CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 85 85 Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 11.n.1, julho de 2013 Publicação SEMESTRAL ISSN: 1679-3404 A CONSTRUÇÃO DO ATOR MULHER CONTEMPORÂNEA EM PUBLICIDADES DE VOCÊ S/A THE CONSTRUCTION OF THE ACTOR CONTEMPORARY WOMAN IN VOCÊ S/A ADVERTISEMENTS Raíssa Medici de Oliveira UNESP- Universidade Estadual Paulista (FCLAr) 1 Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento UNESP- Universidade Estadual Paulista (FCLAr) 2 RESUMO: Neste artigo, nosso objetivo é analisar, sob a perspectiva da teoria semiótica greimasiana, o modo como o ator mulher contemporânea é construído em três publicidades veiculadas no periódico VOCÊ S/A em exemplares dos anos 2001, 2004 e 2011. Embora tenhamos optado por organizar as análises nessa ordem, a questão temporal não é o cerne do nosso trabalho. Nosso enfoque, neste trabalho, recairá sobre os papéis temáticos de esposa, mãe, dona-de-casa, profissional e “mulher”, desempenhados por esse ator que, entrando em conjunção com os objetos anunciados, pode ser esposa/mãe realizada e profissional bem-sucedida ou, ainda, pode ser “mais mulher”. PALAVRAS-CHAVE: mulher; revista VOCÊ S/A; publicidade; semiótica greimasiana; ator. ABSTRACT: In this article, we aim at analysing, from the perspective of greimasian semiotic theory, how the actor contemporary woman is built in three advertisements published in the magazine VOCÊ S/A in editions of years 2001, 2004 and 2011. Although we have chosen to organize the analysis in that order, the issue of time is not the focus of our work. Our focus in this work will be on the thematic roles of wife, mother, housewife, professional and “woman”, played by the actor who, entering in conjunction with the advertised objects, can be a fulfilled wife/mother and a successful professional or, even, can be “more woman”. KEYWORDS: woman; VOCÊ S/A magazine; advertisement; greimassian semiotics; actor. 1 Graduada em Letras pela UNIFRAN - Universidade de Franca/SP, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela mesma instituição. Aluna do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu - Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa, da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP, Araraquara/SP. Bolsista FAPESP. 2 Docente do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP, Araraquara/SP. Bolsa produtividade CNPq. CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 86 86 INTRODUÇÃO É grande a quantidade de periódicos impressos destinados exclusivamente ao público feminino. Em geral, atendem a classes sociais específicas e tratam de temas tidos como próprios às mulheres – beleza, moda, casa, comportamento –, o que corrobora a sua grande quantidade e variedade no mercado midiático. Interessados, entretanto, em compreender como o simulacro “mulher contemporânea” é construído em um periódico voltado a temas do âmbito profissional e destinado a um público-alvo misto, tomamos conhecimento de VOCÊ S/A, uma revista que surgiu em abril de 1998 com a proposta de ajudar os executivos brasileiros a cuidar da sua empregabilidade, divulgando, mensalmente, os bastidores das empresas e as novidades do mercado de trabalho e apresentando informações sobre planejamento e desenvolvimento de carreira, finanças pessoais e consumo. Para este artigo, selecionamos três publicidades veiculadas, respectivamente, nas edições 30 (agosto de 2001), 67 (janeiro de 2004) e 154 (abril de 2011) da revista e traçamos por objetivo analisá-las a fim de compreender como é construído o ator mulher contemporânea nesses textos publicitários. Para tanto, contamos com o referencial teórico da semiótica greimasiana, focalizando o nível discursivo do modelo do percurso gerativo do sentido, especificamente os conceitos de ator, tema, figura e sujeito da enunciação. Acreditamos que, por meio da reconstrução dessas narrativas, em que o ator mulher contemporânea realiza programas em que se configura como um sujeito dotado de um querer/dever e/ou saber/poder-fazer, abarcando os papéis temáticos de mãe, esposa, dona de casa, profissional e “mulher”, depreenderemos o simulacro “mulher contemporânea” construído em um periódico que busca a adesão do enunciatário, simulacro do leitor, por meio de narrativas inspiradoras e motivacionais. 1. Valorização publicitária e circulação de objetos-valor Por isso o debate dos publicitários é, à sua maneira, o mesmo dos semioticistas. Quer os publicitários falem da relação entre a publicidade e o produto, ou os teóricos da linguagem falem da relação entre o discurso e o mundo, a questão é ainda a mesma: a função da linguagem – seja ela verbal ou não verbal. Os publicitários se perguntam se o valor do produto, para o consumidor, preexiste à publicidade ou se é a publicidade que o define; os semioticistas, se a linguagem é a representação de um sentido já presente ou se é a sua construção. Quer vistas por meio da prática ou da teoria, a publicidade e a semiótica se debruçam, de fato, sobre a mesma problemática dupla: a função da linguagem e a “origem” do sentido. 3 Jean-Marie Floch Em Un problème de sémiotique narrative: les objets de valeur (Du Sens II, 1983), Algirdas Julien Greimas propõe uma discussão sobre o estatuto semiótico e narrativo do valor. O autor ressalta, logo de início, que é necessário não confundir as noções de objeto e de valor, e ilustra a questão com o exemplo do automóvel. Segundo ele, quando alguém se 3 Tradução nossa. CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 87 87 coloca como comprador de um automóvel na nossa sociedade contemporânea, talvez não seja o carro como objeto em si que se queira adquirir, mas, primeiramente, um meio de locomoção rápida ou, mais frequentemente, um pouco de prestígio social ou um sentimento íntimo de poder. Se o que é visado, quando da compra do automóvel, é sua capacidade de locomoção rápida, tem-se uma valorização de ordem prática. Se, por outro lado, visa-se ao prestígio, ao sentimento de poder, de evasão, etc. que aquele automóvel pode oferecer, tem-se uma valorização de ordem mítica. Nesse caso, conforme observa Greimas, “[...] o objeto visado é somente um pretexto, um lugar de investimento de valores, um alhures que mediatiza a relação do sujeito consigo mesmo” (1983, p. 21). 4 Não há como definir de antemão, portanto, quais são os valores investidos em cada um dos objetos que nos circundam, uma vez que é em situação que esses valores são definidos. Do mesmo modo, só é possível conhecer os valores que manifestam e determinam os objetos configurados em uma narrativa, mediante o estudo da cena enunciativa na qual sujeitos e objetos são postos em relação. Em seu Dicionário de semiótica (s.d.), Greimas e Courtés explicam que os valores podem ser organizados em duas classes: valores descritivos – manifestos, por exemplo, nas narrativas em que figuram objetos consumíveis ou entesouráveis (e nas quais o sujeito pretende “ter”), e/ou nas narrativas em que os objetos são estados de alma (e então o sujeito quer “ser” algo); ou valores modais, definidos a partir das categorias modais do querer, dever, saber, poder-ser/fazer. Conforme pontua Barros (2002), são os valores investidos nos objetos que definem os programas narrativos em questão: os valores modais definem programas de transformação de competência e de alteração de estados passionais; os valores descritivos, programas de performance; hierarquizados, esses programas formam um programa complexo. Os autores do Dicionário de semiótica esclarecem que, ao reconhecer programas narrativos complexos, a semiótica narrativa passou a distinguir valores de uso e valores de base, que se inscrevem em programas narrativos de uso e programas narrativos de base: “[...] a banana que o macaco tenta alcançar é um valor de base, ao passo que o pedaço de pau que ele irá procurar para executar esse programa será apenas um valor de uso.” (s.d., p. 483). Ao trabalhar os valores de consumo em jogo nos textos do que poderíamos chamar de imprensa de decoração, Jean-Marie Floch (1995) afirma que, ao projetar a categoria valores de uso vs valores de base sobre o quadrado semiótico, reconhecemos quatro grandes tipos de valorização: prática, lúdica, utópica e crítica. Segundo o autor (1995, p. 149), a valorização prática corresponde aos valores de uso, concebidos como contrários aos valores de base. Poderíamos defini-los também como “valores utilitários”. A valorização prática se opõe, no eixo dos contrários, à valorização utópica. O termo utópico, conforme esclarece o autor, é preferível a “mítico”, uma vez que os valores de base não permitem a conciliação de valores contrários como se dá em um sentido levistraussiano. Dessa forma, enquanto a valorização prática se define em termos de “valores utilitários”, a valorização utópica se define em termos de “valores existenciais”. À negação da valorização prática corresponde, no eixo dos subcontrários, a valorização lúdica, que, segundo o autor, é construída por meio da exaltação de valores de gratuidade, valores também definidos como valores estéticos. Por sua vez, à negação da valorização utópica corresponde, no eixo dos subcontrários, a valorização crítica, que pode ser compreendida por meio da relação custo/benefício ou qualidade/preço. É preciso destacar, como declara o próprio autor, que essas valorizações são abordadas de maneira paradigmática, no nível da axiologia, ou seja, como sistema de virtualidades. O reconhecimento de tal axiologia, segundo Floch, apresenta, evidentemente, algum interesse para os profissionais de marketing. Para nós, semioticistas, continua o autor, 4 Tradução nossa. CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 88 88 importa o estudo da atualização desses valores, a ideologia que eles constroem. Dessa forma, Greimas e Courtés afirmam que os valores que participam de uma axiologia pertencem ao nível das estruturas semióticas profundas; organizados em uma categoria semântica, representada com o auxílio do quadrado semiótico, esses valores virtuais só são atualizados quando investidos nos actantes-objetos dos enunciados de estado. Nessa instância, conforme comentam os autores, “[...] os valores permanecem atuais enquanto se acham disjuntos dos sujeitos que são, por enquanto, apenas sujeitos segundo o querer: a conjunção com o objeto- valor, efetuada em benefício do sujeito, transforma o valor atual em valor realizado.” (s.d., p. 483). É dessa forma que a narratividade pode ser definida, na sua forma simplificada ao extremo, como um encadeamento sintagmático de virtualizações e realizações ou, segundo Barros (2002, p. 28), “[...] como transformação de estados, de situações, operada pelo fazer transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em busca de certos valores investidos nos objetos” e, ainda, “[...] como sucessão de estabelecimentos e rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor.”. 2. Semiótica discursiva: procedimentos de discursivização A vocação e ofício do semioticista é de trabalhar sobre o como do sentido, não sobre o porquê. Sua abordagem é, como se diz, gerativa e não genética: não são as circunstâncias que presidiram à gênese da obra que constituem o objeto legítimo de sua pesquisa, são – outra vez – a economia geral da obra, sua organização interna, o jogo de relações que são estabelecidas entre suas diferentes partes e que, como tais, geram uma possível significação para o leitor. 5 Jean-Marie Floch A semiótica reconhece, por meio do modelo do percurso gerativo do sentido, dois níveis de profundidade e dois tipos de estruturas regendo a organização dos discursos anteriormente à sua manifestação: as estruturas semionarrativas e as estruturas discursivas. É a instância da enunciação que realiza a conversão daquelas estruturas em estruturas discursivas, por meio de um processo denominado discursivização. Segundo o Dicionário de semiótica, “[...] os procedimentos de discursivização – chamados a se constituírem numa sintaxe discursiva – têm em comum poderem ser definidos como a utilização das operações de debreagem ou de embreagem e ligarem-se assim à instância da enunciação.” (s.d., p. 125). Desse modo, actorialização, temporalização e espacialização são os subcomponentes do procedimento de discursivização, “[...] que têm por efeito produzirem um dispositivo de atores e um quadro, ao mesmo tempo, temporal e espacial, onde se inscreverão os programas narrativos provenientes das estruturas narrativas.” (s.d., p. 125). A enunciação se define, nesse sentido, como a instância de instauração do sujeito, ou seja, a instância de instauração de pessoas, espaços e tempos. O mecanismo básico de instauração de pessoas, espaços e tempos é denominado debreagem. A debreagem, operação 5 Tradução nossa. CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 89 89 por meio da qual a enunciação projeta para fora da sua instância os actantes do discurso- enunciado e suas coordenadas espaçotemporais, divide-se em dois tipos: a enunciativa e a enunciva. A debreagem enunciativa se define a partir da projeção, no enunciado, dos actantes da enunciação (eu/tu), do espaço da enunciação (aqui) e do tempo da enunciação (agora); a debreagem enunciva, a partir da projeção, no enunciado, dos actantes do enunciado (ele), do espaço do enunciado (lá) e do tempo do enunciado (então). Dessas diferentes debreagens, surgem, conforme explica Barros (2002, p. 74), “[...] a enunciação-enunciada e o enunciado propriamente dito, os dois grandes tipos de unidades discursivas”. Na enunciação-enunciada, têm-se o narrador – sujeito que diz eu, e o narratário – o tu instalado pelo primeiro, simulacros discursivos do enunciador e do enunciatário implícitos. Segundo a autora, “[...] os discursos em primeira pessoa servem de exemplo de enunciação-enunciada e são, em geral, considerados ‘subjetivos’. Já o enunciado propriamente dito caracteriza os discursos em terceira pessoa, julgados ‘objetivos’.” (2002, p. 75). Temos que considerar ainda um terceiro tipo, a debreagem interna. Segundo Fiorin (2010, p. 45), “[...] trata-se do fato de que um actante já debreado, seja ele da enunciação ou do enunciado, se torna instância enunciativa, que opera, portanto, uma segunda debreagem, que pode ser enunciativa ou enunciva.” O discurso direto caracteriza a debreagem interna, criando, geralmente, o efeito de sentido de realidade. Por último, é preciso compreender a embreagem. Procedimento oposto à debreagem, a embreagem constitui, de acordo com Barros, uma “[...] operação de retorno de formas já debreadas à enunciação e cria a ilusão de identificação com a instância da enunciação. [...] Nega-se o enunciado e procura-se produzir o efeito de suspensão da oposição entre os atores, o espaço e o tempo do enunciado e da enunciação.” (2002, p. 77). Obtido basicamente por meio dos procedimentos acima descritos, conforme pontuam os autores do Dicionário de semiótica, o ator “[...] é uma unidade lexical, de tipo nominal, que, inscrita no discurso, pode receber, no momento de sua manifestação, investimentos de sintaxe narrativa de superfície e de semântica discursiva.” (s.d., p. 34). Partindo da definição dada por Greimas e Courtés (s.d., p. 34), podemos compreender o conceito de ator como resultante da conjunção de pelo menos um papel actancial com no mínimo um papel temático. Os papéis actanciais, ou estados narrativos, são definidos ao mesmo tempo em função da posição do actante no interior do percurso narrativo (papel de sujeito competente, papel de sujeito realizador da ação etc.) e do investimento modal que ele assume (papel de sujeito do querer-fazer, papel de sujeito do saber-fazer e/ou papel do sujeito do poder-fazer). Já os papéis temáticos são assumidos pelo actante narrativo no interior de um tema ou de um percurso temático, momento em que recebe o investimento semântico mínimo e necessário para se tornar ator. Greimas e Courtés (s.d., p. 454) afirmam que, em semântica discursiva, a tematização é um procedimento que, tomando valores do nível fundamental já atualizados, ou seja, em junção com os sujeitos, “[...] os dissemina, de maneira mais ou menos concentrada sob a forma de temas, pelos programas e percursos narrativos, abrindo assim caminho à sua eventual figurativização”. Tomando o valor “liberdade”, os autores explicam que, mediante os procedimentos de espacialização e de temporalização da sintaxe discursiva, o mesmo pode ser tematizado como “evasão espacial” ou “evasão temporal” e, numa etapa posterior, figurativizado, seja como “embarque para mares distantes” seja como “remissão ao passado, à infância.”. Assim, conforme destaca Barros (2002, p. 118), “[...] a criação de efeitos de sentido de realidade é um trabalho tanto da sintaxe discursiva [...] quanto da semântica discursiva [...]”. Ainda segundo a autora (2002, p. 118), CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 90 90 [...] o enunciador utiliza as figuras do discurso para fazer-crer, ou seja, para fazer o enunciatário reconhecer “imagens do mundo” e, a partir daí, a verdade do discurso. O enunciatário, por sua vez, crê-verdadeiro (ou falso ou mentiroso ou secreto), graças ao reconhecimento de figuras do mundo natural. O fazer-crer e o crer pressupõem [...] um contrato fiduciário de veridicção, que regulamenta o reconhecimento das figuras. 3. Do “poder-fazer” ao “poder-ser”: manutenção e transformação de papéis Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, /Muda-se o ser, muda-se a confiança, /Todo o Mundo é composto de mudança, /Tomando sempre novas qualidades. [...] E, afora este mudar-se cada dia, /Outra mudança faz de mor espanto: /Que não se muda mais como soía. Luís Vaz de Camões O primeiro anúncio, veiculado na Edição 30, em agosto de 2001, ocupa duas páginas da revista. Da totalidade desse anúncio, o que primeiro capta nosso olhar enquanto leitores é o enunciado visual disposto no centro superior da página da direita. A imagem nos surpreende uma vez que nos coloca diante de cereais matinais com pedaços de frutas frescas contidos em uma embalagem nada convencional: uma lata de alumínio arredondada aberta possivelmente com a ajuda de um abridor de latas ou de um objeto cortante, o que atualiza o produto como um enlatado. A disposição do “enlatado” sobre uma superfície de fórmica azul, revelando o produto nele contido ainda intacto, e a presença de uma colher, colocada no interior da embalagem, instauram o sujeito da enunciação. Questionamo-nos, então, qual a narrativa em questão, para quem esse texto-enunciado se dirige e quais os efeitos de sentidos criados pelo enunciador ao simular um produto enlatado na representação de um alimento tradicionalmente preparado/consumido em tigela de louça ou plástico, adicionado ao leite, ao iogurte ou a outros derivados. Antes de responder a essas e a outras perguntas que são pertinentes, passemos à análise dos enunciados verbais contidos nas duas páginas. Ao abordar o sujeito da enunciação enquanto instância que abarca enunciador e enunciatário, lembremo-nos de que, implícitos, esses actantes estão configurados nas figuras do narrador e do narratário. Dessa forma, posicionado no canto superior direito, acima do texto visual já descrito, um enunciado em debreagem enunciativa instaura um narrador (eu) que se dirige ao seu narratário (tu): “Você acredita na história do café da manhã ser a principal refeição do dia? Agora seus filhos, também.”. Depreendemos desse enunciado, por meio do lexema filhos, um enunciador que se dirige a um enunciatário que é pai ou mãe. Recuperando, entretanto, por meio do nosso imaginário cultural, a figura da mãe como sujeito marcadamente preocupado com a alimentação, a saúde e o bem-estar dos filhos, constatamos que, nesse texto, o enunciador dirige-se ao enunciatário mãe. Qual é, portanto, a mensagem enviada ao enunciatário? Sobre o que quer o enunciador convencê-lo, ou melhor, persuadi-lo? Observemos que esse mesmo enunciado, uma vez debreado, passa por uma embreagem temporal, ou seja, o enunciador procede à neutralização dos termos da categoria do tempo, produzindo o efeito de sentido de presentificação temporal. É o que se constata ao verificar a segunda parte do enunciado: ao empregar o advérbio de tempo “agora” e proceder a uma elipse verbal – “Agora seus filhos, também (acreditam)” – cria-se o efeito de sentido de que aquele produto configurado no texto visual é um produto “mágico” capaz de CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 91 91 instantaneamente fazer com que os filhos acreditem ser o café da manhã a principal refeição do dia. Desse modo, o produto é anunciado não como um possível aliado na árdua tarefa de convencer os filhos a tomarem o café da manhã – efeito de sentido que seria produzido caso o enunciado fosse construído por meio de verbos e locuções que expressassem tempo futuro: “A partir de agora, seus filhos também acreditarão” –, mas como um aliado tão certo na transformação do estado de descrença ao estado de crença dos sujeitos filhos que o enunciador apresenta uma transformação já operada: “Você acredita [...]?”, “Agora seus filhos, também.” Continuando o processo de segmentação das unidades do plano da manifestação, afirmamos que a harmonia de cores, nessa página, ajuda a construir a cena enunciativa: o fundo azul esfumaçado da página; a superfície em fórmica azul sobre a qual se encontra o “enlatado”; e o cabo da colher colocada nessa embalagem de alumínio, também em tonalidade azul; além da própria embalagem azul-acinzentada do “enlatado”, atualizam o produto anunciado, uma vez que o simulacro da sua verdadeira embalagem, revelada na margem- inferior direita da página, constitui-se basicamente dessa mesma cor. Visualizando essa embalagem revelada na margem inferior direita da página, compreendemos que o produto anunciado é Nestlé Moça Flakes, flocos de milho com leite condensado Moça. O azul, por meio de um procedimento metonímico, recupera, portanto, o produto anunciado e introduz o enunciatário em uma narrativa cotidiana, na qual o produto Nestlé Moça Flakes tem um papel importante, conforme se depreende do seguinte enunciado verbal, posicionado na margem inferior esquerda, ao lado da imagem do produto: Com o novo Nestlé Moça Flakes, você sabe como o café da manhã vai ser bom. Moça Flakes é o único cereal com o verdadeiro Leite Moça Nestlé. É delicioso, nutritivo e muito saudável: tem as vitaminas e os minerais de que CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 92 92 sua família precisa para começar bem o dia. E, se eles estão bem, você também. Moça Flakes. É quem te acorda como ninguém. O enunciatário mãe se configura, nessa narrativa, como actante do enunciado: por meio do produto Nestlé Moça Flakes, objeto-modal que lhe concede o poder-fazer, o actante está apto a entrar em conjunção com seu objeto-valor “nutrir e garantir o bem-estar da família”. É o que verificamos na página da esquerda, ao visualizarmos, na margem superior, o seguinte enunciado: “Vida prática E SAUDÁVEL”. O que chama nossa atenção, de imediato, é a disposição e as cores empregadas nesse enunciado: para o enunciado “Vida prática”, utilizou-se fonte tipográfica Franklin Gothic Demi – fonte bastante empregada em propagandas e em manchetes de jornais, ou para o destaque de títulos em diversos textos de imprensa –, caixa baixa e cor azul marinho com um sombreado na cor azul turquesa, além de posicionamento superior esquerdo levemente inclinado. Para o enunciado “E SAUDÁVEL”, utilizou-se fonte TW Cen MT Condensed, caixa alta, cor azul turquesa – a mesma empregada no sombreado do primeiro enunciado – e posicionamento inferior direito também levemente inclinado. As cores empregadas são, mais uma vez, tonalidades de azul, o que recupera a própria embalagem do produto, apresentada na página da direita. Já as fontes empregadas e a disposição do enunciado em linhas diferentes revelam uma leitura particular. A caixa alta, empregada na segunda parte do enunciado, dá destaque para o valor /saúde/: observa-se que esse enunciado é introduzido por uma partícula aditiva e em uma linha diferente. Em termos visuais, “vida prática” está literalmente em primeiro lugar – a frase ocupa o topo da página –, mas o valor /saúde/ aparece logo atrás: a partícula aditiva “e”, introduzindo o elemento “saudável” na frase “E SAUDÁVEL”, conjuntamente ao emprego da caixa alta, funciona como um alerta ao enunciatário, ressaltando-se a ideia de que se oferece uma Vida não só prática, mas também saudável. Essa ideia, contida no enunciado verbal, está brilhantemente colocada nos enunciados verbo-visuais da primeira página descrita por nós – ao representar, em primeiro plano, o produto Nestlé Moça Flakes como um enlatado, o enunciador afirma o valor /praticidade/, sem negar o valor /saúde/, marcadamente inserido nos lexemas que descrevem o produto: “É delicioso, nutritivo e muito saudável: tem as vitaminas e os minerais de que sua família precisa para começar bem o dia.”. É esse o sentido que o enunciador vai construindo ao longo de todo o texto verbal da página da esquerda: “Facilite sua rotina com produtos saborosos e nutritivos”. Desde logo se depreende um enunciador que se dirige a um enunciatário que preza a praticidade no seu dia-a-dia, mas que busca também qualidade de vida. Dividido em duas colunas, o texto posicionado abaixo desse pequeno enunciado verbal fornece ao enunciatário algumas informações em números sobre o aumento do consumo de determinados alimentos práticos no café da manhã; associado a esse consumo, o dia-a-dia corrido da vida moderna. Além dos dados, que instauram um enunciador dotado de um saber, obtém-se, por meio de uma debreagem interna, a instalação de um interlocutor que narra sua rotina como depoimento da qualidade de vida fornecida pelo mágico produto Nestlé Moça Flakes: “Marcela só toma leite se for com cereais”, explica Gislaine. “Acabei adotando o mesmo para mim, porque é fácil, rápido, gostoso, e nos deixa bem alimentadas. Muitas vezes mal tenho tempo de almoçar ou jantar direito, acordo com fome e essa refeição garante o mínimo para o dia”. Até seu marido, Alan, profissional de TV não acostumado ao café da manhã, CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 93 93 gostou da ideia. “Ele ainda resiste ao leite, mas adora cereais docinhos puros”, diz Gislaine. Revestido pelo antropônimo Gislaine Marques Sana, 31 anos, gerente de publicidade de uma editora, esse ator se configura com os papéis temáticos de profissional, esposa e mãe e com o papel actancial de sujeito competente na busca pelo objeto-valor “nutrir e garantir o bem-estar da família”: tudo graças ao objeto-modal (poder-fazer) constituído pelo produto Nestlé Moça Flakes. No canto inferior esquerdo da página, visualizamos uma imagem fotográfica que corresponde ao simulacro da família do ator configurado no enunciado: nessa imagem, a família está tomando o café da manhã com Nestlé Moça Flakes. Cada um dos quatro membros da família ocupa uma posição na mesa de formato quadrangular: mais próximo do enunciatário, por meio de um efeito de sentido produzido por uma angulação lateral, tem-se a manifestação do nosso ator: com cabelos curtos, vestindo um blazer de tonalidade cinza-claro e portando acessórios discretos, esse ator tem seu olhar voltado para a execução da tarefa a que se propõe. Esse ator mulher serve o leite primeiramente à filha, possivelmente após tê-lo servido ao marido – diferentemente do que está colocado pelo enunciado verbal que afirma que “Ele ainda resiste ao leite”, o texto visual apresenta a figura do marido como tendo diante de si uma tigela com cereais e leite e, nas mãos, uma colher. O ator mulher será o último a se servir, pois a sua tigela com Nestlé Moça Flakes é única que é revelada sem a presença do leite. Após ter segmentado esse anúncio em várias partes significantes, tomemos esse enunciado verbo-visual como um todo. Verificamos que o sujeito do enunciado se configura, no nível do discurso, como o ator mulher contemporânea, uma vez que desempenha vários papéis temáticos – o de profissional, o de mãe, o de esposa, o de dona de casa – e realiza um programa narrativo diário no qual produtos práticos – como Nestlé Moça Flakes – atuam como o objeto-modal (poder-fazer) capaz de levar à conjunção com o objeto-valor “nutrir e garantir o bem-estar da família”. Focalizamos então dois fragmentos particulares do anúncio: no último texto visual analisado, a atitude do sujeito que, mesmo já estando vestido para o trabalho (no papel de profissional, portanto), desempenha uma tarefa marcadamente tradicional para o papel da mãe/dona de casa: servir ao marido e aos filhos; no texto posicionado próximo à embalagem do produto, na página da direita, a afirmação de que se a família está bem, ela (ator mulher contemporânea – simulacro do enunciatário), também está. Retomando esses fragmentos e considerando o texto verbo-visual como um todo de sentido, concluímos que o ator mulher contemporânea está marcado pela manutenção da tradição, manifesta nas suas crenças e atitudes e, ao mesmo tempo, pela transformação dessa tradição, uma vez que assume novos papéis e desempenha novas narrativas, sempre com a ajuda de algum dotado de um poder-fazer que acaba por dotar o sujeito de um poder-ser: poder ser mãe/esposa realizada, poder ser profissional bem-sucedida. 4. Do “poder-ser” ao “como-ser”: a conciliação de papéis [...] as funções e papéis antigos se perpetuam, combinando-se de maneira inédita com os papéis modernos. Gilles Lipovetsky CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 94 94 O segundo anúncio foi veiculado na quarta capa da Edição 67, em janeiro de 2004. Focalizada em angulação lateral, a cena enunciativa apresenta um ator mulher vestindo camisa social de manga longa com punhos ajustáveis, na cor azul; na parte inferior do corpo, embora a imagem esteja bastante escura, dificultando uma nítida visualização, reconhecemos uma saia preta e uma meia calça fina também na cor azul; compondo o visual, acessórios discretos e cabelos lisos no estilo Chanel. Sobre o colo desse ator, uma criança se apresenta compenetrada brincando com alguns carrinhos que estão sobre a mesa. A fisionomia e os cabelos da criança são bastante parecidos com os do ator mulher. Depreendemos desse enunciado, portanto, um ator configurado com os papéis temáticos de profissional e de mãe. O espaço retratado é um espaço interno, possivelmente o escritório de uma casa. Persianas fechadas e luminária ligada criam o efeito de sentido de período noturno. Nesse espaço-tempo, nosso ator mulher dirige sua atenção para um documento que tem em mãos, documento sobre o qual a luz da luminária incide. Entretanto o elemento que capta a atenção do enunciatário é o sítio eletrônico revelado na tela do computador colocado em posição mais frontal que todos os outros elementos da cena enunciativa. A luminosidade de uma página eletrônica amarela direciona o olhar do enunciatário para o produto anunciado – um site de seguros, também apresentado no alto da página do anúncio, por meio de uma debreagem enunciativa: “Garanta a tranquilidade de sua família sem sair de casa. Novo Site de Seguros Banco do Brasil.”. Abaixo, no centro inferior direito da página, lê-se, em letras menores, na cor branca, outro enunciado em debreagem enunciativa: Para facilitar a sua vida, o Banco do Brasil agora disponibiliza, no bb.com.br, um ambiente exclusivo para negócios em seguros. Você vai encontrar as melhores soluções em seguros de automóvel, residência, vida e rural. Pode fazer consultas, simulações e contratações com toda segurança e rapidez. Acesse o novo Site de Seguros e proteja sua família e seu futuro. bb.com.br. O tempo todo acessível. O tempo todo seguro. Depreende-se desse enunciado um programa narrativo no qual o sujeito tem por objeto-valor a proteção da família. Tal sujeito, virtual na medida em que está dotado de um querer (proteger sua família), atualiza-se graças ao sítio eletrônico de seguros Banco do Brasil: agora esse sujeito não só quer, mas pode proteger sua família. CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 95 95 Apesar de configurado no espaço interno do lar, seus trajes remetem ao espaço externo, ao espaço do trabalho formal. Nesse sentido, o valor /independência/ fica bastante marcado, uma vez que, embora retratado no ambiente interno, e com a presença do filho, esse ator mulher contemporânea realiza um programa não diretamente ligado à rotina da mãe/dona de casa, como no primeiro anúncio analisado – em que o ator abarcava o papel de sujeito preocupado com o bem-estar dos filhos e, para tanto, voltava sua atenção para a alimentação da família – mas muito mais próximo da mulher profissional, uma vez que implica uma situação de investimento financeiro. O produto ofertado, Seguros Banco do Brasil – seguros de automóvel, residência, vida e rural – fornece o poder-fazer proteger a família e, mais uma vez, o poder-ser: uma vez sua família estando protegida, esse sujeito pode ser mãe realizada e pode ser profissional bem-sucedida. O que se revela aqui, mais explicitamente que no primeiro texto analisado, é o “como-ser” mulher contemporânea. No primeiro texto, ficou clara a manutenção de alguns papéis tradicionalmente femininos, como o de esposa/mãe/dona de casa, bem como a manutenção de algumas crenças e atitudes que implicam uma mulher que, para se sentir bem, para se sentir realizada, precisa executar suas funções mais tradicionais – ao lado, claro, das novas funções modernas, como a de profissional executiva (o interlocutor instalado no texto, recordemos, é uma gerente de publicidade de uma editora). No segundo texto, a mulher está em casa e também vestida para o ambiente de trabalho externo. A diferença está na composição do espaço – a família se restringe à mãe e ao filho, e é ela, mãe, que realiza tarefas que implicam investimentos financeiros na proteção da sua família e do seu futuro; e na composição do tempo – diferentemente do primeiro anúncio, cuja cena retrata o período diurno, o efeito de sentido criado no segundo anúncio é o de período noturno (conforme CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 96 96 apontamos acima) –, o que nos leva a depreender uma narrativa na qual o sujeito aproveita o pouco tempo disponível, após o expediente, para planejar a proteção e consequente tranquilidade da família. Desse modo, tem-se um objeto-valor que se assemelha ao do primeiro anúncio, a proteção/bem-estar da família. Para entrar em conjunção com esse objeto, o sujeito dispõe do objeto-modal Site de Seguros Banco do Brasil que, conforme garante o slogan apresentado na margem-inferior da página, está “O tempo todo com você”. O produto ofertado, que pode ser adquirido a qualquer hora e em qualquer lugar, sem que seja necessário sair de casa, atua não apenas como o objeto mágico capaz de transformar a simples mãe/dona de casa em uma profissional bem-sucedida (ela pode trabalhar fora porque conta com a ajuda de um ou vários desses objetos), mas também a profissional bem-sucedida em uma bem-sucedida mãe/dona de casa: ela pode aproveitar o pouco tempo disponível em casa para planejar/assegurar a proteção da família – e, desse modo, poder ficar tranquila nos momentos em que estiver fora, trabalhando – e, ao mesmo tempo, desfrutar alguns momentos de lazer com o(s) filho(s), em suma, ser também bem-sucedida no papel de mãe. 5. Independentemente dos papéis, mulher! A conquista do supérfluo é uma excitação espiritual maior que a conquista do necessário. O homem é uma criação do desejo, e não uma criação da necessidade. Gaston Bachelard Veiculado na Edição 154, em abril de 2011, o terceiro texto a compor este estudo anuncia a marca de camisaria que tem conquistado cada vez mais espaço na moda brasileira feminina: Dudalina. 6 O anúncio – publicado na edição de abril, é anterior, portanto, ao mês em que se comemora o dia das mães – constitui a única peça publicitária da marca veiculada na revista VOCÊ S/A que faz alusão direta ao papel de mãe. Focalizada da cintura para cima em um posicionamento frontal, o ator mulher apresenta-se vestindo uma camisa social na cor preta, gargantilha e brincos discretos e um anel com exuberante pedra verde no dedo anelar da mão esquerda. Ajudando a compor o look, cabelos pretos presos, penteados com gel ou mousse, maquiagem feita com lápis preto destacando os olhos verdes do ator mulher, esmalte em tonalidade café com leite, olhar, lábios e mãos em atitude sedutora. Em letras brancas, do lado direito superior e abaixo do símbolo da flor-de-lis, logomarca das camisas, o seguinte enunciado verbal: mães DUDALINA. Camisas para mães que decidem. 6 Já consolidada no mercado pela tradição em camisaria masculina, Dudalina passou a investir no segmento feminino com camisas que atendem às necessidades das mulheres de estarem bem vestidas principalmente no ambiente de trabalho. As peças destacam-se pelo uso de matérias-primas requintadas como o algodão egípcio, acabamento em rendas, seda, bordados, laise e maquinetados, além de botões com características especiais, pespontos em formato espinha de peixe, point d’ajour e ponto picado, o que agrega à marca os valores de elegância, requinte e sofisticação, conforme consta da descrição obtida no seguinte sítio eletrônico . Destacamos que tanto os anúncios da camisaria masculina quanto os da camisaria feminina da marca Dudalina têm uma recorrência grande na revista VOCÊ S/A nos anos 2010/2011. http://camisasfemininas.net/camisa-feminina-dudalina/ CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 97 97 O slogan empregado nesse anúncio é particularmente interessante, uma vez que é fruto de uma pequena modificação do original da marca: “DUDALINA. Camisas para mulheres que decidem”. É claro que essa alteração foi pensada tendo em vista a proximidade do dia das mães, mas o que queremos investigar é justamente como esse enunciador constrói esse ator mulher agregando o papel de mãe ao já tradicional papel de profissional, construído tanto pela filosofia e proposta da marca, quanto pelo enunciado que narrativiza o valor /poder de decisão/. Analisando esse slogan modificado, afirmamos que o sujeito do enunciado está em conjunção com o objeto-valor família – o que nos é colocado pelo lexema “mães” em “Camisas para mães que decidem”. Esse ator mulher desempenha, portanto, os papéis de profissional executiva 7 e mãe. Analisando o texto visual, o que mais imediatamente capta nossa atenção é o fato de que, no dedo onde deveria constar uma aliança de casamento, visualiza-se um anel com exuberante pedra verde, fato que somado à postura sedutora materializada no olhar voltado para fora da imagem, para o enunciatário, nos lábios entreabertos e na posição da mão direita, segurando o colarinho da camisa e levemente tocando o próprio colo nos permitem a depreensão de um sujeito mulher que é mãe, mas não necessariamente casada ou, sendo casada, assume seu poder de escolha quando opta por não usar aliança e manter aparência e atitude atraente, sedutora aos olhares dos outros. O enunciado “Camisas para mães que decidem” (grifo nosso) reitera a manifestação visual e 7 Ao nos referirmos à profissional executiva, temos por parâmetro os postos de gerente, presidente e diretora de empresas/corporações, público-alvo da marca, conforme constatamos em vários sítios eletrônicos que descrevem o requinte, a sofisticação e o luxo agregados às camisas Dudalina. CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 98 98 coloca-nos diante de um sujeito cujo programa narrativo é pautado pelo /poder de decisão/: ela, mulher, toma decisões, não somente no âmbito familiar ou doméstico, mas no âmbito profissional e pessoal: ela elege, por exemplo, ser uma executiva de alto escalão – posição que exige constantes tomadas de decisão – e, consequentemente, vestir-se conforme exige o ambiente corporativo – com sobriedade, formalidade, discrição –, sem deixar de lado sua feminilidade. É o ator mulher contemporânea que depreendemos, portanto, da leitura desse texto: por meio dos papéis temáticos de profissional executiva e mãe, a figura feminina é construída no papel de um nova profissional-mãe, papel que implica, acima de tudo, o papel da mulher mulher. Significa dizer que o ator mulher contemporânea, simulacro do enunciatário, pode ser mãe (talvez também esposa) e executiva bem-sucedida, ao mesmo tempo, elegante, sofisticada, feminina. Interessante é destacar a diferença que se estabelece entre este e os dois anúncios anteriores: no primeiro, o papel temático de mãe é ressaltado tanto no verbal quanto no visual, e a cena enunciativa constrói-se no espaço doméstico, no qual se visualiza também a figura marido (papel temático de esposa); no segundo, o papel temático de esposa não aparece, e o papel temático de mãe é ressaltado, ainda, tanto no verbal quanto no visual, enquanto a cena enunciativa, apesar de construir o espaço doméstico, remete ao espaço externo (da alimentação passa-se aos investimentos financeiros); já no terceiro anúncio, não há no texto visual marcas que permitam configurar o ator com os papéis temáticos de esposa e mãe (este último é evidenciado apenas no enunciado verbal), ficando em destaque, tanto no verbal quanto no visual o papel temático de profissional executiva e o papel temático de “mulher”. Isso quer dizer que o objeto anunciado tem a função de mediatizar a relação do ator mulher consigo mesmo. Em outras palavras, o objeto “camisas Dudalina” dá ao sujeito o valor mítico “poder de decisão”, o que implica o poder ser mãe bem-sucedida, o poder ser profissional executiva bem-sucedida e o poder ser mulher elegante, sofisticada, feminina. Podemos afirmar, desse modo, que, na narrativa do anúncio “Camisas Dudalina”, o ator mulher contemporânea é configurado como aquele que pode ser mais profissional, mais mãe e, principalmente, “mais mulher”. 6. O ator mulher contemporânea nas publicidades de VOCÊ S/A Tomando o último capítulo da obra de Floch intitulada Sémiotique, marketing et communication (1990, p. 183-226), tentamos entender melhor como se articula o sentido dos textos publicitários apresentados ao longo do trabalho. A proposta do pesquisador francês, quando da elaboração do estudo, era a de reconhecer as complementaridades ou as contradições entre filosofias de diferentes agências ou entre diferentes práticas publicitárias; era, ainda, abordar a problemática discurso/realidade por meio dos textos publicitários selecionados para análise. Dessa forma, explorando as funções construtiva e representacional da linguagem, funções que o autor organiza em uma categoria semântica de base, Floch chega à definição de quatro tipos de publicidade: a publicidade referencial, centrada na função representacional da linguagem; a publicidade oblíqua, construída a partir da negação da função representacional da linguagem – e que constitui, portanto, a negação da publicidade referencial; a publicidade mítica, compreendida a partir da função construtiva da linguagem; e a publicidade substancial, construída a partir da negação da função construtiva da linguagem – e que constitui, portanto, a negação da publicidade mítica. Essa tipologia é articulada em um quadrado semiótico e cada um dos polos desse quadrado é ilustrado com exemplos de anúncios veiculados na mídia impressa francesa da época. Relacionando nossos anúncios à tipologia publicitária desenvolvida por Floch no CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 99 99 texto em questão e aos valores de consumo em jogo – valores abordados pelo autor na obra Identités Visuelles (1995) e descritos por nós no item “Valorização publicitária e circulação de objetos-valor”, compreendemos que o enunciador de cada texto do nosso corpus privilegia um tipo de relação entre o produto e a linguagem que o apresenta/constrói. Para tanto, é preciso considerar que não importa se as narrativas contadas nos textos publicitários representam a realidade ou reapresentam-na. Importa somente a eclosão e a articulação do sentido nesses textos. Dizendo de outra maneira, o primeiro anúncio, veiculado na revista no ano de 2001, é construído por meio da função representacional da linguagem, ou seja, é uma publicidade predominantemente referencial, uma vez que o enunciador do texto constrói seu enunciado por meio de discursos narrativos, figurativos (e não abstratos) e descritivos (e não normativos) em que impera o “fazer-parecer verdadeiro”, provocando o efeito de sentido de uma quase restituição da realidade. O valor investido no objeto anunciado é, dessa forma, um valor prático: alimentar a família, conferindo-lhe saúde e bem-estar. Contribuem para esse efeito, dentre outros, a figurativização do produto como um “enlatado” e a figurativização da família reunida no café da manhã, o que narrativiza, como vimos, os valores /praticidade/ e /saúde; qualidade de vida/; os dados em números referentes ao aumento do consumo de alimentos práticos no dia-a-dia dos brasileiros, em virtude da vida moderna – o que dota o enunciador do texto de um saber; o emprego da debreagem enunciativa, que instaura a situação de diálogo entre enunciador e enunciatário; da embreagem temporal, que confere o efeito de sentido de presentificação temporal; e da debreagem interna, que aproxima ainda mais enunciador e enunciatário. O segundo anúncio, veiculado na revista no ano de 2004, é construído por meio da negação da função representacional da linguagem, ou seja, é uma publicidade predominantemente oblíqua, uma vez que se dirige a um sujeito de um fazer interpretativo, cognitivo. Diferentemente da publicidade referencial, na qual cada texto possui seu próprio referente interno, ou, em outras palavras, na qual “[...] o texto remete à foto, a receita ao produto ou ao utensílio, tal fase da demonstração às precedentes ou ainda o comentário ao que é mostrado em plano fixo” (FLOCH, 1990, p. 195), a publicidade oblíqua, segundo Floch, opera rupturas entre imagens e textos, o que exige do enunciatário a construção da narrativa e do valor do produto anunciado. É o que nos revelou a descrição-análise da publicidade do Site de Seguros Banco do Brasil, uma vez que o enunciador do texto se dirige ao enunciatário mulher, simulacro da “mulher contemporânea” (ator construído no texto visual do anúncio) oferecendo-lhe a possibilidade de planejar/assegurar a proteção/bem-estar da família – sem que seja necessário sair de casa para fazê-lo, numa agência bancária “real”, por exemplo –, e, desse modo, garantir sua própria tranquilidade (e a da família) nos momentos em que estiver fora, trabalhando. A construção desse efeito de sentido se dá por meio do “casamento” entre texto e imagem, ou entre texto verbal e texto visual, uma vez que nem tudo que está dito no texto visual se diz no texto verbal, e vice-versa. Por último, o terceiro anúncio, veiculado na revista no ano de 2011, é construído por meio da função construtiva da linguagem, ou seja, é uma publicidade predominantemente mítica, uma vez que é investida de valores “não utilitários” ou, em outros termos, de valores existenciais. A publicidade mítica, conforme explica Floch (1990, p. 204), pode visar à construção do valor semântico de uma marca, e não somente de um produto ou serviço; é o que ocorre no caso do nosso terceiro anúncio, em que se busca habitar os produtos da marca Dudalina de sonhos, oferecendo ao enunciatário a possibilidade de criar o seu próprio universo. CASA, Vol.11 n.1, julho de 2013 Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa 100 100 CONCLUSÃO A partir da leitura semiótica dos três textos publicitários, podemos afirmar que as publicidades de VOCÊ S/A em que a mulher contemporânea é figurativizada têm seus sentidos construídos por meio da narrativa da manutenção e transformação dos papéis femininos. O primeiro anúncio é representativo do grupo de peças publicitárias que constroem mais marcadamente a figura da mulher mãe/esposa/dona de casa dentro do periódico; o segundo e terceiro anúncios representam o grupo de peças publicitárias em que figura, de modo mais explícito, o simulacro da mulher contemporânea que é mãe (talvez esposa e talvez dona de casa), mas, sobretudo, profissional e “mulher”. Nos três textos selecionados, constatou-se o acúmulo de funções da mulher, embora as figurativizações tenham se revelado distintas: no primeiro anúncio, a presença de toda a família – mãe, pai e filhos; no segundo, apenas a presença da mãe e do filho; no terceiro, apesar da referência feita no enunciado verbal, a figurativização do ator mulher sozinho, desacompanhado. Efeitos de sentidos que particularizam a construção da figura do ator mulher contemporânea no decurso temporal? Podemos afirmar que sim, que o ator mulher contemporânea construído na revista VOCÊ S/A acumula novas e velhas funções, agrega papéis modernos e papéis tradicionais, mas é cada vez mais construído como um ser independente, além de bem-sucedido: efeitos de sentidos construídos por publicidades cujos objetos anunciados são investidos, na maioria das vezes, de valores não utilitários, o que favorece a construção do ator “mulher contemporânea” como simulacro de um sujeito que desempenha suas atividades cotidianas de maneira inspiradora, despertando cada vez mais a admiração do enunciatário. REFERÊNCIAS Banco do Brasil. VOCÊ S/A, Edição 67, contracapa, jan. 2004. BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo: Humanitas / FFLCH/USP, 2002. Dudalina. VOCÊ S/A, Edição 154, p. 39, abr. 2011. FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. 2. ed. São Paulo: Ática, 2010. FLOCH, J.M. Sémiotique, marketing et communication. Sous les signes, les stratégies. Paris : PUF, 1990. ______. Identités visuelles. Paris: PUF, 1995. _______. Alguns conceitos fundamentais em semiótica geral. São Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2001. GREIMAS, A. J. Du sens II. Paris: Seuil, 1983. ______.; COURTÈS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, s.d. Nestlé Moça Flakes. Publicidade. VOCÊ S/A, Edição 30, p. 54-55, ago. 2001. Recebido em: 21.01.13 Aprovado em: 20.05.13