Bruna Flávia Rodrigues Venancio Apague as pegadas: Uma leitura de Terra sonâmbula de Mia Couto São José do Rio Preto 2020 Câmpus de São José do Rio Preto Bruna Flávia Rodrigues Venancio Apague as pegadas: Uma leitura de Terra sonâmbula de Mia Couto Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. Márcio Scheel São José do Rio Preto 2020 Bruna Flávia Rodrigues Venancio Apague as pegadas: Uma leitura de Terra sonâmbula de Mia Couto Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Comissão Examinadora Prof. Dr. Márcio Scheel UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientador Prof. Dr. Orlando Nunes de Amorim UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Profª. Drª. Daniela de Brito São José do Rio Preto 04 de março de 2020 AGRADECIMENTOS Se tem uma coisa que aprendi com esse trabalho é que ninguém, em hipótese alguma, faz nada sozinho, embora o percurso, o processo de escrita, as reflexões e o peso – diria até sobrepeso – de todo o trabalho recaia apenas sobre os ombros de quem decidiu realizá-lo. Sendo assim, devo agradecimentos eternos aos meus pais, por terem me ensinado que o caminho, por mais incerto e tortuoso que seja, ainda é o do conhecimento. Pensei, durante todo o tempo em que realizei o trabalho, no quanto as leituras que fiz ao longo da vida, por indicação do meu pai Orlando e da minha mãe Teresa, foram necessárias para que me tornasse quem sou hoje e para que me levassem à buscar o caminho da pesquisa. Agradeço aos meus amigos, sobretudo Marcos e Aline Neviani, Bruno Lopes, Alexandra Equi e os demais que estão no grupo que, no momento, intitula-se “Fila do SUS”, porque foram meu alento, minha calma e minha chance de descanso, por mais raras que essas chances tenham sido. Agradeço aos amigos da música, sobretudo os da banda Luigi e os Pirandellos. A música foi um dos grandes alentos durante todo o processo. Achei justo, inclusive, que ela estivesse, de algum modo, relacionada com a pesquisa, por isso a citação que virá logo mais. Agradeço ao meu orientador, Márcio Scheel, pela paciência nas horas de conversa e debate sobre a pesquisa e até mesmo nas mensagens em horários discutíveis. Sempre me respondeu com ideias, provocações e direcionamentos para que eu continuasse refletindo e duvidando do que, muitas vezes, eu tinha certeza. Agradeço por sempre respeitar o meu ponto de vista e me incentivar a pensar por mim mesma. Ah, e claro, por ter me incentivado até mesmo a questionar o que você pensava. Agradeço, primordialmente, ao meu marido Wellington pelo amor incondicional que sempre demonstra. Agradeço por entender as minhas inseguranças, por aplacar os muitos momentos de desespero, nos quais eu pensei seriamente em desistir. Agradeço por todos os jantares e por todas as idas até o escritório, todas com o intuiro de saber se eu estava bem, se as coisas estavam fluindo e para me dar forças, me incentivar a continuar. É sempre bom saber que eu tenho um porto seguro, um abraço para o qual voltar, sobretudo nos momentos de descrença e de insegurança. Esse trabalho também é seu. Realizei o trabalho em um dos momentos mais difíceis da nossa história ou – para não ser injusta com momentos muito mais violentos da história do brasil e do mundo – da minha vida. Sinto-me muito grata por ter conseguido concluir este trabalho, realizado com recursos pessoais e com o objetivo puro e simples de entender uma questão que me incomodava. Cada vez mais, sinto que a resposta para qualquer pergunta é seguir estudando, questionando, duvidando do óbvio, tentando, de algum modo, compreender o que nos cerca. Que a gente continue tendo esses objetivos viabilizados para que as próximas gerações tenham acesso a um ensino de qualidade. Apague as pegadas! Coma a carne que aí está. Não poupe. Entre em qualquer casa quando chover, sente em qualquer cadeira Mas não permaneça sentado. E não esqueça seu chapéu. Estou lhe dizendo: Apague as pegadas! O que você disser, não diga duas vezes. Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o. Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato Quem não estava presente, quem nada falou Como poderão apanhá-lo? Apague as pegadas! Cuide, quando pensar em morrer Para que não haja sepultura revelando onde jaz Com uma clara inscrição a lhe denunciar E o ano de sua morte a lhe entregar Mais uma vez: Apague as pegadas! (Assim me foi ensinado.) (BERTOLD BRECHT, 2000) “Mas ando e penso sempre com mais de um, por isso ninguém vê minha sacola.” (NOVOS BAIANOS, 1972) RESUMO O presente estudo apresenta o romance Terra sonâmbula de Mia Couto dentro do conceito de narrativa de resistência definido por Alfredo Bosi (1977). A tensão entre tradição e modernidade, memória e esquecimento, confundem-se no romance com a ideia de morte da tradição, porém, neste trabalho, mostramos que a morte é a continuidade e não o fim da tradição no mundo moderno. Como percurso teórico, contextualizamos os eventos históricos citados no romance com o auxílio, sobretudo, dos historiadores Allen e Barbara Isaacman (1983) e José Capela (2010). A tensão tradição X modernidade em todo o romance foi descrita com o apoio de estudiodos do romance aqui estudado, Anita Martins Rodrigues de Moraes (2018), Everton Fernando Micheletti (2016), Philip Rothwell (2015), Fábio Salem Daie (2013) e Kamila Krakowska (2017). O conceito de memória coletiva e de morte da experiência compartilhável e, consequentemente, da tradição moçambicana foram discutidos a partir das ideias de Maurice Halbwachs (1990) e de Walter Benjamin nos artigos “O contador de histórias” (2015) e “Experiência e pobreza” (2012). Palavras–chave: Memória coletiva. Tradição oral. Romance. ABSTRACT The present study presents the novel Sleepwalking land (Terra sonâmbula) by Mia Couto within the concept of resistance narrative defined by Alfredo Bosi (1977). The tension between tradition and modernity, memory and forgetfulness, are confused in the novel with the idea of the death of tradition, however, in this work, we show that death is the continuity and not the end of tradition in the modern world. As a theoretical path, we contextualize the historical events mentioned in the novel with the assistance, above all, of the historians Allen and Barbara Isaacman (1983) and José Capela (2010). The tension between tradition and modernity throughout the novel was described with the support of studios of the novel studied here, Anita Martins Rodrigues de Moraes (2018), Everton Fernando Micheletti (2016), Philip Rothwell (2015), Fábio Salem Daie (2013) and Kamila Krakowska (2017). The concept of collective memory and death of the shareable experience and, consequently, of the Mozambican tradition were discussed based on the ideas of Maurice Halbwachs (1990) and Walter Benjamin in the articles “The storyteller” (2015) and “Experience and poverty ”(2012). Keywords: Collective memory. Oral tradition. Romance. 1 INTRODUÇÃO 09 2 HISTÓRIA, IMAGINAÇÃO E IMAGINÁRIO 11 2.1 As guerras de libertação 13 2.2 A criação do “homem novo” 17 2.3 A guerra civil moçambicana 20 2.4 A história em Terra sonâmbula 23 3 TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM TERRA SONÂMBULA 28 3.1 As múltiplas estórias 28 3.1.a A macro narrativa de Muidinga e Tuahir 3.1.b A macro narrativa de Kindzu e Taímo 30 40 4 MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA 54 4.1 A memória social 4.2 A memória mediada pela imaginação em Terra sonâmbula 54 68 4.3 Memória e experiência 72 5 CONCLUSÃO 84 5.1 Resistência em Terra sonâmbula 87 5.1.a Resistência na poética narrativa de Mia Couto 88 REFERÊNCIAS OBRAS CONSULTADAS 96 101 SUMÁRIO 9 1. INTRODUÇÃO Uma narrativa de resistência. Esse foi o ponto de partida para o desenvolvimento deste trabalho. A escrita de resistência seria um tipo de narrativa que reflete uma característica desse povo – a resistência –, que está manifesta na história africana, da qual Mia Couto se apropria como estrutura do romance. Em Terra sonâmbula1, Mia Couto mobiliza a memória social moçambicana e o seu imaginário simbólico, com uma estrutura narrativa romanesca que parodia o conto africano, mas que mantém contraditoriamente as raízes da cultura daquele povo. Vamos usar, neste trabalho, a palavra “estória”, embora não seja mais corrente na língua portuguesa e a escolha se dá pelo fato de que, assim como Guimarães Rosa, estamos expondo o caráter ficcional da prosa de Mia Couto “em oposição ao termo história, que manteria hipoteticamente, uma relação de maior comprometimento com o real (…)” (PETROV, 2004, p. 103). Além disso, a palavra estória carrega consigo “uma origem popular, um aproveitamento da tradição oral e uma certa visão metafísica da realidade” (PETROV, 2004, p. 103-104), características que também enxergamos no romance em estudo. Moçambique tem uma história política conflituosa, marcada pela colonização ostensiva do território, pelas guerras por independência (as guerras de libertação), por guerras internas pós-independência, pela implantação de um governo de viés socialista e pela entrada do neoliberalismo. Constantes mudanças no cenário político do país ocasionaram outros conflitos, tais como o identitário e ideológico, os quais inseriram a população numa espécie de guerra fria contra um inimigo que não se sabe mais identificar qual é. Embora o território se encontre degradado, no contexto do romance, marcado pela disputa de poder entre os grupos FRELIMO (Frente de Libertação Nacional de Moçambique) e a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), e que essas disputas afetaram de forma desumana a população, percebemos, na história moçambicana, uma série de movimentos insurgentes que demonstram que o povo moçambicano é um povo que resiste. Mesmo quando da colonização, existiram grupos que buscaram enfrentar as investidas e a violência do homem branco e, como vamos constatar ao longo do trabalho, realmente se organizaram para fugir da selvageria do europeu. Nossa hipótese é mostrar que Mia Couto escreve Terra sonâmbula dentro desta perspectiva de fazer com que a cultura moçambicana permaneça e, para isso, ela 1 Terra sonâmbula foi publicado primeiramente em 1992, mas ganhou nova publicação da Companhia das Letras em 2007, quando se tornou conhecido mundialmente. Durante o trabalho, vamos usar somente Terra sonâmbula, sem referências bibliográficas, pois sabe-se de que se trata da 15ª reim. da edição de 2016 da Companhia das Letras. 10 depende das estórias contadas por aqueles que estão marginalizados, do conhecimento da História de Moçambique, ou seja, para que a cultura moçambicana continue existindo, ela precisa ser lembrada. Essa permanência das histórias e, consequentemente, da cultura, é a resistência que ele entendemos que o autor propõe ao longo do romance. Organizamos o trabalho de modo que: no Capítulo 1, abordaremos a História de Moçambique, as guerras que marcaram o território e a população e faremos a abordagem dos conceitos de imaginação e imaginário; no Capítulo 2, faremos uma análise do romance, considerando o modo como é feita a interação dos conceitos de tradição e de modernidade na narrativa; no Capítulo 3, desenvolveremos o conceito de memória que reconhecemos como adequado para a leitura de Terra sonâmbula, além de tratarmos da morte da experiência compartilhável e, por fim, no Capítulo 4, desenvolveremos o problema de resistência e de como ele se constrói no romance, a partir da paródia do conto africano. 11 2. CAPÍTULO 1 HISTÓRIA, IMAGINAÇÃO E IMAGINÁRIO O objetivo desse capítulo é situar, brevemente, o leitor sobre o momento histórico em que se passam os eventos narrados no romance Terra sonâmbula e sobre a história geral de Moçambique, apresentando, como Mia Couto aborda esses eventos no romance. Vamos introduzir, portanto, momentos históricos, como as guerras de libertação e a guerra civil e, também, o modo como o escritor mobiliza a história de seu país e o imaginário cultural moçambicano, por meio da imaginação, na criação do enredo e dos personagens. Para abordar esses temas, vamos buscar apoio nos historiadores Allen e Barbara Isaacman (1983), José Capela (2010), J.D. Face (2010) e J. Vansina (2010) para embasar os fatos históricos apresentados, no auxílio teórico de Ana Mafalda Leite (2012) sobre a cultura africana, nos comentários relevantes de Gisele Krama (2016 b), Kamila Krakowska (2017), Lorenzo Macagno (2009) sobre o romance e sobre as escolhas feitas pela FRELIMO após o início de seu governo e, por fim, nos estudos sobre imaginário e imaginação de Gilbert Durand (1964 e 2004). A história da África é bastante complexa, pois, além de suas dimensões continentais e de conter em seu território uma pluralidade de povos, culturas e línguas, as informações dos primeiros autores que se dispuseram a escrever sobre o continente careciam de sistematização. Fage explica que muitos autores, quando em viagem à África, escreveram relatos sobre suas incursões marítimas, mas há dúvidas sobre a veracidade dessas informações e se de fato podem ser incluídas como relatos históricos (FAGE, 2010, p. 2). Fage também comenta que, a partir do século XVIII, período que ficou conhecido pelas correntes de pensamento do Renascimento e do Iluminismo, a mentalidade europeia era a de que a história africana não merecia atenção, já que as sociedades não-europeias eram vistas como inferiores (FAGE, 2010, p. 7-8). Esse preconceito em relação aos africanos, somado à concepção cristã de que seria preciso salvar as almas perdidas do novo mundo, submeteram a população negra a anos de exploração e violência. A história de Moçambique, por sua vez, é feita de muitos fragmentos de outras histórias e de outros povos. De acordo com Isaacman, são 12 grupos étnicos distintos que “embora 12 tenham algumas experiências culturais e históricas comuns, cada uma tem sua própria linguagem, condições materiais, identidade e patrimônio”2 (ISAACMAN, 1983, p. 3). É, portanto, importante considerar que não há apenas uma Moçambique, mas sim, várias sociedades moçambicanas formadas por indivíduos de diferentes nacionalidades, convivendo em um mesmo espaço. A pluralidade advém da localização geográfica do país, que é banhado pelo Oceano Índico e com três portos considerados ideais para bases navais, o de Maputo, o da Beira e o de Nacala (ISAACMAN, 1983, p. 1). Essa característica fez com que o país se tornasse um território cobiçado por grandes potências, as quais também se interessavam pelo grande potencial mineral do país. Segundo Isaacman (1983, p. 1), Moçambique tinha grandes reservas de columbo-tentalite (matéria-prima para reatores nucleares, peças de aeronaves e mísseis) e berilo (um minério altamente estratégico). Antes da colonização ostensiva do território moçambicano, Portugal explorava ouro da Índia e de outras partes da África. A colonização foi sustentáculo do regime salazarista, uma parte importante de seu projeto de expansão, e acontece de 1900 a 1962, quando se iniciam as guerras de libertação (chamadas de guerras coloniais pelos portugueses), que terminam em 1975. O território moçambicano, portanto, é povoado por diferentes nacionalidades, culturas, credos e interesses e, apesar de compartilharem o mesmo espaço, há uma recusa, sobretudo no caso dos europeus, desses povos de se considerarem moçambicanos. Em 1935, o ministro colonial Armindo Monteiro deixou claro duvidar da possibilidade de que a cultura moçambicana pudesse se “sobrepor” à cultura portuguesa, isto é, que um português dificilmente se africanizaria: “Não acreditamos que seja possível uma rápida passagem de suas superstições africanas para nossas civilizações. Para chegarmos aonde estamos, centenas de gerações antes de nós lutaram, sofreram e aprenderam, minuto a minuto, os segredos íntimos da fonte da vida. É impossível para eles atravessarem esta distância do século em um único salto” (MONTEIRO, 1935 apud ISAACMAN, 1983, p. 40 - tradução minha).3 É possível identificar nessa fala uma visão dicotômica entre o que seria a cultura do português e a cultura do moçambicano, visto que o moçambicano seria, aos olhos de Monteiro, um 2 “Although they have some common cultural and historical experiences, each has its own language, material conditions, identity , and heritage.” (Tradução minha) 3 “We do not believe that a rapid passage from their African superstitions to our civilization is possible. For us to have arrived where we are presently, hundreds of generations before us fought, suffered and learned, minute by minute, the intimate secrets in the fountain of life. It is impossible for them to traverse this distance of centuries in a single jump.” (ISAACMAN, 1983, p. 40) 13 indivíduo tomado por superstições, isto é, crendices sem base no conhecimento científico e, portanto, um conhecimento inferior sob essa perspectiva, enquanto o europeu teria um conhecimento mais avançado e que não se submeteria ao conhecimento do moçambicano. Essa dificuldade em se enxergar como uma unidade racial foi um dos motivos pelos quais a FRELIMO (Frente de Libertação Nacional), que tomou o poder a partir de 1990, buscou desenvolver uma política de unificação nacional no país, o que, como veremos adiante, resultou numa série de equívocos. O fato de se tratar de um país com tamanha pluralidade resulta em conflitos identitários e em uma necessidade de se imaginar uma sociedade que, ao menos, projete uma espécie de unidade social o que, de acordo com Benedict Anderson, “é a condição de existência de toda nação” (ANDERSON, 2005 apud MACAGNO, 2009, p. 30). O que Mia Couto busca em Terra sonâmbula é mobilizar a história moçambicana a partir do imaginário, com o objetivo de pensar, de sonhar um novo moçambicano. Este novo moçambicano, ainda que contenha em si traços de todas as culturas que o compõe, há de ser, ainda assim, um moçambicano. Antes, porém, de tratarmos da questão do imaginário, é preciso abordar, mesmo que brevemente, as guerras de libertação e o que ocasionou a guerra civil, pano de fundo para os fatos narrados em Terra sonâmbula. 2.1 As guerras de libertação O período colonial em Moçambique inicia-se em 19004 e encerra-se em 1962. São, portanto, 62 anos de franca exploração do território, dos recursos naturais e da mão-de-obra local. Isaacman (1983, p. 27-29) identifica três fases da colonização portuguesa: 1. um misto de má administração, corrupção e exploração violenta do território de forma descentralizada; 2. um regime autoritário centralizado nas mãos de Salazar, em que a exploração realizada no continente moçambicano deveria fornecer as bases para o capitalismo industrial que se fortalecia em Portugal e cujo grupo econômico levou Salazar ao poder; 3. surgimento da FRELIMO, o que forçou Salazar e seu sucessor, Marcello Caetano, a criar mecanismos para simular uma possível reforma, na qual se racionalizaria o sistema colonial. As leis praticadas em Moçambique, assim como qualquer decisão administrativa, eram definidas em Portugal, e até 1968 o país tratou de explorar de forma impositiva, por meio do 4 Os portugueses chegaram às terras moçambicanas no século 16, mas só efetivaram o colonialismo de exploração no interior do país no final do século 19, início do século XX. 14 sistema de chibalo, toda a mão-de-obra produtiva da zona rural. Chibalo, segundo Azevedo (2003, p. 32)5, era uma palavra africana usada para expressar o modo como funcionava o sistema de exploração a que os moçambicanos foram submetidos. O sistema funcionava da seguinte maneira: quando adquiria um escravo, o empregador assinava um contrato, no qual se comprometia a não maltratar o trabalhador e pagar devidamente o salário a ele. O que, na prática, não acontecia, já que o empregado trabalhava forçadamente por 6 ou 9 meses sem receber o salário e, quando o recebia, haviam inúmeros descontos. Esse sistema escravista e explorador causou a morte da maior parte da mão de obra produtiva de Moçambique, o que, de acordo com Isaacman (1983, p. 53), resultou, aos olhos dos portugueses, em queda da produtividade. Os efeitos foram devastadores, pois o cultivo forçado de algodão e arroz fez aumentar a fome, as doenças, os problemas ambientais e fez diminuir a produção de alimentos. Além disso, o sistema ocasionou fuga em massa de moçambicanos para outros países; para se ter uma ideia, em torno de 200.000 camponeses foram para Nyasaland entre os anos de 1920 e 1945 (ISAACMAN, 1983, p. 53). Esse ambiente de imposição e de violência culminou, inicialmente, em protestos da população camponesa, protestos estes que eram bastante organizados e conseguiam, na medida do possível, minimizar os efeitos da dominação portuguesa no país (ISAACMAN, 1983, p. 62). Capela explica que a historiografia não se interessou, a princípio em registrar o que seria a resistência moçambicana, mas surgiram, por exemplo, os Quilombos do Moçambique colônia. Esses grupos que se formavam geraram reclamações dos militares de que havia uma grande quantidade de escravos fugitivos que nunca eram restituídos aos proprietários (CAPELA, 2010, p. 75). Há, portanto, apesar de toda a violência e da coerção dos portugueses, uma cultura de resistência que se fortaleceu e inspirou as demais gerações, levando, posteriormente, às guerras de libertação, sobre as quais trataremos adiante. A população urbana também se mobilizou contra os efeitos disruptivos do sistema ao qual foram subjugados, porém seus esforços eram menores do que os da população camponesa por serem um número reduzido e por estarem sempre em vigilância por parte do estado. Além disso, os trabalhadores brancos, mesmo em luta por melhores condições de trabalho, muitas 5 “African vernacular words used for the forced labor to which the Africans were subjected. According to the law, a contract had to be put in written form, and an employer could not mistreat his employee or cheat the laborer out of his due salary. However, in practice, an African usually worked from six to nine months a year on forced labor for a company, a private Portuguese citizen (including the assimilado), or the government, almost always away from his home, and was paid only at the end of his contract, at which time he also had to pay taxes. Meanwhile, he had to leave his family unattended at home. His wages were so low that they would not allow him to provide for them. Chibalo or ntalato, depending on the area of the country, contributed to rebellion in the colony, which culminated in the liberation movement.” (tradução minha) 15 vezes, permaneceram impassíveis diante da brutalidade portuguesa com relação aos trabalhadores africanos (ISAACMAN, 1983, p. 62). Foi assim até 1911, quando surgiu a primeira União Africana, na qual se reuniram todos os trabalhadores moçambicanos e que foi encabeçada por Francisco Domingos Campos, Alfredo de Oliveira Guimarães e Agostinho José Mathias. A ideologia desse grupo buscava não só fortalecer a resistência dos trabalhadores moçambicanos, negros e brancos, mas também acabar com as diferenças e com as más condições de trabalho: “Para evitar a exploração capitalista, é necessário que todos nos unamos e organizemos a União Africana, que será composta de todas as classes, do mais humilde porteiro ao trabalhador comum e ao funcionário público. Em nossa associação não haverá distinções... Vamos nos unir e lutar lado a lado.6” (1979, p. 9 apud ISAACMAN, 1983, p. 70) A partir da União Africana, outros grupos de resistência se formaram e, em 1933, houve o confronto conhecido como Quinhenta. Tudo começou quando os trabalhadores foram avisados de que seus salários seriam reduzidos de 10 a 30%. As autoridades portuárias começaram a sofrer com a depressão mundial e descontaram nos trabalhadores, que já não contavam com salários dignos, seus problemas financeiros. Em virtude dessa redução injusta em seus honorários, os trabalhadores se recusaram a retornar aos postos de trabalho, após o horário do almoço. Diante desta recusa, os empregadores concordaram com os termos dos trabalhadores, mas apenas para que eles retornassem, fossem presos pela polícia, que, por sua vez, os forçou a descarregar os navios (ISAACMAN, 1983, p. 71). Depois desse incidente, a repressão se tornou mais forte para a população moçambicana. Muitos intelectuais participaram ativamente desse movimento insurgente que ganhava corpo em Moçambique. Muitos deles, mesmo com seus privilégios, dedicaram-se a denunciar as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os moçambicanos, mas também trabalhadores livres e os empecilhos para que os africanos conquistassem acesso aos estudos no país. Um dos veículos de propagação dessas ideias foi o jornal Voz Africana, amplamente censurado pelo governo Salazar, mas que mesmo com o seu desaparecimento em meados dos anos 70, fez nascer uma nova geração de escritores empenhados em expor os absurdos vivenciados em Moçambique, sobretudo pelos negros. São eles: Marcelino dos Santos, José Craveirinha, Noemia de Souza, Rui Nogar e outros. 6 In order to avoid capitalist exploitation it is necessary that we all unite and organize the African Union, which will be composed of all classes from the humblest porter to the ordinary worker to the civil servant. In our association there will be no distinctions.... Let us unite and struggle side by side.” (ISAACMAN, 1983, p. 70 - tradução nossa.) 16 Nesse contexto de insurgência da população camponesa, da população urbana, mas também de intelectuais e de censura e tentativa de coerção por parte do governo Salazar é que se criam as bases para o nascimento das guerras pela independência, mas também para o nascimento da FRELIMO. Isaacman explica que no início dos anos 60 havia “um fervor nacionalista” (ISAACMAN, 1983, p. 79) que se alojou no imaginário de um grupo de pessoas, as quais se organizaram e formaram a UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a MANU (a União Moçambicana de Macondo) e a UNAMI (União Nacional Africana de Moçambique Independente). Os três grupos, no entanto, não representavam a riqueza multicultural de Moçambique e sequer demonstravam organização, coerência em suas ideias e capacidade estratégica para combater o regime colonial. A união oficial desses grupos ocorreu em setembro de 1962, no Primeiro Congresso da FRELIMO, criado por Eduardo Mondlane, intelectual, líder da FRELIMO e cuja família era reconhecida e respeitada por sua militância. Além de estabelecer uma coerência de ideias para que a união se fortalecesse, o grupo reconheceu a importância de incorporar membros de outras classes sociais, como os camponeses, artesãos e comerciantes ao grupo que se formava. A partir de 1964, a FRELIMO se radicaliza e o primeiro ataque acontece em setembro daquele ano. Com apoio da população, a guerrilha pega de surpresa um posto administrativo português, iniciando uma série de ofensivas entre ambos, já que os portugueses respondiam rapidamente e com violência aos ataques da FRELIMO. O esquema de guerrilha da FRELIMO, porém, funcionava porque era dependente dos camponeses que forneciam a ela informações e alimentos para continuarem as investidas. Isso tornava a classe camponesa uma espécie de parceira dos rebeldes e, com isso, a guerrilha se desenvolve com amplo apoio popular. Portugal, por sua vez, recebeu apoio financeiro de vários países do ocidente, como da Alemanha Ocidental, da França e dos Estados Unidos. Mesmo com esse apoio, porém, em 1972, a FRELIMO estava equipada com melhores armas, fornecidas pela União Soviética e pela China e obtinha apoio popular, o que fez com que tomasse o país ao norte e na metade sul (ISAACMAN, 1983, p. 105). O que se seguiu foi um enfraquecimento das forças portuguesas, já que a imagem da colônia diante de seus apoiadores se deteriorou. Percebendo o fim iminente da colonização em terras moçambicanas, os portugueses tentaram sugerir soluções que os mantivessem no local, uma espécie de “neocolonização” que, inclusive, daria poder para as organizações anti- FRELIMO que surgiram (ISAACMAN, 1983, p. 106). Portugal, então, recebeu um prazo para 17 deixar o governo de Moçambique e, após o período de transição, em 25 de junho de 1975, Moçambique se tornou livre com a eleição do primeiro presidente Samora Machel. Nos anos seguintes, a FRELIMO tentou desenvolver um socialismo moçambicano, porém a questão moral, que veremos a seguir, surgiu como uma espécie de cortina de fumaça para esse novo governo que se instalava. 2.2. A criação do “homem novo” O conflito identitário em Moçambique consistia, de certa forma, em se imaginar como deveria ser o moçambicano livre. No tempo da colônia houve uma política portuguesa conhecida como assimilação, que consistia em tentar transformar o africano em português, ensinando-lhe o idioma, a escrita e motivando-o a trabalhar no comércio. Com essa espécie de conversão, o moçambicano gozaria dos mesmos direitos e deveres de um cidadão português (AZEVEDO, 2003, p. 12). No período pós-colonização, houve uma tentativa de se reconstruir o passado anterior à chegada do europeu. Surgiu em Moçambique, com o governo da FRELIMO, um tipo de socialismo nacionalista, pois, segundo Krakowska, havia uma urgência, sobretudo da parte das elites, em recriar o imaginário nacional, voltando-se ao passado colonial (KRAKOWSKA, 2013, p. 6). Essa definição era importante para as elites naquele momento, pois, dada a heterogenia de Moçambique, havia receio de que houvesse “conflitos internos caso as várias comunidades se identificassem apenas com a sua tribo” (KRAKOWSKA, 2013, p. 6), isto é, havia uma necessidade de orientar a população mais humilde – a maior parte da população – para que a sua força insurgente não se voltasse contra as elites. A FRELIMO assumiu o governo de Moçambique em junho de 1975. O primeiro presidente foi Samora Machel e suas ações primeiras foram no sentido de transformar a consciência política da população moçambicana e desenvolver nela o senso de identidade. Por esse motivo, no Dia da Independência declarou que: “não reconhecemos tribos, regiões, raças ou crenças religiosas (…) reconhecemos apenas moçambicanos igualmente explorados e igualmente desejosos de liberdade e revolução” 7 (ISAACMAN, 1983, p. 112). Desde o momento em que chegou ao poder, a FRELIMO trabalhou num projeto de “morte da tribo” e 7 “We do not recognize tribes, regions, race or religious beliefs (…) we only recognize Mozambicans who are equally exploited and equally desirous of freedom and revolution.” (ISAACMAN, 1983, p. 112 - tradução minha). 18 de criação de um “homem novo”, e para atingir esse objetivo, para construir essa nova nação com esse homem novo, o foco foi usar a educação como ferramenta. Lorenzo Macagno, em seu artigo “Fragmentos de uma imaginação nacional” (2009), retomando Machel, explica detidamente quais são os sistemas educacionais de que trata Machel. Macagno sistematiza as ideias da seguinte maneira: em primeiro lugar, o então presidente avalia a educação tradicional, na qual a superstição ocuparia o lugar da ciência. Para Machel,“na educação tradicional, a tradição erigida em dogma se perpetuaria através dos sistemas de classe, dos grupos de idade (opondo jovens e velhos), dos ritos de iniciação, da poligamia (que condenaria a mulher a um papel subordinado).” (MACAGNO, 2009, p. 10). Em segundo lugar, Machel fala da educação colonial, que já estaria desaparecendo junto com a tradicional, em que condenaria o moçambicano a ser um “‘pequeno português de pele preta’, um instrumento dócil do colonialismo, cuja ambição máxima seria viver como o colono, a cuja imagem fora criado” (MACAGNO, 2009, p. 10). Aqui, Samora seguramente tem em mente a figura do assimilado, ou seja, um africano que conseguira se emancipar de seus ‘usos e costumes’ adquirindo, assim, valores culturais portugueses.”. E, em terceiro lugar, a educação revolucionária, que Machel vai tentar defender e implantar: a educação revolucionária para a criação do homem novo. Aquela que visa implantar a solidariedade entre os homens e é capaz de desenvolver um trabalho coletivo. Seria necessário, [para isso], implantar as bases de uma economia próspera e avançada, fazendo com que a ‘ciência vença a superstição’. [A ideia de Samora Machel é] que o tribalismo, a superstição, a tradição atentariam contra a tentativa de construir a nação moçambicana. Esses elementos operariam no sentido de uma fragmentação, de modo que: ‘Unir todos os moçambicanos, para além das tradições e línguas diversas, requer que na nossa consciência morra a tribo para que nasça a Nação’. (MACAGNO, 2009, p. 21) Embora tenhamos a impressão de que ele tenta se colocar entre os dois sistemas educacionais, criando, deste modo, um equilíbrio ente os dois, Samora Machel indica, com essa ideia de “vencer a superstição” e com as atitudes que tomou no início de seu governo, uma recusa ao conhecimento tradicional. Portanto, sua ideia é construir uma unidade cultural que se inicia na estaca zero, apropriando-se apenas do conhecimento científico, apesar de se colocar contra o conhecimento colonial; há, nisso, uma contrariedade. Em nome dessa diretriz de se recusar o conhecimento tradicional e o colonial, houve uma verdadeira caça às bruxas em Moçambique, em que se proibiu rituais que eram parte dos costumes locais. 19 Ao mesmo tempo, e talvez pela dificuldade encontrada em inserir o moçambicano nessa nova perspectiva, Samora passa a centralizar a sua luta no que ele considerou como um comportamento nocivo de parte dos moçambicanos. A seguir, reproduzimos um trecho de um discurso que ele fez em 1980: “A nossa luta é contra os saboteadores (sic); a nossa luta é contra os preguiçosos; a nossa luta é contra os ladrões; a nossa luta é contra os drogados; a nossa luta é contra os marginais; a nossa luta é contra os especuladores. A nossa luta é contra aqueles que querem oprimir e explorar o povo, roubam os produtos, escondem e depois especulam.” (MACAGNO, 2009, p. 18) Na época em que Samora foi presidente, e para apoiar esse discurso, o governo espalhou cartazes de um personagem chamado “Xiconhoca, o inimigo do povo”, que representava o homem preguiçoso, individualista, que bebia e não queria trabalhar. Atitudes que costumam ser recrimináveis, sobretudo, em sociedades nas quais se valoriza o trabalho e o resultado dele e que, de repente, passaram a ser o foco da luta desse grupo que iria desenvolver a nação moçambicana sobre as bases do socialismo. Essa nova atitude moralista, Macagno enxergou como um certo desencanto pós-colonial, um certo cansaço que abateu o grupo nesse processo entre deixar de ser um grupo de revolucionários e passar a ser um partido, assumir o governo e ter de lidar com questões que precisariam definir o futuro da nação. Uma vez que a FRELIMO assumiu o poder, deixou de ser grupo revolucionário e se tornou governo de Moçambique, de certo modo, adotou o discurso do opressor, do colonizador, enviesado pelo discurso moralista. Segundo Macagno, Samora Machel, sempre que se referia ao tal inimigo do povo, estabelecia uma lógica binária (eles ou nós) e, em geral, ele se referia, como exemplo, aos denominados veteranos, alunos mais velhos, “repententes”, que encarnavam atitudes consideradas deploráveis. Em outro discurso, ele diz: “É preciso terminar com o veteranismo. É preciso terminar com a atitude dos alunos mais velhos, que se recusam a enquadrar nas escolas (...) Eles constituem o foco de indisciplina, o modelo de indisciplina. Se nós quisermos descrever o que é a indisciplina, o liberalismo e libertinagem, apresentaríamos esses alunos. Encontramos neles o foco”. (MACAGNO, 2009, p. 25) Junto a essa abordagem moralista, a FRELIMO também passou de um governo socialista para um governo que, no fim de 1990, se rendeu às políticas neoliberais. É importante considerar que Mia Couto fora colaborador da FRELIMO, mas que deixou a militância por identificar uma mudança de rota ideológica no partido. Em uma entrevista, o escritor explicou esse abandono da causa: 20 “Eu percebi que a visão política, seja de um partido ou do outro, é sempre utilitária e imediata. É uma visão ligada ao poder. Eu não tenho nenhuma vocação para o poder, não o quero. Mesmo na vida quotidiana não quero que a minha existência se faça por imposição de um poder qualquer. Então, não foi só uma ruptura política mas foi também uma ruptura existencial. Eu percebi que aquele caminho não é meu, em outros termos, aquela não era minha praia. A Frelimo que eu abracei por uma causa na altura, e fui muito feliz nesse momento, não é a mesma de hoje. Não a reconheço. Esta é uma Frelimo dos empresários e dos ricos. Não que eu tenha problemas com os empresários, mas um coisa é confundir isso com a aposta política. Eu acho que tem de haver coerência dentro partido. A Frelimo não pode ser ontem comunista, depois capitalista, e agora neoliberal.” (CHAVISSO, 2014) De fato, houve uma mudança de foco nos interesses da FRELIMO, que iniciou o grupo como nacionalista, passou pelo marxismo e, no fim, migrou para o neoliberalismo. Do mesmo modo, quando a luta da FRELIMO passa a ser o combate a esse inimigo interno e a educação formal desse “homem novo”, há um excesso de discurso, em detrimento de ações práticas, visto que o grupo tinha o interesse primordial em desenvolver a nação a partir de uma política social efetiva, que tirasse a população da miséria e garantisse direitos básicos de saúde, educação etc, no entanto, seus discursos e suas ações se voltaram para a correção moral da população. A ideia de “homem novo” não se sustenta, pois, segundo Macagno, o processo de criação de uma cultura é sempre relacional: Não é possível conceber uma cultura “nova” sem a existência de uma cultura anterior à qual se opor; não é possível conceber o homem novo sem antes saber em que consiste o homem velho, cujos vestígios devem ser erradicados. (...) Não há homem novo sem a modificação das bases “objetivas”, “materiais”’; não é possível que ele emirja da simples modificação das superestruturas mentais ou ideológicas. (MACAGNO, 2009, p. 23) Essa medida da FRELIMO de se criar um homem novo evidenciou o cansaço pós- colonial que acometeu o governo moçambicano, por conta da queda do socialismo e do início de uma economia baseada em relações de mercado (MACAGNO, 2009, p. 23). Porém, a necessidade de se instaurar uma espécie de ordem social fez com que a FRELIMO incorresse no erro de se unificar uma sociedade que já havia se pluralizado, demonstrando uma ilusão de unidade que não existia e sequer há de existir. 2.3. A guerra civil moçambicana 21 A guerra civil moçambicana se inicia no período pós-Independência; é, portanto, posterior à essa guerra de libertação. Essas guerras foram travadas de um lado pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), de base marxista-leninista e que foi responsável pela conquista da independência do país, e, de outro lado, pela RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), que se declarava contra o regime comunista. A FRELIMO, segundo Azevedo (2003, p. 67), era a união de 3 movimentos revolucionários formados por intelectuais que atuavam fora de Moçambique: a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), a União Nacional de Moçambique Independente (UNAMI) e a União Africana de Moçambique (MANU). Não é difícil imaginar que a união de três grupos, mesmo que com objetivos parecidos, pudesse gerar conflitos ideológicos internos e, desde o início, a dúvida foi sobre a adoção para Moçambique de um modelo político democrático ou de um modelo autoritário, próximo ao que foi instituído por Lênin. Ainda assim, uma vez no poder, a FRELIMO realizou políticas de base socialista, como a nacionalização dos meios de produção, limitações à propriedade privada, a coletivização de fazendas sob camponeses ao lado de fazendas estatais e a expropriação de empresas de propriedade estrangeira. Também defendia a primazia do partido sobre o Estado, o desestímulo ou abolição da religião, a rápida eliminação do analfabetismo, a delegação nominal de autoridade mínima às assembléias populares, a emancipação das mulheres, o apoio dos movimentos de libertação no Zimbábue e Namíbia e a eliminação do racismo na África do Sul.8 (AZEVEDO, 2003, p. 67) Porém, embora, a princípio, as ações pudessem estabelecer um ambiente mais progressista e mais igualitário no país, as políticas foram implementadas apressadamente e sem diálogo com a população, o que fortaleceu opositores ao regime e deu origem à RENAMO. A RENAMO é um grupo cuja origem é incerta. Enquanto alguns consideram que surgiu por um grupo de portugueses que tinham a intenção de paralisar as atividades da FRELIMO, há quem considere o vínculo com a inteligência da Rodésia. O fato é que a RENAMO recebeu apoio militar e financeiro dos rodesianos para desorganizar a FRELIMO e os motivos para tal objetivo podem estar na composição do grupo: ex-participantes da FRELIMO, cidadãos portugueses e grandes proprietários de terra, ex-militares africanos e portugueses, intelectuais 8 Tradução nossa do trecho: “(…) the nationalization of the means of production, limitations to private property, the collectivization of farms under peasants alongside state farms, and the expropriation of foreign-owned businesses and property. It also advocated the primacy of the party over the state, the discouragement or abolition of religion, the rapid elimination of illiteracy, the nominal delegation of minimal authority to people’s assemblies, the emancipation of women, the support of liberation movements in Zimbabwe and Namibia, and the elimination of racism in South Africa.” (AZEVEDO, 2003, p. 67) 22 que discordavam da guinada à esquerda proposta e implementada pelo grupo que estava no poder. Azevedo explica que muitas das novas políticas adotadas pela FRELIMO foram colocadas em prática às pressas; as fazendas e cooperativas se tornaram, naquele momento, o novo modo de produção e teve como resultado um descontentamento nas áreas urbanas e no campo (AZEVEDO, 2003, p. 157). A RENAMO, por sua vez, se tornou um grupo de guerrilha que, com apoio externo, criou uma estratégia de batalha que dependia de poucos homens. Essa estratégia consistia basicamente em atacar com pequenos grupos, cerca de 200, 300 homens, dividindo e confundindo as forças da FRELIMO (AZEVEDO, 2003, p. 157). Seu objetivo era paralisar o país por meio da destruição da infra- estrutura de comunicação e transporte e da eliminação ou punição física dos líderes, membros e simpatizantes da FRELIMO, começando nas áreas rurais e movendo-se lentamente para os centros urbanos. (AZEVEDO, 2003, p. 157)9 Para agravar a crise, alguns membros da FRELIMO se juntaram à RENAMO, caso de Jorge Costa, alto oficial de segurança e embaixador em Lisboa, que foi também o primeiro secretário da embaixada em Moçambique em Harare e o diretor financeiro da presidência em Maputo. Diante desse cenário, a FRELIMO decidiu armar a população. Em 1979, foi retomada a lei que definia a pena de morte aos simpatizantes da RENAMO. A situação se agravou, com o passar dos anos, chegando ao ápice de a RENAMO plantar bombas pelas ruas da capital e da Beira e minas nas praias de Maputo (AZEVEDO, 2003, p. 160). Por conta da gravidade da situação, que causou a morte de milhares de moçambicanos, em outubro de 1986 aconteceu um encontro na Zâmbia entre Machel (o então presidente de Moçambique), o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, e o presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, com o objetivo de criar “um plano ou conspiração, agora confirmado, de derrubar o governo do Malawi por sua suposta assistência à RENAMO. A morte de Machel em um acidente de avião quando ele retornou do encontro complicou ainda mais a situação moçambicana” (AZEVEDO, 2003, p. 160). Em 1989, devido às atividades da RENAMO em algumas províncias do centro e do sul, a FRELIMO passou a cogitar um acordo de paz. O mesmo só aconteceu, finalmente, em 1992, 9 Their goal was to paralyze the country through destruction of the communication and transportation in- frastructure and elimination or physical punishment of FRELIMO leaders, members, and sympathizers, beginning in the rural areas and slowly moving into the urban centers. (AZEVEDO, 2003, p. 157) 23 quando a RENAMO tornou-se partido político com o qual concorreu às eleições presidenciais em 1994 e 1999, perdendo as duas para a FRELIMO. 2.4. A história em Terra sonâmbula Contamos, nos itens anteriores, um pouco da história moçambicana, sobretudo os eventos que levaram à guerra de libertação e à guerra civil, pois eles são pano de fundo das sucessões de fatos que ocorrem em Moçambique e que também são contados no romance. Mais que isso, a destruição causada sobretudo pela guerra civil, uma das guerras mais sangrentas da história da África, povoa o imaginário dos personagens de Terra sonâmbula, pois eles convivem diariamente com o espaço esfacelado, com o horror da convivência com a morte, com a dureza da luta pela sobrevivência. Os personagens do romance, diante do mundo degradado que encontram, optam, muitas vezes, pela fuga que as estórias possibilitam, optam pelo esquecimento e até mesmo encontram na morte um lugar de maior acolhimento do que na vida que levam. Desde a colonização até o governo da FRELIMO, reinou em Moçambique uma tentativa de apagamento cultural. Da parte dos portugueses, a intenção era “apagar a cultura dos nativos e impor os costumes europeus” (KRAMA, 2016 p. 37), depois, com a FRELIMO, houve a tentativa de criar um homem novo, como explicamos anteriormente, rejeitando a cultura europeia, que os submeteu, mas, também, buscando partir de uma espécie de estaca zero, de uma negação de sua própria cultura para construir a nova cultura moçambicana. Essa falta de direcionamento, de uma rota para a qual seguir como nação, se agravou quando os fluxos migratórios se tornaram ainda mais intensos. Segundo KRAMA, Esses corredores de passagem de pessoas criaram um mundo paralelo de convivência, espaços de clandestinidade e acesso informal aos bens, como terra. Ficando as populações vulneráveis a ações de xenofobia e também a práticas ilegais de setores vinculados ao institucional e ao mercado informal, criando um cenário permanente de instabilidade e não permitindo que os migrantes de fato possam se vincular ao novo lugar (KRAMA, 2016 p. 45). Não havia, portanto, espaço nem comunidade para se articular uma nova cultura, para associar tradição e modernidade e, consequentemente, para se pensar em um projeto de nação. Krama explica que a geração de escritores e intelectuais que viu em Moçambique uma possibilidade de se construir uma pátria livre, a partir dos anos 90, tornou-se menos utópica e abriu mão de pensar em um futuro para o país (KRAMA, 2016 p. 45). O romance Terra sonâmbula de Mia 24 Couto está exatamente entre as obras que esse autores e o próprio Mia Couto escreveu que, apesar de afirmarem a importância de se sonhar com um futuro mais digno, apresentam um horizonte incerto. Apesar dessa incerteza, vemos no romance de Mia Couto uma tentativa de apresentar a cultura moçambicana com toda a sua heterogenia, funcionando, portanto, como um registro cultural daquele povo. Mesmo se tratando de um romance em língua portuguesa, a língua do homem branco colonizador, a escrita de Mia Couto aponta para o modo de falar do moçambicano e não do português, recriando na narrativa “a maneira como a população se apropriou do idioma trazido pelo colonizador, com novas regras, novas construções simbólicas” (KRAMA, 2016 p. 52). Além disso, Mia Couto fez transparecer no conteúdo do romance o caldo cultural de que Moçambique é feita, representado pelos diferentes povos que viviam no país – os indianos, os portugueses, os indígenas, os negros – e pelas estórias que compõem o imaginário dos indivíduos que compartilham o território. Porém, em vez de retornar a esse passado mítico, no qual o moçambicano não havia feito contato com o português, o que Mia Couto realiza em Terra sonâmbula é o ato de “se religar a uma ancestralidade que ainda se mantém presente e unir novamente o povo fragmentado pela imposição de novos costumes” (KRAMA, 2016 p. 53). Depois de tanto esquecer, é preciso lembrar, reencenar, como explica Krama, o passado, e o escritor, portanto, se coloca no papel de encontrar uma espécie de ajuste entre a história e o imaginário moçambicano. Mia Couto mobiliza, reinventa a história por meio do imaginário. Entendemos imaginário, aqui, como algo que é próprio do homem, “como a faculdade da simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o ‘homo erectus' ficou em pé na face da Terra” (DURAND, 2004, p. 117). O imaginário é, portanto, repositório cultural de mitos, lendas, elementos simbólicos importantes da tradição cultural de um povo, os quais são inseridos no conteúdo da narrativa de Mia Couto, ajudando a contar a história moçambicana, a contar o moçambicano. Couto mantém essas tradições vivas ao relembrá-las, atualizá-las para o romance. O modo como Mia Couto realiza essa manutenção da tradição é por meio do uso de tipos de textos característicos da literatura oral africana, como os provérbios e os contos, para construir o romance. Provérbios são pequenas narrativas cristalizadas, sentenças que reproduzem uma sabedoria de outros tempos. Ana Mafalda Leite explica que “esse tipo de micronarrativa, de certo modo, funciona como uma síntese especular da unidade narrativa 25 maior, o conto, aferindo enigmática e redundantemente os seus sentidos mais significativos” (LEITE, 2012, p. 173). Esse gênero, ainda de acordo com Leite, é de grande utilidade para populações africanas, como os Yorubas, os Zulus e os Tsongas, para educar e transmitir conhecimentos, isto é, fazer uma ponte entre o mundo tradicional e o mundo moderno. Dentro do romance Terra sonâmbula, há diversos provérbios cujo sentido aparece modificado pelo modo como Mia Couto os reescreve, a partir da lógica que os personagens recriam em função das vivências. De certo modo, esses provérbios alterados representam formas degradadas do conhecimento popular, isto é, da tradição, e essas pequenas alterações mostram que essa sabedoria cristalizada passa a ser algo repetido à exaustão e, portanto, precisa ser revista, deve ser transformada, pois ela se perdeu com a empresa colonial e foi destruída pelas guerras que se seguiram à independência. Há, também, no romance, a presença de parábolas, excertos de estórias que são costuradas às macro narrativas (a estória de Kindzu e a de Muidinga e Tuahir). Leite (2012, p. 176) entende que toda a estrutura de Terra sonâmbula tem efeito paródico, inclusive nesse ato de inserir diferentes tipos de textos em outros textos. Concordamos com essa leitura, pois percebemos que a inserção deles é feita de modo a alterar-lhes o sentido ou, no caso dos provérbios, sobretudo, deturpá-los. A própria organização do romance ajuda-nos a identificar essas parábolas, pois muitas delas dão título aos capítulos. Há, por exemplo, o fazedor de rio, a lição de Siqueleto, a estória das idosas profanadoras, a estória de Nhamataca, a estória do pastor, entre outras. São estórias que participam do conhecimento popular africano, como motivos de contos da tradição oral, que o autor encaixa à narrativa maior. Alguns tipos textuais da literatura produzida em África, sobretudo a que faz parte da tradição oral, são replicados na obra de Mia Couto e compõem o que consideramos traços de oralidade no romance estudado. Esses tipos textuais costumam ser utilizados por contadores de estórias da literatura oral, pois há, segundo Vansina (2010)10, as formas estabelecidas e as formas livres. Dentro das formas estabelecidas há os conteúdos fixos, como o poema e a fórmula, e os conteúdos livres, no que diz respeito à escolha de palavras, como a epopeia e a narrativa. O poema e a fórmula apresentam uma estrutura específica, um tipo de texto que pouco se altera, e que precisa ser repetido com maior rigor, maior precisão, quase do modo como foi criado. O poema é, como definiu Vansina, uma espécie de rótulo, um texto que não pode ser modificado. É um material que deve ser decorado, conhecido de memória, como no caso das 10 Todos esses tipos literários e suas explicações retiramos de História geral da África I, 2010, p. 142-144. 26 canções. A fórmula, por sua vez, diz respeito aos provérbios, orações, charadas e outros textos que, em geral, chamamos de frases feitas, que não podem ser alterados, a menos que se modifiquem aspectos gramaticais. Por se tratarem de formas fixas, pode-se dizer que a transmissão delas é “mais precisa” do que em outros tipos de texto. No entanto, explica Vansina, elas podem trazer alguma dificuldade de compreensão, já que acumulam arcaísmos ou, em outros casos, apenas o autor é capaz de explicar os sentidos de cada palavra e de toda a expressão, o que nem sempre é feito. Em geral, junto a essas formas textuais, há uma mensagem explicativa, mas, ainda assim, alguns dos significados podem não ser explorados e apresentados aos ouvintes pelo autor. A epopeia, por sua vez, consiste em uma forma que permite ao artista uma certa liberdade para contar a estória com suas próprias palavras, considerando algumas regras formais, como as rimas, o número de sílabas e os padrões tonais, além do fato de que a base da estória é proveniente de um original. Ainda assim, não há, segundo Vansina, “um verdadeiro arquétipo para esses poemas épicos porque a escolha das palavras é deixada ao artista” (VANSINA, 2010, p. 144). E as narrativas, por fim, são as formas com as quais se consegue ter maior liberdade, embora “seu meio social pode, às vezes, impor-lhe uma fidelidade rígida às formas” (VANSINA, 2010, p. 144). Nessa forma literária, é possível recombinar e reajustar episódios, recriando à seu modo as descrições e outros desenvolvimentos. Terra sonâmbula, porém, é um romance que parece incorporar a tradição oral, como os tipos textuais elencados em nota, sobretudo a narrativa e a fórmula, criando uma obra que, do ponto de vista da forma, encaixaria tipos de textos tradicionais africanos em ambiente romanesco. A narrativa em sua forma e em seu conteúdo se estrutura pelo encaixe de tipos textuais e de estórias. Leite (2012, p.173) considera que a narrativa se constitui a partir do conceito de mise-en-abîme, isto é, como uma narrativa construída a partir de espelhamentos internos, em que uma estória se encaixa na outra, sobrepondo-se e intercalando-se várias delas. A forma e o conteúdo do romance Terra sonâmbula criam esses espelhamentos nos quais diferentes tipos de texto se espelham e se revolvem dentro de um só enredo e diferentes estórias ajudam a construir a estória maior do romance. O imaginário cultural moçambicano, portanto, está encaixado na tessitura do romance de Mia Couto. Esse encaixe só é possível porque o escritor imagina uma realidade na qual essas estruturas, esse imaginário, convivem dentro de seu projeto ficcional. O imaginário cultural é uma das fontes de onde os escritores retiram os elementos da imaginação, que devem funcionar como pressupostos na construção de suas obras ficcionais. A imaginação é “‘um equilíbrio 27 antropológico’ que constitui o humanismo e o ecumenismo da alma humana” (DURAND, 1964, p. 99), isto é, por meio da imaginação é possível criar mundos mais humanos e até mesmo engendrar – ou, nas palavras de Mia Couto, sonhar – uma realidade em que o imaginário cultural moçambicano possa ser lido em português ou em outros idiomas, recuperado por meio da leitura e, com isso, possa ser contado a outros moçambicanos. A reescrita dos mitos e lendas moçambicanos é projeto ficcional que utiliza o espaço do romance, um gênero literário português, não para competir com ele, mas para coexistir com ele, para se ancorar no texto escrito e permanecer inscrito na cultura moçambicana. Mia Couto mobiliza o imaginário cultural de Moçambique pela via da imaginação. A imaginação é “dinamismo prospectivo que através de todas as estruturas do projeto imaginário, tenta melhorar a situação do homem no mundo” (DURAND, 1964, p. 98). O escritor cria, portanto, uma possibilidade de encontro, um espaço comum para um povo que se encontra deslocado dentro do país e no mundo (como refugiados). 28 3. CAPÍTULO 2 TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM TERRA SONÂMBULA O romance Terra sonâmbula apresenta uma intrincada combinação, em sua estrutura, de tradição e de modernidade, sobretudo no modo como constrói as relações entre os personagens e no modo como eles se comunicam entre si. O autor expõe essas relações entre tradição e modernidade, buscando evidenciar que não há limites definidos entre eles, embora seja possível reconhecê-los quando os confrontamos e, sobretudo, quando nos dedicamos a observar o modo como os personagens desenvolvem esse conflito no romance. Escrito no mesmo ano em que a FRELIMO (Frente de Libertação Nacional de Moçambique) e a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique) assinaram o acordo de paz que colocou fim ao período de guerra civil (1992), o romance deixa entrever as tensões políticas e ideológicas que abalaram o território, mas sua abordagem é sempre a de deixar em suspenso a possibilidade de uma solução para essas tensões. Para construir a nossa leitura, nos valemos dos trabalhos de diversos estudiosos da obra de Mia Couto, entre eles: Anita Martins Rodrigues de Moraes (2018), que nos mostrou uma outra perspectiva sobre o problema da oralidade no romance; Everton Fernando Micheletti (2016), que, entre outros aspectos, noa ajudou a entender a ideia de estrada que se desenvolve na narrativa; Daniela de Brito (2014), que nos indicou caminhos para interpretar a imagem do mar no romance; Flavia Renata Machado Paiani (2013), essencial para que discutíssemos os mitos que são apresentados no romance; Philip Rothwell (2015), com informações relevantes sobre o domínio da escrita em Moçambique; Fábio Salem Daie (2013), cujos estudos voltados para o domínio da história moçambicana nos ajudaram a compreender Mia Couto, enquanto escritor e cidadão moçambicano; e, por fim, Kamila Krakowska (2017), cujo olhar para a sociedade moçambicana nos ajudou a identificar e entender os discursos da classe política no romance. 3.1 As múltiplas estórias O romance Terra sonâmbula é composto por diversas estórias que nos ajudam entender a História de Moçambique e complementam as histórias de vida dos personagens. As estórias 29 que compõem o tecido do romance são mais importantes do que os personagens, estes, em sua maioria, planos e com pequena profundidade psicológica. Muitos deles surgem no romance com o único propósito de contar, transmitir uma mensagem ou repassar algum ensinamento. Embora haja, de algum modo, a intenção de comunicar valores por meio dessas estórias, recuperando a ideia de que, por meio delas, é possível incutir nos ouvintes os ensinamentos dos mais velhos, há em Terra sonâmbula uma espécie de desvio dessa lógica, já que não há uma definição de qual vai ser o valor de que o receptor das estórias deve se apropriar, inclusive porque muitos personagens reconhecem não saber ao certo qual é o ensinamento adequado em um mundo degradado. Do mesmo modo que a própria tradição, entendida como os valores estabelecidos pela cultura moçambicana, pelas comunidades tribais, encontra-se em processo de degradação ou superação ou ultrapassagem que o contato com a cultura, a civilização e as formas de sociabilidade europeia produz. E isso se verifica, por exemplo, no desenvolvimento da escrita, que recorre a ambiguidades e distorções provocadas pelos neologismos que o autor cria, por meio da união de palavras diferentes (como em “brincriação”), pelo acréscimo do sufixo _r, pela criação de adjetivos a partir do acréscimo do prefixo _des, entre outros exemplos11. A matéria verbal de Terra sonâmbula não é solo firme pelo qual possamos percorrer, sequer pode ser simplesmente recebida pelo leitor num gesto de aceitação. Ao contrário, ela sempre coloca o leitor em uma posição reflexiva, de análise do que se quer dizer, mas também de escolha entre os sentidos que o texto nos possibilita enxergar e os diferentes sentidos que ele coloca em jogo. Inicialmente, convém destacar a estrutura da narrativa, que se organiza a partir de dois eixos narrativos principais, os quais vão se encontrar ao final. O primeiro deles se inicia no primeiro capítulo e conta a estória de Muidinga e Tuahir, que estão num espaço que se assemelha a uma floresta e procuram um lugar seguro para ficar. A narração é em terceira pessoa e o narrador é intruso, pois muitas vezes ele decifra os pensamentos dos personagens. Os dois “fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho.” (COUTO, 2016, p. 9). O espaço se apresenta desde o início da narrativa como uma espécie de personagem do romance, o principal deles, aquele por quem tudo passa e pelo qual as demais estórias acontecem. O espaço, apesar de ser uma categoria extrínseca, apresenta-se como algo intrínseco 11 Quem fez o mapeamento desses procedimentos de natureza fonético-morfológicos foi Anita M. R. Moraes (2009, p. 16) na nota de rodapé número 6 de sua dissertação intitulada Inconsciente teórico. 30 aos personagens e à narrativa, já que nos ajuda a compreender seus modos de pensar e agir e dão o tom dos sentimentos dos personagens. Por exemplo, quando os personagens Muidinga e Tuahir começam a ler as estórias de Kindzu, o espaço começa a se modificar, seja pelo aparecimento de elementos que antes não estavam ali (como uma árvore que surge do nada), seja pela mudança na vegetação. Kant entende o conceito de espaço como uma representação que está na sensibilidade do homem e não como algo exterior a ele: “os objetos em si de modo algum nos são conhecidos (…) os por nós denominados objetos externos não passam de representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço (…).” (KANT, 1999, p. 77). Em Terra sonâmbula, os espaços mimetizam a atmosfera de desolação, assim como o estado de solidão e desagregamento em que vivem os personagens ou, como explicou Kant, representam a sensibilidade dos sujeitos que nele vivem. Chauí explica que, para Kant, tanto o espaço, quanto o tempo são categorias independentes da experiência sensível, isto é, não é porque o sujeito cognoscente percebe as coisas como exteriores a si mesmo e exteriores umas às outras que ele forma a noção de espaço; ao contrário, é porque possui o espaço como uma estrutura inerente à sua sensibilidade que o sujeito cognoscente pode perceber os objetos como relacionados espacialmente. (CHAUÍ, 1999, p. 9). Isso nos leva a considerar que o espaço é uma representação intrínseca aos personagens, porque é intrínseca ao escritor, pois inerente ao seu modo de pensar e à sua linguagem. Portanto, não é exagero considerar que o espaço da narrativa reconstrói o espaço que se quer descrever de Moçambique. A narrativa é fragmentada, repleta de vozes que irrompem no tecido do romance, repleto de estórias pessoais e estórias que fazem parte da tradição moçambicana, porque o espaço, ainda mais em situação de guerra, o é. O romance é dividido em duas macronarrativas: as situações vivenciadas por Muidinga e Tuahir contadas por um narrador em terceira pessoa e os cadernos de Kindzu, relato que esse personagem escreveu, os quais são lidos por Muidinga. 3.1.a A macro narrativa de Muidinga e Tuahir Muidinga e Tuahir são personagens que, desde o início do romance, procuram um lugar para se esconder num espaço que se assemelha a uma mata, um campo. Há um tom agônico, no modo como a estrada é descrita. 31 Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. (COUTO, 2016, p. 09) O estar próximo ao chão aponta para a aprendizagem da morte, “a ambientação se constrói com a ideia de peso, o que impele os (sobre)viventes a permanecerem no chão à espera da morte” (MICHELETTI, 2016, p. 19). Os personagens mimetizam o lugar em que se encontram, se assemelham a ele nas cores das vestes e nessa aura de desolação que parece acometer a tudo e a todos. O narrador os descreve como cambaleantes e, com isso, faz pensar que, embora estejam em pé, há mais chances de que venham a cair e, desta forma, possam ficar mais próximos do chão, ou seja, da morte. Ainda que estejam em busca de um local seguro, estão em uma espécie de viagem cuja chegada parece ser a morte. Encontram, enquanto caminham, um machimbombo (um ônibus) carbonizado, mas em condições de mantê-los a salvo dos bandos. A estória se passa no período de guerra civil entre os grupos FRELIMO e RENAMO12, por isso a necessidade de procurar um refúgio, um local que os mantenha escondidos. Tuahir indica que usar o ônibus como esconderijo pode ser uma saída: – Nós nunca mais vamos sair daqui. – Vamos, com a certeza. Qualquer coisa vai acontecer qualquer dia. E essa guerra vai acabar. A estrada já vai-se encher de gente, camiões. Como no tempo de antigamente. (COUTO, 2016, p. 13) Contudo, o que ele expressa, com sua fala, é o impasse que o ônibus, paradoxalmente, significa. Ambos estão em uma estrada que não pode ser transitada. Uma estrada em que o mais seguro é estar escondido dentro de um ônibus que não se move, o que por si só já é uma contradição, e do qual nunca sairão. Mais do que a estrada, do que o espaço, é “como se o sentido progressista do tempo estivesse bloqueado, já que não se pode avançar pela estrada” (MICHELETTI, 2016, p. 21). Dentro do ônibus encontrado por Muidinga e Tuahir ainda há corpos queimados que são retirados e enterrados pelos dois. Do lado de fora, há um corpo ainda quente que fora baleado 12 Explicamos brevemente a origem dessa guerra civil e alguns de seus desdobramentos no capítulo 1 deste trabalho. 32 e que, depois vamos descobrir, pode ser do personagem Kindzu. Ao seu lado, estão alguns cadernos que são guardados por Muidinga. Todas as noites o menino lê as histórias dos cadernos para Tuahir, num gesto que inverte a relação usual em que o mais velho é quem conta as estórias para o mais novo. Além disso, o ato de contar, aqui, vem da palavra escrita, não de uma manifestação oral em essência. O que pode indicar a hipótese de que a escrita não deve tomar o lugar da fala, da cultura oral, mas sim, dar continuidade ao ato de contar tentando preservar a tradição da sabedoria e do aprendizado que advém das narrativas orais. Essa relação de valor entre o oral e o escrito é sugerida no romance, já que, quando Muidinga começa a ler os cadernos, o narrador descreve a cena da seguinte maneira: “O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que, lenta e cuidadosa, vai decifrando as letras.” (COUTO, 2016, p. 13). De certa maneira, a voz de Muidinga é despertada depois de seus olhos, pois sua voz, no caso da leitura, só é acionada depois das leituras dos cadernos. A leitura das palavras escritas tem o poder de abrir seus olhos para um universo outro, para o conhecimento de um imaginário que vai se revelar. À medida que o menino lê as estórias, os dois personagens passam a vivenciá-las; essas estórias modificam a forma como vêem o mundo, pois a paisagem começa a se modificar para ele e para Tuahir, após as leituras. O romance é literal nesse sentido - “os escritos de Kindzu lhe começam a ocupar a fantasia” (COUTO, 2016, p. 48). Essas palavras, quando lidas, fornecem a Muidinga uma espécie de memória emprestada, algo de que se lembrar e em quê pensar além da questão da sobrevivência e do alento em uma terra destruída. Afinal, os cadernos de Kindzu se tinham tornado o único acontecer naquele abrigo. Procurar lenha, cozinhar as reservas da mala, carretar água: em tudo o rapaz se apressava. O tempo ele o queria apenas para mergulhar nas misteriosas folhas. (COUTO, 2016, p. 34) Em muitos momentos, o menino chega a acreditar que faz parte daquelas estórias, como quando passa a suspeitar que pode ser Junhito, o irmão mais novo de Kindzu, ou quando ele (Muidinga) e Tuahir tentam fingir que são Kindzu e seu pai, Taímo. Apesar da falta da memória, Muidinga, assim que encontra os cadernos, lembra-se instantaneamente da capacidade de ler, o que não deve ser ignorado na análise do romance. De algum modo, a capacidade da leitura se manteve no menino e são essas leituras que o mantêm vivo, se considerarmos que elas servem de alento para os dois deslocados, já que a imaginação suplanta a realidade, operando como refúgio diante 33 de um mundo incerto e arruinado que lhes permite ter um momento de fuga daquele ambiente hostil, isto é, da guerra civil e dos efeitos para a população moçambicana. É nesse ambiente conflituoso, de guerras entre os grupos, que estão Muidinga e Tuahir. Além das leituras e de buscar se esconderem dos bandos que atacam a população espalhando morte e horror, os personagens se deslocam pelo espaço, em geral para procurar alimento. Nessas ocasiões, os dois dialogam com outros personagens, mas também entre si. Tuahir conta a Muidinga, após muita insistência, como o encontrou e por que decidiu cuidar do menino. Segundo o velho, “uma noite lhe pediram para ajudar a enterrar seis crianças recém-falecidas” (COUTO, 2016, p. 51), entre elas, o menino, que começou a se mexer demonstrando estar vivo. Tuahir fingiu ser parente dele e pediu aos demais que não o enterrassem. A partir daquele dia, ensinou-lhe a andar, falar, pensar, como se fora o seu próprio pai e o narrador sugere que o velho já muito sentia falta de ser pai. O que quase matou o menino, segundo Tuahir, foi o fato de ter se alimentado de mandioca venenosa. Ao tornar-se seu tutor e acompanhante de viagem, o velho dá a ele o nome de um de seus filhos, filhos estes que já teriam se esquecido do pai àquela altura. Muidinga também se esquecera de seus pais. Esses esquecimentos contrastam, não sem certa ironia, com as memórias que os cadernos preservam. Estamos diante de personagens cuja memória sucumbe ou se dilui em face de uma nova e moderna tradição, a da escrita, que se introduz nesse mundo e que depende apenas da leitura para ser recordada. A seguir, acontece uma série de encontros com personagens que são, na realidade, personagens de contos moçambicanos da tradição oral que são recontados dentro da estrutura do romance, dialogando com os personagens que Mia Couto cria. Primeiramente, Muidinga e Tuahir são raptados por Siqueleto. O personagem lança sobre eles uma rede e os joga em um buraco e sua intenção, Tuahir esclarece, é semear os dois, de modo que, a partir deles, nasça mais gente e a aldeia volte a existir. O projeto de Siqueleto é permanecer, é dar continuidade ao povo moçambicano, de modo que ele resista aos perigos da guerra e, consequentemente, se mantenha enquanto cultura e enquanto comunidade. Paiani entende a estória de Siqueleto também como um desdobramento dos horrores da guerra civil, pois muitas aldeias, quando não foram destruídas e dizimadas pelos bandos, foram abandonadas por seus habitantes (PAIANI, 2013, p. 83). Porém, Siqueleto se coloca um papel de guardião da cultura daquela região, Siqueleto não é mero reflexo da aldeia abandonada. Ao perceber-se como guardião daquele lugar, ele próprio foi dando continuidade à história dali. Mas a história é feita por homens – daí a necessidade de fazê-los nascer, de semeá- 34 los, tal quais árvores. Advém desse imperativo a decisão de enterrar Tuahir e Muidinga. (PAIANI, 2013, p. 85) Muidinga, então, encontra um pedaço de madeira e escreve algumas palavras no chão. Siqueleto pede a ele que escreva seu nome em um tronco de árvore, pois o ato faria com que sua aldeia continuasse: “ele queria aquela árvore para parteira de Siqueletos, em fecundação de si” (COUTO, 2016, p. 69). E, mais uma vez, a escrita aparece com essa característica de continuidade, de manutenção da ideia de comunidade. Impressionado com as estórias de Siqueleto, Muidinga se questiona se não há algum tipo de pólvora que explodiria os homens sem matá-los. Tuahir, à vista disso, confeccionou um tabaco para ele e Muidinga fumarem. Ele diz ao menino “Acreditaste em mim? Fizeste bem. (...) não confies em homem que não sabe mentir” (COUTO, 2007, p. 68). Tuahir, com essa fala, ensina ao menino a imaginação, pois, segundo Paiani, “a mentira que o ‘tio’ lhe contou foi capaz de despertar no miúdo a imaginação, o vislumbre de um mundo em que a morte gerasse vida, em que ‘do homem explodido nascessem infinitos homens’” (PAIANI, 2013, p. 87). Tuahir ensina ao menino um mundo de possibilidades que atravessa a realidade, é maior e mais suportável – porque inventada – do que ela. Quando os dois estão indo embora, liberados por Siqueleto, vêem-no colocar o dedo no ouvido tão profundamente até se ouvir uma espécie de estouro. Ao remover o dedo, o homem sangra até se transformar em semente. Siqueleto, o último de sua aldeia, transforma-se em semente ao ouvir a palavra escrita. O romance sinaliza que a continuidade do povo moçambicano está vinculado, de algum modo, à palavra escrita, porque ela fecunda a voz, abre os olhos dos leitores, promove a manutenção da memória e, consequentemente, da cultura de um povo. O próximo personagem com quem os dois deslocados se encontram é Nhamataca, o fazedor de rios. Tuahir já o conhecia; diz terem trabalhado juntos no período colonial. O velho e o menino caem no buraco que Nhamataca está abrindo com a finalidade de fazer um rio. Apesar da descrença dos dois, Nhamataca explica que sua ideia é fazer com que o rio se vincule ao mar, trazendo uma espécie de união dos povos e/ou dos sonhos, como se o mar tivesse essa função de unir as pessoas: “por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas”. (COUTO, 2016, p. 86). A ideia de parto se assemelha à ideia de semente de Siqueleto e ambas remetem no romance ao nascimento ou renascimento de um povo, de uma cultura, como uma tentativa desesperada de preservação e de continuidade. 35 O mar, de acordo com a análise de Daniela de Brito sobre outros romances de Mia Couto, relaciona-se em com a entrada do colonizador português em terras africanas, enquanto o rio seria um espaço essencialmente moçambicano (BRITO, 2014, p. 32). O mar, sobretudo, guarda, na análise de Brito, o sentido de viagem, pois foi a partir dele que os portugueses aportaram na região. Em Terra sonâmbula o mar é viagem, mas é, também, ao nosso ver, uma espécie de não-lugar (voltaremos a esse assunto, quando falarmos sobre a personagem Farida), como um espaço que garante certa neutralidade e até certo distanciamento em relação ao que acontece em terra. A ideia de o rio alcançar o mar parece se relacionar com a ponte que precisa existir entre o português e o moçambicano, pois uma cultura já faz parte da outra, não há como separá-las. O mar, no romance que estamos estudando, é, duplamente, refúgio e isolamento da vida em sociedade e é, contraditoriamente, o que une os homens, ainda que isso implique os conflitos inevitáveis e as negociações necessárias para a acomodação de duas culturas profundamente distintas. Essa união que o mar promove remete à estória que Tuahir conta a Muidinga. A ideia de Nhamataca, segundo Tuahir, vem de sua própria origem. Seus pais se conheceram estando cada um de um dos lados de um rio. A distância impedia que se enxergassem, a ponto de o pai não reconhecer o outro como mulher, mas esse contato, mediado pelo rio, fez com que os dois quisessem permanecer juntos. A lição de Nhamataca é nenhum rio separa, antes costura o destino nos viventes. A prova era o seu nascimento. Agora, ao gerar um rio, Nhamataca paga um dívida para com um tempo mais antigo que o passado. Talvez que um novo curso, nascido a golpes de sua vontade, traga de volta o sonho àquela terra mal amada. (COUTO, 2007, p. 87). O rio representa para Nhamataca uma fonte de esperança, já que ele une as pessoas, torna-as mais próximas ou até mesmo parte de uma mesma família ou uma mesma comunidade. Tuahir decide ajudar Nhamataca a cumprir com o seu destino, sob o argumento de que um rio poderia facilitar a viagem dos dois e, em vez de esperar na estrada, como estavam fazendo, fariam o próprio caminho. E eis que vem a chuva, a mais torrencial de todas, e o rio nasce, mas leva Nhamataca à morte. Podemos comparar a estória de Nhamataca com a de Siqueleto, pois ambos retornam ao seu lugar de origem, voltam a ser semente, recuperam a sua nascente, o lugar em que nasceram. E ambos o fazem por meio da água: Nhamataca ao ser levado pela correnteza de um rio que ele mesmo criou, Siqueleto ao definhar em fios de água e transformar-se em semente. 36 Rothwell entende o rio, em Terra sonâmbula, como a representação do inconsciente. Por isso é que o início do romance é seco, como o é o inconsciente de Muidinga, tomado pelo esquecimento, ao contrário de Kindzu, cujas estórias são úmidas desde o início. Rothwell explica que ele [Muidinga] não tem qualquer contacto com o seu inconsciente devido ao trauma que sofreu, vivendo a dorida realidade de um país destruído pela guerra. Por seu turno, Kindzu habita o mundo onírico onde tudo pode acontecer e onde, efetivamente, tudo acontece. (ROTHWELL, 2015, p. 224). Aos poucos, o mundo de Muidinga vai se umedecendo, ao passo que sua memória vai se fazendo presente, vai sendo recuperada. E não se trata apenas de sua memória individual, mas também de sua memória como moçambicano, da memória dos costumes, de sua cultura. A viagem de Muidinga, que costuma ser considerada iniciática, é de recuperação do passado, de reapropriação dos costumes de seu povo. As estórias mencionadas demonstram dois aspectos de tradição e, no caso da de Siqueleto, de modernidade que buscamos apontar neste trabalho. Como tradição, as ideias de Siqueleto de reconstrução da aldeia e de retomada do senso de comunidade que fora perdido com a colonização, mas, também, por causa das guerras ocasionadas por disputas ideológicas e políticas. No caso de Nhamataca, também há essa sugestão de retorno ao passado e de uma união que só seria possível na ideia tradicional de comunidade. Como modernidade, a inserção da escrita como algo que pertence aos mais novos (Tuahir e Siqueleto a desconhecem), a crença de que a escrita pode fazer a cultura do povo se perpetuar, como se pudesse recuperar o passado, registrá-lo e enviá-lo para o futuro. Não há, porém, da parte de Mia Couto e no modo como conduz a narrativa, uma escolha pelo que é mais adequado: voltar-nos para a tradição ou para a modernidade. Não há julgamento moral ou olhar maniqueísta para nenhum dos dois. A modernidade é quase que um modo de retomar a tradição, pois sequer se diferencia dela, e a tradição se mistura à modernidade, deixa seu lastro nela; forma-se uma moderna-tradição. E, se por um lado há certo sentido nisso, pois, de fato, não há como separar tradição e modernidade de modo estanque, por outro, recaímos no problema já mencionado sobre as tensões ideológicas as quais permeiam a cultura moçambicana e ao romance como gênero. O romance, uma criação europeia, nasceu junto com a burguesia e com as modificações nas formas de vida que vieram com essa nova classe social. Quando o romance adentrou em solo africano, ele levou consigo sua natureza ocidentalizada; 37 “a própria situação dos escritores africanos consistia em, ao utilizarem as línguas europeias, conferir extrema atenção em distinguir aquilo que era nativo do país e o que lhe era estrangeiro” (KI-ZERBO, 2010, p. 680), uma situação paradoxal, já que, uma vez criado o gênero, ele não tem mais uma autoria. De certo modo, a própria ideia de que a oralidade é essencialmente africana e a escrita é europeia, isto é, oralidade é tradição e escrita é modernidade, esconde uma série de preconceitos e questões que demandam maior reflexão. De acordo com Ana Mafalda Leite, “insistir numa visão monolítica e indiferenciada de uma estética africana é uma forma também de negar a heterogeneidade e complexidade do universo africano.” (LEITE, 2012, p. 25), pois se assume que esse continente permaneceu durante toda a sua existência até o encontro com o europeu vivendo, em sua totalidade, somente na oralidade, o que não é verdadeiro. Nessa linha, Philip Rothwell vem nos lembrar de que a presença da escrita no continente africano só é considerada a partir da colonização; isto é, quando se fala em incorporação da escrita em África, fala-se, na verdade, de escrita em língua portuguesa, desconsiderando-se os idiomas que já habitavam aquele solo. Rothwell retoma um artigo de Francisco Rodolfo, no qual revela que há uma inexatidão nos dados sobre população letrada em África, pois o governo da FRELIMO, à semelhança da administração portuguesa, recusa classificar como alfabetizadas aqueles que leem línguas africanas, mas que, por um ‘equívoco’ da história relacionada com as políticas de língua professadas por algumas missões religiosas, nunca aprenderam a ler ou a escrever em português. (ROTHWELL, 2015, p. 52) Ou seja, considerar que o universo africano é pautado somente pela manifestação da oralidade é assumir, de certo modo, o discurso do colonizador e desconsiderar uma cultura heterogênea que se reflete na grande quantidade de línguas que permeiam aquele território. Além disso, é considerar a escrita em língua portuguesa como um estágio evolutivo mais avançado para o africano e desconsiderar que a oralidade também é algo presente em outras culturas. Para o eurocentrismo linguístico, há a sugestão de que há um ideal de civilização mais avançada, moderna e desenvolvida e, claramente, esse ideal está mais próximo das sociedades europeias do que das sociedades africanas. Por outro lado, remover a oralidade como uma característica africana também é desconsiderar parte importante dessa cultura, o que não é nossa intenção com este trabalho. De acordo com Ki-Zerbo, falar de tradição africana é falar de tradição oral, esta uma herança que se passou de ouvido a ouvido ao longo dos séculos. Para A. Hampaté Bâ, nas sociedades orais, 38 a ligação entre Homem e Palavra se torna mais forte, pois ambos estão intimamente vinculados. “Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra.” (A. HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 168). É evidente que, nos dias de hoje, há a importância de estabelecer uma ligação também com a escrita, como o romance Terra sonâmbula sugere. Afinal, a escrita não substitui a oralidade quando Muidinga lê para Tuahir, mas permite que haja uma outra forma de contar. Na realidade, o romance demonstra que as fronteiras entre oralidade e escrita, tradição e modernidade são questionáveis e que, ao tentarmos fazer esse tipo de delimitação, estamos incorrendo no erro de enxergar a tradição como algo defasado e a modernidade como algo progressista, sendo que não se pode prescindir de uma quando se trata de outra e ambas representam aspectos relevantes da cultura. É válido observar no romance que essas questões aparecem de modo a questionar o estatuto que vincula o africano à tradição, de um modo pejorativo, e o europeu à modernidade e que elas confundem o leitor em alguns momentos, pois, embora as memórias de Kindzu (de quem trataremos a seguir) venham possibilitar a manutenção da cultura, dos ritos e, por assim dizer, das tradições africanas, elas também apresentam o lado perverso que os costumes podem ter. O romance dialetiza as contradições entre tradição e modernidade, mas também as contradições que constituem os valores modernos (civilização; instituições; cultura letrada; ciência; progresso técnico e material etc) e os costumes tradicionais, desestabilizando os conceitos pré-concebidos de tradição e modernidade. Voltando, porém, ao romance, vamos comentar o próximo encontro de Muidinga e Tuahir. Numa dessas ocasiões em que o menino e o velho estão a procurar comida, eles se separam, indo cada um em uma direção. Muidinga se depara com uma espécie de ritual realizado somente por mulheres idosas. Quando percebem que há um espião, vigiando-lhes o ritual, essas mulheres passam a abusar do menino, sentando-se nele de modo lascivo, removendo-lhe as roupas. Tuahir o salva e explica que aquela cerimônia era sagrada e não podia ser vista por um homem. Como ele havia quebrado um dado da tradição, a estranha atitude delas deveria ter o efeito de enxotá-lo do local. Numa sequência lógica ao tema da sexualidade, o capítulo seguinte trata da iniciação sexual de Muidinga. Tuahir diz ao menino que o que falta a ele é uma mulher. O velho acredita que Muidinga já está na idade de ter uma relação sexual e que algo como o que aconteceu com as idosas profanadoras não seria uma iniciação que se preze. Então, Tuahir se aproxima de Muidinga, tocando-o e pedindo-lhe que pense em alguma mulher que já tenha conhecido. E junto à ação, conta a ele o que sabe sobre relacionamentos e 39 sobre mulheres. Tuahir, portanto, inicia Muidinga sobre o que ele entende que são os relacionamentos amorosos e também nas questões que dizem respeito a sua sexualidade. Nos últimos capítulos da estória dos dois deslocados, Tuahir adoece e é cuidado por Muidinga. O velho admite coisa que o menino já reparara: ambos estão perambulando pelo espaço sem saírem do lugar, estão, portanto, atravancados, metaforizando o entrave cultural, político e econômico a que a nação moçambicana está submetida. A terra se move junto com eles e, apesar de Tuahir sempre agir como quem indica os caminhos, ele confessa que “de todas as vezes que ele lhe guiara pelos caminhos era só fingimento” (COUTO, 2016, p. 137). Essa confissão demonstra o quanto os anciãos de Terra sonâmbula se sentem confusos em relação aos caminhos que devem sugerir aos mais novos, o quanto o seu conhecimento de nada vale no mundo moderno e ainda mais num mundo no qual não se vive, apenas se sobrevive. Muitos trabalhos acadêmicos evidenciam essa questão da viagem, o fato de os personagens estarem o tempo todo numa espécie de devir e ambas as estórias se caracterizam pela viagem na qual se encontram ambos os personagens. A viagem de Muidinga e Tuahir é um andar em círculos, ela não acontece de fato. O espaço e o caminhar desses dois personagens representam a situação política de uma Moçambique entreguerras: caminha, porém não consegue chegar a lugar nenhum. Os conflitos ideológicos e culturais inter-raciais invadem o lugar de debate político, impedindo que os lados consigam chegar a um consenso. Por fim, muito adoentado, febril, Tuahir pede para morrer no mar. Ambos encontram um barco chamado Taímo (nome do pai de Kindzu, personagem que será apresentado a seguir). Tuahir adentra o barco que, por sua vez, adentra o mar e, embalado pela leitura de Muidinga, o velho deixa a morte chegar. As palavras embalam Tuahir em direção à morte e, segundo o narrador, é neste ponto que se inicia a viagem de Tuahir “para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do mundo inteiro.” (COUTO, 2016, p. 196). Aqui, num momento tão corriqueiro da existência humana – a morte – se reconhece que há equivalências (além da própria morte), similaridades entre culturas distintas, pois as estórias são contadas para crianças de todo o mundo, não só para a africana e, muitas vezes, essas estórias se assemelham pelo fundo moralizante e ilustrador de saberes da comunidade em que estão inseridas. Tuahir, o velho moçambicano, que não foi alfabetizado (ao menos não em português), a quem falta a capacidade de ler e que detinha o conhecimento do mundo tradicional deixa de existir no fim do romance, ou melhor, vai para outro mundo. Antes de sua morte, porém, faz um pedido significativo para Muidinga: “se depois desta doença eu não souber andar nem falar você me ensina outra vez?” (COUTO, 2016, p. 40 194). Tuahir pede ao menino que ensine a ele o mesmo que o ensinou quando se encontraram, e fica a sugestão que tanto o menino quanto o velho podem se ensinar, podem compartilhar experiências e dividir conhecimento um com o outro. 3.1.b A macro narrativa de Kindzu Voltamo-nos ao segundo capítulo, no início do romance. Nesta parte do romance, temos acesso à segunda narrativa que ocorre junto à primeira e que é lida por Muidinga para Tuahir. Em todo o romance, essa narrativa aparece alternada com a outra. Portanto, vemos as duas macro estruturas aparecerem um capítulo por vez até que, no último, elas se encontram. Como se trata de um conjunto de memórias, de um diário, as estórias de Kindzu estão em primeira pessoa. Kindzu conta suas memórias, as quais se relacionam com a sua vida em família e com o processo de independência de Moçambique. Boa parte de suas lembranças se iniciam nas guerras de independência e do quanto isso influenciou o seio familiar, a começar por seu pai, o velho Taímo, que sempre contava estórias para a família. Esse contato com o pai promove em Kindzu uma natureza fronteiriça, pois apesar de ser um homem de seu tempo, de ter contato com o conhecimento formal que a escola lhe possibilitou, ele também tem contato com um o conhecimento pré-científico por meio da narração de histórias premonitórias de seu pai. Entristecendo-se, contudo, após perceber que o processo para que sua nação se tornasse independente não se concretizou de modo efetivo, o velho Taímo deixa de sonhar e de relatar seus sonhos. O pai de Kindzu simboliza o desencanto pós-independência, a amargura de ver que suas expectativas não foram satisfeitas. Certo dia, a mãe de Kindzu engravida e o pai anuncia que a criança deveria se chamar Vinticinco de Junho, o Junhito. O nome constitui uma referência à data em que Moçambique se tornou independente. O último sonho do velho foi antever que um deles iria morrer e logo indicou quem seria: Junhito. Para salvá-lo da morte, o pai coloca o pequeno para viver junto às galinhas; ensina-lhe a cacarejar e o enche de penas. Aos poucos, Junhito vai-se tornando galo, seus olhos vão se modificando até que a metamorfose aconteça e o menino desapareça do seio familiar. De tamanha tristeza por ver o filho – que metaforiza toda a esperança no futuro da pátria – transformar-se em algo inesperado, que não condizia com suas expectativas, Taímo morre, ou melhor, abandona-se à morte. O ritual de morte consiste em deixar o barco que Taímo utilizava como pescador dentro da casa e colocar comida nele todas as noites, um modo de “alimentar” 41 o fantasma do pai, demonstrar respeito ao antepassado. Kindzu acredita que o pai vai até lá para comer todas as noites, mas, certo dia, ele vê um homem vestido com retalhos de tecido e penas passando por ali e se pergunta se não seria ele quem estaria comendo o que é deixado no prato. Com a morte do pai, a família se desmembra de vez. Assim como Junhito, que acabou tornando-se galo desaparecendo com as galinhas, não se sabe bem o que se passou com os irmãos de Kindzu; há, no entanto, a sugestão de que eles saíram de casa e não voltaram mais. Kindzu tenta encontrar apoio no amigo Surendra Valá, mas o indiano não quer mais viver naquele lugar tomado por guerras e em que é constantemente rejeitado por conta da raça. Kindzu, por sua vez, recebe olhares de reprovação por sua amizade com o indiano, sobretudo da parte de Antoninho, ajudante que trabalha na loja de Surendra. Há uma problematização, aqui, sobre o quanto o fator “raça” interfere nas relações entre os moçambicanos, não só entre colonizador e colonizado, mas entre tudo o que é de fora e que não constitui o que poderia ser a essência moçambicana. Surendra não é português, isto é, não descende do colonizador e, mesmo assim, tem a loja saqueada por bandidos – fica explícito o tom de perseguição nesse ato, a origem rechaçada; “ele era um de fora, nem merecia as penas” (COUTO, 2016, p. 27). Mia Couto, nos livros de crônicas Pensatempos (2005) e E se Obama fosse africano? (2011), desenvolve, em alguns textos, a ideia de que o africano acostumou-se a combater o inimigo que vem de fora e se apegou à vitimização com relação às mazelas que lhe sobraram do período colonial. Para Daie, o escritor sofre do que denominou de “consciência desarticulada do subdesenvolvimento” e que isso prejudicaria a análise do escritor sobre o modo de pensar do africano, pois se, por um lado, a crítica interna é importante no sentido de combater um dos males ideológicos do país (a saber: o que Mia Couto delineia como o legado colonial da auto-vitimização, onde os culpados seriam sempre os estrangeiros), por outro lado, a limitação às fronteiras nacionais acaba por perder de vista o contorno histórico-mundial. (DAIE, 2013, p. 71) O que Daie quer enfatizar é que Mia Couto tem uma visão fragmentária dos fatos que se passaram em Moçambique e que sua visão de uma suposta autovitimização, na qual se colocariam os moçambicanos, ignora as constantes rupturas por que passou a História de seu país: colonialismo, socialismo, neoliberalismo. Em parte, essas rupturas ajudam a explicar essa forma de encarar os fatos por parte de Mia Couto, pois as constantes mudanças de curso pela qual passou Moçambique impedem uma análise objetiva do todo, fazendo com que o autor incorra nesse tipo de acepção. 42 Antoninho representa, em Terra sonâmbula, esse olhar desconfiado em relação ao estrangeiro, como se todos eles representassem perigo. Ainda assim, ele depende desse mesmo estrangeiro para sua sobrevivência. O personagem representa o moçambicano que não aceita o que vem de fora, não aceita o estrangeiro, o que, para nós, tem justificativa, pois os anos de colonização portuguesa não significaram exatamente anos de progresso para os moçambicanos. Ainda assim, Mia Couto retrata Antoninho de modo negativo o que pode indicar que o escritor reconhece a estranheza de um moçambicano rejeitar o que é de fora, já que Moçambique sempre foi uma terra repleta de pluralidades. É como se esse preconceito fosse algo aprendido dos portugueses, porém usado de maneira equivocada pelos moçambicanos. Já Surendra é o homem que diz não se apegar a questões de raça: “Somos da igual raça, Kindzu: somos índicos!” (COUTO, 2016, p. 25), diz o indiano, referindo-se ao mar que divide a costa moçambicana da Índia e, mais uma vez, temos no romance a referência ao mar e à sua capacidade de unir os povos. Surendra enxerga em Kindzu uma espécie de irmão, não vê nele a diferença da raça: “Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si.” (COUTO, 2016, p. 28). Para Moraes, as experiências identitárias que se relacionam com o Oceano Índico - o mar oriental, não o ocidental dos conquistadores - diferem das experiências daqueles que se apegam à ideia de raça (MORAES, 2018, p. 107). Ter raça (ser indiano, branco, negro) e ser índico apresentam-se, então, como duas distintas formas de construção identitária, com desdobramentos diversos. Ser índico é dispor-se ao encontro, construir relações de solidariedade e amizade com pessoas de origens diversas a partir do reconhecimento de uma ancestralidade humana comum; ter raça, ao contrário, associa-se à hostilidade, à recusa e negação do outro. (MORAES, 2018, p. 107) É na loja do indiano que Kindzu vê com nitidez um naparama (um guerreiro). O rapaz percebe que um homem tenta roubar objetos da loja de Surendra e avisa o amigo. Em seguida, o naparama13 adentra o lugar (com vestes muito parecidas com as do homem que supostamente rouba o alimento do pai de Kindzu), fazendo com que o ladrão se vá. Surendra explica que aquele era um guerreiro tradicional, do tipo que luta contra aqueles que fazem a guerra. Esses guerreiros, explica Surendra, têm o corpo fechado, são protegidos por feitiços e, portanto, 13 Os naparamas, segundo Azevedo (2003, p 127), era um movimento de milícias iniciado em 1990 por Makua Manuel An