21 O fim da Guerra Fria e o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) sinalizaram a necessidade de mudar o paradigma da disciplina de Relações Internacionais, que passou a incorporar, em seu quadro teórico e metodológico, a dinâmica e a política dos interesses domésticos: Na atualidade, perdeu qualquer relevância pensar a política internacional desvinculada da dinâmica interna. Da mesma forma que é cada vez mais problemático analisar a política doméstica sem considerar o contexto externo. Para se construir cenários sobre a estrutura de poder do pós-Guerra Fria que não sejam apenas a repetição de analogias históricas, nem projeções lineares de tendências do presente, não basta avaliar capacidades econômicas e militares das candidatas à condição de grande potência. É crucial levar em conta a dinâmica da política e dos interesses domésticos que podem não garantir os recursos necessários ao desempenho desse papel ou, pior, podem empurrar em uma direção de predação dos demais, tirando vantagens de eventuais superioridades econômica e militar e de interdependências assimétricas com esses países (SOARES DE LIMA, 1996). O paradigma do realismo foi posto em xeque. Os novos institucionalistas questionaram de forma categórica a ideia de Estado-nação como entidade unitária e único ator relevante no plano internacional. Para superar aquela visão tradicional, os autores conceberam novos conceitos, como a teoria da interdependência complexa, cujo significado pode ser resumido em uma curta passagem: “Interdependence most simply defined, means mutual dependence. Interdependence in world politics refers to situations characterized by reciprocal effects among countries or among actors in different countries” (KEOHANE e NYE, 1989, p.7). Fenômenos sociais e políticos em escala global aceleraram a mudança de paradigma. A globalização e a diversificação da sociedade e sua cultura foram aprofundadas, exigindo para compreender uma realidade cada vez mais complexa, o estudo da ação dos agentes não estatais nas relações internacionais (HERZ, 1997). Mais recentemente, os atores não estatais reforçaram sua posição privilegiada em um cenário caracterizado pelo contínuo crescimento de comércio entre os Estados e aumento tanto dos fluxos de capital quanto da mobilidade de bens, informações e pessoas, para além das fronteiras nacionais. A incorporação dos atores locais nos modelos explicativos das relações internacionais permitiu o avanço do conhecimento acumulado pela disciplina, permitindo esclarecer decisões externas aparentemente incoerentes. Como enfatiza MORAVICSIK (1993, p.2-7), atualmente todas as teorias sofisticadas das Relações Internacionais incorporam os paradoxos entre a política doméstica e a política externa.2 2 Entre outros autores desta corrente, podemos citar Gourevith, Kissinger, Allison, Halperin, Gilpin, Krasner, Kazenstein Magdoff, Ba-ran, Sweezy, Jervis, Steinbrunner, Brecher, Hoffman, Kurth, Katzenstein e Morse. 22 1.2. O Jogo de Dois Níveis de Putnam Em 1988, Robert D. Putnam apresentou seu modelo para analisar os efeitos da política doméstica sobre a política externa. O especialista constatou que as maneiras como os atores domésticos buscam alcançar seus objetivos interfere diretamente na decisão tomada pelos governos nos assuntos internacionais. O Jogo de Dois Níveis (JDN) destaca a influência dos fatores domésticos sobre a política externa, incluindo as estratégias e ações dos representantes e movimentos organizados da sociedade. No JDN, o nível I compreende a barganha entre os negociadores nos esforços para alcançar acordos; o nível II abrange as discussões dos grupos domésticos para ratificar os acordos internacionais. A conexão entre os dois planos se estabelece na medida em que os governos definem sua política externa buscando maximizar a demanda dos atores domésticos e minimizar a demanda dos atores internacionais (PUTNAM, 1988, p.436). No JDN, o que determina se um acordo será ratificado é o win-set, ou seja, a estrutura de ganhos domésticos dos setores envolvidos. Por outro lado, a estrutura de ganhos do nível II afeta a distribuição de ganhos na barganha internacional. Quem pode perder deve bloquear os acordos ou tentar alterá-los, enquanto aqueles que podem se beneficiar dele devem pressionar pela ratificação (MILNER, 1997, p.63). Disto, podemos deduzir duas conjecturas: primeira, quanto mais fechada e coesa for a estrutura de ganhos domésticos dos atores, menor é o poder de barganha, pois, neste caso, os governos estariam de “mãos atadas”; segunda, quanto mais difusos forem os interesses dos atores, maior será a margem de manobra dos negociadores.3 A relação entre os grupos domésticos e a política externa pode ser definida como uma função tanto das preferências dos atores como dos canais institucionais em que as estratégias de influência são definidas (CUNHA, 2007, p.24). Nesse caso, as instituições políticas são essenciais para fornecer informações para os atores domésticos no nível II do JDN, porque têm cinco capacidades de captar os inputs da sociedade: a) estabelecer a agenda de questões; b) introduzir emendas aos acordos; c) ratificar ou vetar propostas; d) promover referendos; e) oferecer compensações para o lado perdedor (MILNER, 1997). Dentre as instituições políticas, o Poder Legislativo, responsável pela elaboração de leis que definem a estrutura de ganhos dos atores domésticos, pode ser considerado uma arena decisória privilegiada para observar como atores domésticos influem na política internacional. 3 No Brasil, muitos pesquisadores aplicam em seus estudos o modelo do Jogo de Dois Níveis elaborado por Robert D. Putnam. Entre os autores, podemos mencionar: CARVALHO, 2003; CINTRA, 2005; LIMA, 2008; OLIVEIRA, 2005; OLIVEIRA e MORENO, 2007; VEIGA, 1999; VILLA e CORDEIRO, 2006. 23 Como afirma MARTIN (2000, p.5): To understand how legislatures influence the course of international cooperation, we must ask two kinds of question. First, we need to develop an understanding of the nature of legislative influence on process of international cooperation and how that influence changes over time and across issues. With this hand, we can turn to consider how legislative engagement affects democracies’ ability to cooperate. Conforme vários autores afirmam, os resultados do Jogo de Dois Níveis de Putnam podem favorecer, no longo prazo, determinados ideais como a estabilidade, a credibilidade, a transparência e a eficiência nas negociações internacionais. Uma análise sobre a interação entre poderes Executivo e Legislativo, de um lado, e, de outro, agentes econômicos, esclarece como aqueles ideais podem ser alcançados: Tanto do ponto de vista interno, quanto externo, decisões tomadas pelo governo com o respaldo do Legislativo encerram maior credibilidade do que as que são produzidas sem qualquer consulta às instituições representativas. A participação do Congresso na definição dos termos pelos quais o presidente é autorizado a negociar em fóruns internacionais significa que as pressões dos agentes econômicos são feitas à luz do dia, seus argumentos ponderados por visões alternativas e eventualmente opostas (SOARES DE LIMA e SANTOS, 2001, p.146). Em que pese sua contribuição aos estudos das Relações Internacionais, o modelo de Putnam também está sujeito a críticas. De acordo com MILNER (1999), o consenso crescente em torno da importância das preferências e instituições políticas é incompatível com a falta de teoria, a deficiência na concepção das variáveis e a insuficiência de testes daquele modelo. Segundo CUNHA (2007), o modelo de Putnam não dedica a devida atenção ao processo de formação das preferências individuais sobre a ação coletiva em torno dos bens públicos. Para MO (1994), o modelo do novo institucionalismo subestima a complexidade das restrições externas ao desempenho dos negociadores no fechamento dos acordos. Nesta pesquisa foram adotadas estratégias para contornar as eventuais deficiências do modelo de Putnam. O modelo será aplicado a estudo de caso com base em evidência empírica. Será discutido como os grupos econômicos definem suas preferências em torno das questões da agenda. As variáveis do modelo serão operacionalizadas para medir a influência dos atores domésticos sobre a política comercial. Também serão incorporadas ao modelo de Putnam as restrições internas e externas presentes na negociação dos atores domésticos. 24 1.3. Lobby como ator doméstico e influente na política externa Entre os atores políticos com influência na política externa, o lobby ocupa lugar de destaque. Os grupos econômicos com interesses organizados podem influir de diversas formas na sociedade, política e economia de um país, incluindo assuntos internacionais (ALMOND, POWELL, STRØM e DALTON, 2006). Os representantes dos grupos econômicos podem interferir tanto no resultado das eleições como na produção de leis quanto nos atos executivos dos departamentos do governo. As formas de ação dos grupos de interesse podem assumir as atividades de protesto, participação no jogo eleitoral e pressão nos canais de acesso ao governo e outras instituições representativas, como sugere esta passagem: “O dever de representação e a meta dos objetivos comuns fazem com que os grupos de interesse transformem-se em grupos de pressão com capacidade de influenciar nas decisões de políticas públicas, atuando diretamente junto aos poderes Executivo e Legislativo” (BECAK, 2008, p.42). A força dos lobistas para fazer valer seus interesses é atribuída à capacidade de somar recursos financeiros e ter acesso privilegiado aos membros do governo. As corporações doam dinheiro à campanha dos candidatos e aos comitês dos partidos e financiam os lobistas para pressionar os congressistas a aprovar ou barrar projetos de lei conforme seus interesses (KIM, 2008). O volume de recursos financeiros destinado ao lobbying no Congresso dos EUA é bem maior do que aquele doado aos candidatos via Comitê de Ação Política (MILYO et. al., 2000 apud KIM, 2008). O montante do dinheiro gasto em campanha eleitoral e lobbying é considerado um indicador do interesse dos grupos econômicos em determinada questão.4 As corporações fazem doações regulares à campanha dos candidatos e os comitês dos partidos, bem como contrata lobistas para atuar na esfera legislativa para influir na legislação sobre barreira comercial, financiamentos, marco regulatório e nas taxas de retorno. Segundo KIM (2008), com base em um Structure-Conduct-Performance Paradigm (SCPP), a indústria faz doações de dinheiro aos políticos e contrata lobistas como prática competitiva adequada ao mercado em que está inserida. Ainda de acordo com o autor, os conglomerados econômicos pretendem obter vantagens (free-riders) e maximizar os lucros (rent-seeking), por isso os presidentes das empresas são incentivados a adotar essa estratégia política. A passagem seguinte esclarece o ponto: 4 Entretanto, isso não quer dizer que projetos de lei são comprados como em uma relação comercial, em que contribuições de campanha são trocadas por votos dos congressistas. Conforme declarou o representante Thomas Downey (D-New York): “Money doesn’t buy a position. But it will definitely buy you some access so you can make your case.” (apud KIM, 2008, p.13-14). 25 a small number of firms in oligopolistic industries may find it worthwhile to incur the costs of influencing the government when the benefits from government procurements or regulatory change far exceed the costs. That is, when the government is a big purchaser from an industry or the industry is heavily regulated, the industry’s stakes are higher regarding government action, part of which the industry is willing to expend on influencing activities. Thus, the members of such industries have more incentive to maintain collaborative lobbying efforts and discourage other members’ free-riding through monitoring (KIM, 2008, p. 6). Com relação à política comercial dos Estados Unidos, muitos autores consideram que o Poder Legislativo é o espaço mais permeável ao poder de influência dos grupos de interesse, na medida em que a pressão política na esfera governamental se torna essencial à proteção da indústria contra a importação de produtos de outros países. Ou nas palavras de COHEN, BLECKER e WHITNEY (2003, p.21): The politics of U.S. trade policy are reinforced by the divergent, deeply rooted attitudes that two branches of government harbor toward trade flows. When considering trade legislation, the legislative branch tends to place the burden of proof on interest groups trying to make a case for additional trade liberalization. The executive branch usually does just the opposite: it tends to place the burden of proof on interest groups trying to make a case for protectionist policies. A influência dos lobistas varia de acordo com o tipo de interesse, as características dos grupos econômicos e a estratégia de persuasão. Em relação à política comercial, por exemplo, a influência depende da concentração geográfica dos grupos de interesse nas regiões do país (FORDHAM e MCKEOWN, 2003). Segundo os autores, a vantagem de uma concentração geográfica diz respeito à coesão e coordenação das estratégias dos grupos econômicos, ao passo que a desvantagem se refere à resistência dos membros do Executivo e do Legislativo em atender à demanda de minoria concentrada espacialmente em poucos distritos eleitorais, contra a preferência da maioria do eleitorado. Por outro lado, grupos de interesse pequenos podem tentar vetar os acordos preferidos pela maioria ou, em caso de perspectiva de derrota, lutar duramente para preservar o status quo (KEOHANE e MILNER, 1996, p.4-16).5 Os grupos de interesse atuam basicamente em dois planos: o eleitoral e o legislativo. No plano eleitoral, os grupos econômicos podem influenciar os resultados das urnas por meio do financiamento das campanhas dos candidatos com afinidade política. Quer dizer, antes mesmo de se elegerem para o Congresso, os candidatos são dependentes dos recursos arrecadados para financiar suas campanhas e por isso se encontram mais suscetíveis a incorporar em sua plataforma as propostas de seus financiadores. 5 Por serem de tamanho reduzido e terem facilidade em coordenar suas ações, os produtores se mobilizam mais do que os consumidores (FRIEDEN e ROGOWSKI, 1996). 26 Tanto no plano eleitoral como no plano congressual, o partidarismo e a ideologia têm importância para atendimento do pleito dos grupos econômicos. Se as preferências políticas são comuns, não é necessário nem sequer investir em estratégias de persuasão junto com os candidatos, os congressistas e os eleitores dos distritos. Segundo comprovam vários estudos, os grupos de interesse se concentram em reforçar os laços com quem têm afinidade política (AUSTEN-SMITH, 1955, p.566 apud FORDHAM e McKEOWN, 2003, p.523). Por isso, os grupos econômicos são incentivados a apoiar o partido político e candidatos cujo posicionamento seja compatível nas questões de interesse. Isso quer dizer que: “Overall, while not every industry's contribution pattern is clearly partisan, most of the largest sectoral contributors are” (FORDHAM e MCKEOWN, 2003, p.534). Por exemplo, eleitores de determinados distritos tendem a eleger os candidatos do Partido Republicano que, por sua vez, têm suas campanhas financiadas pelo Comitê de Ação Política das grandes corporações, devido à afinidade política entre a agenda dos financiadores e o programa partidário. Da mesma forma, os grupos econômicos podem ter mais facilidade em convencer os eleitores que estejam de acordo com o pleito das corporações instaladas em seus distritos. Isso ocorre mesmo no caso da política comercial internacional porque o desfecho das negociações interfere no bem-estar social e na vida econômica dos eleitores (MILNER, 1997, p.16). No plano governamental, os lobbies também tentam influenciar quem toma decisões no governo sobre os acordos internacionais. Quando negociam acordos, os lobistas devem participar do processo de definição da política pública, familiarizando-se com a administração e servindo de órgão consultivo do governo e provedor de informação sobre suas demandas. Com relação a esse aspecto, a informação dos especialistas é fator decisivo no relacionamento dos grupos de interesse com os membros do departamento do governo, sobretudo a respeito da discussão sobre a questão em debate, da avaliação das consequências das políticas em causa e da assistência na implementação de novas políticas. Os lobistas tentam fazer com que os funcionários públicos se convençam de que suas propostas têm como ideal obter benefícios recíprocos, por meio de uma cooperação entre o privado e o público. Sob tal perspectiva de análise, esta dissertação examinará, nos próximos capítulos, como o lobby do etanol, um ator doméstico, teve êxito em convencer eleitores, departamentos do governo e membros do Congresso dos EUA a aprovar nos últimos dez anos um conjunto de leis protecionistas, prejudicando, no plano externo, a criação do mercado internacional de biocombustíveis e os esforços de liberalização por parte da Organização Mundial do Comércio. 27 2. A DUALIDADE DA POLÍTICA COMERCIAL DOS ESTADOS UNIDOS A política comercial dos EUA pode ser taxada de politicamente dual. A definição das regras do comércio do país com outros países oscila entre dois extremos: o livre comércio e o protecionismo. De um lado, os livres cambistas defendem o padrão comercial internacional aberto e sem barreiras, apontando que o protecionismo prejudica a concorrência e a competitividade da indústria. De outro, os protecionistas propõe incentivos e subsídios para o setor industrial como uma forma de proteger as atividades produtivas do país. Segundo a perspectiva constitucionalista, os dilemas da política comercial americana estão restritos à prerrogativa atribuída pela Constituição aos poderes Executivo e Legislativo. Ambos os poderes têm autoridade sobre a questão comercial. De acordo com a Constituição, em seu Artigo I, Seção 8, Cláusula 3, o Congresso está incumbido de regular o comércio com as nações estrangeiras, enquanto o Presidente deve celebrar acordos e tratados, que devem ser ratificados posteriormente pelo Congresso. No entanto, a interpretação de que a política comercial americana é o resultado do conflito entre um Executivo favorável ao livre comércio e um Legislativo partidário do protecionismo simplifica a questão.6 Historicamente, o governo americano defende a retórica do livre comércio baseado em regras universais, mas, na prática, levanta barreiras contra a entrada de produtos estrangeiros e promove acordos bilaterais e excludentes com poucos países. A dualidade presente na política comercial americana se deve à interferência do processo político nas transações econômicas externas. Mais claramente, o relacionamento entre Estado e sociedade e a descentralização do sistema político contribuem para o predomínio dos interesses paroquiais na política comercial adotada pelo governo dos EUA (COHEN, BLECKER e WHITNEY, 2003, p.3). A síntese dos fatores explicativos do protecionismo americano está nesta passagem: (1)The frequent conflict between economic logic and political necessity; (2) The conceptual disagreement among economists about whether an optimal trade policy is one that relies on free markets or one that incorporates repeated government intervention; (3) The intricate, ever-changing linkage between trade and other economic and political policy sectors, both domestic and foreign; (4) The diffusion of authority between the executive and legislative branches in formulating trade policy. Major limitations on presidential action are imposed by a voluminous, still- growing body of congressionally passed laws that affect all aspects of the conduct of U.S. trade relations (COHEN, BLECKER e WHITNEY, 2003, p. 4). Em poucas palavras, a dualidade da política comercial externa dos EUA pode ser mais bem compreendida por meio da análise das ações e das estratégias dos atores domésticos na defesa de seus interesses perante as instituições representativas do país. 6 Entre os federalistas, HAMILTON (1993 [1787]) associava o Estado liberal nacional à promoção do comércio internacional. 28 2.1. Entre o livre-comércio e o protecionismo O protecionismo predominou em um grande período da história comercial americana. Em seus primeiros anos, os EUA já promoviam a prática do isolamento esplêndido, a fim de preservar a independência e expandir o interesse nacional. Os produtos eram protegidos por taxas alfandegárias de retaliação (countervailing duty, acrônimo CVD) e por dispositivos antidumping para impedir que outros países vendessem ao mercado americano produtos com preço abaixo do valor de produção (MARIANO, OLIVEIRA e VIGEVANI, 2003), o que permitiu o desenvolvimento industrial e a expansão continental e marítima do país. Até o final da Primeira Grande Guerra, os EUA não registravam avanços significativos em matéria de liberalização. Apesar disso, o governo americano teve de aumentar a sua produção para fornecer, cada vez mais, produtos industrializados à Europa. Os produtores americanos, por isso, tiveram que realizar investimentos e contrair empréstimos. Outros países também começaram a produzir mais, pela forte especulação dos mercados, o que levou a uma superprodução que não acompanhava a demanda mundial. Esse processo foi um dos fatores da crise econômica de 1929, levando os países a adotarem medidas protecionistas para recuperar a economia nacional. Entre as medidas adotadas no período, os Estados Unidos aprovaram o Tariff Act de 1930, conhecido como Tarifa Smooth-Hawley, que gerou reformas na legislação comercial americana promovendo sobretaxas, cotas e até mesmo proibição de importações, se fossem verificados subsídios ou dumpings nos países importadores de origem dos produtos importados. A partir desta Lei, a tarifa externa foi ampliada para mais de 20 mil produtos, alcançando a cifra de 53%, percentual que vigorou até o início da Segunda Guerra Mundial (JAKOBSEN, 2005, p. 30). Com isso, o Legislativo e o Executivo redefiniram seu papel na formulação da política de comércio. A Reciprocal Trade Agreements Act de 1934 delegou poderes do Congresso ao Presidente do país, sem eliminar o papel do Congresso como o principal responsável pela política comercial. Essa lei deveria valer por somente três anos, mas ela foi continuamente renovada. Como afirmam JACKSON, DAVEY e SYKES JR. (2002, p.78-79): Since the Smoot-Hawley Tariff Act of 1930, thoughtful persons in Congress have recognized the difficulty of Congress’ developing a tariff in the national interest. […] From this experience, and the leadership of Secretary of State Cordell Hull, Congress enacted the Reciprocal Trade Agreements Act of 1934, by which it delegated to the President the authority to negotiate international trade agreements for the reciprocal reduction. 29 O programa de liberalização dos Estados Unidos surgiu nesse contexto. Com o início da Segunda Guerra Mundial formou-se o consenso de que a política protecionista prejudicava os americanos, enquanto as políticas liberais poderiam promover a paz entre as nações. O fim da Segunda Guerra Mundial levou à criação de outras regras e organizações para coordenar as relações entre os países no cenário internacional. Foram criados a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, já em 1944 no acordo de Bretton Woods, para regular as relações econômicas e financeiras. No acordo de Bretton Woods, o dólar foi adotado oficialmente como a moeda internacional, levando os Estados Unidos a ter vantagem comercial sobre outros países, como atesta esta passagem: A conformação de um regime monetário internacional tendo como moeda de referência o dólar propiciava ao governo americano a vantagem de cobrir seus passivos externos na própria moeda de emissão. Dessa forma, a política monetária americana servia como elemento estratégico na conformação do poder econômico relativo da superpotência (COELHO, 2008, p. 4). Essas instituições foram importantes para a consolidação da supremacia dos Estados Unidos no âmbito das relações internacionais, como resume esta passagem: A realidade histórica é que, desde muito tempo, pelo menos desde a metade da primeira presidência de Franklin Delano Roosevelt (1934) e, com absoluta nitidez, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos têm sido indiscutivelmente os principais autores, garantes e líderes do sistema mundial de comércio e, nesse papel, não há no horizonte próximo nenhuma potência capaz de substituí-los. A causa responsável por essa situação é apontada e desenvolvida nas diversas variantes da chamada “teoria da estabilidade hegemônica”, o paradigma conceitual dominante entre os autores mais representativos da economia política das relações internacionais contemporâneas. A teoria é assim definida num estudo recente: a abertura da economia global depende criticamente da presença de um país hegemônico que possui tanto os motivos quanto os meios para estabelecer uma ordem comercial liberal (RICUPERO, 2002, p.9). O tratamento das questões comerciais nos Estados Unidos, porém, foi um processo bem mais complexo. 7 A Organização Internacional do Comércio (OIC) estava incumbida de apoiar iniciativas para um “comércio administrável” entre seus países membros. A Carta Internacional de Comércio, conhecida como “Carta de Havana”, continha os princípios dessa organização. Os Estados Unidos participaram da elaboração desse documento, porém como o Congresso, além de estar dominado pelos republicanos contrários ao livre comércio, temia pela soberania de seu país e, devido a isso, não estavam dispostos a ratificar o documento. Por esse motivo, o presidente Harry Truman, mesmo sendo democrata, não encaminhou o documento para a ratificação (JAKOBSEN, 2005, p. 33-34). 7 Outros fatores interferem no grau de liberalização comercial dos países. CHANG (2004) argumenta, por exemplo, que existe uma relação entre o grau de desenvolvimento dos países e a liberalização do comércio: quando os países alcançam um nível elevado de desenvolvimento, buscam defender o livre comércio com outros países que ainda não se desenvolveram, alegando que esse é o melhor caminho a se buscar. 30 Mas, como a organização comercial poderia ter fracassado sem a presença dos Estados Unidos, a principal potência mundial da época, 23 países resolveram dar prosseguimento as negociações em torno de alguns princípios das regras do comércio, que já constavam da Carta de Havana. Para alcançar a meta, foi elaborado um tratado internacional que não exigisse uma estrutura fixa de coordenação das políticas comerciais e previsse reuniões periódicas dos países a fim de deliberarem sobre as questões. O General Agreement of Trade and Tariffs (GATT) foi criado a partir desse esforço, entrando em vigor em 1948, com o propósito de promover “um comércio mais livre e mais justo”. Os mecanismos desse acordo seriam reduzir as tarifas, eliminar as barreiras não tarifárias, abolir as práticas de concorrência desleal, aplicar controle sobre acordos comerciais e arbitrar contenciosos comerciais. Dessa forma, foram consolidados três princípios: 1) A não-discriminação, que se baseia em duas cláusulas fundamentais: a da nação mais favorecida e a cláusula do tratamento nacional, que estabelece igualdade de tratamento entre produtos nacionais e importados. 2) A redução geral e progressiva das tarifas. Esta deve ocorrer em bases recíprocas e pode ocorrer por intermédio de negociações produto a produto, redução linear ou pela harmonização dos direitos aplicados nos diferentes países. São os chamados direitos de aduana. 3) Proibição de restrições quantitativas (cotas) às importações, dumping e subsídios às exportações (JAKOBSEN, 2005, p. 34). A cláusula da nação mais favorecida tornou-se o princípio básico no qual se apoiaram todas as negociações comerciais internacionais do pós-guerra e serviu de base mínima para estabelecer cooperativas internacionais (MARIANO, OLIVEIRA e VIGEVANI, 2003, p. 2). Nas seis primeiras rodadas de negociação do GATT foram negociadas concessões tarifárias de produtos industrializados. Por outro lado, os produtos agrícolas foram retirados da pauta e apenas começaram a ser discutidos a partir das negociações da Rodada Uruguai. Em relação ao número de participantes Parece haver significativo consenso no reconhecimento de que, entre 1947 e 1967, sobretudo no tocante à troca de concessões, o GATT foi efetivo principalmente nas relações entre os países desenvolvidos, enquanto os países em desenvolvimento, por disporem de menor capacidade de influência, participavam dessas negociações visando a alguns benefícios marginais, dentro da lógica de free-riders (“caronistas”) (MARIANO, OLIVEIRA e VIGEVANI, 2003, p.8). Foi a partir da Rodada Kennedy que os países em desenvolvimento começam a ser, de fato, incorporados nas negociações. Conforme podemos observar na Tabela 1, descrevendo as rodadas das Negociações Multilaterais de Comércio, com informações sobre a data, o local, a agenda, o número de participantes e o volume do comércio negociado: 31 Tabela 1 - Rodadas das Negociações Multilaterais de Comércio Data Local/Round Temas Nº de participantes Comércio negociado em US$ 1 1947 Genebra/Suíça Tarifas 23 10,0 bilhões 2 1949 Annency/França Tarifas 13 n.d. 3 1951 Torquay/Reino Unido Tarifas 38 n.d. 4 1956 Genebra/Suíça Tarifas 26 2,5 bilhões 5 1960-61 Dillon Round Tarifas 26 4,9 bilhões 6 1964-67 Kennedy Round Tarifas e medidas antidumping 62 40,0 bilhões 7 1973-79 Tóquio Round Tarifas, medidas não tarifárias e acordos de base 102 155,0 bilhões 8 1986-94 Uruguai Round Tarifas, medidas não tarifárias, serviços, propriedade intelectual, resoluções de disputas, têxteis, agricultura, criação da OMC. 123 3,7 trilhões Obs: n.d. – não disponível. Fonte: THORSTENSEN, 2001, p. 31. O GATT assimilou vários mecanismos presentes na política comercial americana: “Sem dúvida, as regras do GATT corresponderam à aceitação internacional dos critérios liberais defendidos pelos EUA no final da Segunda Guerra Mundial e nos anos subsequentes” (MARIANO, OLIVEIRA e VIGEVANI, 2003, p. 7). A percepção era de que a busca do livre-comércio foi a alternativa disponível para os Estados Unidos de acordo com o seus objetivos e sua postura internacionalista. Essa opção manteve o desenvolvimento e a União Europeia e japonesa, preservando a aliança do bloco ocidental. Essa opção também serviu para atrair os novos países que surgiam no Terceiro Mundo, influenciada pela onda descolonizadora, motivada pelo jogo de soma zero da Guerra Fria. Também foi a alternativa disponível para a manutenção do dólar como moeda forte, apoiada no incremento das exportações e na cooperação internacional (VIGEVANI et al., 2007, p.45). Entretanto, o apoio ao livre comércio não era unânime nos EUA. Tanto o presidente Dwight Eisenhower, do Partido Republicano, quanto seu sucessor, John Kennedy, do Partido Democrata, acreditavam que as políticas liberais deveriam ser consolidadas, apesar do custo político e das consequências econômicas negativas. Apesar disso, a política de liberalização foi sendo atacada a partir da década de 1950. Os motivos para a reação negativa ao livre mercado estavam ligados ao aumento da concorrência estrangeira e a queda relativa da participação dos Estados Unidos no comércio mundial. Diante deste cenário, os grupos industriais passaram a se organizar melhor e se articularam para cobrar proteção mínima para a indústria americana. Essa agenda dominou a Rodada Dillon, realizada durante a administração Eisenhower. 32 Algumas medidas foram adotadas para diminuir as pressões protecionistas. Em 1962, o Congresso apontou uma necessidade de criar o Special Trade Representative (STR), o qual deveria auxiliar nas negociações internacionais. A medida pretendia retirar a responsabilidade de negociações comerciais do Departamento de Estado, por acreditarem que essa agência não estava representando os interesses comerciais de forma efetiva, sendo constantemente também influenciada por outras questões políticas (MARIANO, OLIVEIRA e VIGEVANI, 2003, p. 46). Em 1963, o presidente Kennedy criou o STR como parte do Escritório Executivo do Presidente dos Estados Unidos, a fim de chefiar as negociações nas Rodadas Multilaterais de comércio, exercendo a capacidade de contrabalançar as pressões por aumento de restrições às importações com as pressões favoráveis a expansão das exportações. Os entraves protecionistas, porém, persistiram durante as negociações que envolveram as barreiras não tarifárias durante a Rodada Kennedy, concluída em 1967. “The problem facing Congress is how to place limitations on the authority to negotiate such agreements, without at the same time destroying the credibility of United States negotiators” (JACKSON, DAVEY e SYKES JR., 2002, p. 81). A renovação da Lei de 1934 foi postergada e só foi aprovada outra vez em 1974, quando se iniciava a Rodada Tóquio. A Rodada Tóquio enfrentou vários desafios devido a problemas da economia mundial. Devido aos gastos com a Guerra do Vietnã, à pressão inflacionária e ao déficit na balança de pagamentos, os Estados Unidos acabaram com a conversibilidade do dólar em ouro, afetando um dos pilares do sistema de Bretton Woods. Com isso, o país passou a adotar o sistema de câmbio flutuante para aumentar a sua margem de manobra para o financiamento da guerra. Além disso, a crise do petróleo de 1973 e 1974 contribuiu para aumentar a inflação (os preços chegaram a quadruplicar), causando prejuízos tanto para países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Apesar do protecionismo reinante nas economias nacionais, a Rodada Tóquio se destacou por promover a liberalização comercial, com a participação de 102 países, em um esforço para reduzir as tarifas um volume comércio no volume de US$ 300 bilhões, dentre outros acordos que se tornaram conhecidos como “códigos” para subsídios e medidas compensatórias, barreiras técnicas ao comércio, compras governamentais, antidumping, comércio de aeronaves civis (JAKOBSEN, 2005, p.49). O processo de liberalização dos EUA tem relação direta com a aprovação, em 1974, do fast track, conhecido, desde 2002, como Trade Promotion Authority (TPA). Através desse mecanismo, o Congresso concede ao Presidente autoridade para negociar acordos comerciais sem a interferência do Legislativo para emenda, ou seja, o Congresso deve apenas aprovar ou 33 vetar o acordo. O Fast track ficou em vigor de 1974 a 1994, sendo novamente reativado de 2002 até 2007, a fim de facilitar as negociações comerciais. Além disso, nos anos 1970, o Congresso dos EUA ampliou as responsabilidades do STR, como podemos perceber em um trecho deste relatório: Section 141 of the Trade Act of 1974 provided a legislative charter for STR as part of the Executive Office of the President, making it responsible for the trade agreements programs under the Tariff Act of 1930, the Trade Expansion Act of 1962, and the 1974 act. The act also made STR directly accountable to both the President and the Congress for these and other trade responsibilities and elevated the Special Trade Representative to cabinet level (USTR, 2011). Em 1979, o STR foi renomeado para United States Trade Representative (USTR). Dessa forma, através de uma nova estrutura, essa instituição passou a coordenar a política de comércio internacional, representando o país em organizações internacionais comerciais. O processo de adoção das medidas comerciais tornou-se relativamente independente de ambos os poderes Executivo e Legislativo (CINTRA, 2005, p. 18). Desde a sua criação, o USTR mantém estreita colaboração com o Congresso . Cinco congressistas são formalmente nomeados como conselheiros oficiais nas questões de política comercial. Outros membros podem ser nomeados como assessores sobre questões específicas ou negociações. As atividades que ligam o USTR e o Congresso são extensas. Os funcionários do USTR dialogam com membros do Congresso sobre termos do comércio. Essa interação com o Congresso foi ampliada a partir de 2002, quando se estabeleceu que os comitês do USTR devem preparar um relatório sobre as propostas de acordos internacionais tanto para a administração quanto para o Legislativo. Vale destacar que o USTR faz consultas ao conselho de representantes do setor privado antes de as resoluções chegarem ao Congresso para aprovação ou rejeição de acordos comerciais (LIMA, 2008, p. 36). A United States Tariff Commission também foi reformada para responder aos desafios do comércio internacional. Estabelecida em 1916, essa comissão foi renomeada para United States International Trade Commission (USITC) pela lei de 1974. Outras legislações que definem as diretrizes dessa comissão, além da Lei de Tarifas de 1930, são a Lei de Expansão Comercial de 1962; a Lei de Comércio de 1974; os acordos de comércio de 1979; e a The Omnibus Trade Act de 1988. A comissão corresponde à agência independente, com amplas responsabilidades de pesquisa em matéria de comércio, com a finalidade de definir o efeito das importações sobre a indústria americana. Os membros desta comissão estudam os efeitos das importações e subvenções à indústria nacional, para conduzir inquéritos de salvaguarda. A Comissão também julga casos envolvendo importações que supostamente infringem direitos 34 de propriedade intelectual. Através desse processo, a agência facilita um sistema baseado em regras de comércio internacional. Ela analisa os dados e informações sobre comércio e outras políticas relacionadas, porém não tem a competência de negociar com governos estrangeiros nem definir as políticas comerciais a serem adotadas. As análises do USITC são direcionadas para o Presidente, a USTR e o Congresso, visando facilitar o desenvolvimento da política comercial dos EUA. Esses relatórios também estão disponíveis ao grande público, para a promoção e a compreensão das questões relacionadas ao comércio internacional. Isso é muito relevante, pois, nos Estados Unidos, se o produtor se sentisse prejudicado pelas importações poderia requerer auxílio temporário, no qual se incluem tarifas ou quotas, ou outras formas de restrições às importações (DREZNER, 2006). Essa proteção ao comércio americano foi consolidada a partir da seção 201 e 301 da Lei de Comércio, a partir de 1974, como podemos apreender desta passagem: A Seção 201 criou mecanismos que possibilitam ao governo dos Estados Unidos proteger determinados setores produtivos nacionais para que recuperem a competitividade perdida no mercado interno para os exportadores de outros países. [...] A aplicação da Seção 201 pressupõe a existência de um plano de reestruturação com duração inicial de até quatro anos, prazo que poderá ser ampliado por mais quatro a partir de avaliações e aprovações anuais. A implementação do plano poderá inclusive ser financiada com recursos governamentais. A Seção 301 é ainda mais draconiana, porque permite que qualquer empresa ou cidadão norte-americano apresente uma petição ao United States Trade Representative (USTR) solicitando sanções comerciais contra países onde os governos implementam práticas desleais de comércio. Estas práticas seriam as que “violam ou negam direitos norte-americanos no âmbito de acordos comerciais bilaterais ou multilaterais” ou aquelas consideradas “injustificáveis, não-razoáveis ou discriminatórias”, que constranjam ou restrinjam o comércio dos Estados Unidos (JAKOBSEN, 2005, p. 52-53). Podemos afirmar que “o objetivo da liberalização em 1974 e a nova ênfase no fair trade tinham viés nacionalista, ainda que pela via multilateral, em contraposição ao internacionalismo de 1962” (VIGEVANI et al., 2007, p. 147). Esses mecanismos funcionavam como mecanismo para exigir reciprocidade nos acordos comerciais, forçando outros países a aderirem ao livre-comércio para terem acesso ao mercado americano. Havia uma demanda para que as negociações em torno dos “códigos” fossem aprofundadas. Já em 1982, no governo do presidente Ronald Reagan, do Partido Republicano, começa a ser discutida a agenda comercial da próxima rodada de negociações. A agenda daquele encontro incluiu o retorno de temas antes abandonados pelos negociadores, como as compras do governo, os investimentos e a propriedade intelectual. Apesar de muitos países em desenvolvimento não estarem dispostos a discutir essas questões, a pressão dos Estados Unidos implicava que “ou haveria negociações sobre estes temas com a participação de todos no GATT, ou haveria negociações bilaterais com aqueles 35 que estivessem dispostos. Quem não estivesse interessado perderia acesso ao mercado norte- americano” (JAKOBSEN, 2005, p.56). Os países em desenvolvimento aceitaram as condições visando barganhar outras questões que iriam ao encontro de seus interesses, como medidas antidumping e agricultura. As negociações da Rodada Uruguai em 1986 foram organizadas em torno da inclusão desses temas na agenda comercial. Os resultados dessa rodada foram os acordos do TRIPs (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) e do TRIMs (Agreement on Trade Related Investment Measures). Também foram alcançadas naquela negociação novas reduções tarifárias dos bens industriais. As negociações para liberalizar os serviços geraram o GATS (General Agreement on Trade and Services). Devemos destacar que nessa rodada foram iniciadas às negociações referentes às questões agrícolas, apesar da relutância dos países desenvolvidos, especialmente os países europeus, mas também dos EUA e do Japão, que conservavam suas políticas de proteção à agricultura com o argumento de garantir sua segurança alimentar. A negociação agrícola ocorreu devido à atuação dos países em desenvolvimento exportadores de produtos agrícolas, aliados no chamado Grupo de Cairns para reivindicação de mudanças nesse padrão. Para a exigência de reciprocidade, o princípio do "single undertaking" (ou compromisso único), o qual implica que “enquanto não houver definição para algum dos pontos negociados, nada estará acordado de forma definitiva”, foi fundamental, como ressalta JAKOBSEN (2005): Como o resultado das negociações específicas dependia do acordo geral (single undertaking), em 1989 chegou-se a um acordo aceitável com o apoio dos Estados Unidos e que previa a redução dos subsídios agrícolas no longo prazo. No entanto, as divergências sobre outros temas e o recuo posterior da CEE sobre agricultura impediram a conclusão da rodada em 1990 na Conferência do GATT em Bruxelas, e as negociações prosseguiram. No entanto, em 1992, em Blair House, os Estados Unidos e a União Europeia, que substituiu a CEE, chegaram a um acordo sobre o tema serviços e um “pacote agrícola” que, em certa medida, legalizava os subsídios e impedia o uso de medidas compensatórias. Com isso, o tema da agricultura voltou à mesa de negociações para ficar, embora na prática o acordo assinado estivesse distante das reivindicações dos países exportadores de commodities e do Grupo de Cairns (JAKOBSEN, 2005, p.61-62). Esse “pacote” estabeleceu que as políticas agrícolas fossem divididas em “caixas” de cores amarela, verde e azul, segundo seus efeitos esperados para o comércio. Na caixa amarela encontram-se os subsídios que mais prejudicam o mercado: políticas de preço mínimo, crédito subsidiado de custeio, investimento e comercialização, isenções fiscais, pagamentos complementares. Na caixa azul estão os pagamentos diretos e programas condicionados a mecanismos de limitação de produção, sendo os detentores de menor impacto negativo ao comércio. Já na caixa verde estão os subsídios que supostamente não distorcem o 36 mercado, como os programas de infraestrutura, pesquisa, serviços sanitários e fitossanitários, reforma agrária, pagamentos diretos desvinculados da produção. Com a inclusão de novos temas na agenda, a negociação comercial internacional se tornou bem mais complexa. Surge então a necessidade de se criar uma instituição permanente, sediada em Genebra, com personalidade jurídica própria, para regular o comércio multilateral: a Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 1995, a OMC incorporou as resoluções do GATT.8 Além disso, foi exigido que o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) também passasse por reformas para garantir sua eficácia, perante a nova instituição. A partir de então, o OSC seria composto pelo Conselho Geral, com auxílio de Conselho Técnico, composto de peritos e por um órgão permanente de apelação. O novo contexto tornou-se mais custoso, pois exigia melhor acompanhamento dos processos em Genebra por quadros especializados, o que representou mais dificuldades para os países menos desenvolvidos. A I Conferencia Ministerial da OMC ocorreu em 1996 em Cingapura. A agenda dela compreendia a efetivação dos acordos da Rodada Uruguai, as negociações inacabadas sobre serviços, comércio e meio ambiente, a futura agenda da OMC bem como maior liberalização do comércio de bens industriais. Os acordos sobre agricultura e medidas antidumping foram deixados de lado, apesar da expectativa de países como o Brasil. Já a II Conferência realizada em Genebra, em 1998, comemorou os 50 anos de existência do GATT e teve como propósito a preparação da nova rodada de negociações, que seria a “Rodada do Milênio”. A III Conferência realizada em Seattle, em 1999, não foi capaz de gerar o lançamento. A conjuntura de crise econômica, observada nos países asiáticos, na Rússia e no Brasil, criou um conjunto de problemas para os países afetados, que responderam com barreiras protecionistas ao comércio externo. Além disso, alguns acordos da Rodada Uruguai, como os que tratavam da agricultura e do setor industrial têxtil, ainda não haviam entrado em vigor. A insistência dos países desenvolvidos em iniciar as negociações para maior liberalização de tarifas industriais e de serviços, sem fazer concessões em relação à agricultura e aos temas pendentes da Rodada Uruguai, a falta de transparência nas reuniões de negociação, as declarações ostensivas do presidente norte-americano Bill Clinton a favor de sanções comerciais contra países onde existia trabalho infantil, chegando a citar alguns nominalmente, entre eles o Brasil, e as primeiras grandes mobilizações sociais contra a OMC impediram que se chegasse a qualquer tipo de acordo. A resolução final limitou-se a instruir o diretor-geral a retomar os trabalhos para recompor a agenda e definir uma nova data para a próxima conferência ministerial (JAKOBSEN, 2005, p.77). 8 O USTR foi designado o principal responsável por todas as negociações dentro dessa organização, o que se traduziu em esforços para adotar e fazer cumprir os acordos comerciais dos Estados Unidos. Além disso, o Trade and Development Act of 2000 criou o cargo de Chefe de Negociações agrícolas dentro do USTR, com a função de realizar negociações e cumprir os acordos envolvendo interesses agrícolas dos Estados Unidos (USTR, 2011). 37 A Rodada do Desenvolvimento teve início em novembro de 2001, na V Conferência realizada em Doha, no Catar, considerando a promessa de que a agenda comercial dos países em desenvolvimento seria prioritária, porém até hoje não foi concluída. Vale destacar que os EUA tinham acabado de sofrer os atentados terroristas de 11 de Setembro e usaram o evento para promover o livre comércio, porque, para Robert Zoelick, representante do USTR, de que “o terrorismo era fruto da pobreza e o meio para combatê-lo seria promover a abertura econômica para assegurar o crescimento e eliminar a pobreza” (JAKOBSEN, 2005, p.80). Essa rodada girava em torno de vários temas, como agricultura, acesso aos mercados para bens não agrícolas (NAMA), comércio de serviços, regras sobre aplicação de medidas antidumping, subsídios e medidas compensatórias, subsídios à pesca e acordos regionais, comércio e meio ambiente, facilitação de negócios, aspectos de propriedade intelectual, além de tratamento especial e diferenciado a favor de países em desenvolvimento procura assegurar que suas necessidades especiais sejam contempladas. A Conferência de Doha se destacou por desenhar várias coalizões. O grupo de Cairns (África do Sul, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Filipinas, Guatemala, Indonésia, Paraguai e Tailândia) e outros dez países em desenvolvimento (China, Cuba, Egito, Equador, Índia, México, Nigéria, Paquistão, Peru e Venezuela) constituíram uma nova coalizão de países emergentes e em desenvolvimento, chamada G-20 comercial 9 , durante a Conferência ministerial realizada em Cancún, no México em 2003. Liderado pelo Brasil, o grupo procurava defender os interesses agrícolas dos países em desenvolvimento perante as nações ricas e protecionistas. Ao defender os interesses agrícolas, os países emergentes pretendiam eliminar os subsídios adotados pelos países desenvolvidos, com a alegação de que o protecionismo ao setor distorcia os preços de mercado e dificultavam a liberalização do comércio agrícola mundial. O tratamento às questões agrícolas levou aos impasses, o que gerou, desde 2006, uma paralisação nas negociações. Os EUA fizeram uma proposta de redução do total de subsídios de 48 bilhões de dólares para 20 bilhões, mas, nem o G20, nem a União Europeia aceitaram a proposta. Além do mais, os EUA poderiam transferir esse dinheiro gasto com subsídios para outras subvenções tão nocivas quanto. As divergências internas entre seus membros levou à divisão no interior do bloco do G20, o que de certa forma colaborou para que as questões agrícolas não fossem resolvidas pela Rodada Doha. 9 Disponível em: 38 Outro ponto a ser destacado é uma preocupação por parte dos americanos na relação da consolidação da OMC e a sua interferência nas regras nacionais, como atesta a passagem: “[...] the losing economic superpower is unlikely to accept the WTO ruling if it requires changing its domestic rules and regulations […] the domestic political cost of changing these regulations will be formidable; those with vested interest in the status quo will lobby fiercely against any proposed change. The emergence of a broad coalition of civil-society groups hostile to trade only compounds the problem” (DREZNER, 2006, p. 58-59). As reformas no âmbito do OSC, apesar de tornarem o processo de negociação mais custoso, não impediram que o órgão fosse bem mais acessado do que no período de vigência do GATT, assumindo novos procedimentos, como foi observado: The new procedures promised an effective handling of disputes and hence encouraged member-states to give the system a try. Once the first disputes were concluded successfully, the confidence in the system grew even more and the number of disputes rose accordingly (CHOREV, 2007, p.162 apud PRETO, 2011). O aumento dos recursos ao OSC também gerou maior contestação das transgressões comerciais aplicadas pelos Estados Unidos. Nesse sentido, Chorev (2007) relata que, no GATT, entre 1948 e 1989, os Estados Unidos conseguiram impelir as partes demandantes à ―inação em 44 por cento dos casos, enquanto que na OMC, entre 1995 e 2004, essa taxa declinou para 35 por cento das disputas (sendo de 32 por cento quando os queixantes eram países em desenvolvimento). De acordo com Chorev (2007), também a taxa de resolução amigável das controvérsias que tinham os EUA como acusados, que no GATT, no mesmo período, era de 12 por cento dos casos, caiu para 9.5 por cento das disputas no período entre 1995 e 2004 – entretanto, no que diz respeito às reclamações apresentadas por países em desenvolvimento, essa taxa permaneceu a mesma (12 por cento), sugerindo uma maior vulnerabilidade desses países às pressões dos EUA nessa fase do processo (PRETO, 2011, p.113). Além disso, os EUA registram derrotas nos contenciosos levados ao Órgão de Solução de Controvérsias no âmbito da OMC, fato que está levando-o a promover relações comerciais bilateralmente, fora da OMC. Atualmente, o país possui acordos de livre comércio com 17 países, incluindo bilaterais e multilaterais, como o North American Free Trade Agreement (NAFTA) e o Dominican Republic-Central America-United States Free Trade Agreement (CAFTA-DR). Mesmo com todas essas mudanças no sentido de tornar flexível e viável a negociação para livre comércio, o governo americano continuou intervindo em sua economia, especialmente nas questões agrícolas, com a cíclica renovação das Farm Bills. 39 2.2. O padrão protetor ao setor agrícola Assim como outras nações, os Estados Unidos justificam as medidas protecionistas como sendo temporárias e ao mesmo tempo necessárias para incentivar a atividade econômica da nação (BECAK, 2007, p. 39-40). No entanto, ao observamos a política comercial do país, podemos notar a consolidação do padrão protecionista de longo prazo para o setor agrícola. Há um consenso na literatura de que a força da pressão da sociedade está relacionada às características do sistema eleitoral dos EUA, como a área geográfica do distrito eleitoral e a duração dos mandatos eletivos. Muitos autores postularam hipóteses sobre a relação das variáveis. Quanto menor for o tempo de mandato e menor for o tamanho do eleitorado, o político terá mais pressão para atender aos interesses dos distritos para alcançar a reeleição. Assim, como os senadores possuem seis anos de mandato e são eleitos em distrito eleitoral correspondente ao estado da federação, eles seriam menos suscetíveis à pressão do que o Presidente dos EUA, com mandato de quatro anos e eleito por um distrito eleitoral correspondendo à nação. Sendo assim, os representantes (deputados) com mandato de apenas dois anos e eleitos por distritos circunscritos em pequena região geográfica pequena seriam os mais vulneráveis à pressão dos interesses paroquiais (LIMA, 2008, p. 42). Essa relação parece ser adequada para explicar a força dos grupos com interesse na produção do etanol. Por estarem em região muito delimitada geograficamente, os interesses paroquiais se tornam mais influentes perante os representantes dos distritos. As características da produção agrícola são baseadas em requisitos biológicos de solo fértil e condições climáticas, as quais geram economia de escala e produção de diferentes commodities. Isso contribui para que os grupos econômicos do setor agrário sejam concentrados geograficamente. Tal concentração geográfica torna o setor agrário forte e coeso e esse fator desperta atenção entre membros da Câmara dos Representantes (MCNITT, 2000). Os candidatos que defendem a proteção das colheitas no cinturão agrícola tendem a receber mais contribuições para suas campanhas durante a disputa por uma cadeira no Congresso, o que pode contribuir para sua eleição ou mesmo reeleição. Entretanto é importante ressaltar que Os congressistas não buscam sempre maximizar suas chances eleitorais. A percepção mais correta é a que o congressista busca assegurar suas chances relativas de vitória e, para isso, tende a manter um comportamento estável, sem grandes guinadas ou inovações, mas atento à conjuntura. Suas principais estratégias são fazer sua propaganda, tornando seu nome como uma marca; ganhar crédito pelas políticas adotadas e seus resultados; e tomar posição frente às questões de relevância para seu eleitorado. Assim, buscam associar seus nomes a benefícios exclusivos e concretos para suas bases, mas também querem construir a imagem e o registro de que são responsáveis e se preocupam com o longo-prazo. (LIMA, 2008, p.41). 40 Os grupos de interesse, organizados em lobby, tentam influenciar os candidatos eleitos nos distritos do cinturão agrícola, no espaço onde eles exercem o mandato: o Congresso dos EUA. Os congressistas podem ser pressionados quando desempenham funções nos comitês ou quando votam no plenário das câmaras legislativas. Os Comitês de Agricultura tanto da Câmara como do Senado se originaram em 1820 e 1825, respectivamente. Os projetos de lei sobre questão agrícola tramitam nesses comitês, e seus membros buscam concretizar os interesses dos agricultores dos estados agrícolas do Sul e do Meio Oeste dos Estados Unidos (MCNITT, 2000). Atualmente o Comitê de Agricultura do Senado tem 21 membros e se subdivide em cinco subcomitês; o Comitê de Agricultura da Câmara reúne 46 membros e seis subcomitês. Quando o projeto de lei é introduzido no Congresso, ele é encaminhado ao comitê de sua área de abrangência. Os membros do comitê decidem se o projeto é relevante; se é necessário consultar os departamentos e agências do governo; se é desejável promover consultas públicas através de audiências; se é recomendável encaminhar o projeto aos subcomitês especializados. Os comitês do Congresso americano funcionam com regras definidas pelo seu regimento. A senioridade, ou seja, o número de anos de serviços ininterruptos prestados nos comitês da Câmara ou do Senado, concede ao congressista poderes e privilégios perante outros membros. O membro do comitê filiado ao partido político da maioria e com maior senioridade assume, invariavelmente, o cargo de presidente. Os poderes conferidos a ele abrangem, por exemplo, contratar ou demitir funcionários, definir horários de reuniões, determinar quais os membros serão alocados nos subcomitês, controlar quais projetos entram na pauta, dentre outros. Já o membro do comitê filiado ao partido minoritário, com senioridade, é designado ranking member. Atuando como porta-voz, ele nomeia os membros da bancada nos cargos dos comitês e decide quando um projeto será enviado para debate. Todos os outros membros também são classificados de acordo com os anos de participação dentro do respectivo comitê, critério pelo qual cargos e competências são distribuídos entre eles (JOHNSON, 2005). Por essas razões, os congressistas tendiam a permanecer na mesma comissão, para garantir privilégios. O princípio da senioridade também evitava o conflito entre os membros do comitê e possibilitava conhecer as questões envolvidas nas áreas do comitê. O efeito negativo era a falta de rotatividade entre os membros dos comitês e a eleição dos mesmos candidatos, o que contribuiu para reforçar o padrão protecionista na agricultura. 41 Essa realidade foi alterada nos anos 1970. Apesar de continuar sendo um elemento importante, a senioridade deixou de garantir a presidência dos comitês e subcomitês, a qual passou a ser decidida pela votação de seus membros. Além disso, a autoridade dos comitês foi fragmentada nos subcomitês. Os mecanismos de votação de projetos de lei também sofreram modificações, e o presidente da Câmara foi fortalecido. Tais mudanças tiveram o objetivo de “abrir espaços para que os congressistas buscassem um maior ativismo legislativo, de forma mais individualista. Mas isso não significa que não possam agir visando objetivos mais coletivos ou nacionais” (LIMA, 2008, p. 49-50). As reformas concederam maior autonomia e importância às subcomissões, bem como favoreceram o acesso dos grupos de commodities agrícolas na formulação das subsequentes políticas agrícolas (MCNITT, 2000). Outras instituições surgiram com o propósito de mobilizar apoio para atender as necessidades dos produtores agrícolas dos EUA. Em 1862, foi criada uma agência formal para tratar das questões agrícolas, o United States Department of Agriculture (USDA). In 1862, when President Abraham Lincoln founded the U.S. Department of Agriculture, he called it the "people's Department." In Lincoln's day, 90 percent of the people were farmers who were in need of good seed and information to grow their crops. Today, USDA continues Lincoln's legacy by serving all Americans, the two percent who farm as well as everyone who eats, wears clothes, lives in a house, or visits a rural area or a national forest (USDA). No mesmo ano em que foi criada a USDA, foi instituído o Morril Act, estabelecendo os Land Grant Colleges, centros de pesquisa com laços estreitos com as comunidades rurais: Os colleges agrícolas do sistema de universidades Land-Grant amadureceram no período 1897-1914. No início do século XX já tinham sido estabelecidas as disciplinas agrícolas padrão e já havia um conhecimento substancial em cada disciplina para ensinar e aprofundar as pesquisas. As disciplinas incluíam: solos, agronomia, patologia de plantas, horticultura, criação de animais, medicina veterinária e um pouco de economia aplicada à agricultura. As pesquisas nestas áreas se desenvolveram rapidamente no início do século e os agricultores tinham muito interesse nas descobertas e resultados práticos, de modo que os colleges logo desenvolveram cursos de inverno e todo tipo de técnicas de educação para adultos para transmitir aos agricultores os resultados práticos dos trabalhos de pesquisa que aconteciam nos colleges e nas estações experimentais (criadas pela Lei Hatch 1887) a eles associadas. Em 1914, a Lei Smith-Lever institucionalizou os programas de extensão dos colleges agrícolas estaduais, criando um serviço de extensão cooperado entre estado e governo federal (MORAES; SILVA, 2009, p.18). Diante desse cenário10, A necessidade de obter comida farta e barata levou os governos dos países centrais a incitar a expansão da produção agrícola através do ritmo de progresso tecnológico 10 Conforme dito acima, esses programas de extensão respondem tanto a mandatos estaduais quanto federais. Com isso, os legisladores estaduais podem também regular suas operações, dentre de diretrizes federais. Esse é um fato importante levando em consideração que a influência relativa dos interesses agrícolas pode variar de estado para estado. (MCNITT, 2000) 42 sem precedente11. Devido a certas particularidades do setor, como a atomização da oferta e certa inelasticidade, eram comuns as bruscas quedas de preços. As políticas agrícolas passaram, então, a combater esse fator de instabilidade e incerteza, procurando compatibilizar a necessidade de reduzir gradualmente os preços dos alimentos ao consumidor com a necessidade de garantir um aceitável nível de vida para os agricultores (VEIGA, 1994). A proteção ao setor agrícola da economia foi impulsionada na Grande Depressão de 1929-1932, como estratégia para recuperar o crescimento da economia e promover o bem- estar social, pois alimentar os desempregados implicava manter programas do governo no setor (VEIGA, 1994). A preservação da renda do setor agrícola, visando ganho de produtividade sem super oferta de alimentos, também contribuiu para consolidar o padrão protetor agrícola. O presidente Franklin Delano Roosevelt (1932-1944) adotou políticas para garantir um preço justo aos alimentos, através da implantação de programas para estabilizar os preços das commodities, que eram retiradas do mercado se os preços delas aumentassem. O Agricultural Adjustment Act (AAA) de 1933 foi o marco da política agrícola fundada no New Deal. Por meio do programa, sete commodities tiveram seus preços aumentados, entre elas o milho. Apesar dos esforços do governo da época, a produção agrícola dos EUA oscilava com ciclos envolvendo de altos e baixos na oferta dos produtos. O USDA é quem pode promover o gerenciamento e o equilíbrio da oferta e demanda das commodities e, para interromper o ciclo, foi definido o preço mínimo dos alimentos, as reservas para produção excedente, além de programas que excluíam as terras do cultivo. Essas medidas teriam por objetivo gerar preços de mercado justos aos agricultores, comprando o excedente quando a produção fosse elevada e vendê-lo para o mercado quando a produção estivesse em baixa (WISE, 2009, p. 8). Os produtores tiveram a permissão de definir suas cotas de produção, obter empréstimos da Commodity Credit Corporation (CCC) e usar as colheitas como garantia. A criação da CCC ocorreu em 1933, por meio de uma Ordem Executiva, sendo incorporada ao USDA em 1939. Porém, em 1948, através do Commodity Credit Corporation Charter Act, tornou-se uma corporação federal. A CCC está autorizada a emprestar até US$ 30 bilhões do 11 “A imagem do ‘treadmil’ é usada por Cochrane (1979) para descrever a situação dos agricultores em relação à inovação tecnológica e à produção de excedente. Inicialmente, apenas alguns, os mais agressivos, adotam as novas tecnologias e conseguem, com isso, aumentar sua produtividade e ganhar competitividade. Mas conforme o uso da inovação começa a se espalhar entre os agricultores e todos aumentam sua produtividade, a margem competitiva desaparece porque o aumento da oferta reduz os preços dos produtos. Isto é o que ocorreria numa situação de livre mercado. Numa situação de preços mínimos sustentados pelo governo, a margem competitiva é perdida pelo aumento do custo do capital fixo: terras. Os lucros criados pelo aumento da produtividade obtida com a adoção da nova tecnologia levam os agricultores mais agressivos a qu