ALINE STORTO PEREIRA LITERATURA E DEBATE PÓS-COLONIAL EM A HISTÓRIA DO BANDO DE KELLY, DE PETER CAREY Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura). Orientadora: Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes São José do Rio Preto 2006 2 Pereira, Aline Storto. Literatura e debate Pós-Colonial em A história do bando de Kelly, de Peter Carey / Aline Storto Pereira. - São José do Rio Preto : [s.n], 2006. --- f. : il. ; 30 cm. Orientador: Giséle Manganelli Fernandes Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Literatura australiana - História e crítica - Teoria, etc. 2. Literatura australiana - Pós-colonialismo. 3. Carey, Peter, 1943- . - A história do bando de Kelly - Crítica e interpretação. I. Fernandes, Giséle Manganelli. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.. CDU – 821.111.72.09 3 COMISSÃO JULGADORA Titulares Profª. Drª. Gisele Manganelli Fernandes - Orientadora Profª. Drª. Laura Patricia Zuntini de Izarra Prof. Dr. Peter James Harris Suplentes Prof. Dr. Thomas Bonnici Prof. Dr. Álvaro Luiz Hatthner 4 Aos meus pais e ao meu irmão 5 Agradecimentos A Deus, pelas pessoas e oportunidades que semeou em meu caminho. Aos meus pais, base sólida, exemplo de vida e princípio de tudo. Ao meu irmão, por apoiar-me em todas as fases de construção desta pesquisa, por compartilhar dificuldades e alegrias, e por estar, desde muito cedo, sempre a meu lado. Aos meus amigos, em especial à Ana Rachel, ao André Maia e à Fabiana Gonzalis. A todos os amigos da graduação, sobretudo Naomi, Keila e Érica. À Valéria, pois sem seu incentivo, não teria sequer preparado o pré-projeto. Aos companheiros da pós-graduação, principalmente Ana Cristina, Ellen, Dinorá, Daniela e Artur. À Professora Doutora Giséle Manganelli Fernandes, pela amizade, pela orientação competente e pelo apoio. Ao Professor Doutor Álvaro Luiz Hattnher, pelas sugestões, pelo empréstimo de materiais, pela amizade e pelo incentivo em todos os momentos. Ao Professor Doutor Peter James Harris, pelo empréstimo de materiais, pelo interesse e auxílio a este trabalho e pelas contribuições no exame de qualificação. À Professora Doutora Carla Alexandra Ferreira, pela valorosa contribuição durante o exame de qualificação. Aos amigos que conquistei na Austrália, entre eles Denise Miles, pelo incentivo, e Cynthia Grant, pelo interesse e prontidão em ajudar. Ao governo da Austrália, pela bolsa do Endeavour Programme, que me permitiu a ida à Austrália e o acesso a uma quantidade muito maior de informações sobre o assunto pesquisado e que certamente contribuiu para que esse trabalho fosse mais completo. Ao Professor Doutor Bill Ashcroft, professor da University of New South Wales, por receber- me como pesquisadora na universidade e por apoiar-me em meu trabalho. 6 “Los países dan y reciben, con cambios y zigzags de lo uno a lo otro, a lo largo de su historia. Luego, desaparecen; surgen otras culturas, otras nacionalidades recomienzan el inacabable juego. La fuerza creadora, la fuerza inventora, está en el siempre incansable corazón de la Humanidad.” (Damaso Alonso, La novela española y su contribución a la novela realista, Cuadernos del Idioma, 1965, p.43, in Fabiana Vanessa Gonzalis, Machado de Assis e Pérez Galdós: uma fantasia realista) 7 Sumário: Introdução p.10 I – Capítulo 1: A Austrália colonial p.15 1.1. Da descoberta da Austrália e do estabelecimento de uma colônia penal a Ned Kelly p.15 1.2. O fora-da-lei mais famoso da Austrália: Ned Kelly p.31 1.2.1. A figura histórica: uma breve biografia p.31 1.2.2. Ned Kelly e a cultura australiana p.39 II – Capítulo 2: Peter Carey e a literatura australiana p.48 2.1. O desenvolvimento da literatura australiana p.48 2.1.1. Os aborígines p.50 2.1.2. A poesia p.51 2.1.3. O teatro p.59 2.1.4. A prosa p.61 2.2. Peter Carey p.72 III – Capítulo 3: História, literatura e pós-colonialismo p.77 3.1. História e literatura p.77 3.2. Pós-colonialismo p.82 3.2.1. Da dominação européia à formação das sociedades pós-coloniais p.82 3.2.2. A teoria pós-colonial p.90 3.2.3. Colonialismo, pós-colonialismo e identidade cultural p.100 3.2.4. O pós-colonialismo e a idéia de nação p.104 IV – Capítulo 4: A história do bando de Kelly, de Peter Carey p.108 4.1. Estrutura, linguagem e tradução p.108 4.2. Enredo p.114 4.3. Antecipação p.118 4.4. As mulheres na narrativa p.120 4.5. O narrador p.124 4.6. A humanização da personagem principal p.131 4.7. A questão da verdade p.136 4.8. Debate pós-colonial em A história do bando de Kelly p.143 4.8.1. O texto como espaço de debate p.143 4.8.2. Os aborígines em A história do bando de Kelly p.160 Considerações finais p.164 Bibliografia p.169 Anexo: Mapa político da Austrália p.179 8 Resumo O escritor australiano Peter Carey promove, em seu romance True History of the Kelly Gang, cuja primeira publicação ocorreu em 2000, a reinterpretação de um período histórico e também de um personagem da época, que se tornou uma figura forte na cultura australiana. A tradução desta obra foi publicada no Brasil em 2002 com o título A história do bando de Kelly. Esta dissertação tem como objetivo analisar os efeitos que o estabelecimento de uma colônia penal causou na cultura e na literatura australianas, e a utilização do texto literário — sobretudo esta obra de Carey — como espaço de debate sobre a identidade nacional e de questionamentos ou respostas à antiga metrópole. Para tanto, este trabalho traça, em primeiro lugar, um panorama da história da Austrália, até a época em que viveu Ned Kelly, um fora-da- lei que se tornou herói popular e ícone nacional, e do desenvolvimento da literatura no país. Em segundo lugar, são analisados alguns aspectos deste romance, entre os quais a crítica ao sistema colonial britânico, a oposição centro-margem representada pelo conflito entre as autoridades e o bando de Kelly, e o uso da variante australiana do inglês. Desta forma, procuramos mostrar que, neste romance, parte da história da Austrália — em especial o período colonial e o sistema de degredo, cuja influência ainda se faz sentir nos dias de hoje — são problematizados e colocados em discussão. Palavras-chave: pós-colonialismo; literatura australiana; Peter Carey; Ned Kelly. 9 Abstract The Australian writer Peter Carey reinterprets, in his novel True History of the Kelly Gang, whose first publication took place in 2000, a historical period and also a character of that time who has become a strong figure in Australian culture. The translation of this book was published in Brazil in 2002, with the title A história do bando de Kelly. This Master’s Degree Thesis has the objective of analyzing the effects that the settlement of a penal colony had on Australian culture and literature, and the use of literary texts — especially this work by Carey — as a space for debate on national identity and for questioning or striking back at the former centre. In order to do so, this work firstly presents a panorama of Australian history, up to the time Ned Kelly, an outlaw who became a popular hero and a national icon, lived, and a survey of the development of Australian literature. Then, some aspects of this novel are analyzed, such as the critique of the British colonial system, the opposition centre-margin represented by the conflict between the authorities and the Kelly gang, and the use of the Australian variant of English. Thus, it is possible to show that, in this novel, part of Australian history — particularly the colonial period and the transportation period, whose influence can still be felt nowadays — is questioned, discussed and reevaluated. Key-words: post-colonialism; Australian literature; Peter Carey; Ned Kelly. 10 Introdução Recentes estudos de historiografia e crítica literária têm apontado semelhanças e interseções entre essas duas áreas de conhecimento, resultantes do aspecto textual, isto é, da forma narrativa, que compartilham ao organizar o pensamento. Embora a metodologia de pesquisa literária se diferencie um pouco da utilizada pela História, as obras literárias que (re-)utilizam eventos ou personagens históricos realçam e, de certa forma, problematizam, as inter-relações entre as duas áreas, uma vez que ambas se valem da escolha de fatos para compor o texto. Esse poder de selecionar e re-aproveitar fragmentos da História pode ser empregado por escritores pós-coloniais para (re-)abrir discussões em torno de temas como a oposição centro-margem, geralmente representada por (ex-)colônias e (ex-)metrópoles, ou a posição de grupos marginalizados na sociedade atual, como é o caso das mulheres, dos povos nativos, entre outros. A teoria pós-colonial trata das relações entre ex-metrópoles e suas antigas colônias, dos efeitos do colonialismo no desenvolvimento de culturas nacionais em diversos países, da situação dos grupos marginalizados em diferentes nações, e das novas relações de poder e do imperialismo cultural. O pós-colonialismo propõe uma re-valorização das culturas nativas, tidas e tratadas como inferiores no período colonial, e do hibridismo que caracteriza as chamadas sociedades pós-coloniais, formadas pela mescla de influências de diferentes povos. Os textos escritos por artistas pós-coloniais configuram, portanto, um espaço de resposta ou de resistência ao colonialismo e ao imperialismo, de questionamento dos valores impostos, de conflitos e contradições, e de emergência do potencial criativo que advém da pluralidade de vozes. No caso da Austrália, muitos escritores revelam-se interessados pela revisão de momentos históricos como meio de questionar a colonização britânica no continente e de 11 compreender a formação de seu país e dos elementos constituintes da sua identidade cultural. Esse aproveitamento da história e da cultura australianas como tema central em obras literárias sugere que a literatura pode ser vista como meio de auto-afirmação, ou ainda como espaço de discussão e palco de debate do nacional, do social, do histórico, do plural, das várias Austrálias sendo escritas por diferentes pontos de vista. Um dos escritores a debater o imperialismo, não só o britânico, mas também o americano, em algumas de suas obras, desde os contos até os romances, é o australiano Peter Carey. Em seu True History of the Kelly Gang (2000), Carey revive uma personagem histórica e herói popular em seu país, Ned Kelly, e questiona, por meio dessa voz, o governo colonial, a situação de imigrantes e latifundiários e das propriedades de terra na segunda metade do século XIX, bem como a ação das autoridades coloniais. Nesta dissertação, utilizaremos a tradução do romance para o português, A história do bando de Kelly, publicada em 2002, não só por se tratar de uma norma do programa de pós-graduação desta universidade, que estabelece que as citações sejam em língua portuguesa, mas principalmente por acreditarmos que assim a contribuição oferecida por esta pesquisa será mais significativa, pelo fato de possibilitar uma maior divulgação da obra do autor, uma vez que seu trabalho estará acessível a mais leitores, inclusive aos que não têm proficiência na língua inglesa. Ao verificarmos a falta de informações mais detalhadas sobre a literatura produzida por escritores australianos, aliada à busca infrutífera por livros ou artigos sobre este assunto em português, podemos afirmar que a área de estudos das literaturas em inglês nos meios acadêmicos brasileiros ainda ressente-se da falta de pesquisas em literatura australiana. Esta dissertação objetiva analisar os efeitos do tipo de colonização utilizado pela Grã- Bretanha na Austrália — o desenvolvimento de uma colônia penal para onde foi enviado o excedente de presos, que se tornaram também expatriados — no processo de formação do país em termos literários e culturais. 12 Pretendemos também analisar a utilização da história australiana na literatura como meio de reinterpretação de eventos históricos e como meio de debate e afirmação da identidade nacional. Nossa opção por Carey, escritor contemporâneo de renome dentro e fora da Austrália, duas vezes ganhador do Booker Prize (um dos prêmios literários mais importantes para textos escritos em língua inglesa), deve-se ao fato de que o questionamento sobre a influência do passado colonial, o imperialismo e a identidade são relevantes em sua escrita. Com o intuito de aprofundar nossos conhecimentos sobre a literatura e cultura da Austrália, participamos, no segundo semestre de 2004, de um processo de seleção de bolsas de estudo do governo australiano, o Endeavour Programme, destinado a alunos de pós- graduação que desejam realizar pesquisas no país. Fomos selecionados pelo programa, o que nos possibilitou passar seis meses na cidade de Sydney no ano de 2005, na University of New South Wales, sob a orientação do Professor Doutor Bill Ashcroft, especialista em pós- colonialismo. Essa experiência nos proporcionou, por um lado, o acesso a uma grande quantidade de livros e artigos de revistas especializadas, tanto sobre Ned Kelly quanto sobre Peter Carey. Por outro lado, permitiu-nos também uma vivência cultural importante: notamos que Ned Kelly é conhecido em todo o país, mas sua história tem mais força e relevância no estado de Victoria. As leituras realizadas neste período, bem como a aquisição de dicionários de gíria australiana, contribuíram também para uma nova sensibilidade e percepção sobre o uso que Peter Carey faz da variante australiana do inglês. Na Austrália, tivemos ainda a oportunidade de participar de algumas palestras do evento literário Sydney Writer’s Festival, que ocorreu no período de 23 a 29 de maio de 2005, e ouvir os comentários de escritores e tradutores e, desta forma, aprender um pouco mais sobre a literatura infantil neste país, a poesia, o mercado editorial, as traduções de autores australianos para outros idiomas e as traduções de obras estrangeiras feitas por australianos. 13 No presente trabalho, tratamos da história australiana até a época em que viveu Ned Kelly, e do desenvolvimento da literatura nesse país; apresentamos também alguns dos conceitos relacionados à teoria pós-colonial, sobretudo aos aspectos tratados pelos críticos australianos Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Hellen Tiffin, e pelo crítico indiano Homi Bhabha; procuramos analisar o modo como o escritor dá voz à personagem Ned Kelly, que também narra a história; analisamos o processo da crítica ao colonialismo, o movimento de humanização dessa figura histórica, o uso da linguagem, com o aproveitamento da variante local do inglês, alguns aspectos da narrativa, como a antecipação e as personagens femininas, a relação do título com a questão da verdade e alguns aspectos da tradução para o português. No primeiro capítulo, descrevemos a descoberta do continente australiano, o início de sua colonização pelos ingleses, o degredo de criminosos de toda a Grã-Bretanha e o surgimento dos bushrangers, ou ladrões de estrada, sobretudo em partes mais remotas, próximas às minas de ouro, bem como a vida de Ned Kelly e sua participação na cultura popular australiana. No segundo capítulo, apresentamos um panorama do desenvolvimento da literatura australiana, desde os primeiros textos escritos e publicados sobre o continente até a criação de uma literatura nacional, da qual Peter Carey é um expoente contemporâneo, tendo recebido prêmios importantes e tendo sido traduzido para vários idiomas, alguns de seus romances inclusive para o português. No terceiro capítulo, tratamos dos estudos que apontam semelhanças entre a escrita historiográfica e a literária, do surgimento das sociedades e literaturas pós-coloniais, da crítica pós-colonial (ASHCROFT et al., 2002; BHABHA, 1996, 1999, 2003) e de seu posicionamento em relação a temas como o cânone literário e as idéias de nação, identidade cultural e consciência nacional. 14 No quarto capítulo, analisamos aspectos do romance A história do bando de Kelly, tais como o título original [True History of the Kelly Gang] e sua relação com a questão da verdade, alguns aspectos da tradução para o português (que omite do título o adjetivo “verdadeira”), a mescla de um narrador em primeira pessoa com alguns momentos de narrativa em terceira pessoa, o re-aproveitamento pós-colonial da figura de Ned Kelly, a crítica ao período colonial, e o movimento de humanização da personagem principal. Citamos, em alguns momentos, o original em inglês, para ilustrar como Peter Carey vale-se de expressões típicas do inglês australiano em seu romance. Com este trabalho, pretendemos contribuir para a divulgação da literatura australiana no Brasil, bem como para os estudos culturais e o pós-colonialismo, ao debater a relação entre diversos povos na formação de uma cultura nacional, a da Austrália. 15 I – A Austrália colonial I bore the heat, I blazed the track — Furrowed and bloody Upon my back. I split the rock I felled the tree The nation was — Because of me! (Mary Gilmore, “Old Botany Bay”, in David Malouf, Made in England, Quarterly Essay, 2003, p. 39) 1.1. Austrália: do estabelecimento de uma colônia penal a Ned Kelly Para os padrões ocidentais, a Austrália é uma nação jovem. No entanto, é também um continente antigo. De acordo com testes de carbono, o continente tem sido habitado há pelo menos cinqüenta mil anos pelos aborígines, que provavelmente atingiram terras australianas no último período glacial, ocupando primeiro o norte e depois espalhando-se para o sul, quando a barreira de gelo recuou. Os povos aborígines desenvolveram um tipo muito especial de relação com a terra, que seria considerada árida e misteriosa pelos primeiros colonizadores brancos. A Austrália tornou-se parte da história européia no século XVI, no período das grandes navegações. Entretanto, já fazia parte do imaginário europeu há séculos, desde a Grécia Antiga. Os filósofos gregos acreditavam que a esfera era a forma perfeita e que a perfeição requeria equilíbrio. Para que o planeta fosse perfeito, deveria haver equilíbrio, o que tornaria necessária a existência de um continente de grandes proporções no hemisfério sul, a fim de contrabalançar os territórios do norte. Portanto, o fato de haver um continente como o australiano foi previsto antes mesmo de ser comprovado. A crença em um território no sul inspirou autores de vários textos, que o chamavam de Antípoda e o descreviam como um lugar onde tudo era contrário. Para alguns, a Antípoda era cheia de aberrações; para outros, 16 era o paraíso terrestre, um lugar cuja sociedade utópica não tinha problemas políticos ou econômicos. Mas os europeus não foram os únicos interessados em novas terras. Povos asiáticos alcançaram o Timor e as Molucas em sua expansão marítima, embora não tivessem conseguido atingir a Austrália por pobreza material, escasso desenvolvimento das embarcações, além da existência de crenças e superstições sobre o mar (CLARK, 1995). No final do século XV e início do XVI, os europeus haviam atingido grandes melhoras na construção de navios. Outros fatores que impulsionaram a expansão marítima européia foram a descrença nas lendas sobre o mar, a confiança em si mesmos e em seus valores, sua ganância por bens materiais e a necessidade de expandir o cristianismo (CLARK, M., 1995, p.3-4). Historiadores portugueses afirmam que embarcações lusas descobriram a Austrália durante suas navegações pelo Pacífico Sul, mas, embora alguns vestígios da presença portuguesa tenham sido encontrados, os documentos sobre esta descoberta, se existiram, desapareceram com o terremoto de Lisboa em 1755. Não há, portanto, provas conclusivas sobre a descoberta portuguesa. Os espanhóis passaram pelo estreito que leva o nome do capitão da frota, Torres, ao norte da Austrália, enquanto viajavam para Manila passando pelas Molucas, mas as cartas escritas na época não fazem referência a nenhuma terra ao sul do estreito. Os navegadores holandeses atingiram diversos pontos ao norte e ao oeste da costa australiana. O capitão holandês Abel Tasman descobriu uma ilha ao sul, à qual deu o nome de Van Diemen’s Land, em homenagem a seu patrono, e que seria posteriormente renomeada como Tasmânia, em sua homenagem. Descobriu também as duas ilhas que formam a Nova Zelândia. Entretanto, sua viagem foi considerada um fracasso, uma vez que ele e sua tripulação não ficaram impressionados nem com a terra, que não lhes pareceu uma provável 17 fonte de lucro, nem com seus habitantes, com quem pensavam que não fosse possível comercializar. Em 1688, o capitão inglês William Dampier também chegou à costa oeste da Austrália, e em suas cartas descreveu a terra seca e seus habitantes, os aborígines, de maneira desfavorável. Oitenta anos mais tarde, o capitão inglês James Cook foi enviado ao Pacífico Sul, junto a um astrônomo, para observar um fenômeno, o Trânsito de Vênus, a partir do Taiti. Entretanto, a viagem era também exploratória. Cook circunavegou as duas ilhas da Nova Zelândia e atingiu a costa leste do continente australiano, o qual ele descreveu de maneira muito mais positiva do que Dampier. Teve pouco contato com os aborígines e, em certo ponto, foi ameaçado por dois guerreiros de uma tribo com suas lanças. Apesar disso, em comparação com os maoris da Nova Zelândia, os nativos da Austrália pareciam mais tímidos, pacíficos e mal-armados, o que provavelmente influenciou a decisão sobre qual ilha ocupar. Ele navegou um pouco mais para o norte, tomou posse da nova terra em nome do rei da Inglaterra e deu-lhe o nome de Nova Gales do Sul. Em 1779, Sir Joseph Banks, um botânico que havia viajado com Cook em 1768, sugeriu a fundação de uma colônia penal no novo continente tanto como solução para o problema de superlotação das cadeias britânicas como para o problema dos criminosos condenados ao degredo, pois, após a guerra de independência, eles não podiam mais ser enviados à América. Lord Sydney anunciou, em 1786, que o rei Jorge III havia concordado em fundar uma colônia em Botany Bay, e o comandante naval aposentado Arthur Phillip foi escolhido como primeiro governador. O povoamento do continente australiano baseou-se, em grande parte, na idéia de que era um continente vazio, de que a terra não era ocupada, uma vez que o aborígine não tinha 18 noção de propriedade. Essa idéia foi propagada desde o começo da história colonial e foi ensinada nas escolas até mais ou menos 1960. Transformada, de início, em uma prisão além-mar, cujas muralhas seriam o próprio mar e a distância do país de origem, a Austrália deveria resolver um problema inglês e ser o receptáculo, de acordo com as crenças da época, de seres imorais. Ao contrário do que se acreditava então, essas pessoas eram levadas ao crime não por pertencer a uma classe criminosa nata, mas sim por uma crise sócio-econômica que abateu a Inglaterra no fim do século XVIII e começo do XIX. A crença em uma classe criminosa, que gerava e amplificava o preconceito moral, na verdade mascarava problemas sérios, como o do próprio sistema judicial inglês. A força policial centralizada só foi estabelecida na Inglaterra em 1829. Até então, a lei e a ordem nas ruas eram mantidas por guardas, que podiam ser facilmente subornados, e os juízes contavam com a ajuda de uma rede de informantes da classe baixa. Além disso, a classe trabalhadora inglesa do século XVIII enfrentava dificuldades, como salários ruins, péssimas condições de moradia e de trabalho nas fábricas, e exploração de trabalho infantil. Órfãos e crianças pobres começavam a trabalhar aos seis anos de idade. Outro fator importante era a falta de prisões para comportar todos os criminosos condenados em julgamentos. O número de criminosos tornava-se ainda mais alto quando se aplicava a “misericórdia real”, que transformava penas de morte em vários anos de prisão ou exílio (HUGHES, 1987). Há ainda outros possíveis motivos para a ocupação da Austrália: a madeira, bastante utilizada na indústria naval da época, cuja extração viria a fracassar nas primeiras décadas de povoamento da colônia penal, a proximidade com o Oriente, bem como a presença estratégica nos mares do sul, uma vez que a Holanda declinava como potência naval. O degredo foi retomado e a assim chamada Primeira Frota, comandada por Phillip, partiu da Inglaterra no dia 13 de maio de 1787, com mais de setecentos presos a bordo, e em 19 20 de janeiro de 1788 chegou a Botany Bay, que o comandante considerou uma região muito seca e imprópria para o povoamento. Ele decidiu seguir um pouco mais ao norte e encontrou, adentrando Port Jackson, um bom lugar, ao qual deu o nome de Sydney Cove. Quando estava pronto para voltar ao mar e ir ao encontro dos demais navios da frota, Phillip viu dois navios, que descobriu serem franceses, e teve uma conversa cordial com seu capitão, Jean-François de la Pérouse. Dias depois, os franceses reiniciaram sua viagem, para nunca mais serem vistos, pois sofreriam, em meio às ilhas do Pacifico, um naufrágio sem sobreviventes. No dia 26 de janeiro, data em que hoje se comemora o Dia da Austrália, os presos foram levados para a praia de Sydney Cove, e o primeiro povoamento branco foi estabelecido em solo australiano. Em seguida, Phillip ordenou que um navio com prisioneiros fosse a Norfolk Island, a fim de iniciar a extração de madeira. Todo o continente transformou-se em “um novo experimento colonial, nunca tentado antes, nunca repetido desde então”1 (HUGHES, 1987, p.1). Em seu primeiro encontro com os aborígines, no local escolhido para iniciar a nova colônia, os brancos europeus foram recebidos com gritos de “warra, warra”, que significava “vá embora”. As ordens do governo britânico em relação aos nativos da terra eram a de estabelecer contato amistoso e tratá-los bem. A relativa paz inicial foi garantida por meio de presentes, mas não durou muito. Além de sofrerem com as doenças dos brancos, os aborígines começaram a entrar em conflito, primeiro com os prisioneiros, que os odiavam porque eram livres, tinham status superior na colônia e nunca eram punidos sob nenhuma circunstância, depois com outros colonos. Esses conflitos seriam, mais tarde, perpetuados por colonizadores em todo o continente e levariam muitas tribos ao extermínio. Quanto aos criminosos, a maioria havia sido condenada ao degredo por pequenos roubos. No entanto, os juízes ingleses costumavam ser severos com ladrões de gado e muitos 1 “…a new colonial experiment, never tried before, not repeated since.” 20 deles foram enviados à nova colônia por terem suas penas de morte comutadas pelo exílio. Nenhum entre eles havia sido condenado por assassinato, estupro ou prostituição (HUGHES, 1987). Entre os degredados, havia pouca mão-de-obra especializada, como, por exemplo, pedreiros, jardineiros e pescadores, o que dificultou o início do estabelecimento da colônia em Sydney Cove. Aparentemente, o único critério de seleção utilizado pelas autoridades para escolher, entre os fracassados da sociedade britânica, os criminosos a serem degredados, foi o da juventude. “E havia uma classe geral de vigarista não representada na Primeira Frota: os bem-sucedidos.”2 (HUGHES, 1987, p.75) O caos inicial logo deu lugar à ordem e à sistematização. Os presos começaram a trabalhar não só como castigo por seus crimes, mas também como meio de prover o povoamento com comida. As ferramentas de que dispunham eram de má qualidade e o local era afetado às vezes por uma seca prolongada, às vezes por enchentes. As primeiras colheitas, portanto, fracassaram, e em 1790 a colônia estava ameaçada pela fome. Phillip enviou mais prisioneiros a Norfolk Island, mas a situação da ilha não era muito diferente daquilo que enfrentava o povoamento na parte continental, pois tanto a extração de madeira quanto as colheitas haviam fracassado. O primeiro governador da colônia mandou também um navio à África para trazer provisões. A ajuda chegou com o navio Lady Juliana, que trazia suprimentos e mais de duzentas criminosas. Pouco depois, os demais navios da Segunda Frota, com mais prisioneiros a bordo, chegaram a Port Jackson em meados de 1790. A ameaça de fome nunca se repetiria na história da colônia. A Segunda Frota havia levado à Austrália um grupo de policiais especialmente treinados para o trabalho no novo povoamento. No entanto, com ela haviam vindo mais criminosos, muitos dos quais estavam doentes e não tinham condições de trabalhar. De 2 “And there was one general class of crook not represented on the First Fleet: the successful ones.” 21 qualquer forma, todos teriam de ser alimentados. Essa nova fonte de preocupação levou Phillip a escrever uma carta ao governo britânico, mas antes que ela chegasse a Londres, a Terceira Frota aportou em Sydney, outra vez com vários prisioneiros doentes. O governador decidiu conceder terras a oficiais e a emancipacionistas, como eram chamados os presos que já haviam cumprido suas penas. Muitas das fazendas de ex- prisioneiros falharam, mas alguns deles obtiveram sucesso. Em 1792, a colônia tornou-se auto-suficiente. Phillip voltou à Grã-Bretanha e a colônia passou a ser administrada pelo Major Francis Grose, oficial da Unidade de Nova Gales do Sul, que encorajou os oficiais a cultivar a terra e também a comercializar com navios vindos da Ásia, Inglaterra e Estados Unidos. Embora alguns presos houvessem começado a cultivar a própria terra nesse período, a maior parte da riqueza do povoamento concentrava-se nas mãos de poucos oficiais, que enriqueceram rapidamente e estabeleceram um monopólio na venda de mercadorias. Um desses oficiais, John Macarthur, estabeleceu uma fazenda modelo em Parramatta, uma região fértil próxima a Sydney, na qual ele plantava vinhas, grãos e árvores frutíferas, além de produzir lã de boa qualidade. Ele foi um dos primeiros a perceber que a nova colônia poderia ser explorada de acordo com os interesses econômicos da Grã-Bretanha. Nos anos 1800, havia grande necessidade de mão-de-obra prisioneira para o trabalho nas fazendas e na construção de estradas. O trabalho prisioneiro era complementado pelo de trabalhadores livres, tais como ex-presos e filhos de criminosos, por exemplo. Os povoamentos de Sydney e Parramatta começaram a expandir e a receber presos irlandeses a partir de 1791. Os irlandeses também trouxeram para a colônia uma outra religião, o catolicismo, e quando os católicos começaram a chegar em grandes números, os protestantes ficaram alarmados. Eles temiam que a religião e o modo de vida diferentes, bem como a luta entre irlandeses e ingleses na Grã-Bretanha, pudessem causar problemas. 22 Os irlandeses eram considerados pelas autoridades coloniais uma classe especial de criminosos e sofriam vigilância mais acirrada e punições mais severas. “Desde o princípio, os irlandeses na Austrália viam a si mesmos como um povo duplamente colonizado”3 (HUGHES, 1987, p.181). Também os crimes políticos eram punidos com degredo, pois, se as autoridades evitassem enforcar esses homens, evitariam que se tornassem heróis e exemplo para o povo. Além disso, ninguém lhes daria ouvidos em uma colônia recém-fundada, tão distante do governo central. No início dos anos 1800, os franceses estavam explorando o litoral sul do continente e, para evitar o estabelecimento de povoamentos franceses, o governo britânico enviou grupos de presos para fundar colônias em outras partes de Nova Gales do Sul. Também foi fundado um povoamento em Van Diemen’s Land, devido à sua posição estratégica como porto para as atividades pesqueiras, cujos principais produtos eram o óleo de baleia e as peles de foca. Mais ou menos na mesma época, em 1802 e 1803, o Tenente Matthew Flinders circunavegou a Austrália e descobriu que Nova Holanda e Nova Gales do Sul não eram ilhas separadas, mas partes do mesmo continente. Nesse momento, os aborígines já haviam percebido que os colonizadores brancos tinham vindo para ficar e sua resistência a esse fato tornou-se clara quando começaram a matar animais, queimar casas e até mesmo matar alguns dos brancos. Os colonizadores decidiram revidar e, geralmente, expulsavam os aborígines dos lugares onde havia ocorrido alguma atrocidade, além de dar-lhes farinha envenenada, e capturá-los ou matá-los. Em pouco tempo, a Unidade de Nova Gales do Sul e seus oficiais tornaram-se tão poderosos que os governadores que sucederam Phillip tiveram problemas. Em 1808, oficiais depuseram o governador William Bligh e a colônia foi administrada por uma junta militar 3 “From the outset, the Irish in Australia saw themselves as a doubly colonized people.” 23 durante dois anos. Enquanto isso, Norfolk Island, a ilha onde os castigos eram mais severos e as humilhações mais intensas, tornou-se o pior lugar da colônia para um criminoso. Em 1813, durante o governo de Lachlan Macquarie, Norfolk Island foi abandonada e suas casas e edifícios destruídos, devido ao fracasso da extração de madeira. Nesse mesmo ano, Gregory Blaxland, William Charles Wentworth e William Lawson cruzaram as Montanhas Azuis, abrindo caminho para novas pastagens. De imediato, uma estrada para carros de boi foi construída e as novas terras logo passaram a ser ocupadas. Nas palavras de Manning Clark, “o desenvolvimento econômico tanto em Nova Gales do Sul quanto na Tasmânia afastou ambos os povoamentos cada vez mais de seu objetivo inicial”4 (CLARK, M., 1995, p.45). Os povoamentos começaram a exportar com sucesso produtos como lã, óleo de baleia, peles de foca, e os habitantes nascidos na colônia começaram a diferenciar-se dos migrantes. Eles desenvolveram uma pronúncia própria, originada pela linguagem falada pelos presos, e começaram a olhar para o país com amor, e não como estranhos, à maneira dos primeiros colonizadores. Nos anos de 1830, o poder econômico, político e social da colônia pertencia ao mesmo grupo, composto principalmente de grandes fazendeiros e mercantes bem-sucedidos. O governo britânico começou a encorajar a migração para Van Diemen’s Land e para Nova Gales do Sul, e mais tarde para a região sul do continente. Muitos homens viam a migração e o estabelecimento de fazendas na Austrália como uma oportunidade de enriquecer, mas a migração também significava que haveria menos terras de boa qualidade para os brancos nativos, o que gerava um sentimento de xenofobia contra os imigrantes. Em 1824, o governo de Nova Gales do Sul mandou que dois exploradores fossem a regiões mais ao interior do país a fim de descobrir mais terras de qualidade para possíveis 4 “…economic developments in both New South Wales and Van Diemen’s Land were taking both settlements further and further away from their original purpose…” 24 colonizadores. Eles encontraram um rio, o Rio Murray, e também terras férteis ao redor dele. Essas viagens foram muito importantes e deram início à expansão dos povoamentos tanto em direção ao sul, área que mais tarde se tornaria a colônia de Victoria, quanto em direção ao norte, que mais tarde se tornaria a colônia de Queensland. No ano seguinte, o governador Darling proclamou a independência de Van Diemen’s Land da colônia de Nova Gales do Sul. A nova colônia, agora independente, teria uma constituição e um governador próprios. Nessa época, emancipacionistas como William Charles Wentworth começaram a exigir julgamento por júri e um corpo legislativo. Em 1828, como resultado do “Ato para Prover a Administração da Justiça em Nova Gales do Sul e na Tasmânia” [Act to Provide for the Administration of Justice in New South Wales and Van Diemen’s Land], haveria um conselho legislativo cujos membros seriam apontados pelo secretário de estado e escolhido entre os donos de terras e mercadores da colônia; e, em casos civis, a Corte Suprema poderia ordenar um julgamento por júri, se ambas as partes o requisitassem. Uma nova colônia foi fundada em 1829. A fundação da Austrália Ocidental — que era uma parceria entre um mercador emancipacionista e um londrino — excluía os presos bem como o uso de sua mão-de-obra. No entanto, o solo inadequado e o tipo de vegetação transformaram o início do novo povoamento em um fracasso, e em 1846 o governo britânico declarou-o uma colônia penal. Em todas as colônias, havia uma grande diferença entre o número de homens e mulheres. O casamento inter-racial tornou-se comum, uma vez que o casamento entre classes sociais distintas não era aceito. Em 1834, o Parlamento Britânico aprovou um ato para transformar a Austrália do Sul em uma província. Após a descoberta do Rio Murray, havia a expectativa de encontrar terras férteis e produzir bens exportáveis, tais como carvão, madeiras e peles de foca. Tendo em 25 vista que a nova colônia excluía presos, ela deveria receber colonizadores livres, comerciantes e jovens de ambos sexos em proporções quase iguais. Ao mesmo tempo, John Batman, proprietário de terras em Van Diemen’s Land, comprou dos aborígines mil acres de terra na porção continental da Austrália, ao redor de Port Phillip, região do atual estado de Victoria, e pagou com cobertores, facas, camisas, farinha e outros produtos. Ele e outro proprietário de terras de Van Diemen’s Land, John Fawkner, estabeleceram fazendas no nordeste dessa região em 1835. A cidade de Melbourne seria planejada e fundada próximo a Port Phillip em 1839. O governo britânico sempre ordenou que os aborígines fossem bem tratados e que os colonizadores evitassem qualquer tipo de problema com os nativos da terra. Seu interesse em defendê-los e integrá-los à sociedade levaram o governo a declarar, em 1839, que os aborígines deveriam ter protetores, que seriam ao mesmo tempo professores e missionários, em especial no recém-criado distrito de Port Phillip. A intenção de proteger os aborígines também foi demonstrada em um julgamento em 1838: um grupo de colonizadores brancos, que havia matado alguns aborígines, foi acusado de assassinato e levado a julgamento; sete deles foram considerados culpados, sentenciados à morte e enforcados. Entretanto, a atitude em relação aos assassinos foi motivo de controvérsia na colônia e muitos colonos ficaram revoltados com a decisão judicial que prejudicara os brancos. Ambas as atitudes do governo, a de enviar missionários e a de condenar brancos por crimes cometidos contra aborígines, mostraram-se ineficientes, pois nem as missões conseguiram integrar totalmente os nativos, nem as poucas punições evitaram que mais crimes fossem praticados, sobretudo nas regiões mais afastadas dos centros administrativos. Em 1831, introduziu-se um preço mínimo para a distribuição de terra, o que diminuiu as desavenças entre brancos nativos e imigrantes. Esses dois grupos também encontraram 26 interesses comuns em assuntos que afetavam a ambos, como a venda de terras da coroa, o degredo e imigração. Enquanto a imigração crescia e a indústria pastoral expandia, o governo britânico e os colonizadores livres discutiam se o sistema de colônia penal funcionava. Alguns dos colonizadores livres achavam que o país havia alcançado um nível de riqueza que lhe permitia ser povoado por imigrantes, mas nem todos concordavam. O degredo para Nova Gales do Sul e Van Diemen’s Land foi abolido em 1840. No período de 1840 a 1843, a especulação de terra e gado levou a colônia a uma crise, e as taxas de falência e desemprego cresceram. Em 1844, o governador Gipps propôs uma nova política latifundiária, de acordo com a qual os grandes proprietários teriam que pagar uma taxa de licença anual. Essa nova política causou uma renovada agitação a favor de um governo próprio. No ano de 1847, o governo das colônias havia dividido a terra em três categorias diferentes — as povoadas, as intermediárias e as não-povoadas — e ao estabelecer um preço mínimo de uma libra por acre, tornou a aquisição de terra mais difícil e garantiu a acumulação de grandes propriedades nas mãos de poucos. Também no início da década de 1840, devido à falta de mão-de-obra, houve uma proposta para a introdução de trabalhadores indianos na Austrália. A fim de preservar seu padrão de vida, os trabalhadores brancos opuseram-se ao uso de trabalhadores de cor e defenderam a idéia de uma Austrália Branca. A agitação pela falta de mão-de-obra causou um debate sobre a possibilidade de re- estabelecer o degredo, uma idéia adotada de imediato e defendida pelos latifundiários em Nova Gales do Sul. Em 1849, uma multidão reuniu-se em Circular Quay, o porto de Sydney, para protestar contra a chegada do Hashemy, um navio que trazia novos presos de Londres. 27 Os presos foram então levados a distritos como Moreton Bay, que agora faz parte do estado de Queensland, onde não havia uma classe de trabalhadores que se opusesse à sua presença. Em 1850, o “Ato de Governo das Colônias da Austrália” [Australian Colonies Government Act] foi aprovado pelo parlamento. Esse ato incluía cláusulas sobre a separação de Port Phillip de Nova Gales do Sul e sobre o estabelecimento de conselhos legislativos para as quatro colônias. A notícia foi recebida sem muito entusiasmo em Sydney, Hobart e Adelaide, mas foi celebrada por uma semana em Melbourne, pois a independência da colônia, que se chamaria Victoria, significava progresso político e material. Nas cidades, nessa época, igrejas protestantes e católicas tendiam à utilidade pública, tentando confortar as pessoas e reduzir vícios como a prostituição e o jogo. Enquanto isso, os trabalhadores do campo desenvolveram uma série de valores diferentes. Isolados das cidades e do consolo da religião, eles encontraram conforto no companheirismo. No dia 15 de maio de 1851, o jornal Sydney Morning Herald anunciou a descoberta de ouro em Bathurst, na colônia de Nova Gales do Sul. Em agosto do mesmo ano, ouro foi encontrado em maiores quantidades em Ballarat e Geelong, na colônia de Victoria. Muitos trabalhadores e marinheiros abandonaram as cidades e seus empregos e correram às minas, onde as condições de vida eram primitivas. Uma administração para as minas foi improvisada: havia delegados em todas as minas e os mineiros deveriam pagar uma licença. Por volta de 1853, os mineiros reclamavam por não conseguirem pagar suas licenças, por não poderem investir o lucro em fazendas e por não terem direitos políticos. Em novembro de 1854, em Victoria, 10.000 mineiros exigiram mudanças na administração das minas, e o governo em Melbourne enviou, como resposta, tropas para organizar uma caça às licenças. Essa tática gerou uma revolta e os mineiros começaram a construir um forte em Eureka, na cidade de Ballarat. As tropas cercaram o forte por vários dias e aos poucos os 28 revoltosos foram abandonando suas posições. No dia 3 de dezembro do mesmo ano, os 150 homens restantes no forte foram atacados pelas tropas e vinte e cinco mineiros foram mortos. Por volta de 1855, imigrantes chineses, em sua maioria homens, começaram a chegar em Victoria em grande número. Suas atividades bem-sucedidas em minas abandonadas causaram um sentimento de xenofobia e levaram a revoltas, sendo a mais violenta delas a que aconteceu em Lambing Flat, em 1861. Os debates sobre um governo próprio continuavam, mas o estabelecimento de uma constituição colonial causou sentimentos contrários, pois alguns queriam que ela fosse semelhante à americana, enquanto outros queriam que fosse uma perpetuação da colônia. Em Nova Gales do Sul, conservadores e liberais não conseguiam chegar a uma proposta comum, porque aqueles queriam que seus interesses econômicos fossem representados na constituição, enquanto estes preocupavam-se com o povo. No final, os interesses econômicos prevaleceram: a constituição aprovada defendia idéias conservadoras e os eleitores da assembléia legislativa seriam qualificados por propriedade. Em Victoria, os fazendeiros e a burguesia associaram-se contra as exigências dos mineiros. O conselho legislativo aprovou uma constituição que poderia receber, a qualquer instante, emendas por maioria absoluta no Parlamento. Algo semelhante aconteceu em Van Diemen’s Land, que, em 1856, teve seu nome alterado para Tasmânia, em homenagem a Abel Tasman, o primeiro descobridor europeu a passar pela ilha. A Austrália do Sul teve uma constituição que representava tanto os interesses econômicos dos conservadores quanto os interesses do povo, e todos os homens maiores de vinte e um anos que houvessem estado na lista eleitoral por seis meses antes da eleição poderiam votar. 29 Como podemos ver, a descoberta de ouro teve influência permanente na história da Austrália: ela trouxe progresso material para a colônia, o que beneficiou, entre outras coisas, as artes, em especial a arquitetura e a literatura, e fortaleceu o movimento pela democracia. Durante os anos de 1860, a burguesia defendia a igualdade de direitos à terra e argumentava que o monopólio dos latifundiários atrasava o progresso das colônias. A reforma agrária também estava sendo discutida nos parlamentos, embora os latifundiários se opusessem a ela de maneira feroz. Em Nova Gales do Sul, um novo decreto sobre propriedades rurais foi adotado a partir de 1862. De acordo com o novo decreto, qualquer pessoa poderia comprar terras da coroa a uma libra por acre. Políticas semelhantes foram adotadas em Victoria, Queensland e Austrália do Sul, o que ocasionou uma guerra de classes entre os latifundiários e os pequenos proprietários em algumas colônias. A área cultivada dobrou, mas isso se deveu à expansão das propriedades dos latifundiários, e não à compra de terras pelos pequenos proprietários. Como os latifundiários compravam sempre as faixas de terra mais férteis, a nova lei, embora tivesse sido alimentada por ideais democráticos, não conseguiu desfazer o monopólio dos grandes fazendeiros nem a revolta das classes mais baixas (MARSH, 2001, p.60). Enquanto isso, os pequenos proprietários viviam na miséria e lutavam contra a seca, o solo pouco fértil e as políticas que favoreciam os latifundiários. Seu modo de vida melhoraria apenas no século XX, com a introdução de maquinário nas fazendas e, em especial, durante a Segunda Grande Guerra, quando os produtos agrícolas atingiram um preço alto. No século XIX, o roubo de gado tornou-se prática comum e representava, para alguns pequenos proprietários, a chance de sobreviver e de fazer justiça à sua maneira. Essa era a situação no interior de Victoria na época em que viveu Ned Kelly — que se tornaria ícone cultural como o ladrão de estradas5 mais famoso da Austrália. Os primeiros 5 Bushrangers, no original. Os bushrangers, ou ladrões de estrada coloniais, eram prisioneiros fugidos das autoridades que assaltavam pessoas ou diligências nas estradas ou casas em propriedades rurais para sobreviver. 30 ladrões de estrada da colônia apareceram na Tasmânia, que na época ainda se chamava Van Diemen’s Land, por volta de 1810. Durante uma crise causada pelo fracasso das colheitas, o governo distribuíra armas a alguns criminosos, para que caçassem cangurus, que serviriam de alimento para todos. Quando as colheitas voltaram a dar bons resultados e a carne de canguru não era mais necessária, esses criminosos armados começaram a roubar ovelhas dos grandes fazendeiros e vendê-las aos pequenos proprietários. Esses ladrões tinham a simpatia dos que estavam descontentes com o sistema de degredo e com a administração da colônia. Mas a expansão das áreas povoadas em uma ilha relativamente pequena como a Tasmânia reduziu os refúgios naturais dos criminosos. Isso, aliado à oferta de recompensas pela captura dos ladrões, pôs fim aos assaltos de estrada na ilha. Esses assaltos foram reprimidos na Tasmânia, mas floresceram no continente, onde, ao contrário da crença popular, a maioria das pessoas roubadas era pobre. As atitudes do governo ao tentar controlar esse tipo de crime contribuíram para que a simpatia do povo por estes ladrões aumentasse e passasse a ser expressa em baladas. A origem do culto aos ladrões de estrada é explicada por Robert Hughes, quando descreve a relação entre o povo e um desses criminosos, Jack Donohoe, que era uma projeção daquela parte até então subjugada e silenciada de suas vidas em uma liberdade vingativa, atirada contra a neutra tela cinzenta do sertão. As lendas de sua liberdade aliviavam a insatisfação dos australianos com a conformidade de suas próprias vidas, e essa tem sido a raiz do culto dos ladrões de estrada mortos desde então.6 (HUGHES, 1987, p.240) Entre os últimos desses criminosos a serem presos pela polícia está Ned Kelly, filho de irlandeses pobres. As atitudes de Kelly, como a formação de um bando de foras-da-lei e o Alguns deles tornaram-se heróis populares porque eram vistos como os amigos violentos do homem pobre ou como Robin Hoods australianos (DAVEY; SEAL, 2003, p.55). 6 a projection of that once-subjected, silent part of their own lives into vengeful freedom, thrown against the neutral gray screen of the bush. The legends of his freedom relieved Australians’ dissatisfaction with the conformity of their own lives, and this has been the root of the cult of dead bushrangers ever since. 31 assassinato de três policiais, causaram reações contraditórias: para os latifundiários, ele era um bandido que deveria ser punido; para os pequenos proprietários e para os pobres em geral, ele transformou-se em um herói popular, pois todos lutavam contra a pobreza e contra a injustiça. Os latifundiários e a burguesia atribuíam as ações do bando de Kelly ao novo decreto sobre propriedades rurais adotado em Victoria, que havia facilitado a compra de terras pelos pobres, enquanto os pobres atribuíam-lhe o status de um Robin Hood australiano. Kelly simbolizava a experiência do branco nativo na colônia. Considerado culpado, Kelly foi enforcado em 1880, mas a lenda continua. Os sentimentos que ele causou são bem explicados por Manning Clark em seu texto A Short History of Australia: Mas a partir do dia do atentado uma lenda começou a crescer entre os pequenos fazendeiros, os que procuravam ouro, os descendentes de prisioneiros e os irlandeses pobres e exilados que, como Ned, haviam tentado ganhar o sustento de forma honesta naquele país de vida dura e amarga, mas haviam falhado.7 (1995, p.176) 1.2. O fora-da-lei mais famoso da Austrália: Ned Kelly 1.2.1. A figura histórica: uma breve biografia Edward Kelly nasceu provavelmente em dezembro de 1854. Ele era o terceiro filho (e o segundo a viver, pois a irmã mais velha havia morrido ainda bebê) e primeiro varão de John “Red” Kelly, um ex-prisioneiro condenado ao degredo por roubo, e de Ellen Quinn, uma imigrante irlandesa. Ele pertencia a um clã problemático, pois tanto os Kelly quanto os Quinn, e também seus parentes próximos, os Lloyd, tinham freqüentes problemas com a polícia. Aos dez anos de idade, Ned salvou um menino, Richard Shelton, que estava se afogando no rio Hughes, na cidade de Avenel, em Victoria, e recebeu da família Shelton como prova de agradecimento uma faixa de seda verde, que ele somente usava em ocasiões 7 “But from the day of the outrage a legend began to grow amongst the cocky farmers, the fossickers for gold, the descendants of the convicts and the poverty-stricken Irish exiles, who, like Ned, had tried but failed to earn a living by lawful means in that hard and bitter country.” 32 especiais. Ned usaria a faixa quinze anos mais tarde, na cidade de Glenrowan, naquele que se tornaria o momento mais marcante de sua vida. Em 1866, Red Kelly faleceu, deixando a viúva Ellen Kelly com sete filhos. Aos doze anos de idade, Ned tornou-se o homem da família. Ellen foi para Wangaratta com os filhos menores e deixou Ned com suas irmãs. Em 1868, ela foi morar em uma pequena propriedade em Eleven Mile Creek8, próximo a Greta, região onde viviam muitos membros da família Quinn, e reuniu os filhos. No mesmo ano, Ned tornou-se aprendiz do famoso ladrão de estradas Harry Power, que lhe ensinou como se esconder e sobreviver no sertão australiano9. Voltou para casa alguns meses depois, e essa primeira experiência parece tê-lo assustado. No regresso, conheceu o amante da mãe, o inglês Bill Frost, que a abandonaria pouco tempo depois do nascimento da filha do casal. Em 1869, Ned Kelly teve seu primeiro envolvimento com a polícia. Ele foi acusado de assalto violento contra um chinês chamado Ah Fook, mas a acusação foi retirada. No ano seguinte, ele acompanhou Harry Power novamente e ajudou-o em alguns assaltos de estrada. Mais tarde, foi reconhecido como o ajudante de Power, foi preso e acusado de assalto à mão armada. Foi mantido na prisão enquanto a polícia procurava e prendia o famoso assaltante. A acusação contra Kelly foi retirada e muitos o culparam por trair Harry. Os verdadeiros traidores, no entanto, foram seus tios Jack Lloyd e Jimmy Quinn. 8 Ellen beneficiou-se do sistema conhecido como selection, cujas regras sofreram várias alterações ao longo dos anos de governo colonial. A legislação vigente nessa época, resultado do descontentamento popular com relação à classe latifundiária, ou squattocracy, permitia que se escolhesse uma propriedade rural pequena, entre os territórios do governo colonial, conhecidos como crown land, e se pagasse parte do valor no momento da escolha, e o restante com o trabalho realizado na própria terra. Embora tivesse intenção democrática, o sistema proposto pelos Selection Acts não resolveu o problema do monopólio dos latifundiários, que, para proteger seus interesses, compravam as faixas de terra mais férteis e próximas aos rios (CLARK, 1995). 9 O sertão australiano, ou bush, compreende uma região intermediária entre a faixa litorânea e o remoto interior do continente, o outback. Desde cedo foi considerado um elemento típico do país, que representava, ao mesmo tempo, as dificuldades enfrentadas pelos colonizadores e brancos nativos, e os ideais de liberdade, companheirismo e oportunidade (embora esta fosse, muitas vezes, frustrada pelas condições climáticas). A mitologia do sertão australiano é, no entanto, uma celebração masculina, e ignora ou despreza o aborígine (DAVEY; SEAL, 2003, p.48-50). 33 No mesmo ano, Ned foi condenado a seis meses de prisão em Beechworth, três dos quais com trabalho forçado, por comportamento indecente. Ele foi acusado de agredir Jeremiah McCormack e de entregar à senhora McCormack um pacote com testículos de um novilho e uma mensagem obscena. Poucos meses depois, em 1871, Kelly foi acusado de receptar um cavalo roubado e foi considerado culpado. Foi condenado a três anos de prisão e trabalho forçado, os quais ele cumpriu em Pentridge Jail, em Melbourne, e em um navio-prisão, em Port Phillip. Isaiah “Wild” Wright, que havia na verdade roubado o cavalo, foi condenado a apenas dezoito meses de prisão e trabalho forçado. Enquanto Ned estava na prisão, assim como seu cunhado Alex Gunn, sua irmã mais velha, Annie Gunn, envolveu-se com o policial Ernest Flood, que era casado. Annie teve um bebê no final de 1872, mas morreu um dia depois. Sua filha, Anna, morreu de difteria pouco mais de um ano depois, e foi enterrada ao lado da mãe. No início de 1873, outro dos irmãos Kelly teve problemas com a polícia: Jim Kelly foi condenado a cinco anos de prisão por roubo de gado. Quando saiu da prisão, Ned conheceu o novo amante de Ellen Kelly, o californiano George King, poucos anos mais velho que ele próprio. O rapaz foi testemunha da mãe, que se casou com King em uma igreja protestante na cidade de Benalla. Depois disso, levou uma vida honesta por três anos, trabalhando como lenhador, trabalhador rural e supervisor de uma serraria nos Wombat Ranges. Nessa época, Ned Kelly ganhou uma luta de boxe a punho descoberto contra Wild Wright e tornou-se o campeão não-oficial de boxe do nordeste de Victoria. Enquanto isso, Dan Kelly, o irmão mais novo de Ned, tornou-se parte de um grupo de jovens cavaleiros conhecido como o Greta Mob. Os membros desse grupo seriam mais tarde simpatizantes do bando de Kelly e, como tal, ajudariam os fugitivos a se esconder na mata e a 34 escapar da polícia, além de manter o bando informado sobre os passos dos policiais e sobre o que acontecia nas cidades da região. Durante o ano de 1877, Ned Kelly e seu padrasto George King lideraram um bando de rapazes em uma bem sucedida ação interestadual de roubo de gado e de cavalos. O bando incluía Dan Kelly, Wild Wright, Joe Byrne e seu amigo Aaron Sherritt, entre outros, e geralmente roubava gado em Victoria, atravessava para a colônia de Nova Gales do Sul, dividia-se em dois grupos, que fingiam conhecer-se em uma fazenda, onde um grupo venderia cavalos para o outro e, com a ajuda do dono da fazenda, feliz em testemunhar o negócio, obteria notas legais para a transação. O gado, ou os cavalos, seriam vendidos em outra cidade, na maioria das vezes em Melbourne. No mesmo ano, Ned Kelly foi preso por bebedeira e desordem. Ele também foi acusado de resistir à prisão, pois se envolveu em uma briga contra quatro policiais na loja de um sapateiro em Benalla antes de ser levado para a prisão. Em seu julgamento, declarou-se culpado e foi apenas multado. Em 1878, o policial Alex Fitzpatrick foi à casa dos Kelly para prender Dan. Algumas horas depois, Fitzpatrick, cheirando a conhaque e com o pulso enfaixado, contou ao sargento Whelan uma história estranha: ele havia tentado prender Dan, mas fora impedido pela Sra. Kelly, que o acertou com uma pá, e por Ned, que lhe deu um tiro. De acordo com a família Kelly e outras testemunhas, Fitzpatrick havia tentado beijar Kate Kelly à força, e Dan tentara impedi-lo. Em uma carta escrita tempos depois, a Carta de Jerilderie, Ned afirma ter estado a milhas de distância de casa essa noite. A verdade sobre o incidente envolvendo Fitzpatrick permanece um mistério. No entanto, Ned, Dan, a Sra. Kelly, Brickey Williamson, um amigo da família, e Bill Skilling, cunhado de Ned, foram acusados de tentativa de assassinato. Ned e Dan fugiram para a mata. Como não conseguiu encontrar os irmãos Kelly, a polícia prendeu a Sra. Kelly, que foi 35 condenada a três anos de prisão, e Bill Skilling e Brickey Williamson, que foram condenados a seis. Acredita-se que o episódio Fitzpatrick e a prisão da Sra. Kelly tenham desencadeado os atos criminosos de Ned e seu bando. Kelly fez uma proposta para o juiz Alfred Whyatt por meio de seu tio Pat Quinn: ele e o irmão se renderiam se a mãe fosse solta. A contra-oferta não foi nada prometedora: se os irmãos Kelly se rendessem, o juiz faria tudo o que estivesse ao seu alcance para libertar Ellen. Ned e Dan continuaram a ser fugitivos, escondendo-se em uma cabana em Bullock Creek. Dois amigos, Joe Byrne e Steve Hart, faziam-lhes freqüente companhia. Tanto Joe quanto Steve encontravam-se lá no dia em que os irmãos Kelly viram dois policiais em Stringybark Creek, próximo ao lugar onde estavam. Os quatro rapazes foram ao acampamento policial, onde encontraram apenas dois policiais, Thomas McIntyre e Thomas Lonigan, e tentaram rendê-los. McIntyre cedeu, mas Lonigan aparentemente correu em direção a um tronco de árvore e atirou em Ned, que atirou também e matou o policial. O grupo, que seria a partir de então conhecido como o bando de Kelly, tentou render os outros dois membros do grupo de busca, Michael Scanlan e Michael Kennedy, quando estes voltaram para o acampamento. Ambos os policiais tentaram alcançar a arma, e Scanlan foi baleado. Kennedy correu para a mata, enquanto McIntyre fugia do acampamento a cavalo. Ned Kelly atirou e matou Kennedy. Ned ditou uma carta para Joe. Ela deveria ser enviada para o superintendente Sadleir e para o Sr. Donald Cameron, que havia perguntado no parlamento sobre a origem da insurreição dos Kelly, e continha a versão detalhada de Ned sobre os assassinatos de Stringybark Creek. A carta, conhecida como a Carta Cameron, foi copiada em Euroa, durante o primeiro assalto a banco do bando, em 1878. Ned confundiu a manobra política de Cameron com boa-vontade. 36 O bando, agora composto por Ned e Dan Kelly, Joe Byrne e Steve Hart, os quatro rapazes que estavam em Stringybark Creek, assaltou uma fazenda próxima a Euroa, onde manteve algumas pessoas presas, e cortou as linhas do telégrafo. No dia seguinte, foi até o National Bank, roubou o dinheiro e levou o gerente e sua família até a fazenda que havia assaltado. Algum tempo depois, eles libertaram os prisioneiros e foram embora. Após esse ousado roubo, a recompensa pela captura de Ned, bem como pela dos demais membros do bando, foi duplicada, e mais policiais foram enviados para o nordeste de Victoria para participar dos grupos de busca e tentar prender os fora-da-lei. O dinheiro do assalto ao banco de Euroa foi distribuído entre os familiares e simpatizantes do bando, e também foi usado para pagar um advogado para defender os simpatizantes e conhecidos da família Kelly que haviam sido presos pela polícia. As prisões foram uma medida impopular por dois motivos: por não haver acusações contra nenhum deles e por ser época de colheita, pois os pequenos proprietários presos não podiam trabalhar em suas terras. Enquanto isso, Aaron Sherritt, o amigo de longa data de Joe Byrne, tornou-se um agente duplo. Ele dava informações falsas para a polícia e levava os soldados a lugares onde não poderiam encontrar nada, ao mesmo tempo em que informava o bando de Kelly sobre as investigações e planos da polícia. No começo de 1879, o bando roubou outro banco, levando a cabo um plano audacioso. Eles mantiveram sob controle uma delegacia de polícia, tendo dois policiais como prisioneiros, em Jerilderie, na colônia de Nova Gales do Sul. Mais uma vez, cortaram os fios do telégrafo. Dan Kelly, vestindo o uniforme da polícia, e Steve Hart, vestindo roupas comuns, acompanharam a esposa de um dos prisioneiros até a igreja, para evitar suspeitas dos demais habitantes da cidade. Dois dias depois, o bando de Kelly assaltou o Bank of New South Wales. Novamente, Ned trouxe uma carta, que ele queria publicar. Ele não publicou a 37 Carta de Jerilderie, como agora é chamada, porque não conseguiu encontrar o editor do jornal da cidade em casa, mas deixou-a com a esposa do editor para que fosse publicada mais tarde. A carta foi entregue à polícia e não alcançou o público que Ned havia almejado na qualidade de fora-da-lei. O assalto em Jerilderie constrangeu a polícia, cujas demoradas ações pela captura do bando eram freqüentemente criticadas pelos jornais. A essa altura, a família Byrne havia começado a suspeitar das atitudes de Aaron e a destruir a confiança de Joe em seu amigo. Além disso, os rapazes do bando de Kelly tinham outro plano. Eles haviam começado a roubar arados de fazendas da região para construir as armaduras que se tornariam o símbolo do bando e da captura de Ned em Glenrowan. Os novos planos do bando começavam com o assassinato de Aaron Sherritt, a quem consideravam, nesse momento, um traidor. O assassinato de um informante da polícia atrairia à cidade de Beechworth um trem especial, carregado de policiais, que certamente passaria por Glenrowan no caminho. Em determinado ponto dessa cidade, os trilhos estariam quebrados, o que causaria um acidente e mataria grande parte dos policiais. Os possíveis sobreviventes seriam mortos pelo bando de Kelly, cujos membros estariam usando as armaduras. Joe Byrne matou seu amigo Aaron Sherritt e foi para o hotel Glenrowan Inn com Dan Kelly. Ned e Steve já estavam lá e haviam mantido como prisioneiras, no hotel, várias pessoas da cidade. No entanto, os policiais que estavam com Aaron demoraram muito para informar a polícia sobre o assassinato, o que causou um atraso nas ordens para enviar tropas a Beechworth. Esse atraso fez o bando de Kelly ficar esperando pelo trem mais de vinte e quatro horas sem dormir. Além disso, Ned permitiu que o professor Thomas Curnow saísse do hotel e fosse para casa ver a esposa. Thomas parou o trem e avisou a polícia. A polícia cercou o hotel e começou a atirar. O bando de Kelly atirou também. Alguns dos que estavam no Glenrowan Inn ficaram feridos. Ned saiu do hotel para conversar com os simpatizantes, que esperavam por sinal nas colinas ao redor da cidade, e evitar que se 38 juntassem ao bando, uma vez que o plano inicial havia falhado. Enquanto isso, Joe Byrne foi baleado na virilha e morreu. Os reféns começaram a fugir. Ned, que já havia sido baleado nos braços e pernas e perdido muito sangue, voltou para o Glenrowan Inn em uma última tentativa de resgatar seus companheiros. Ele começou a atirar nos policiais, que revidaram e feriram-no várias vezes. Após perder sangue, desde os primeiros ferimentos, por aproximadamente cinco horas, e receber um total de vinte e oito ferimentos de bala, Ned caiu e foi, por fim, capturado. Depois disso, a polícia ateou fogo no hotel, supostamente queimando os corpos de Dan Kelly e Steve Hart. O corpo de Joe Byrne foi retirado do fogo a tempo, e foi mais tarde amarrado a uma porta para que os repórteres pudessem fotografá-lo. Ned Kelly foi levado para a cadeia Melbourne Gaol, onde cuidaram de sua saúde e curaram suas feridas. Ele foi julgado, considerado culpado e condenado à morte. Recebeu permissão para ver a família apenas duas vezes: uma durante o julgamento e outra após ter recebido a sentença. Embora sua irmã Maggie Skilling e seu primo Tom Lloyd, com a ajuda de membros do movimento contra a sentença de morte, tivessem reunido mais de 32.000 assinaturas, não conseguiram alterar a sentença de Ned. Ele foi enforcado em Melbourne Gaol no dia 11 de novembro de 1880, e diz-se que suas últimas palavras foram “é a vida”.10 O irmão de Ned e Dan, Jim Kelly, estava preso no período em que o bando de Kelly esteve em ação, e foi solto pouco antes do cerco aos rapazes em Glenrowan. É provável que sua prisão tenha evitado que ele se tornasse membro do bando e que partilhasse o destino dos irmãos. Os corpos de Dan e Steve foram levados pelos familiares e foram enterrados. Ned foi decapitado após a morte e sua cabeça foi entregue a médicos para ser estudada11. Tanto o 10 “Such is life”, em inglês. As supostas últimas palavras de Ned tornaram-se o título de um dos livros de Joseph Furphy, considerado o primeiro romance realmente significativo e representativo da literatura australiana (DAVEY; SEAL, 2003). 11 Nessa época, acreditava-se que o estudo do cérebro dos criminosos poderia revelar o que levava um homem a cometer um crime. Decapitar prisioneiros condenados à morte era prática comum nesse período da Austrália colonial (JONES, 2003). 39 corpo de Ned quanto o de Joe foram levados pela polícia e nunca foram devolvidos às famílias para um enterro cristão. 1.2.2. Ned Kelly e a cultura australiana Pretendemos discutir aqui a importância que a história de Ned Kelly adquiriu na Austrália e alguns dos motivos que podem ter ocasionado o enorme movimento em torno dessa figura histórica. Ned Kelly tornou-se um homem maior do que a própria vida, e está presente na cultura australiana até hoje, seja causando debates em busca de uma (im)possível verdade, seja inspirando criações nas manifestações culturais erudita, popular e de massa, que vão desde pinturas ao desfile de abertura dos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000, de baladas a personagens literários, de séries de televisão a projetos cinematográficos. Sua influência estende-se também à cultura aborígine: Ned tornou-se personagem do “tempo do sonho”, ou dreamtime 12, aborígine, e representa a luta contra a injustiça, ao passo que o capitão James Cook é associado ao roubo da terra das diversas tribos (MARTIN, 2004). Apesar de tudo o que foi dito pelos jornais no período de seus atos criminosos, ele é considerado por grande parte da população um herói e um exemplo de revolta contra a injustiça. Ned tem um plano, mas fracassa; ele tem, portanto, o perfil do típico herói popular australiano, cuja celebração tem raízes históricas e inicia-se com as fugas nem sempre bem sucedidas de prisioneiros e, em especial, com os primeiros ladrões de estrada da colônia, sobretudo os que atuavam nos povoamentos continentais. Essa característica da identidade australiana foi alimentada ainda pelas histórias de exploradores que não voltaram para casa, 12 O dreamtime aborígine representa o ciclo de vida dos povos, que inclui vida como ser humano, morte e reencarnação, como ser humano ou animal; iniciou-se no passado e continua existindo, e está em constante movimento. Embora tivéssemos encontrado esse termo em algumas leituras, o sentido da expressão ficou mais evidente no período que passamos na Austrália, quando perguntamos a um aborígine do estado de Victoria sobre seu significado. 40 que pereceram no interior do país ao tentar atravessá-lo, como é o caso de Leichhardt, Burke e Wills. O imaginário australiano favorece o perdedor; o fracasso é visto, antes de mais nada, como o resultado de uma batalha, uma batalha em que existiu um esforço, mesmo que frustrado. A associação de Ned Kelly a um arquétipo corrente no país desde os tempos coloniais não é, porém, o único fator a explicar sua rápida popularização e profundo enraizamento na cultura australiana, bem como sua grande participação na indústria cultural até os dias atuais. Entre esses fatores encontram-se também os problemas sócio-econômicos da colônia de Victoria, a própria personalidade do fora-da-lei, e sua formação irlandesa, partilhada por muitos outros colonos. A cultura irlandesa foi, com o passar dos anos, assimilada em parte pela australiana, da qual é importante elemento formador; dessa maneira, muitas das histórias populares e tendências políticas, sobretudo antiimperialistas, foram espalhando-se para além dos lares de irlandeses e generalizando-se. Um dos fatos que moldaram o ponto de vista de Ned e que, conseqüentemente, influenciaram suas ações, foi sua formação irlandesa. Ele parece ter acreditado que os padrões de dominação inglesa haviam sido trazidos para a Austrália e estavam sendo repetidos nas leis que protegiam os grandes proprietários e no sistema judiciário. Nesse caso, como foi discutido por Manning Clark em Ned Kelly: Man and Myth (Cave et al., 1968), o rapaz estava dividido entre uma educação católica e a sensação de que roubar de um antigo inimigo não era crime. Seu senso de injustiça nas colônias também foi influenciado pela decepção que os imigrantes irlandeses sentiram uma vez estando na Austrália, pois pensaram que teriam uma vida melhor, mas descobriram que a terra na nova colônia pertencia ao mesmo tipo de pessoas que a possuíam na Irlanda. A diferença de classes era causada não só por motivos econômicos mas também por motivos tradicionais — tais como a causa nacional, que perpetuava na 41 Austrália a luta entre ingleses e irlandeses, comum na Grã-Bretanha, e a causa religiosa, que opunha católicos irlandeses e grandes proprietários de terra protestantes. Outra influência importante da formação irlandesa de Ned estava relacionada ao fato de alguns policiais em Victoria serem irlandeses também. Esses policiais eram vistos como traidores porque vestiam o uniforme da polícia da colônia e obedeciam e honravam leis criadas pelos ingleses, os invasores de seu país. É natural que os irlandeses, dominados pelos ingleses na Grã-Bretanha, trouxessem para a Austrália um desejo de resistência e, ao mesmo tempo, desprezassem os irlandeses que decidiam fazer parte da polícia, compactuando assim com a ideologia dominante. O assunto é discutido por Albert Memmi em seu Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador: Os representantes da autoridade, quadros, “caides”, policiais, etc., recrutados entre os colonizados, formam uma categoria de colonizados que pretende escapar à sua condição política e social. Mas, tendo escolhido, devido a isso, colocar-se a serviço do colonizador e defender exclusivamente seus interesses, acabam por adotar sua ideologia, mesmo em relação aos seus e a eles próprios. (MEMMI, A., 1989, p.30) Ao longo de sua vida, Ned desenvolveu um extravagante ódio pela polícia de Victoria, que ele considerava como opressora. É interessante notar que os três policiais assassinados em Stringybark Creek eram irlandeses. A forte união de Ned com a família também é vista como um fator que contribuiu para a revolta dos Kelly. Acredita-se que o episódio Fitzpatrick tenha sido provocado pelos modos desrespeitosos do policial para com Kate Kelly, irmã de Ned e Dan. O tratamento que a polícia dispensava à família Kelly, sobretudo às mulheres, quando Ned ou os irmãos não estavam em casa, é mencionado com freqüência em suas cartas. A prisão da mãe, a quem ele idolatrava, parece ter sido considerada por Ned como a pior das injustiças, e o fato de que sua proposta, de render-se se ela fosse libertada, foi recusada, deve ter causado grande efeito nele. 42 As alianças de Ned explicam sua participação no folclore australiano. Nas palavras de Anne Marsh: Ned Kelly fazia parte dessa revolução do homem pobre: suas lealdades eram para com a família, os amigos e os simpatizantes republicanos. Sua ascendência e história estavam impregnadas na mitologia das rebeliões irlandesas contra os britânicos. No folclore australiano, Ned Kelly tornou-se um ícone devido a suas lealdades e sua história.13 (MARSH, 2001, p.61) Pobreza, solos pouco férteis e secas periódicas transformaram o roubo de gado, ovelhas e cavalos em uma maneira mais fácil de viver para alguns pequenos proprietários e suas famílias. Roubar também era um ato aceitável de acordo com o relativo senso moral da época: se os grandes proprietários podiam apropriar-se de mais terra do que a área a que tinham direito, roubar desses mesmos proprietários não poderia ser considerado uma ofensa grave. Além disso, na metade do século XIX e, em especial, no interior do país, o cavalo era a posse mais valorizada por um homem, porque simbolizava a liberdade. Um homem a cavalo podia fazer qualquer coisa e ir a qualquer lugar. A relação do bando com a terra é outro fato notável a acrescentar à sua inserção no imaginário popular: os quatro rapazes eram grandes cavaleiros e conhecedores do ambiente em que viviam, e seu conhecimento sobre o nordeste de Victoria foi decisivo para fugir e esconder-se da polícia. Embora houvesse um elemento irlandês na revolta, o bando representava o modo de vida do nativo australiano, de todas as pessoas que lutavam contra a terra árida da Austrália. De acordo com T. Mitchel (In: Cave et al., 1968), o bando de Kelly, e sobretudo Ned, que era um líder nato, tornou-se uma forte presença no imaginário popular tanto porque eles estavam entre os últimos bushrangers quanto porque os elementos que tiveram de enfrentar eram mais difíceis do que as condições vividas por seus antecessores: uma força policial 13 Ned Kelly was part of this poor man’s revolution: his loyalties were to family, friends and republican sympathizers. His ancestry and history were steeped in the mythology of the Irish rebellions against the British. In Australian folklore Kelly became an icon because of his loyalties and his history. 43 melhor, com melhores montarias, e os rápidos meios de comunicação, tais como o telégrafo e as ferrovias. O código de honra dos ladrões de estrada, segundo o qual apenas os ricos deveriam ser roubados e as mulheres deveriam ser bem tratadas, também parecia ser seguido por Ned Kelly. Conta-se que, em uma ocasião, ele devolveu a um sacerdote o relógio que Steve Hart havia roubado, e que distribuía dinheiro entre os simpatizantes que eram pobres e tinham dívidas. Além disso, ele foi descrito como gentil para com as mulheres em seus assaltos, e diz-se que nunca utilizava expressões grosseiras diante delas. Nas palavras de Glen Tomasetti, Kelly “elevou-se acima de sua situação pela rebeldia, mostrando assim uma das qualidades das quais uma lenda é feita. Ele tornou-se um símbolo de revolta até a morte contra circunstâncias graves14” (In: Cave et al., 1968, p.93). A participação no imaginário popular cresceu ainda mais ao longo dos anos, quando alguns aspectos heróicos de seu caráter e sua força física começaram a ser ressaltados. Tanto em suas cartas quanto em suas declarações durante o julgamento, Ned sempre procurava incriminar-se e não dividia a responsabilidade dos assassinatos de Stringybark Creek com os demais membros do bando, o que lhe dá um ar de nobreza. A força e resistência que demonstrou em Glenrowan, em que ele foi capturado somente após de ter sido ferido vinte e oito vezes e perdido sangue por horas enquanto usava uma armadura pesada, também conferem-lhe uma dimensão sobre-humana. O caráter de Ned não foi o único elemento que contribuiu para que se tornasse parte integrante da cultura nacional. Novas interpretações de seus atos, assim como possíveis intenções, como a de fundar uma república — um ponto a respeito de Kelly que nunca foi esclarecido — foram acrescentadas ao imaginário popular. O que permanece forte é o fato de que a vida de Ned e seus feitos oferecem a possibilidade de re-discutir e re-avaliar o passado, 14 “rose above his situation by defiance, thereby showing one of the qualities from which legend is made. He became a symbol of rebellion to the death against harsh circumstance.” 44 porque ocorreram em uma época de conflitos, em que as oposições entre classe dominante e classe dominada e entre imperialistas e anti-imperialistas acirravam-se, e também quando uma consciência nacional australiana começava a emergir. Ao usar a palavra escrita para dar seu testemunho em duas cartas, que apareceram no período em que era considerado um fora-da-lei, Ned compreendeu que isso lhe permitiria alcançar outro público e outros tempos e manteria em debate os atos do bando. Segundo Anne Marsh, Ned Kelly “entrou no simbólico mundo da linguagem de propósito. Ele entendeu o poder da palavra escrita e seu status histórico15” (MARSH, 2001, p.62). A influência de Ned Kelly nas artes australianas, e em especial na literatura, é impressionante. No entanto, pesquisar todos os textos inspirados pelo fora-da-lei e por seus atos seria uma tarefa monumental. Os primeiros textos inspirados na história de Kelly foram as baladas comumente escritas no sertão australiano, as bush ballads 16, muitas das quais foram compostas enquanto ele ainda estava vivo, no período em que assaltou bancos, algumas tendo sido atribuídas a um dos membros do bando, Joe Byrne. Logo após sua morte, Ned passou a ser idolatrado pelos australianos. Os primeiros exemplos de sua influência na literatura são encontrados em textos do século XIX: The Kelly Gang (1898), de Reg Rede, e The Newest Woman, Destined Monarch of the World (1895), de Millie Finkelstein. A peça de teatro escrita por Reg Rede, The Kelly Gang, é um exemplo do melodrama escrito em Melbourne no final do século XIX. O ladrão australiano dessas peças era baseado em grande parte no ladrão de estradas do drama inglês, e as interpretações romantizadas do passado recente escritas nesse período contribuíram para a superação da origem prisioneira e para o retrato de uma nação dignificada. O romance futurístico de 15 ...purposefully entered the symbolic world of language. He understood the power of the written word and its historical status. 16 O termo bush ballads refere-se a poemas ou canções populares, em sua maioria anônimas, comuns no folclore australiano até hoje e imortalizadas também por escritores importantes, como A. B. “Banjo” Paterson e Henry Lawson (DAVEY; SEAL, 2003, p.50). 45 Finkelstein faz uma inversão sexual dos papéis e apresenta Ned na pele de uma ladra de estradas, Kate Keely (WOLF, G., 2004, p.73). Outra versão feminina da história de Kelly foi escrita por Jean Bedford em 1982. Com seu romance Sister Kate, a escritora transforma em ficção a vida de Kate, uma das irmãs de Ned, e inclui um romance da moça com outro membro do bando, Joe Byrne, bem como alcoolismo e tentativa de suicídio. Ned Kelly tornou-se, nos séculos XX e neste início do XXI, parte da indústria cultural australiana, e muito mais romances inspirados em sua vida foram escritos, dos quais alguns dos mais conhecidos são Ned Kelly and the City of Bees, de Thomas Keneally, publicado em 1978, Our Sunshine, de Robert Drewe, publicado em 1991, e True History of the Kelly Gang [A história do bando de Kelly], de Peter Carey, publicado em 2000 e inspirado na carta de Jerilderie, escrita pelo rapaz em um assalto a banco. A história de Kelly também influenciou outros campos nas artes australianas. Entre 1946 e 1947, Sydney Nolan pintou a assim chamada série Kelly, na qual ele fez sua interpretação de parte da vida do bando, enfatizando a figura de Ned Kelly, a quem o pintor considerava um rebelde e um herói nacional (MARSH, 2001). A representação que Nolan fez de Ned inspirou os organizadores dos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000 e na abertura desfilaram vários Neds, usando armaduras estilizadas semelhantes aos desenhos do pintor. A história de Ned Kelly também foi contada em quadrinhos, em várias séries de televisão e em filmes. Em 1969, foi lançado o filme Ned Kelly, que estrelava Mick Jagger no papel principal e incluía canções que narravam parte da história. A produção cinematográfica mais recente, Ned Kelly, de 2003, dirigido por Gregor Jordan, baseia-se no romance de Robert Drewe, e estrela atores australianos de sucesso internacional, como Heath Ledger, no papel de Ned, além de Naomi Watts e Geoffrey Rush. 46 Our Sunshine, de Robert Drewe, promove uma colagem de fragmentos (fatos e lembranças) de um Ned Kelly que narra ora em primeira, ora em terceira pessoa, e mistura imagens de violência, carnavalização e morte. O pronome possessivo our — nosso — confere ao título um tom nacionalista e reclama sua inserção no corpo de textos sobre Ned Kelly (HUGGAN, 2001-2002). O filme, diferente do romance de Drewe — que entremeia os fatos presentes do bando de Kelly no hotel da Sra. Jones em Glenrowan, como conversas com os reféns, com lembranças de pessoas e acontecimentos passados — apresenta a história dos quatro rapazes em ordem cronológica. O romance de Drewe, como o de Carey, mistura fatos reais, como o salvamento de um menino que se afogava, quando Ned é criança, o assassinato de policiais, os assaltos a banco e o tiroteio final, e ficção, como a existência de uma amante, quando Ned trabalhava em uma fazenda, e de uma trupe de circo — o que inclui um macaco e um leão — entre os reféns em Glenrowan. O filme apresenta as mesmas características, embora não mencione alguns dos irmãos de Ned, como é o caso de Annie, Maggie e Jim (aparecem, como personagens, somente Kate, Grace, Dan e o bebê Ellen). Há momentos de humor, com os galanteios de Joe e os xingamentos dirigidos aos policiais da colônia e baseados em aspectos de animais australianos, alguns deles sugeridos pelos próprios reféns em um assalto a banco. Há também um elemento de revolta contra os desmandos das autoridades coloniais e de perseguição e tratamento injusto da polícia e mesmo da rainha britânica. Com relação à linguagem, o filme se vale, nas falas de diversas personagens, sobretudo as de origem mais humilde, do sotaque típico da região onde Kelly viveu. Também o romance de Peter Carey, True History of the Kelly Gang (2000), apresenta um refinado trabalho com a linguagem das personagens, aspecto que será abordado mais adiante neste trabalho. 47 Esses fatos evidenciam que esta complexa figura histórica australiana está presente em vários segmentos da cultura de seu país: da cultura popular passou à erudita por meio da pintura e da literatura, e dessas duas passou à cultura de massa e é intensamente comercializada pela televisão e pelo turismo. 48 II – Peter Carey e a literatura australiana “mythical Australia, where reside All things in their imagined counterparts.” (James McAuley, “Terra Australis”, in Veronica Brady, Can These Bones Live?, 1996, p.10) 2.1. O desenvolvimento da literatura australiana Os primeiros textos produzidos sobre a Austrália foram as cartas de descoberta, escritas pelos vários exploradores que navegaram o Pacífico Sul e alcançaram diferentes pontos do litoral australiano. Esses eram textos descritivos que se referiam, em sua maioria, ao solo, aos habitantes, à fauna e à flora da terra recém-descoberta. Os aspectos do novo local também constituíram um tema principal de muitos textos escritos no início da colonização. A geografia e as condições do solo ocupavam boa parte dos diários escritos pelos exploradores que se aventuravam continente adentro à procura de novas pastagens, rios, e até de um suposto “mar interior”. A fauna e a flora faziam parte das primeiras descrições escritas por botânicos e cientistas que foram ao continente tanto com a Primeira Frota quanto mais tarde, com outros navios, atraídos pelo crescimento da colônia e pelo estabelecimento de novos povoamentos em uma terra ainda pouco explorada. Não apenas a impressão geral da terra, sua fauna e flora, mas também o modo de vida durante as primeiras décadas de colonização foram descritos por viajantes, capitães de navios, oficiais militares e suas esposas em diários e cartas. Os criminosos condenados ao degredo trouxeram consigo uma rica literatura oral e a tradição inglesa, escocesa e irlandesa das baladas populares, que logo se espalharam pela colônia. Muitas dessas baladas foram adaptadas de seus originais europeus a situações coloniais e passaram a ser transmitidas oralmente, e tinham muito do protesto irlandês, bem como do senso de perseguição comum aos criminosos. Seu tema principal era o sistema de 49 degredo, embora também passassem a incluir, com a expansão dos povoamentos e progresso das colônias, temas como os ladrões de estrada e a vida no sertão australiano. Durante parte do século XIX, alguns escritores australianos tentaram difundir, com seus textos, sobretudo na prosa e no teatro, a idéia de que o degredado enviado à Austrália era inocente e havia sido condenado a um castigo injusto, ou que havia cometido um único erro na vida e pago caro por isso. Esses textos resgatavam os antepassados criminosos dos australianos de forma romantizada. Essa aura de inocência, aliada a uma descrição romântica da paisagem local, tentava ainda conferir ao país o status de paraíso na terra que a colonização, ao contrário do que ocorreu nas Américas, não lhe havia conferido. A descoberta do ouro trouxe avanços democráticos, tecnológicos e culturais à colônia. Nas artes, as áreas mais beneficiadas foram a literatura e a arquitetura, com inúmeros edifícios e construções de tendências várias sendo erguidos nas capitais. Também no século XIX, mas já nas últimas décadas, outro fator importante para a literatura australiana foi a publicação da revista literária The Bulletin, que reunia escritores com ideais antiimperialistas e nacionalistas e garantia-lhes um público dentro da própria colônia. A revista foi responsável pela publicação de uma literatura verdadeiramente voltada, pela primeira vez, para o australiano, bem como pela criação do tipo sertanejo, presente na poesia e na prosa. No entanto, a revista não era de todo democrática, e seus diretores e muitos de seus membros aliavam aos ideais nacionalistas os ideais machistas e mesmo os racistas, como a defesa de uma Austrália branca, que ganharia força entre os australianos e daria origem à Política Branca de controle da imigração em boa parte do século XX. As duas grandes guerras mundiais trouxeram à Austrália benefícios econômicos e a noção de nacionalidade, e os debates em torno do assunto atingiram também a literatura. A partir do século XX, os escritores australianos experimentaram novas técnicas, correntes na 50 Europa, como o fluxo de consciência, e escreveram textos mais politizados e complexos. É nesse século que surgiu o primeiro grande escritor australiano reconhecido no exterior, Patrick White, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1973. A partir da década de 1970, o governo australiano passou a investir mais nas diversas artes. Na literatura, isso se tornou evidente com a criação de companhias teatrais do próprio governo e de festivais de teatro, além da criação de revistas e vários prêmios literários. Uma nova geração de talentosos escritores surgiu e a atuação de muitos deles, como David Malouf e Peter Carey, na prosa, e de Les Murray, na poesia, recebeu destaque na Austrália e em outras partes do mundo, sobretudo em alguns países da Europa, como é o caso da Alemanha, em que a tradução da poesia de Murray tem recebido críticas favoráveis17. 2.1.1. Os aborígines Os primeiros textos escritos pelos aborígines em alfabeto romano foram cartas ditadas ou textos escritos em colaboração com um colonizador branco. No período colonial, a escrita foi usada pelos brancos como instrumento de controle, ao passo que foi utilizada pelos aborígines como meio de comunicação com parentes em lugares distantes, bem como veículo de resistência e negociação política. A escrita tornou os membros das comunidades aborígines mais integrados, pois os jovens tinham a habilidade para escrever, mas somente os mais velhos tinham autoridade para negociar o que seria dito e reivindicado. A primeira revista voltada para os aborígines de todo o país foi The Abo Call, publicada em 1938, com duração de seis edições. Nessa revista, tratava-se da situação dos aborígines nas várias reservas criadas pelo governo e contestava-se a idéia de que a colonização da Austrália havia sido pacífica. 17 Tivemos a oportunidade de ouvir duas palestras com a presença de Les Murray e de seu tradutor para o alemão, Thomas Eichhorn, durante um evento literário na Austrália, o Sydney Writer’s Festival. Eichhorn, que ganhou um prêmio por sua tradução de Freddy Neptune, comentou, sobre este trabalho, que transformou o texto de Murray — escrito em inglês, mas com germanismos — em um texto em alemão, com alguns australianismos. 51 As primeiras obras aborígines de ficção só foram publicadas a partir da terceira década do século XX por William Ferguson, que narrou uma história contada por outro aborígine, e por David Unaipon, que recontou histórias tradicionais e também escreveu uma autobiografia. A tradição oral aborígine sobreviveu ao longo dos anos e muitas de suas canções e histórias tradicionais foram publicadas em antologias em diversos momentos. No entanto, a fase contemporânea da literatura aborígine inicia-se em 1964, com a publicação da primeira coleção de poemas de Oodgeroo Noonuccal (Kath Walker), We Are Going. Embora os escritores aborígines tenham enfrentado muito preconceito, sobretudo dos críticos, esse livro abriu um novo canal de transmissão que permitia que a classe dominante ouvisse o que os aborígines tinham a dizer. No Bicentenário da Colonização Britânica, as autobiografias escritas por aborígines tornaram-se bastante populares. Essas autobiografias diferem do padrão ocidental: elas tendem a ser menos introspectivas e a apresentar a vida do autor como uma viagem. Algumas delas têm dois autores, o que as torna mais dialógicas que as autobiografias ocidentais. Esse é o caso do livro Auntie Rita (1994), escrito por Rita Huggins e sua filha Jackie Huggins, que conta a história da família mesclando as percepções de duas gerações diferentes. Outra escritora aborígine importante é Sally Morgan, que já publicou autobiografia, livro infantil e relatos de outros aborígines. Seu livro My Place, publicado em 1987, narra a descoberta da ascendência aborígine da autora, que sempre acreditara ser indiana, pois era o que lhe diziam a mãe e a avó, e a verdadeira história dos membros de sua família. 2.1.2. A poesia Entre os criminosos escritores do período colonial, havia dois baladistas: Francis McNamara, que escreveu poemas sobre a vida dos prisioneiros, e Michael Massey Robinson, que além das baladas, também era conhecido pelas odes de aniversário. 52 A poesia do início do período colonial era bastante influenciada pelo pensamento e pelas formas literárias vigentes na Europa, embora alguns dos poetas que escreviam na Austrália nesse período começassem a prestar atenção ao novo ambiente que os rodeava. A primeira pessoa nascida em solo australiano a publicar algum poema foi William Charles Wentworth, filho de uma prisioneira e de um médico. Ele publicou alguns poemas enquanto estudava em Cambridge e um livro em 1806. O livro First Fruits of Australian Poetry (1819), de Baron Field, foi o primeiro livro publicado na Austrália, embora a publicação tenha sido paga pelo próprio autor e tenha circulado entre amigos. Outro filho de criminosos degredados, Charles Harpur, dedicou-se ao projeto de fundar uma poesia australiana. As publicações de seus poemas eram, muitas vezes, pagas por ele mesmo, e seus versos descreviam a paisagem australiana, sobretudo sua luz e solidão. Henry Kendall, outro poeta dos tempos coloniais, foi influenciado por Harpur, mas escreveu em um estilo mais próximo ao vitoriano. Ele escreveu poemas líricos e não narrativos ou épicos, e descreveu tanto a natureza de Nova Gales do Sul quanto seus próprios sentimentos. Adam Lindsay Gordon, um inglês expatriado, escreveu poemas sobre temas locais, tais como a vida de trabalhadores rurais temporários que viajavam de cidade em cidade em busca de serviço. Suas baladas eram muito conhecidas, mas seus livros não vendiam. Ele cometeu suicídio no dia do lançamento de sua última publicação, Bush Ballads and Galloping Rhymes (1870), que se tornou um sucesso. Outros poetas do período colonial, já em fins do século XIX, tinham forte influência européia: Christopher Brennan, que tinha grande afinidade com o simbolismo, voltou-se para o pensamento poético ocidental e escolheu como tema principal a oposição entre corpo e alma, enquanto poetas como Hugh McCrae e Norman Lindsay usaram imagens gregas em 53 seus poemas. McCrae, que publicou obras também no início do século XX, evitou o tema da flora e da fauna, típico das baladas, deixando seus versos em uma esfera meio arcádica, meio de devaneio. John Shaw Neilson teve pouca escolaridade, mas complementou-a com leituras diversas e foi encorajado por A.G. Stephens, editor do The Bulletin. Neilson tinha também um problema de vista, uma vida de trabalho pesado e pouco tempo para dedicar-se à literatura, o que influenciou sua poesia: seu ritmo era mais simples, a fim de que ele pudesse guardá-los na memória até que tivesse a oportunidade de escrevê-los, e seus versos se concentravam em temas como a morte e a escuridão. Entre esses poetas, Christopher Brennan e John Shaw Neilson, que trabalharam diferentes temas e formas de simbolismo, são considerados os precursores do modernismo australiano. Entre as mulheres a escreverem poesia no fim do período colonial e início da federação, destaca-se Louisa Lawson, fundadora da primeira revista feminista da Austrália. Embora os últimos anos do século XIX fossem anos de agitação a favor do sufrágio universal e de um divórcio mais fácil, a mulher ainda era relegada a um papel secundário, inclusive na literatura, pois pouca atenção era dada à sua produção e as personagens femininas, por exemplo, eram sempre passivas e não agentes. Os versos de Louisa foram, portanto, rapidamente esquecidos. Entre as escritoras da época, Lesbia Harford foi a poetisa do amor e do desejo sexual. Seus poemas refletiam sua crença de que havia diferenças irreconciliáveis entre os homens, que possuíam o conhecimento técnico, e as mulheres, que tinham uma atitude aberta e natural. Outra poetisa de destaque foi a socialista Mary Gilmore. Ela deixou o emprego de professora e juntou-se à comunidade utópica de William Lane no Paraguai. Publicou seus primeiros livros ao voltar para a Austrália, mas sentia-se dividida entre os papéis de mãe e 54 esposa e seu espírito empreendedor e a literatura. Ela foi a poetisa de mais destaque da época. Seus trabalhos elogiados