CLÁUDIA REGINA VARGAS AS VÁRIAS FACES DA CIDADE: BENTO DE ABREU E A MODERNIZAÇÃO DE ARARAQUARA (1908-1916) Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de Concentração: História e Cultura). Orientador: Prof. Dr. José Evaldo de Mello Doin Franca 2000 2 para Marcelo 3 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS ................................................................................................................................... 4 RESUMO ....................................................................................................................................................... 6 INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................. 8 CAPÍTULO I - ANTECEDENTES URBANOS ........................................................................................ 15 CAPÍTULO II - BENTO DE ABREU: PERFIL DE UM PERSONAGEM NA FRONTEIRA ENTRE A HISTÓRIA E A BIOGRAFIA ...................................................................................................................... 38 CAPÍTULO III - DA CIDADE LUZ A MORADA DO SOL: AS AMBIGÜIDADES DA MODERNIDADE URBANA ....................................................................................................................... 68 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................... 103 ANEXOS .................................................................................................................................................... 108 ACERVOS E FONTES ............................................................................................................................ 110 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................... 119 4 AGRADECIMENTOS Foram muitas as contribuições que tornaram possível a elaboração deste trabalho. Ao Prof. José Evaldo, em primeiro lugar, agradeço pela amizade, apoio pessoal e orientação sistematicamente segura, brilhante e encorajadora. Agradeço também ao Prof. José Evaldo e aos Profs. Pedro Geraldo Tosi e Aparecida da Glória Aissar pela inestimável contribuição que deram a minha formação e desenvolvimento intelectual. Aos amigos e colegas da UNESP, Glaura, Jeanne, Agnaldo, Mara, Marcos, Liliam, Carlos, Rodrigo, José Raimundo que me honraram com sua amizade e constante estímulo. Na impossibilidade de nomear todos os funcionários das instituições que custodiam os documentos pesquisados, agradeço à Virgínia, historiadora responsável pelo Museu Histórico e Pedagógico Voluntários da Pátria de Araraquara, à Silene, da Casa da Cultura de Araraquara, e ao Sr. Francisco Malta Cardoso, neto de Bento de Abreu, pela concessão de cópias de muitas fotos e documentos, pela atenção e facilidade que me proporcionaram durante a pesquisa de seus acervos documentais. Expresso, ainda, meu agradecimento ao Prof. Rodolfo Telarolli que me ajudou com desprendimento e boa vontade, abrindo-me suas portas, seus arquivos, suas lembranças e compartilhando seu olhar sobre Araraquara.. Gostaria de expressar enorme gratidão a minha mãe, Regina Tereza Tita, por ter me ajudado em tantas e variadas situações; a meu pai e minha irmã por estarem sempre prontos a colaborar comigo. Ao Marcelo, meu companheiro, quero agradecer especialmente pela verdadeira amizade, ajudando-me a superar situações difíceis e compartilhando comigo tantos momentos felizes. 5 Manifesto imensa gratidão a CAPES pela bolsa de estudos concedida, durante vinte e quatro meses, no período que compreende desde a fase da coleta de dados até a redação final da dissertação. 6 RESUMO Nesta pesquisa pretende-se analisar as tentativas de modernização do espaço urbano da cidade de Araraquara, durante o período da Primeira República. Os trabalhos de intervenção na malha urbana, inicialmente limitados a esparsas retificações do traçado de ruas e avenidas nas últimas décadas do século XIX, ganharam relevo a partir do final da primeira década do século XX, com o surgimento de várias propostas que visavam a remodelação da área central e a instalação de melhorias urbanas. No período compreendido entre 1908 e 1916, a cidade sofreu um salto urbanístico evidenciado pelo aparelhamento sistemático do cenário urbano: construção de prédios públicos, como teatros, hospitais, hotéis; arborização; iluminação; abaulamento; e ajardinamento de praças, ruas e avenidas. Este período de intensas transformações coincide com a gestão de Bento de Abreu Sampaio Vidal como vereador e, posteriormente, presidente da Câmara Municipal. O personagem histórico em questão figurou como importante agente modernizador porque investia na cidade. Para concretizar seu ideal de cidade modernizada, valia-se de sua influência política, de seu poder econômico e de seu prestígio de homem letrado. As transformações ocorridas no espaço urbano estiveram estreitamente ligadas à sua atuação como homem público. No decorrer deste trabalho, abordar-se-à as principais intervenções realizadas pelo agente modernizador e as possibilidades de apropriação de modelos europeus para a realização desses empreendimentos. 7 “Uma cidade é uma cidade. Ela é feita à imagem e semelhança de nosso sangue mais secreto. Uma cidade não é um diamante transparente. Ela espalha, palmo a palmo, o mundo dos homens, suas contradições, abusos, virtudes e desterros. Milímetro por milímetro. A mão do homem, em toda parte. No asfalto. No basalto domado. Na pedreira. Nos calçadões. Na rua, onde os veículos veiculam nosso exaspero e desespero. Uma cidade nos revela. Nos denuncia naquilo que escondemos. Grande construção, empreitada de porte enorme, regougo de martelos e martírios. Construímos nossa cidade. Somos construídos por ela. Os elos e cordames nos enlaçam, nos sufocam. Boiamos e nadamos dia e noite, levados numa escuna onde borbulhas se abrem como furúnculos maduros. Onde está a saída ? Ou a entrada ?” Hélio Pellegrino, A burrice do demônio 8 INTRODUÇÃO O objetivo primordial desta pesquisa é a busca do entendimento das múltiplas faces das tentativas de modernização urbana empreendidas na cidade de Araraquara, nas primeiras décadas do século XX. No período compreendido entre 1908 e 1916, a cidade sofreu um salto urbanístico evidenciado pelo aparelhamento sistemático do cenário urbano: construção de prédios públicos, como teatros, hospitais, hotéis, arborização, iluminação, abaulamento e ajardinamento de praças, ruas e avenidas. Foi adotado este recorte cronológico acreditando que a análise desse período de intensas transformações pode ser significativa e elucidativa para o desenvolvimento da pesquisa. Os trabalhos de intervenção na malha urbana, inicialmente limitados a esparsas retificações do traçado de ruas e avenidas, nas últimas décadas do século XIX, ganharam relevo a partir do final da primeira década do século XX, com o surgimento de várias propostas que visavam a remodelação da área central e a instalação de melhorias urbanas. Em outro nível de abordagem, centrou-se a problemática desse estudo na compreensão da atuação de Bento de Abreu Sampaio Vidal no processo de transformação do espaço urbano nas primeiras décadas do século XX. Durante esse período de intensas transformações, o biografado atuou como vereador e, posteriormente, presidente da Câmara Municipal. Bento de Abreu figurou como importante agente modernizador porque investia na cidade. Para concretizar seu ideal de modernidade, valia-se de sua influência política, de seu poder econômico e de seu prestígio de homem letrado. As transformações ocorridas no espaço urbano estiveram estreitamente ligadas à sua atuação como homem público. A importância da compreensão de sua trajetória, particularmente de 1908 a 1916, tendo como pano de fundo o discurso de seus pares, reside no fato de que a esse grupo foi atribuído, entre outras, a pecha de “oligarquia cafeeira”. Por meio da análise de sua atuação, enquanto representante de uma elite exclusora orientada pela noção da expansão cafeeira no Oeste Paulista, pode-se acompanhar alguns aspectos embutidos, regularidades, contradições, legitimação dos seus atos, além da representação que fazia de si mesmo. 9 Seu caráter de persona1 revela, também, aspectos como suas relações com o elemento imigrante e com o Estado, que nessa época assume um caráter cada vez mais destacado nas mediações das questões de ordem econômica e política. Sua trajetória fundamenta-se nos documentos produzidos por ele mesmo, bem como pela sua presença em registros oficiais. Tanto em documentos oficiais como privados aparecem uma clara intenção e preocupação com a construção de sua imagem para a posteridade. O presente trabalho buscou detectar os procedimentos que foram tomados pela persona, e que constituíram-se em representação da atuação de seus pares, em uma postura comum do enfrentamento das questões que o próprio quadro do período principiava a colocar como novos atores sociais: empresários industriais, imigrantes, proletariado, entre outros. A concentração do estudo no acompanhamento da participação de um dos atores, representante de um grupo, na questão não tende a limitar a compreensão da realidade histórica, pois possibilita o contraponto de uma análise sobre as ações dos outros sujeitos históricos, inclusive dos excluídos como é o caso de imigrantes, colonos nas fazendas de café, de escravos libertos e dos vencidos, os que não puderam ocupar cargos públicos no período de 1908 a 1930, mas não se mantiveram como espectadores nessa turba de acontecimentos que envolveu a configuração urbana da cidade desde finais do século dezenove. Neste sentido, o eixo orientador deste trabalho situa-se no acompanhamento do cruzamento das transformações urbanas com a trajetória do biografado. Assim, foram abordados as principais intervenções realizadas pelo agente modernizador e as possibilidades de apropriação de modelos europeus para a realização das metamorfoses do espaço urbano. Com relação ao corpus documental, trabalhou-se com um rol variado dando destaque para a análise de fontes oficiais, periódicos, jornais e fotografias. Foram consultados os acervos do Museu Histórico e Pedagógico ‘Voluntários da Pátria’ de Araraquara, do Arquivo 1 Do latim persona, no princípio era chamada a máscara que utilizavam os atores do Teatro Grego para reforçarem a voz na encenação. Este termo possui caráter filosófico e, ao mesmo tempo, psicológico e sociológico. In: DEL CAMPO, Salustiano (et all). Diccionario de Ciencias Sociales. Madrid: instituto de Estudios Politicos/UNESCO, 1976, v. II, p. 476. A idéia de persona é aplicada aqui como uma máscara mutável, integrada numa variedade de cenas e de situações que adquire validade quando representada em conjunto. Este quadro induz a multiplicidade do ‘eu’, no sentido de vivenciar ou de ‘sentir em comum’. A persona só existe na relação com o outro. Ver: MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massas. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1987, p. 15-7. 10 Histórico Municipal de Araraquara, da Biblioteca Pública Municipal de Araraquara, além de arquivos privados não disponíveis em Instituições Públicas. 2 Assim, a escolha do tipo de documento a ser utilizado na pesquisa aparece como resultado de uma escolha do historiador. O procedimento histórico transforma os documentos e apresenta uma massa de elementos que é preciso isolar, reagrupar, tornar pertinentes, colocar em relação, constituir em conjunto. O documento resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou involuntariamente, determinada imagem de si próprias. 3 O esforço do historiador deve dirigir-se no sentido de entender a conformação do objeto de pesquisa e, não apenas, comprovar a validade do suporte teórico ou da hipótese preliminar. Neste caso, interessa fazer emergir a trama de relações que tecem a síntese histórica que é o objeto, ou seja, não uma coisa separada e observada à distância pelo investigador, mas algo que ao mesmo tempo participa de uma explicação do real histórico, tanto do passado como do presente. 4 A realidade histórica é entendida aqui como uma construção, a partir de um conjunto de significações retiradas de uma manifestação essencialmente escrita. O trabalho de análise das fontes foi iniciado pelo Arquivo Histórico Municipal de Araraquara, que esteve parcialmente paralisado no segundo semestre de 1998, em virtude do processo de tombamento do acervo, quando houve um impedimento do acesso aos livros de atas e jornais. No entanto, arrolou-se certos documentos oficiais e periódicos que contribuíram para uma verificação do processo de urbanização sofrido pela cidade no período de 1908 a 1916. 2 A relação completa da documentação utilizada na pesquisa, encontra-se arrolada no item "Fontes", desta dissertação. 3 De acordo com Jacques Le Goff, o que transforma o documento em monumento é sua utilização pelo poder. Ainda, segundo este autor, todo documento deve ser reconhecido como um monumento, ou seja, não deve ser considerado como inócuo, primário e objetivo. LE GOFF, Jacques. Documento - Monumento. Enciclopédia Einaudi. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, v. I - ‘Memória e História’, p. 120. 4 Para uma introdução sobre o procedimento histórico consultar: MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. In: SILVA, Marcos da (org.). Repensando a História. Rio de Janeiro: Marco Zero/ANPUH, 1984, p. 49. 11 Em documentos como as Atas da Câmara, os Livros de Contratos e de Correspondências, pôde-se verificar as relações entre o governo municipal e estadual, os pedidos de verbas para saúde pública, instrução e melhorias urbanas, além de manifestações de agradecimento por pedidos atendidos. Por meio destas fontes, foi possível, também, analisar as transformações sofridas pela cidade, as intervenções realizadas pelo poder público, a atuação de Bento de Abreu como agente modernizador e a conformação assumida pela modernidade urbana no embate entre as esferas pública e privada. Já o trabalho com os jornais locais foi importante para recuperar um pouco do modus vivendi da sociedade araraquarense do início do século: os moradores, as situações vividas, as vicissitudes e os conflitos que interferem no cotidiano citadino. Nestes veículos de informação e divulgação de idéias encontrou-se subsídios para discutir políticas municipais de intervenção sobre o organismo urbano, construções das imagens da modernidade, divertimentos públicos e divulgação dos ideais republicanos como o de ‘ordem e progresso’. O jornal não é entendido aqui como um veículo que informa ou narra os fatos de forma plenamente imparcial, ou seja, não é uma fonte privilegiada de veiculação da verdade total ou absoluta. Construção que se pretende verdadeira, para a investigação histórica importa saber como foi produzida e quais foram as condições de sua produção. Possui uma forma de olhar e registar as coisas do cotidiano na sociedade. Tem uma perspectiva que orienta o modo de produzir a notícia, a informação, as idéias e os valores da cultura nas suas diversidades e contradições. Os fatos narrados devem ser concebidos como construções humanas ou atos, pois tem implicações ideológicas. Ao analisar este peculiar tipo de documentação, considerou-se a opinião do jornal, pois ocultado atrás do fato produzido, subjaz uma visão do mundo de jornalistas e proprietários do jornal, que interfere fortemente na construção da notícia. É esta visão que orienta a produção da informação. A imprensa trabalha com o conceito de verdade, mas nos termos do senso comum. Para ser identificada como verdadeira, a notícia necessita de provas e precisa ser ilustrada, ganhando então objetividade pragmática frente ao leitor. A verdade 12 figura como uma construção intelectual dotada de aspectos empíricos de sua prova e existência. As informações e as notícias foram avaliadas enquanto linguagem produtora de significados em sua relação com uma determinada conjuntura ou situação contextualizada historicamente. Além de relatar a vida cotidiana de uma sociedade, da qual fazem parte, os jornais produzem um registro do ‘fazer coletivo’ que constitui uma espécie de história cotidiana. Os jornais e semanários locais que cobrem o período de 1908 a 1916 não foram encontrados com tanta facilidade. Em alguns acervos, sequer foram encontradas publicações, apenas referências de memorialistas. Todavia, consultei um conjunto de periódicos significativo: "O Republicano", "O Commercio" e "O Araraquarense'. Por meio do confronto de jornais com dados da documentação oficial, tornou-se possível elucidar questões obscuras deste tipo de fonte, como por exemplo, a participação dos populares no contexto da modernização, nas primeiras décadas do século. Os registros oficiais quase não se referem às reivindicações populares, tais como pedidos de calçamento de ruas, de construção de teatros, de instalação de rede de esgotos e de energia elétrica, entre outros. Na Biblioteca Pública Municipal de Araraquara, foram coletados Almanaques Ilustrados, publicações em ‘moda’ na época e importantes veículos de divulgação da concepção de mundo da elite. Utilizando-se da peculiaridade deste tipo de fonte, foi discutido o ideal de civilização da elite e suas tentativas de transformar o espaço público segundo seu imaginário de mundo urbano. No Museu Histórico e Pedagógico ‘Voluntários da Pátria, realizou-se uma seleção do material fotográfico e de alguns documentos impressos, periódicos e mapas. Esta instituição possui um conjunto interessante de mapas sobre a evolução da cidade no século XIX, que forneceu dados sobre a extensão e limites da localidade, bem como das áreas de expansão e atrofia da malha urbana, no período. 13 Com relação ao extenso acervo de material iconográfico, foram coletadas cerca de duzentas imagens fotográficas que cobrem o período da Primeira República. Privilegiou-se este tipo de documentação, porque sua análise permite o conhecimento de aspectos culturais da sociedade. A utilização do material fotográfico na pesquisa não serviu apenas para ilustrar o trabalho, mas para fomentar uma discussão acerca das formas de representação da modernidade difundidas em Araraquara. A documentação iconográfica foi tratada como objeto cultural e histórico por excelência. Sua produção jamais é gratuita, isto é, fabricada para determinados usos individuais ou coletivos. Nesta perspectiva, a maioria das imagens é confeccionada para atender a certos fins propagandísticos, informativos, religiosos ou ideológicos.5 Foram arroladas, também, as hemerotecas de três importantes acervos da cidade de São Paulo: O Arquivo do Estado, a Biblioteca Mário de Andrade e o Instituto de Estudos Brasileiros. Esta coleta consistiu, basicamente, em jornais, almanaques e revistas, compreendendo as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Encontrou-se coleções dos jornais O Estado de São Paulo, O Commercio e o Correio Paulistano, almanaques e revistas. Tal material abarca a modernização e o impacto das transformações no cotidiano dos grandes centros urbanos. Os periódicos aparecem como importantes mecanismos utilizados pela elite, para divulgação de seus projetos de dominação. Nos relatos jornalísticos e nas crônicas, foram encontradas as idéias progressistas e os discursos higienistas e urbanistas difundidos na época. Estes documentos de caráter público cumpriam seu papel dúbio de informar e modelar cidadãos para as novas exigências sociais. Num primeiro momento, o trabalho com o acervo das hemerotecas justificou-se por permitir um cruzamento de informações com o intuito de verificar as semelhanças ou as especificidades assumidas pelo processo de modernização em Araraquara e nos grandes centros urbanos. Todavia, no decorrer da pesquisa, pode-se constatar que esta proposta era ampla demais, culminando no desenvolvimento de um outro projeto de pesquisa, para ser abarcada no recorte do presente objeto. 5 Para Aumont: “(...) a função simbólica das imagens sobreviveu à laicização das sociedades ocidentais, quando mais não seja para veicular os novos valores - a democracia, o progresso, a liberdade – associados às novas formas políticas”. AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas, SP,: Papirus, 1993, p.80. 14 Dando prosseguimento à pesquisa, buscou-se desvendar alguns elementos biográficos a respeito de Bento de Abreu Sampaio Vidal com uma visita ao Instituto Genealógico Brasileiro e com a coleta de material privado disperso entre descendentes e memorialistas. No processo de levantamento dos acervos evidenciou-se a inexistência de um fundo privado de Bento de Abreu. O trabalho com a documentação oficial, por sua vez, exigiu uma complementação e um confronto de dados, através de suportes documentais que estavam em poder de seus descendentes diretos, de pesquisadores e memorialistas. Em um primeiro momento, tal levantamento teve como objetivo possibilitar o cruzamento da trajetória de um homem, cujo material privado – correspondências, fotos, álbum de recortes, diário - documentava aspectos da história de uma época significativa do café no Oeste Paulista. Dentre o material consultado no I.G.B., foram arroladas três obras que possuem referências sobre a genealogia do biografado. Já com os descendentes e memorialistas, obteve-se fontes diversas como fotografias, inventário, pastas com as contas, recibos e correspondência da Sociedade Theatro Municipal de Araraquara, escritura de compra do mesmo pela Câmara Municipal, entre outros. As informações obtidas com a documentação privada foram contrapostas às constantes em periódicos, em documentos oficiais e à sua biografia resumida publicada, juntamente com uma coletânea de discursos. 15 CAPÍTULO I - ANTECEDENTES URBANOS O despertar de uma cidade: o caráter decisivo de uma cultura itinerante A implantação do regime republicano e a expansão da economia cafeeira propiciaram um desenvolvimento contínuo do espaço urbano. Os municípios integrantes do complexo cafeeiro, como Araraquara, passaram a adequar-se às novas exigências do aumento de fluxo da produção e capital. O efeito urbanizador do café não implicou somente na criação de cidades, mas na urbanização acelerada dos núcleos já existentes. A urbanização do estado de São Paulo ocorreu lentamente e tomou maior impulso em meados do século XIX, com a expansão cafeeira no oeste paulista 6. As transformações ocorridas desde meados do dezenove, tais como a abolição da escravatura, o desenvolvimento da rede ferroviária, a imigração e a nascente industrialização, contribuíram para a formação de um mercado de trabalho interno e estimularam a urbanização dos antigos núcleos coloniais7. Em São Paulo, a urbanização ocorreu recentemente e de forma intensa. Flora Othake observa que o processo de ocupação do solo tomou maior impulso em meados do século XIX. Na década de 1850, foram criados vários municípios. Este período coincide com o começo da 6 Para Othake: “(...) o processo de ocupação tomou maior impulso a partir de meados do século passado: na década de 1850 foi criado um número de municípios superior ao total criado nos 50 anos anteriores - era o começo da expansão do café, ao lado da cultura canavieira a qual, gradualmente, veio a substituir. A partir daí acelerou-se o surgimento de novos municípios, acompanhando a expansão cafeeira”. OTHAKE, Maria Flora Gonçalves. O processo de urbanização no Estado de São Paulo: dois momentos, duas faces. São Paulo: 1982. Dissertação ( Mestrado em Sociologia) - PUC, p. 21. 7 COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Ed. Grijalbo, 1977, p. 194. 16 expansão cafeeira, paralelamente com a cultura da cana de açúcar, no oeste paulista. A partir daí, intensificaram-se os surgimentos de novos municípios acompanhando a expansão do café. A expansão do café, na região de Araraquara, foi lenta por dois fatores: escassez de mão-de-obra e dificuldades de comunicação com regiões mais desenvolvidas.8 Por volta de 1850, apesar do predomínio da cana, constatavam-se as primeiras lavouras de café. A atividade cafeeira tornou-se dominante somente em 1884.9 Desse período em diante, a cidade passou a sofrer um incremento das atividades urbanas. Os problemas de transporte do café resolveram-se em 1885, com a chegada da ferrovia pela iniciativa dos fazendeiros da região. Esta empreitada solucionava, também, o crucial problema da ligação com outras regiões, ou seja, permitia uma integração econômica, política e cultural às regiões já servidas por outras estradas de ferro. A inauguração das chamadas 'paralelas do progresso', aliada ao aparelhamento da localidade, ditava o ritmo da modernização. Com a ferrovia, ingressou uma cafeicultura capitalista em Araraquara, bem como as transformações dela decorrentes. Data desta época, o aparecimento de agentes que atuavam em negócios caracteristicamente financeiros na cidade. As diversas atividades que impulsionaram a ocupação e o uso do espaço agrário, concomitantemente, desempenharam o papel de agenciadores do urbano. 10 8 Para maiores informações sobre a formação urbana de Araraquara consultar as plantas sobre a “Evolução Urbana de Araraquara no século XIX”, em Anexos. 9 SILVA, Inaya B. & REIS, Sandra A.. Vila ferroviária: memória viva. Araraquara: Concurso de monografias - “Histórias de Araraquara no decurso dos 100 anos da república”, 1990, p.18. 10Esta questão evidencia-se tanto nos discursos difundidos pela elite cafeeira, quanto na historiografia. Aqui toma-se como exemplo um trecho de um discurso do personagem histórico, cuja atuação será analisada neste trabalho: “Os palácios e as lindas avenidas e ruas do Rio de Janeiro, que fazem o orgulho dos cariocas e o nosso orgulho de brasileiros, foram feitos com o dinheiro ganho com a ‘valorização do Café’. Com o dinheiro do café foram feitas a bella metropole paulistana e as lindas cidades do interior. Com esse dinheiro foi mantido o cambio e a soberania nacional”. VIDAL, Bento A. Sampaio. Defesa do Mercado de Café: Discurso pronunciado pelo Sr. Bento A. Sampaio Vidal no Congresso dos Lavradores de Café de São Paulo, em 03 de Maio de 1939. Discursos. São Paulo: Empreza Graphica da "Revista dos Tribunais", 1937, v.5, pp. 24. 17 Na civilização cafeeira, o rural constrói o urbano, ou seja, o café gera a cidade e o cidadão. Esta atividade materializava-se como uma empresa, e portanto, necessitava do urbano para se afirmar. Neste momento, a economia do país era conduzida pela produção de café. O excedente gerado internamente, permanecia no território de origem e retornava ao espaço de sua produção ou era investido em outros setores rentáveis, direta ou indiretamente, como as ferrovias e os equipamentos coletivos urbanos. 11 Neste sentido, a urbanização do hinterland12 paulista, relacionava-se com a internalização do capital e com a generalização da mercadoria. A cafeicultura, atividade tipicamente rural, desencadeava uma propulsão do desenvolvimento urbano. O beneficiamento do café, por exemplo, envolvia atividades industriais de equipamentos e sacarias e a atividade exportadora-importadora movimentava o setor financeiro, portos e armazéns. A economia cafeeira ru-urbana permitia a acumulação de capital e esse processo efetivou-se na urbanização das cidades. Na cidade, a elite desenvolvia seus papéis: ocupando cargos públicos e, paralelamente, tratando de seus interesses privados. Pode-se afirmar que os interesses políticos estavam vinculados à sua presença no cenário urbano. Na urbs do café onde se encontravam armazéns, bancos, portos e a ferrovia travavam-se as batalhas pelas políticas de defesa do café e podia-se controlar a massa de votantes. A elite cafeeira13, na Primeira República, usava o Estado para promoção de seus interesses privados. Na cafeicultura paulista, essa prática resultava em políticas orientadas 11 OTHAKE, Flora. op. cit., p. 21 12 O conceito de hinterland é tratado aqui na concepção adotada por Szmrecsanyi: “como território cuja unidade é mais sociopolítica do que natural, ou seja, é dada pela mobilização e drenagem de seus recursos por um núcleo urbano polarizador, através de iniciativas e controles adotados por uma classe dominante local e sua elite dirigente, atuando através do Estado”. SZMRECSANYI, Maria Irene. Rio e São Paulo: raízes da substituição da metrópole nacional. Revista USP, (17), pp. 202-219, 1993. 13 A definição de 'elite' esboçada neste texto não restringe-se somente aos membros de setores da sociedade que desenvolvem alguma ocupação política. A partir da análise do debate historiográfico e da utilização de fontes primárias, esta foi conceitualizada de uma forma mais ampla que abrange o poder derivado da riqueza, ocupação e status social reconhecido, bem como da posição política e, comumente, da combinação de todos os fatores 18 para incentivo e proteção da produção do café, promoção de serviços e obras urbanas, elevando o nível das atividades econômicas e beneficiando, além da elite, outros segmentos da sociedade. Na cidade, os coronéis reuniam-se em associações, como os clubes da lavoura. A fundação dessas associações tinha como principais preocupações questões como mão-de-obra, mecanização, implementação de novas técnicas agrícolas e discussões sobre as políticas de valorização do produto. Os clubes da lavoura originaram-se no final do século XIX, devido à crise cafeeira de 1895 e à 'economia murtinista' do período de 1898 a 1902. Os cafeicultores também, manifestavam-se no plano nacional, tendo fundado a Sociedade Rural Brasileira em 1919.14 Um dos objetivos principais de tais agremiações consistia na promoção da chegada de grande número de imigrantes, de forma a aumentar a disponibilidade de braços para a lavoura. As associações exigiam do Estado uma atuação protecionista com relação à entrada de imigrantes. Evitava-se, com isso, uma possível concorrência dos imigrantes no acesso à terra e a possíveis contestações à posição destacada ocupada pelos proprietários na sociedade em transformação. O Clube Araraquarense foi uma espécie de associação criada pelos 'coronéis' com fins políticos. Fundado em 1882 por influentes membros da elite paulista, José Cesário Silva Bastos e Lino Cassiano Jardim, era freqüentado pelos elementos mais representativos da sociedade araraquarense. Constituía-se num local privativo, onde decisões políticas eram citados. A conjunção destes fatores rege a entrada de novos membros e condiciona sua permanência. Composta pela alta sociedade, esta elite possuí caráter amorfo, heterogêneo, consciente de si, com líderes reconhecidos. Tais características representam o tom cultural deste segmento, e, de certa forma, constituem os elementos ambiciosos e elegantes almejados pelos componentes do "grupo potencial de elite": setores médios, ricos e poderosos, articulados e educados, aos quais faltam alguns elementos que permitam seu reconhecimento, enquanto membros do seleto grupo. É deste "limbo social" que se originam novos membros da elite e onde terminam muitos dos seus membros quando perdem a riqueza ou os contatos. Por fim, essas colocações são debatidas nos trabalhos de: LOVE, Joseph. A locomotiva: São Paulo na Federação brasileira (1889-1937). Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1982 e NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1993. 19 tomadas. Antes de um projeto ser aprovado na Câmara, era discutido nos salões dessa associação. Os atos públicos, geralmente, terminavam com um baile no clube, mas eram reservados à elite. Este espaço de sociabilidade, onde realizavam-se bailes, festas literárias e apresentavam-se orquestras, consistia, inclusive, numa alternativa para as reuniões familiares, geralmente de cunho religioso. No entanto, para a população, em geral, os divertimentos restringiam-se às festas religiosas na praça e aos festejos carnavalescos. O processo de urbanização emerge como produto da atuação e inserção dos coronéis nas cidades. O investimento em melhoramentos urbanos relacionava-se com a fixação de residência na cidade e as atividades políticas desenvolvidas pela elite e este quadro impulsionou a urbanização dos núcleos urbanos já existentes: “À medida que os fazendeiros mudaram-se para os grandes centros, cresceu a tendência em promover melhoramentos urbanos. Aumentou o interesse pelas diversões públicas, a construção de hotéis, jardins e passeios públicos, teatros e cafés. Melhorou o sistema de calçamento, iluminação e abastecimento de água. Aperfeiçoaram-se os transportes urbanos. O comércio urbano ganhou novas dimensões, bem como o artesanato e a manufatura. O processo foi favorecido pelos interesses que o capital estrangeiro teria nesse tipo de empreendimentos urbanizadores”. 15 14 Bento de Abreu foi sócio-fundador e presidente desta sociedade várias vezes, tendo sido honrado com o título de presidente honorário. 15 COSTA, E. V. op. cit., p. 215. 20 A imigração estrangeira que afluiu para as cidades, também, foi um dos fatores de crescimento da população e da expansão das funções urbanas no período. 16 A estrutura das grandes propriedades de café garantia a obtenção de capital excedente, mas não exigia sua completa reabsorção no meio agrário. A elite cafeeira obtinha grandes lucros: investia uma parte na lavoura e outra em setores urbanos interligados, de certa forma, à manutenção da agricultura exportadora. Esta situação levou à expansão dos setores comerciais, financeiros, imobiliário e da construção civil. Foram criados, por exemplo, bancos e desenvolveram-se os melhoramentos urbanos. Neste momento, a economia abarcava os setores agrário, comercial e financeiro, podendo-se falar em capital cafeeiro urbano-rural, porque este possibilitava o desenvolvimento das funções urbanas.17 O Banco de Araraquara, por exemplo, era organizado por uma sociedade anônima, tendo por acionistas grandes coronéis da região. Era costume corrente os investimento em casas bancárias.18 Todavia, torna-se necessário observar que estes capitais não foram investidos somente em sua área de origem, mas em outras regiões do Estado. Bento de Abreu, por exemplo, possuía propriedades que envolviam negócios diversos em Pirajuí, Guariba, e Marília. Os melhoramentos urbanos em Araraquara aparecem vinculados à iniciativa do capital cafeeiro urbano-rural local. As melhorias realizadas durante a gestão de Bento de Abreu como presidente da Câmara Municipal, constituem-se num exemplo: iluminação pública e particular à luz elétrica; abastecimento de água potável e rede de esgotos, por toda a extensão habitada 16 DEVESCOVIS, Regina C. B.. Urbanização e acumulação: um estudo sobre a cidade de São Carlos. São Carlos: Arquivo de História Contemporânea; Ufscar; 1.987, p. 48. 17 De acordo com Sérgio Silva: “(...) do final do século XIX à crise de 1919/1930, ... a economia cafeeira foi o principal centro de acumulação do Brasil. É na região do café que o desenvolvimento das relações capitalistas é mais acelerado e é onde se encontra a maior parte da indústria nascente”. SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 17. 18 A este propósito, Corrêa ressalta: “Compreendendo a importância dos financiamentos bancários aos lavradores tratou o vereador Carlos Batista Magalhães de fundar um banco para servir à região de Araraquara, Rio Preto e Barretos. Com esse objetivo conseguiu a adesão de 41 capitalistas subscrevendo 783 ações. A criação do banco representava a possibilidade da oferta de auxílio financeiro aos lavradores quando estes se encontrassem em 21 do núcleo urbano; entre outros. A partir da sua atuação na municipalidade, a paisagem urbana proveu-se de importantes equipamentos de infra-estrutura. Estes benefícios alicerçaram-se a partir da apropriação da esfera pública pela esfera privada, situação que ganha relevo durante a Primeira República. Os empreendimentos realizados durante o período que estende-se de 1908 a 1916, pela administração pública, beneficiaram sobremaneira seus interesses privados dos senhores do poder local. Por exemplo, o cargo de presidente da Câmara, prestígio político e poder econômico possibilitaram a Bento de Abreu a aprovação e realização de inúmeros projetos vinculados aos seus interesses privados.19 Este quadro contribui para uma caracterização do nepotismo político no Estado brasileiro, vigente na longa duração. Por outro lado, ilustra o fato dos fazendeiros não se limitarem, somente, à atividade de plantar café. Em meados do século XIX, os fazendeiros das áreas em expansão econômica já vislumbravam o caráter positivo da figura do empresário para os sucessos da agricultura20. Estes homens lançavam-se em diversos empreendimentos como a abertura de estradas de ferro, a fundação de associações e congressos agrícolas, organização de exposições, debates sobre política de valorização do produto e vinda de mão-de-obra imigrante, bem como investimentos em bancos, melhorias urbanas e comércio. Deve-se notar que essas atividades não extrapolavam os limites dos interesses da empresa cafeeira: situação difícil”. CORRÊA, Anna Maria Martinez. História Social de Araraquara (1817-1930). São Paulo: (Dissertação de Mestrado), USP, 1967, p. 291. 19 Pretende-se demonstrar, portanto, a questão do público e do privado na República Velha através da análise da modernização urbana na cidade de Araraquara, tendo como elemento norteador as políticas públicas dirigidas, como já foi colocado, por interesses privados. Representa Bento de Abreu, neste caso, um personagem político que pertence a uma esfera pública, por transformar a nível político municipal e estadual, os interesses privados da elite cafeeira em necessidade pública do crescimento urbano, realizando através do Estado a interpenetração entre público e privado. A questão da fusão das esferas pública-privada será oportunamente retomada no próximo capítulo deste texto. 20 COSTA, Emília Viotti. Ibid., p. 206. 22 “(...) a agricultura não era a única fonte de recursos dos fazendeiros. Não era raro que a completassem pelos negócios ou pelo arrendamento de taxas (por exemplo o uso das estradas que levavam aos portos de embarque do café). Alguns mesmo eram comerciantes enriquecidos, que tinham passado a empreender uma agricultura essencialmente comercial (...) Outras fortunas tinham resultado do comércio de mulas, nas feiras de Sorocaba ... Eram solidários comércio e agricultura de exportação e tinham assegurado a formação de uma classe rica, aristocrática do dinheiro, que os Imperadores Pedro I e II enobreceram generosamente e que tomava parte ativa na vida política brasileira”.21 Num primeiro contato com a documentação, pôde-se perceber que as elites se preocupavam em projetar seus interesses para o nível estatal, transformando em esfera pública o próprio poder público, no sentido de controlar as demandas requeridas pela sociedade, ampliando a esfera pública para além dos seus limites usuais. Pode-se, então, falar de uma interpenetração entre público e privado, no contexto da questão política do jogo de interesses e da emancipação da esfera pública burguesa advinda das elites cafeeiras. A situação econômica de Araraquara, no fim do século XIX, padecia com reminiscências da crise do café, dificultando sobretudo a construção da cidade o que levou ao projeto político de tentativa de projeção política como solução local. A superação desta crise tem seu auge em 1911, quando finalmente a solução política encontrada produz o desenvolvimento econômico. A política de Valorização do Café, empreendida a partir do 21 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984, p. 96. 23 Convênio de Taubaté (1906), contribui para superação dos entraves econômicos, quando a região se integrou perfeitamente com a expansão das estradas de ferro e com a imigração subvencionada. O senso comum conceitua a palavra “público” como algo ligado à coletividade, enquanto “privado” representaria, por conseqüência, o oposto. Esta discussão conceitual é feita por Norberto Bobbio e Jürgen Habermas. Bobbio discute o senso comum, estabelecendo uma dicotomia entre público e privado, e sua posterior legitimação, estendendo tal dicotomia para sociedade civil e o Estado, como autonomia e heteronomia. Parte deste pressuposto para a explicação da inter-relação “público” e “privado”. A dicotomia, neste caso, não impede a relação entre as tensões.22 Esta visão, no entanto, não permite uma compreensão das mudanças nas esfera do poder por seu caráter de exclusão. Não se compreende a historicidade dos termos, bem como do próprio Estado, o representante do público, que atua como mediador e regulador das tensões entre público e privado. O poder privado, quando age na privatização do público, acaba causando a revanche na qual os aparatos públicos são utilizados para a satisfação de objetivos particulares. Para Habermas há uma “mudança estrutural da esfera pública” que leva à dilaceração ou à adaptação da figura do Estado. Propõe, portanto, a historicidade do termo, representativa no processo de constituição da própria burguesia como uma esfera de poder. Em Habermas o Estado representa a esfera pública, entretanto os elementos que a compõem não são apenas 22 Para Bobbio, público e privado não se interpenetram de modo a dilacerar ou modificar o próprio Estado. Ao contrário, o Estado continua como palco dos conflitos, dominando-os e os resolvendo através do “contrato social”. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 24 “estatais”. A indissociabilidade do privado nesta articulação é visível. O público significa invariavelmente, coletivo.23 No período da Primeira República (1889-1930), as “elites do café” assumem o poder de estado empenhando-se em implantar, por todos os custos, soluções salvadoras e sanar as demandas sociais dentro de um determinado imaginário republicano. Em Araraquara, pólo econômico em expansão no oeste paulista, estas mudanças que ocorrem na esfera estatal, como produto da interpenetração entre público e privado, colocam a solução salvadora da modernidade urbana como pauta de programa da administração do período de 1908 a 1916, quando Bento foi presidente da Câmara. O crescimento da população e a expansão das funções urbanas relacionam-se, da mesma forma, com a imigração estrangeira que afluiu para a cidade desde meados do século XIX. Os imigrantes contribuíram para a expansão das atividades urbanas ao transferirem algumas funções, antes instaladas no latifúndio, para as cidades. Este contingente, oriundo de áreas onde não havia preconceito contra o trabalho manual, controlaria de maneira crescente o artesanato e o comércio dos centros urbanos 24. Inicialmente, a maior parte deste contingente fixou-se nas fazendas de café, tendo a menor se fixado diretamente na cidade. Passado algum tempo, uma parte do grupo fixado no meio rural deslocou-se da fazenda para a cidade. Quando os imigrantes formavam um pequeno capital, preferiam aplicá-lo num investimento seguro, que a lavoura cafeeira não podia oferecer: os imóveis urbanos. Essa aplicação em imóveis urbanos implicava na transferência do colono e de sua família para a cidade e a partir disso num crescimento urbano. 23 Habermas problematiza a questão e nem toca na dicotomia, passando a compreender a interpenetração, completando a análise de Bobbio. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. 24 FREIRE, Gylberto. Sobrados e mocambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil, decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1961. 25 O crescimento da cidade possibilitou um desenvolvimento industrial. O urbano era, ao mesmo tempo, um mercado consumidor em expansão e o local onde abrigaram-se os agentes que facilitariam a instalação de inúmeras pequenas oficinas, criadas para atender às suas próprias necessidades de consumo.25 A transformação das cidades, de espaço de consumo para espaço de produção, é produto das exigências do capital cafeeiro rural-urbano. Os produtos fabricados eram, geralmente, alimentícios, tais como: bebidas, massas, farinha de mandioca, bolachas e doces. Era muito comum também, a produção de móveis e de material para construção. Os primeiros estabelecimentos industriais e comerciais possuíam um caráter doméstico, pois contava com um reduzido número de trabalhadores, geralmente da própria família do proprietário, tinham como instalação a própria residência, e possuíam equipamentos rústicos, em sua maioria, usados. É necessário destacar que a efetiva migração campo-cidade e a formação de um exército industrial de reserva, ganhou relevância a partir da segunda década do século XX, com o início da Primeira Guerra Mundial e do processo de decadência do café.26 Nesse período, vários comerciantes e industriais locais eram imigrantes, porém não haviam passado pela lavoura cafeeira e nem eram fazendeiros ou ex-colonos. O contingente, agora tratado, deslocou-se para a região com o intuito de desenvolver atividades econômicas urbanas, nos setores comercial e industrial, e não para trabalhar na lavoura de café. Apesar de o número de imigrantes vindos para a cidade ser menor do que o grupo inserido na lavoura, sua importância qualitativa não deve ser desprezada. A presença de imigrantes, principalmente italianos e espanhóis, no processo de urbanização da cidade, foi significativo para o desenvolvimento das atividades industriais e comerciais locais. Os serviços dos profissionais especializados na realização de obras da construção civil e em atividades que envolviam serviços de alvenaria, serralheria, marmoraria 25 CORRÊA, A. M. M.. op. cit., p. 300. 26 e marcenaria eram muito requisitados pela elite cafeeira, pois imprimiam a esses empreendimentos padrões estéticos europeus. O caldo cultural dos imigrantes pode ser observado nos padrões arquitetônicos adotados nas construções do período. Os anúncios comerciais do Álbum de Araraquara, publicado em 1915 sob os auspícios da Câmara Municipal, nos revelam que grande parte dos profissionais especializados na prestação desses serviços tinham procedência européia, destacando-se a italiana 27. O calçamento ‘petit-pavet’ conhecido por mosaicos portugueses, por exemplo, era uma técnica de assentamento artesanal realizada por poucos especialistas italianos e lusitanos. Os imigrantes reuniam-se, igualmente, em entidades assistenciais e culturais, como as sociedades beneficentes. Tais agremiações congregavam a população italiana de menor ou maior poder aquisitivo, respectivamente, rural e urbana. Este grande contingente europeu, formado por trabalhadores livres presentes tanto nas fazendas como nos núcleos urbanos, deram à cidade a atribuição de mercado de trabalho. Em Araraquara, as iniciativas no setor industrial foram desempenhadas, principalmente, por imigrantes italianos e espanhóis.28 Os estrangeiros residentes na área urbana, pequenos industriais e comerciantes, organizavam-se em unidades familiares de produção. As atividades do setor comercial eram bastante diversificadas: alguns estabelecimentos eram especializados na comercialização de importados. O mercado de artigos nacionais e importados era constituído por fazendeiros, profissionais liberais, funcionários administrativos, pequenos comerciantes e industriais, incipiente operariado urbano e capitalistas. 26 DEVESCOVIS, R.. op. cit., p. 59. 27 FRANÇA, Antônio M. & SILVEIRA, João (Org.). Álbum de Araraquara. São Paulo: Ed. João Silveira, 1915. 28 CORRÊA, A.M.M.. op. cit., p. 302. 27 Tais segmentos eram os grandes usuários dos meios de consumo coletivos urbanos e representavam um mercado local para as unidades comerciais e industriais. O andamento das atividades agrícolas refletia-se no desenvolvimento industrial devido às ligações existentes entre elas. A declaração da Primeira Guerra Mundial, em 1914, trouxe consigo a desorganização da economia cafeeira, pois o mercado importador europeu estava impossibilitado de absorver o produto e o crédito externo bloqueado. Os efeitos dessa situação ecoaram por todos os setores da sociedade. As dificuldades de importação dos produtos europeus refletiam-se no aumento do custo de vida. Deve-se ressaltar a instabilidade e o caráter incipiente do setor industrial, pois este encontrava-se atrelado à economia cafeeira do pós-guerra e subordinado ao mercado de consumo do período. Era voltado, principalmente, para a fabricação de máquinas agrícolas (beneficiamento de café), para a produção de sacarias (embalagem do café) e, finalmente, para a fabricação de bens de consumo em geral. Este ramo de atividades, ligado à agricultura, possuía unidades produtivas com caráter distinto da ‘empresa’ doméstica, muito comum nas indústrias locais: organizavam-se com base no trabalho assalariado. A fábrica de gelo e salame, cujo proprietário era Américo Danielli, prefeito e vereador da cidade, instalada em 1911, constituí-se em exemplo típico de uma grande unidade produtiva.29 29 A esse respeito, Corrêa ressalta que para a instalação do maquinário importado, a ‘Gas Motoren Fabrick Deutz’ do Rio de Janeiro enviou um engenheiro especializado. Para ter-se uma idéia da grandiosidade do empreendimento para a época, a fabrica produzia: cerca de 1200kg de gelo por dia; a câmara frigorífica contava com uma capacidade para 7.000kg de gêneros; eram vendidos 600kg de peixe por semana, e o capital da firma era avaliado em 200:000$000. No mesmo estabelecimento funcionava uma torrefação e uma fábrica de salame. Com relação à torrefação, cerca de 60 arrobas de café eram torradas por dia. Depois de torrado, o café era moído e colocado em latas e pacotes, sendo vendido como Café Paulista.29 Em 1.916, a mesma fábrica passou a produzir palhões para garrafas. Merecem destaque, também, a fábrica de camas de ferro, a marmorearia italiana a fábrica de sabonetes Maziero. CORRÊA, A.M.M.. op.cit., p. 291. 28 A nascente mão-de-obra operária era, geralmente, empregada nos setores industriais ligados à agricultura. Esse incipiente operariado era composto, na maioria dos casos, por ex- colonos das fazendas ou por imigrantes recém-chegados. A chegada da ferrovia à Araraquara em 1885, por iniciativa de um grupo de cafeicultores - entre eles Antônio Lourenço Corrêa e o Conde do Pinhal - engendrou uma série de atividades de produção e de manutenção tais como: oficinas e fundições para reparos e confecção de peças para a estrada de ferro, bem como a presença de uma mão-de-obra para executar essas tarefas. Diferentemente das industrias vinculadas ao setor cafeeiro, as indústrias domésticas comportavam um grande número de pequenas e diversificadas empresas, tais como a de bebidas, camas, fogões, gelo, ladrilhos, louças, carroças, doces, sapatos, tipografia, oficinas, confecções, etc. A intensificação das funções urbanas transformou Araraquara numa cidade diversificada socialmente. O espaço exclusivo de residência da elite passou a fragmentar-se para ceder lugar à pequena burguesia industrial e comercial e à classe operária nascente. O espaço urbano ampliava-se, homogeneizava-se, na mesma medida em que se tornava cada vez mais heterogêneo. No início do século XX, Araraquara constituía-se num espaço colado a economia cafeeira, mas que já apresentava indícios de uma futura autonomia urbana. A cidade era um espaço de produção e não somente de distribuição e circulação de mercadorias.30 O caráter itinerante do café não implicou somente na criação de cidades, mas na urbanização acelerada de núcleos urbanos já existentes. 30 “(...) os elementos físicos territoriais e as novas relações sociais engendradas no momento histórico da hegemonia econômica do café vinham, contraditoriamente, criando as condições para que a cidade enfrentasse, posteriormente, a desestruturação geral da economia cafeeira”. DEVESCOVIS, R.. op. cit., p. 65. 29 Apesar do crescimento do mercado interno, o processo de urbanização em Araraquara estava mais ligado à expansão da economia exportadora cafeeira. Assim como as cidades portuárias, as urbes do café ornamentavam-se de acordo com modelos europeus, transfigurando seu aspecto colonial. Os grandes centros teriam exercido um fascínio e servido de padrão para o processo de modernização da rede urbana paulista. Desta forma, os chamados “benefícios do progresso” não se concentrariam apenas nas capitais. Quando do processo de remodelação da cidade, Araraquara já possuía um organismo urbano formado. As melhorias urbanas promovidas pelos fazendeiros indicavam sua postura diante da cidade: a transferência da residência para a cidade fazia-se acompanhar por melhores condições de vida. Este comportamento conduziu as reformas urbanas no Brasil, levadas a cabo no início do século XX: “A expressão 'regeneração' era por si só esclarecedora do espírito que presidiu esse movimento de destruição da velha cidade, para complementar a dissolução da velha sociedade imperial, e de montagem da nova estrutura urbana”.31 As empresas fundadas na virada do século, como as companhias de luz elétrica, de telefones, de bondes, hospitais, teatros, bem como obras de infra-estrutura, constituíam-se em obras de melhoramento da paisagem urbana. Como resultado do aburguesamento sistemático da paisagem, criou-se: 31 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 29. 30 “(...) um espaço público central na cidade, completamente remodelado, embelezado, ajardinado e europeizado, que se desejou garantir com exclusividade para o convívio dos 'argentários' ”.32 Os referidos 'argentários', nada mais representam do que a figura dos abastados 'coronéis' que financiavam as melhorias públicas por meio de empréstimos às municipalidades, doações de terrenos para a construção de empreendimentos ligados a diferentes inovações, seja a cadeia, o grupo escolar, o paço municipal, e mesmo casas de diversão como teatros e cinemas. Neste sentido, o espaço público possuía como paradoxo uma finalidade privatizada. Revela-se aí uma incapacidade de se separar a 'coisa pública' dos negócios privados presente na sociedade brasileira. Os melhoramentos urbanos, ao mesmo tempo em que atendiam às necessidades básicas da sociedade, representavam uma forma de investimento. Estas necessidades, decorrentes das novas exigências da vida citadina e os elementos capazes de influenciar em seu desenvolvimento, fazem parte de um esquema mais amplo de modernização urbana. Logo, a implantação de melhorias se atém às condições próprias do contexto analisado anteriormente. 32 Idem, pp. 33-4. 31 Novos Rumos: os bastidores da política no cenário fin- de- siècle Até as últimas décadas do século XIX, as cidades planejadas eram raras na paisagem brasileira. Em meados do dezenove, a feição de Araraquara era quase semelhante a do período colonial. Uma rede urbana carente de meios de comunicação eficientes; falta de cuidados no que tange à saúde pública em relação ao escoamento de matérias pútridas; e assim, sucessivamente, pode-se enumerar muitos outros aspectos. O surto cafeeiro, a expansão do mercado interno, ao que se acham também relacionados a imigração, a expansão da malha ferroviária e a transferência dos 'coronéis' para o meio urbano, são elementos que merecem ser tomados como referências, para explicações em que fique evidenciada a forma específica assumida pelo processo de modernização. Os efeitos da modernização sobre a cidade de Araraquara, bem como sua influência no processo de urbanização da mesma, em especial a implantação de melhoramentos urbanos, encontra-se intimamente relacionada com as disputas eleitorais e os crimes que marcaram o final do século XIX. Os acontecimentos ocorridos em 1897, conhecidos como ‘Linchaquara’, ilustram a violência coronelística correntemente utilizada pelos mandatários locais, para manutenção do poder. Esta prática pode ser verificada tanto em áreas decadentes quanto em expansão, como é o caso da próspera região do chamado 'Oeste paulista'. Os crimes ocorridos marcaram, intensamente, a população e o cenário urbano. Na ocasião, Araraquara encontrava-se dividida em duas facções políticas: uma monarquista, liderada pelo Coronel Joaquim Duarte Pinto Ferraz; e uma republicana, liderada pelo Coronel Antônio Joaquim de Carvalho. Ambas facções brigavam entre si pelo controle do poder local. Rosendo de Souza Brito, membro da facção do Coronel Ferraz, assassinou o 32 Coronel Carvalho, presidente do diretório local do Partido Republicano e chefe político situacionista. No desenrolar dos acontecimentos, Rosendo e seu tio, Manuel de Souza Brito, foram presos e assassinados com requintes de crueldade pelos filhos, genro e ‘capangas’ do Coronel Carvalho. Este acontecimento valeu à Araraquara o apelido de ‘Linchaquara’. O ex-chefe de polícia do Estado e genro do ‘coronel’ assassinado, Theodoro Dias de Carvalho Júnior, foi o principal acusado da invasão da cadeia e do suposto ‘linchamento’. O caso repercutiu por todo o país e a imprensa oposicionista pressionou o governo estadual de Campos Salles a tomar atitudes para satisfazer a opinião pública. Apesar de os acusados serem levados ao tribunal, os compromissos de dependência recíproca entre o poder local e o poder estadual não se romperam. Foram efetuadas manobras e os réus foram, sem exceção, absolvidos: “(...) no desenrolar dos fatos são nítidas as marcas da supremacia dos interesses do partido sobre os da família dominante. A conciliação entre as duas ordens de interesses, o governo estadual promoveu ‘garantindo’ a ação da justiça, de tal modo que o processo judiciário foi até as últimas conseqüências do julgamento, desonerando, assim, o partido de quaisquer ônus no caso. Todavia não descuidou da abertura de vias de acesso para que a facção dominante, ao final, encontrasse as saídas que inocentariam os acusados”. 33 33 TELAROLLI, Rodolpho. “Os sucessos de Araraquara”: estudo em torno de um caso de “coronelismo” em fins do século XIX. São Paulo: (Dissertação de Mestrado), USP, 1975, p. 222. 33 Tais acontecimentos, encontram-se ligados às constantes lutas pelo poder local, nesse período. O ‘crime dos Britos’ demostra como a luta política entre grupos opositores era marcada pela violência, muito utilizada pelos detentores do poder como meio de intimidação. De 1897 até 1905, os Carvalho ausentaram-se dos cargos públicos, mas controlavam o poder por meio de seus correligionários.34 Em Araraquara, o poder local era estabelecido e exercido de forma maciça, por membros do Partido Republicano Paulista, partido que congregava em suas fileiras os representantes da elite cafeeira paulista. O domínio da oligarquia perrepista encontrava-se, intimamente, ligado ao controle do eleitorado e do poder local. As eleições, durante a Primeira República, constituíam-se em mera formalidade, onde as oligarquias situacionistas favoreciam seus candidatos através da utilização de meios coercitivos e fraudulentos. O resultado do pleito era previsível: de forma alguma consumava-se a derrota do candidato do governo. Os ataques da oposição eram veiculados por jornais de vida efêmera, ou seja, periódicos criados às vésperas das eleições e extintos logo após a apuração dos votos. Segundo Telarolli, grande parte dos noticiários visavam os leitores locais.35 O conteúdo e as referências a nomes e especificidades, somente, tinham significado para as pessoas da localidade. Essas publicações possuíam um caráter erudito, com muitas citações em latim e, por vezes, em francês e espanhol. Tais noticiários eram feitos por membros da elite, geralmente bacharéis, e causavam a impressão de conter a verdade absoluta sobre os acontecimentos. Funcionando como condutores da opinião pública, esses periódicos refletiam a defesa de 34 Na documentação consultada, bem como na historiografia sobre o caso, não há indícios da participação de Bento de Abreu nos acontecimentos de 1897. Porém, pode-se deduzir à qual das facções pertencia pelas ligações políticas de sua família: durante o Império o pai de Bento foi deputado provincial pelo Partido Conservador, e o coronel Ferraz era o chefe do Partido Conservador em Araraquara. 35 TELAROLLI, R.. op. cit., p. 198. 34 posições políticas. O jornal ‘O Popular’, de Araraquara, apresentava logo abaixo do título a expressão: ‘Orgam Republicano’. Em conformidade com a legislação vigente, o prefeito deveria ser escolhido, ou seja, eleito indiretamente pelos futuros vereadores. Na praxe política local, o reconhecimento dos poderes dos vereadores eleitos era apenas uma formalidade. Já nas câmaras estaduais e federais, a verificação dos poderes constituía-se no mecanismo de ‘degola’ dos candidatos ‘independentes’. Essa denominação refere-se aos candidatos que se elegiam sem apoio das oligarquias estaduais e aos excluídos pela Comissão Central do PRP na chapa oficial do distrito: “Os Estados eram estimulados pela continuidade oligárquica, onde deputados e senadores eram o reflexo dos governadores, mas estes e as oligarquias que os sustentavam elegiam-se para o senado, o qual passa a ser a sombra e o reflexo ativo de seus agentes”.36 A estrutura do poder local fez com que se propagasse a idéia de inexistência de divergências políticas divulgada pelos jornais da época. Neste caso, os líderes políticos não formavam facções rivais e, consequentemente, não havia disputas entre ‘coronéis’ pelo controle do diretório. Esses organizavam-se em um único bloco para compor a estrutura política da localidade. É o caso da composição do quadro político em Araraquara de 1908 a 1930. Os jornais, principais propagadores da ‘harmonia política’, nada informavam sobre os interesses dos excluídos pela ação do diretório do PRP: 35 “Há a assignalar ainda a cooperação da política para o engrandecimento de Araraquara e bem-estar da população. É a política no bom sentido do vocábulo, a collaborar com os poderes públicos e a promover a união a harmonia da sociedade da qual há muito desappareceram as dissenções”. 37 Com a morte do Coronel Carvalho, houve um rompimento no equilíbrio do grupo situacionista local. A ausência do chefe político gerou uma disputa pela liderança dentro da própria facção situacionista. Após os acontecimentos de 1897 - e por motivos desconhecidos - Theodoro de Carvalho passou a liderar o grupo oposto ao de seus cunhados.38 Até 1907, Theodoro de Carvalho participou ativamente da vida política da cidade, porém longe dos cargos eletivos. No início do século, dois grupos disputavam o poder local, apesar dos interesses comuns que os unia. Ambas facções eram republicanas e formadas por fazendeiros e proprietários da região. O grupo situacionista era comandado por Theodoro de Carvalho, e o grupo dissidente por Carlos Batista Magalhães, Dario de Carvalho, e pelos Pinto Ferraz. Os Sampaio Vidal faziam parte deste último. O pertencimento de Bento ao, até então, grupo oposicionista pode ser constatado quando este aparece ao lado de Dario de Carvalho, por ocasião das eleições de 1907. 36 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1993, p.587. 37 “O Centenário de Araraquara - 1817-1917”. Jornal do Commercio. São Paulo: anno I, nº 293, Quarta-feira, 22 de agosto de 1.9l7, s.p.. 38 TELAROLLI, R. op. cit. p. 270. 36 As dissidências do Partido Republicano, também manifestavam-se no âmbito municipal, nas lutas pelo poder político. De certa forma, estar na oposição era um ponto negativo, pois não se podia contar com autoridade do delegado. A polícia e o judiciário facilitavam a posição de mando dos coronéis. Essa atitude 'revanchista' contra os oposicionistas, fruto da posição de intimidade com o governo estadual, revela acima de tudo um forte temperamento: “Dentro de uma esfera própria de influência, o 'coronel' como que resume em sua pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitrariamentos, que os interessados respeitam. Também, se enfeixam em suas mãos, com ou sem caráter oficial, extensas funções policiais, de que freqüentemente se desencumbe com a sua pura ascendência social, mas que eventualmente pode tornar efetivas com o auxílio de empregados”.39 Dessa forma, o grupo situacionista utilizava-se de ataques pessoais para impor-se politicamente. Com a justiça a seu favor, qualquer manifestação contrária à política situacionista era reprimida. As constantes mudanças na situação política do governo de São Paulo levou à modificação da política municipal em 1907. Percebendo a vantagem da oposição, a facção 39 LEAL, V. N.. op. cit., P. 23. 37 situacionista tentou evitar as eleições. Theodoro de Carvalho e seu grupo sentiram-se em minoria e recusaram-se a comparecer às urnas. A partir de 1908, o comando da política local passou para as mãos do grupo oposicionista liderado por Dario e Plínio de Carvalho, Carlos Batista Magalhães e Bento de Abreu, permanecendo até 1930. Durante todo esse período, a oposição não teve condições para se manifestar, mantendo-se passiva devido às perseguições e violências. Os populares, por sua vez, não participavam dos acontecimentos políticos. Eram manobrados pelos chefes políticos locais, porque dependiam política, econômica e socialmente desses ‘coronéis’. Na época das eleições, os chefes locais recorriam aos seus eleitores e ofereciam em troca de votos alguns favores. A realização de obras públicas, durante as campanhas eleitorais, esteve relacionada à essa troca de ‘favores’ entre a massa de votantes e o chefe político. 38 CAPÍTULO II - BENTO DE ABREU: PERFIL DE UM PERSONAGEM NA FRONTEIRA ENTRE A HISTÓRIA E A BIOGRAFIA A emergência do personagem: biografia versus História “(...) escrever uma biografia é a rigor, uma tarefa impossível. Movido por um desejo onipotente – o da restauração absoluta de uma vida para sempre perdida – o biógrafo lida na verdade, com seu próprio sonho. Toda biografia, para além das ilusões de objetividade e de rigor, traz a visada de um retrato. Todo homem pode ser biografado ao infinito assim como é sempre possível pintar mais retratos de um mesmo modelo. Enquanto houver biógrafos, nenhum morto poderá dormir. A tarefa do biógrafo parte de um limite que se inicia nos riscos da empreitada e que termina na ética. (...) não deixa de ter suas obrigações. Documentos, fotografias, correspondências, depoimentos, diários se fazem peças fundamentais de acesso a um destino a que, desde o início, o biógrafo sabe que chegará. O que chamamos de biografia é, na verdade um processo de busca, de desvelamento, de caça da verdade. Mas o biografado (...) sempre escapa. (...) O interesse pelas biografias é aparentemente um interesse pelo passado. Um desejo de restaurar o que se perdeu. Mas ao ler uma 39 biografia estamos lidando com o presente: com os limites de nosso olhar, com nosso poder de escolha, com nossas melhores ilusões que aquele biografado sem nenhuma cerimônia, vem desmentir.40 Uma abordagem das tendências atuais do conhecimento histórico, revela um redespertar do interesse por um gênero que, por muito tempo, foi considerado como ‘o modelo de história tradicional’: mais sensível à cronologia e aos grandes homens que às estruturas e às massas.41 A recuperação dos sujeitos individuais na história pode ser vista como uma reação aos enfoques excessivamente estrutruralistas, que caracterizam boa parte da produção historiográfica contemporânea. No entanto, é importante salientar a aproximação da história com a antropologia, na qual o resgate das histórias de vida já é uma praxe, e com a literatura, preocupada com as técnicas narrativas de construção dos personagens. A partir do século XIX, a história, buscando sua afirmação como ciência, afastou-se da literatura. Verificou-se então, a ‘proscrição da dimensão literária do discurso histórico’, ou seja, a tendência em negar a narratividade como modo adequado de exposição da escrita histórica. Todavia, nos últimos anos, proclama-se a volta da história-narrativa que se diferencia da história estrutural por ser mais descritiva do que analítica e por direcionar seu enfoque ao homem e não às circunstâncias. Há uma maior preocupação, por parte dos historiadores narrativos, com os aspectos retóricos na apresentação de seus textos. Por narrativa entende-se a organização de materiais numa ordem cronológica e a concentração do conteúdo numa única história coerente, embora possuindo subtramas. Nenhum historiador narrativo deixa a análise totalmente de lado, mas ela não constitui o arcabouço de sustentação em torno do qual constróem sua obra. 40 CASTELLO, José. Sobre Biografias. Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 17/03/1995. Caderno 2. 41 Para Schmidt: “O interesse tanto do jornalismo quanto da história pelo gênero biográfico deve-se à influência da literatura em ambos. Tal opção relaciona-se, e deve ser buscada, tanto no contexto social em que se inserem tais áreas quanto nos seus novos aportes teóricos e metodológicos. A massificação e a perda de referenciais ideológicos e morais que marcam a sociedade contemporânea tem como contrapartida a busca, no passado, de trajetórias individuais que possam servir como inspiração para os atos e condutas vivenciados no presente. Alguns autores são impelidos a investigar minuciosamente a vida privada de personagens destacados, a fim de demolir mitos ou saciar a curiosidade dos leitores. O leitor se sente confortado ao descobrir que grandes personalidades também cometeram deslizes. Esta situação ajuda a explicar o grande sucesso editorial das biografias”. SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias... Historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n°19, pp. 03-21, 1997. 40 Um dos aspectos principais abordados nesta pesquisa é a atuação de Bento de Abreu Sampaio Vidal e sua importância para o processo de modernização urbana empreendido em Araraquara nas primeiras décadas do século XX. Procura-se analisar em que medida este personagem reflete seu tempo e como se dá a construção de um homem público, modelado de acordo com o poder coronelístico. Acredita-se que, por meio do exame de seus diversos papéis representados, seja possível recuperar um pouco do sentido e do perfil de uma realidade histórica tão específica como é o caso de Araraquara do início do século. O trabalho com os elementos biográficos de uma personagem histórica exigiu a realização de um levantamento de obras de caráter teórico-metodológico que tratassem da singularidade das biografias históricas. Levando-se em consideração a diversidade das linhas teóricas, foram selecionadas algumas obras que enfatizam questões metodológicas no trato das biografias.42 A discussão sobre como se fazer uma biografia está intimamente ligada a toda uma problemática metodológica da redução de escalas de análise a qual usualmente vem sendo denominada de ‘Micro-História.43 Autores como Giovanni Levi e Carlo Ginzburg44 estão, cada qual com suas especificidades, problematizando a relação entre estruturas e as ações humanas. Para Levi: “A biografia constitui, com efeito, a passagem privilegiada pela qual os questionamentos e as técnicas próprios à literatura se colocam para a historiografia”.45 Essa problemática tem implicações entre vários estudiosos de tendências historiográficas das mais diversas. Existe todo um debate sobre a História Cultural promovido 42 Nesta perspectiva são significativos os seguintes trabalhos: ORIEUX, Jean. A arte do biógrafo. In: DUBY, G. (org.). História e Nova História. Lisboa: Teorema, 1986; Dossiê Biografia, biografias. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Ed. UNIJUÍ, vol. 17, n.º 33, 1997; Dossiê Indivíduo, biografia, História. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas/ CPDOC, v 19, 1997; STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa. Reflexões sobre uma nova velha história. In: RH - Revista de História. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1991, p. 13-37. 43 LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992, pp. 133-161; GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1990. 44 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 45 LEVI, G.. Idem, p.139. 41 por estudiosos como Robert Darnton e Natalie Davis46 e suas relações com a metodologia proposta pela ‘Micro-História’. Por outro lado, dentro dos Annales, Jacques Le Goff publicou, em 1996, um volumoso livro sobre São Luís. Segundo o referido autor: “a biografia histórica deve se fazer, ao menos em um certo grau, relato, narração de uma vida, ela se articula em torno de certos acontecimentos individuais e coletivos – uma biografia não evénementielle não tem sentido”.47 Já na Inglaterra, desde a década de 1980, muitos estudiosos dedicam-se à temática da biografia dentro da perspectiva da nova história social marxista.48 Isto posto, ao acompanhar a trajetória de Bento de Abreu, procurou-se situá-lo num tempo marcado por profundas e amplas transformações, lardeadas por continuidades e rupturas, ou seja, num momento específico sublinhado pelo apelo à modernidade de onde emergem as ambigüidades tais como arcaico-moderno, civilização-barbárie, rural-urbano e público-privado. A partir da leitura que o personagem, membro da elite, fazia de sua época é possível dimensionar as relações entre elite e Estado, por meio do desvendamento das relações das esferas pública e privada. A princípio, as idéias e os projetos do biografado parecem sobressair-se aos seus contemporâneos. Todavia, figuram-se numa expressão da mentalidade de seu tempo. Nessa perspectiva, este texto analisa a figura de Bento de Abreu e sua importância nas tentativas de transformação do espaço urbano da cidade de Araraquara. O personagem em questão é entendido aqui enquanto uma persona que representa vários papéis: coronel, fazendeiro, empresário, político, benemérito, fundador de cidades e agente modernizador. 46 DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 47 LE GOFF, Jacques. Saint Louis. Paris: Galimard, 1996, p. 26. 48 Especialmente: HILL, Christopher. O eleito de deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; e THOMPSON, Edward P.. William Morris: romantic to revolucionary. New York: Panhteon, 1977. 42 Sua atuação, fundamental para o desenvolvimento da funções urbanas, era mediada pela representação desses papéis. 49 A ele podem ser atribuídas as palavras de Berman: “Com isso criará uma nova síntese histórica entre o poder público e o poder privado, simbolizada na união de Mefistófeles, o pirata e predador privado, que executa a maior parte do trabalho sujo, e Fausto, o administrador público, que concebe e dirige o trabalho como um todo. Finalmente, o modelo faústico criará um novo tipo de autoridade, derivado da capacidade do líder em satisfazer a persistente necessidade de desenvolvimento aventureiro, aberto ao infinito, sempre renovado, do homem moderno”. O desnudamento desta trajetória ilumina questões e contextos mais amplos. O acontecimento, o biografado e seu modo de pensar o passado, não são fins em si mesmos, mas constituem um meio de esclarecer alguma questão mais abrangente que vai muito além da história particular e de seus personagens. Neste sentido, não se trata apenas da biografia de um grande homem. São incorporados os acontecimentos da época em que ele viveu e que se revelaram cruciais para a análise histórica. Há uma preocupação em desvendar os múltiplos fios que ligam o biografado ao seu contexto, ou seja, em pensar a articulação entre a trajetória examinada e o contexto no qual essa se realiza. 49 Por meio de elementos biográficos do personagem, analisar-se-á uma das faces assumidas pela modernização urbana, mormente aquela representada pela intervenção do poder público-privado no espaço urbano. A utilização de subsídios biográficos, vem contribuir para um esclarecimento maior da intersecção existente entre os interesses privados e a prática política. Pretende ressaltar, também, a influência dos ‘coronéis’, enquanto detentores do poder local, sobre a cidade. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 73. 43 As facetas de um homem do café: público e privado no hinterland paulista O que o berço dá só a cova o tira, diz um velho adágio nosso. (Machado de Assis, “Esaú e Jacó”) A história de vida de Bento de Abreu, bem como a de sua família, encontra-se intimamente ligada à história social e política de Araraquara e São Carlos. Em Araraquara, as transformações no espaço urbano, principalmente nas primeiras décadas do século XX, estão ligadas à sua presença nos bastidores políticos da Câmara Municipal.50 Enquanto representante da elite, enxergava no mundo urbano o motor para o sucesso da empresa cafeeira e representava vários papéis para defender seus interesses: chefe político local, agente modernizador, empresário, benemérito, ‘coronel’, ‘doutor’, banqueiro e letrado. O êxito de seus empreendimentos estava condicionado à sua inclusão nesses segmentos. As tentativas de melhorar a paisagem urbana em Araraquara intensificar-se-íam nas primeiras décadas do século XX, durante sua gestão como presidente da Câmara Municipal.51 50 A partir de uma primeira leitura do material documental, referente à atuação do biografado, ficou evidente que sua trajetória transcorrera em íntima relação com o eixo econômico do Estado de São Paulo, considerado pela literatura especializada como o principal centro de acumulação de capitais do Brasil, no período. De fins do XIX até as primeiras décadas do século XX, Bento participou ativamente das transformações que alteraram profundamente os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais da chamada civilização cafeeira. Atuação esta, que o próprio encarregou-se de imortalizar, sob a forma de discursos: “Minha virtude foi apenas ter um grande entusiasmo pelas cousas do interior do paiz, que são as que mais precisam de quem cuide delas. Trouxe a experiência adquirida em São Carlos, cidade de que meu Pae foi um dos fundadores, e em Araraquara, cidade criada por meus parentes e de cuja Câmara Municipal fui presidente durante trinta anos, tendo encontrado 1200 prédios, dos quais demolimos 600, e que hoje tem cerca de 6000”. VIDAL, Bento de Abreu. Discursos. São Paulo: Empresa Gráfica da ‘Revista dos Tribunais’, 1937, v.5, pp. 26-27. 51 As transformações sofridas por Araraquara, principalmente nas primeiras décadas do século XX, encontraram- se ligadas à sua presença no cenário político. Em Araraquara, Bento de Abreu iniciou sua a carreira política ocupando cargos eletivos: vereador, de 1908 a 10 e presidente da Câmara Municipal de 1911 a 16 e de 1923 a 29. Nesta cidade ensaiou sua ascensão política, econômica e social estendendo-a para outras regiões do estado. Um exemplo foi a fundação da cidade de Marília, considerada na época a capital da Alta Paulista. A ampliação de sua influência, nos âmbitos estadual e federal, deveu-se ao seu reconhecido poder econômico e político. 44 A atuação de Bento de Abreu sobre o organismo urbano era mediada pela representação desses múltiplos papéis. A personagem histórica em questão assume o caráter de persona: uma figura onde harmoniza-se uma multiplicidade de características. A idéia de persona é aplicada aqui como uma máscara mutável, integrada numa variedade de cenas e de situações que adquire validade quando representada em conjunto. Esse quadro induz à multiplicidade do ‘eu’, no sentido de vivenciar ou de ‘sentir em comum’. Desta forma, a persona só existe na relação com o outro. De acordo com Michel Maffesoli: “a vida e a existência social adquirem a forma de um teatro, onde cada cena, por menor que seja, possui relevância”.52 A adoção desta proposta analítica, centrada na ambivalência comunitária proposta por Maffesoli, visa fomentar uma discussão sobre a função de agregação das ‘figuras míticas’. 52 MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massas. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1987, p. 15-7. 45 Os tipos sociais exprimem o gênio coletivo num momento determinado, permitindo uma estética comum e atuando como ‘receptáculo’ à expressão do nós. Bento de Abreu possui uma história de vida ligada à múltiplas redes de socialidade. Sua atuação foi fundamental para o desenvolvimento das funções urbanas da cidade. Ao construir teatros, hospitais e instalar melhorias urbanas, obtinha benefícios como isenção de impostos, subvenções e valorização de seus empreendimentos. O progresso material da localidade possibilitava-lhe prestígio político, rendimentos econômicos e controle social sobre os eleitores. O caráter ambíguo desta persona não permite apenas uma análise da sua importância para o processo de modernização de Araraquara, favorece ainda um exame detalhado da influência dos coronéis, detentores do poder local, sobre a cidade e da construção de um homem público lapidado nos moldes do poder coronelístico. Descendente de comerciantes portugueses53, cuja vinda ao Brasil remonta ao século XVI, Bento de Abreu Sampaio Vidal nasceu em Campinas a 17 de agosto de 1872, fruto do segundo casamento de Joaquim José de Abreu Sampaio com Maria das Dores Sampaio Vidal54. 53 O comércio figurou como atividade original dos mais proeminentes cafeicultores de São Paulo, o que os caracteriza como homens mais mobilizados pelo lucro do que o apego ao solo. Seus descendentes acrescentaram a esse conjunto de atividades a corretagem do café, a instalação de bancos, a construção e exploração de estradas de ferro, além de manter, até o século XX, importantes cargos governamentais. Um exemplo solar dessa postura é a figura de Antônio Prado, imigrante português e fundador de uma dinastia de grandes proprietários e fazendas de café, homens de negócios e políticos, que inicialmente desenvolveu atividades em rotas comerciais. 54 FRANÇA, Antônio M.. Álbum de Araraquara.. São Paulo: Ed. João Silveira, 1915, pp. 74. 46 Estudou no tradicional Colégio “Culto à Ciência”55 campineiro, formando-se no curso de humanidades56. Era membro de uma extensa família de comerciantes, banqueiros e cafeicultores, tradicionalmente ligada à política estadual e nacional.57 Durante o Império, seu pai ocupou os cargos de juiz de paz, deputado provincial de 1876 a 1878, e chefe do Partido Conservador. Como deputado provincial, dedicou-se à construção da ligação férrea entre Rio Claro e Araraquara.58 Nessa ocasião, a população da cidade era constituída, na sua maioria, por parentes seus, tendo-se em vista a escassez populacional da localidade. A família Sampaio tinha ligações de parentesco com as famílias Pinto de Arruda e Arruda Botelho. Joaquim José casou-se, em 1854, com D. Eulália Carolina Meira, filha do Tenente Coronel Carlos José Botelho e iniciou sua lavoura cafeeira ao comprar a Fazenda São Joaquim na Sesmaria do Pinhal. Em 1856, ergueu com a participação de seus parentes e de Jesuíno de Arruda a primeira capela, onde constituir-se-ía a atual cidade de São Carlos. Foi um dos fundadores da cidade de São Carlos, juntamente com o Conde do Pinhal59, que era seu 55 O curso de humanidades era equivalente ao segundo grau, apesar da sua denominação de bacharelado no período. Nesta ocasião, Bento conheceu alguns futuros amigos, membros de importantes famílias do quadro social da elite paulista. Estabeleceu, além disso, os primeiros contatos com a propaganda republicana que passava a dominar as discussões, trazendo à tona uma nova visão sobre a lavoura, os valores, e os rumos do país. A estreita ligação que tinha com o pai parece ser um dos motivos pelo qual não continuou os estudos. Voltou para a casa paterna e assumiu inicialmente a função de diretor de uma casa bancária pertencente à família. Escassos dados foram obtidos acerca de sua infância e adolescência. 56 MELO, Luís Correia. Dicionário de Autores Paulistas. São Paulo: Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, 1954, pp.659. 57 BELOCH, Israel & ABREU, Alzira A.. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (1930-1983). Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária/Finep/Fundação Getúlio Vargas - CPCOC, 1984, v.4, pp. 3548-49. Vide quadro em Anexos. 58 Em 1850, fixou residência na cidade de Araraquara onde dedicou-se ao comércio tendo por sócios seus irmãos, grandes comerciantes em Campinas. 59 Antônio Carlos de Arruda Botelho, o Conde do Pinhal, foi presidente da Câmara Municipal de Araraquara em 1857, tendo participado da abertura de fazendas neste município. Nessa época coordenou a criação do distrito de paz de São Carlos, onde ocupou vários cargos de influência política pelo Partido Liberal. Chefe do Partido Liberal foi deputado provincial, deputado geral e candidato à lista tríplice a uma vaga no senado imperial. Seu prestígio político lhe valeu os títulos de Barão, Visconde e Conde do Pinhal concedidos pelo Imperador Pedro II. O herdeiro da Sesmaria do Pinhal, além de empresário do café, exerceu diversas atividades econômicas. Dentre essas atividades, destaca-se aquela que lhe proporcionou elevado prestígio político e econômico: a construção da estrada de ferro ligando Rio Claro, Araraquara e Jaú. A Companhia Rio Claro, criada em 1880, foi a primeira ferrovia construída sem subvenção do governo, às expensas de cafeicultores da região. Como representante da oligarquia local, o Conde do Pinhal determinou um traçado da via férrea de acordo com os interesses de seus amigos e parentes fazendeiros. Informações específicas sobre São Carlos consultar: TRUZZI, Oswaldo. Café e 47 cunhado. Após a criação da vila de São Carlos, desligou-se de Araraquara e passou a dedicar- se aos melhoramentos da nascente localidade, tendo fundado, em 1891, o Banco União de São Carlos60. Os Botelho constituíam-se num dos clãs mais influentes no grupo das famílias integrantes da elite cafeeira paulista. Grande parte dessas famílias eram oriundas de cidades mais antigas, onde possuíam propriedades agrícolas. É o caso dos Botelho e os Camargo Penteado, de Piracicaba e dos Abreu Sampaio, os Salles e os Camargo, de Campinas: “Ao cabo de duas ou três gerações, estas famílias haviam acumulado interesses ao longo de várias regiões do estado paulista (...)”. 61 Bento de Abreu foi casado com Maria Isabel Botelho de Abreu Sampaio Vidal, filha de Bento Carlos de Arruda Botelho e de Maria Isabel de Oliveira Botelho, e neta dos Barões de Dourado e bisneta dos Viscondes de Rio Claro.62 Apesar do laço de sangue que unia as famílias da elite, predominava, por outro lado, a mentalidade na qual o fator econômico era denominador comum nas relações: “Casamentos, camaradagens entre colegas de escola, relações de negócios estreitavam as relações entre as famílias. Podiam surgir rivalidades políticas, ásperas às vezes, porém concerniam mais às eleições deste ou daquele que as divergências doutrinárias. Tinham todos os mesmos interesses profundos e de acordo com as linhas a seguir”.63 Indústria: São Carlos (1.850-1950). São Carlos; Monografia nº1; Arquivo de História Contemporânea; UFSCAR; 1.986, p. 108-114. 60 FRANÇA, Antônio M.. op. cit., p. 76. 61 TRUZZI, Oswaldo. op. cit. , p.114. 62 VIDAL, Bento de Abreu Sampaio. op. cit., v. 5, p. 19. 63 MONBEIG, Pierre. op. cit., p. 141. 48 A herança e o casamento no interior da própria ‘parentela’ possibilitavam a preservação das fortunas e do mandonismo local. Todavia, o casamento poderia servir como meio de ascensão para os elementos fora das parentelas. É o caso do surgimento de coronéis independentes que chegavam através de outras vias de ascensão, como, por exemplo, os profissionais liberais, sobretudos dos bacharéis: “Além de instrumento de defesa de posições sociais para os grupos existentes, era o casamento importante meio de integração e de ascensão social para os ambiciosos que não pertencendo a parentela importante, ou sendo um forasteiro, pretendesse conquistar uma posição de destaque”.64 Essa situação parece originar-se do processo de urbanização e de burocratização empreendido desde a segunda metade do século XIX, quando torna-se necessário a conclusão de um curso superior para a ocupação de determinados cargos públicos. O parentesco entre as famílias pertencentes à elite paulista permitia que seus elementos ocupassem postos políticos. A ocupação desses postos pela elite possibilitava a manutenção e a ampliação do seu poder econômico e, por extensão, sua posição de mando. 65 Tais desmandos demonstram a expressiva confusão entre a coisa pública e os interesses privados, durante a chamada República Velha. O poder privado gerado nos tempos coloniais, consolidou-se durante o Império e ampliou-se com o regime republicano: 64 QUEIROZ, Maria Isaura P.. ‘O coronelismo numa interpretação sociológica’. in: História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, v. 1. São Paulo: Ed. Difel, 1982, p. 173. 65 Idem, p. 172. 49 “O poder privado ... era desmesurado na Colônia, continuou a sê-lo durante o Império e a República. (...) Embora não se possa afirmar que todo fazendeiro ou todo grande comerciante era um coronel, também é impossível desvincular o coronelismo do mandonismo local. (...) a população rural continuou submetida ao poder individual”.66 Com a construção do Teatro Municipal, por exemplo, Bento obteve a isenção de impostos e subvenções. Neste momento, ocupava o cargo de presidente da Câmara e, simultaneamente, era o presidente da Sociedade Anônima encarregada da construção do referido estabelecimento.67 Esta situação demonstra a expressiva confusão entre a coisa pública e os interesses privados, durante a Primeira República. Se o personagem possui tais características isso deve-se ao próprio quadro político do período. No Brasil, o Estado assume essas características contraditórias porque a tomada do poder ocorre com a ausência de um processo revolucionário. Uma classe proprietária incorpora feições burguesas, constitui uma esfera púbica e transforma o Estado num instrumento para servir aos seus interesses. Era pouco definido os limites entre as coisas públicas e privadas, ou seja, um público de proprietários ascendia em uma esfera pública exigindo desta a proteção para o acúmulo de riqueza68. Paralelamente à consolidação de uma elite do café, configurou-se uma esfera pública burguesa, constituída por um ‘público de 66 JANOTTI, Maria de Lourdes. O coronelismo: uma política de compromissos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992, p. 39. 67Grande parte das despesas com o Theatro Municipal ficava por conta do próprio Bento de Abreu ou da Câmara Municipal, da qual ocupava o cargo de presidente. 68 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 6ª ed., 1987. 50 pessoas privadas’ politicamente ativas.69 Durante as etapas deste processo, a elite cafeeira apropriou-se da esfera pública transformando o Estado por meio da sobreposição do interesse econômico ao político. Os melhoramentos freqüentemente resultavam da doação de proprietários que, por sua vez, faziam uso das verbas públicas em função dos seus interesses privados. O chefe político não representava o povo, apenas aparecia como seu benfeitor. A população continuou a submeter-se ao poder individual dos mandatários locais.70 A modernidade se expressa na transformação do espaço urbano, tendo como base a interpenetração das esferas pública e privada. A concepção moderna de espaço urbano configura-se numa ambigüidade simbolizada pela união de ‘Mefistófeles’, o predador privado e seu caráter destrutivo e ‘Fausto’, o administrador público, realizador de grandes empreendimentos.71 A defesa dos interesses da elite estava ligada à sua presença, direta ou indireta, em cargos públicos.72 Dessa forma, a manutenção do poder econômico estava conciliada ao poder político. Vários membros da família Abreu Sampaio ocupavam cargos executivo e legislativo em nível local, estadual e federal. Raphael de Abreu Sampaio Vidal foi deputado estadual, secretário da justiça e secretário da agricultura; Adolpho Botelho de Abreu Sampaio foi deputado estadual e diretor da Repartição de Estatística do Estado. Bento fez parte da rede da elite de São Paulo.73 Foi deputado estadual, em 1924, pelo oitavo distrito e, em 1925, pelo nono distrito; deputado estadual nas Constituintes de 1935 e HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. 70 JANOTTI, M. L. M.. Idem. 71 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 73. 72 A elite cafeeira destacou-se no comando político do país. Sua análise contribui para uma interpretação de fenômenos que abarcam a realidade brasileira, tanto em seu passado, quanto na longa duração. 73 No mapa da Rede da Elite de São Paulo, em “Anexos”, encontra-se as ligações de parentesco de Bento de Abreu com Raphael Sampaio Vidal, que possuía relações financeiras com Rodrigues Alves, e por ser diretor da mesma empresa com J. M. Martins Siqueira. 51 1947; ocupou a presidência das Comissões de Agricultura e de Finanças, na Assembléia; foi membro consultivo do Estado de São Paulo, em 1933; secretário da Agricultura, em 1937. Foi presidente Honorário e fundador da Sociedade Rural do Triângulo Mineiro e presidente honorário e sócio-fundador da Sociedade Rural Brasileira74. O interesse e a exclusividade na ocupação de cargos públicos estava vinculada ao