UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA CARMEN JANETE REKOVVSKY A GEOGRAFIA DOS RESTAURANTES ALEMÃES DE PORTO ALEGRE - RS Presidente Prudente 2013 CARMEN JANETE REKOVVSKY A GEOGRAFIA DOS RESTAURANTES ALEMÃES DE PORTO ALEGRE - RS Dissertação de mestrado apresentada à Banca Examinadora como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Geografia junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista. Orientador: Prof. Dr. Marcos Aurelio Saquet Co-orientadora: Profa. Dra. Adriana Dorfman Presidente Prudente 2013 FICHA CATALOGRÁFICA Rekovvsky, Carmen Janete. R32g A geografia dos restaurantes alemães de Porto Alegre – RS / Carmen Janete Rekovvsky. - Presidente Prudente : [s.n], 2013. 216 f. : il. Orientador: Marcos Aurelio Saquet Coorientadora: Adriana Dorfman Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Geografia Humana. 2. Alimentação étnica. 3. Identidade. 4. Território I. Saquet, Marcos Aurélio. II. Dorfman, Adriana. III. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. IV. Título. Dedico este trabalho aos meus pais, meus professores da vida; e ao Thiago, companheiro a toda prova, amor além da distância e das palavras. AGRADECIMENTOS Agradeço à FCT/UNESP, ao Programa de Pós Graduação em Geografia e ao corpo docente pela experiência e oportunidade de cursar o mestrado. Agradeço especialmente à Profa. Margarete Trindade Amorim que, na condição de coordenadora do PPGG, demonstrou grande humanidade e profissionalismo. Na pessoa de Cinthia Thiemi Onishi agradeço aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, exemplo de dedicação e competência. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela concessão de bolsa de mestrado. Agradeço ao Prof. Marcos Aurelio Saquet por acolher a proposta e pelo comprometimento, dedicação e presteza com que orientou a pesquisa. Agradeço à Dra. Adriana Dorfman pelo entusiasmo, amizade e disposição em ajudar. E ao Raul Dorfman de Bem, alegria para o coração. Agradeço também aos professores membros das bancas de qualificação e/ou defesa (Dr. Nécio Turra Neto, Dra. Rosa Maria Vieira Medeiros e Dra. Ruth Künzli) pela leitura e considerações. Aos entrevistados, agradeço pela paciência e atenção. Espero que este trabalho honre as histórias compartilhadas. Sou grata também aos clientes, por doarem seu tempo à mesa e responder aos questionários. Minha gratidão àqueles que, de diferentes modos participaram, do processo de gestação deste trabalho: Isabel Rekowsky, por sempre estar lá – mesmo que o tempo passe. Guilherme Reichwald Jr., mestre e amigo. Gema Conte Piccinini, por ser quem é. Rafael Zilio Fernandes, por me guiar no Rio e me ajudar a pensar os problemas acadêmicos. Marcos Mergarejo Netto, pela animada troca de ideias, referências de livros e filmes. Renata Menasche, por incentivar este projeto e pelo seu entusiasmo por Antropologia da Alimentação. Ana Terra Oliveira e Rebeca Kawahara, por participarem, em solo uruguaio, dos primeiros insights da pesquisa. Denise Bomtempo, pelo carinho, materiais e referências compartilhados. Ronaldo Rodrigues Araújo, pelos bate-papos, indicações de filmes, e por me apresentar Jesus, o guaraná. Francisco Afonso Cavalcanti Jr., pela boa companhia e por me receber em São Luís. Antonio Bernardes, quarto elemento da República da Baroa, pelos bons momentos vividos. Sergio Souza, amigo com profundo entendimento da vida, pelos momentos de desopilação e encontro. Eder Quirino, por acrescentar mais música e leveza à vida em Presidente Prudente. Agradeço pelos aprendizados e amizades nascidos da experiência de compartilhar um imóvel e construir um lar: Christian Ricardo Ribeiro, com seu humor impagável e seu enorme coração, sempre boa companhia e bom ouvinte. Gislene Ortiz, que me conquistou com sua generosidade e seu bom humor. Eder Pereira dos Santos, apaixonado pelas coisas lindas da vida, amigo de grande caráter. Michele de Sousa, templo da paciência, amiga querida que iluminou muitos dos meus dias. Aline Sulzbacher, coração e abraços generosos que fizeram com que eu me sentisse mais perto de casa. Minha eterna gratidão: à minha mãe, Odete Schaefer Rekovvsky, que não compreende totalmente por que sou “vítima do computador” por tantas horas por dia, mas sabe o quanto este trabalho significa e me ajudou tanto o quanto pôde; ao meu pai, Rubens Rekovvsky, com quem aprendi a importância de ter persistência, amor pelo que se faz, e de (tentar) não perder o bom humor ao lidar com as dificuldades; à Lairane Rekovvsky, grande incentivadora, com quem foi um prazer compartilhar as emoções e angústias do mestrado, cursado simultaneamente; e ao Jonas Rekovvsky, presença real e virtual, que me dá equilíbrio e inspira. Agradecimento especial à Iracema Veloso, pela amizade e alegria, pelos telefonemas e e-mails e por, assim como o Daniel Veloso, sempre me receber de braços abertos em Belo Horizonte. Agradeço ao Thiago Veloso dos Santos, com quem compartilho os sonhos de uma vida. RESUMO Esta dissertação tem como objeto de estudo os restaurantes alemães de Porto Alegre – RS, descritos a partir de seu percurso histórico-geográfico. Eles têm forte relação com a imigração teuta dos séculos XIX e XX, e também são influenciados pela mundialização da indústria agroalimentar e pelo fenômeno do fast food étnico. O objetivo deste trabalho é analisar os processos de formação e desenvolvimento dos restaurantes alemães de Porto Alegre, priorizando nesta análise a construção da denominação étnica a eles atribuída e a relevância da etnicidade na experiência do comer. Para constituir a documentação da pesquisa foram realizadas 28 entrevistas semiestruturadas com proprietários, clientes e funcionários de estabelecimentos diversos e aplicados 50 questionários a clientes diurnos e noturnos de seis restaurantes. A amostra é composta por 17 estabelecimentos, localizados ao longo de avenidas importantes e em bairros que configuram, pela concentração de estabelecimentos destinados a este fim, manchas de lazer. Diversos fundadores e proprietários são descendentes de alemães, nascidos no interior do Rio Grande do Sul e reterritorializados em Porto Alegre. O desenvolvimento de alguns estabelecimentos está fortemente atrelado à história destes indivíduos e de suas famílias. A análise da trajetória dos restaurantes demonstrou a existência, em diferentes escalas territoriais, de redes e fluxos de mão-de-obra e know-how entre os estabelecimentos, além de relações de parentesco e amizade entre proprietários. A denominação étnica dos restaurantes revelou ser construída e legitimada através dos nomes usados nos estabelecimentos; dos ingredientes escolhidos; do cardápio e da ambientação, através da escolha dos objetos decorativos. Embora os ingredientes industrializados sejam amplamente aceitos, há resistência à substituição de produtos artesanais, emblemáticos do universo iconográfico dos proprietários teuto-brasileiros. Os cardápios, buscando atender ao gosto dos comensais, incorporam pratos tanto da cozinha da imigração, quanto das cozinhas gaúcha, brasileira, alemã e internacional. Conclui-se que: 1) Os deslocamentos espaciais, temporais e sociais conferem diferentes linguagens à comida alemã; 2) o significado étnico/geográfico dos restaurantes alemães pode ser avaliado a partir da análise do seu significado para os frequentadores atuais, em sua origem e propósito heterogêneos e; 3) a trajetória dos restaurantes, de seus proprietários e clientes ilustra a progressiva fusão da comunidade teuta na sociedade porto- alegrense e a diminuição da fronteira étnica; ilustra também o deslocamento dos bares e restaurantes por diferentes áreas da cidade, seguindo as mudanças nos usos do espaço urbano de Porto Alegre. Palavras chave: Porto Alegre, alimentação étnica, restaurantes alemães, consumo. ABSTRACT The current dissertation has as its study object the German restaurants in Porto Alegre – RS, described from their historic-geographical course. They keep a strong link with the German immigration in centuries XIX e XX, and are also influenced by the globalization of the agro-food industry and by the phenomenon of ethnical fast food. The objective of this work is to analyze the processes of creation and development of the German restaurants in Porto Alegre, emphasizing the construction of the ethnical denomination assigned to them and the importance of the ethnicity in the experience of eating. In order to build the documentation of the research, 28 semi-structured interviews have been made with owners, clients and employees of several establishments and 50 questionnaires have been applied to day and night customers of six restaurants. The sample is composed of 17 establishments located along important avenues and neighborhoods that form, according to the density of establishments of this nature, leisure spots. Several founders and owners are of German descent, born in Rio Grande do Sul countryside and reterritorialized in Porto Alegre. The development of some establishments is strongly associated to the history of those individuals and their family. The analysis of the trajectory of the restaurants has shown the existence, at different territorial scales, of networks and flows of labor and know-how amongst the establishments, and kinship and friendship among the owners. The ethnical denomination is constructed and legitimized through the names have been used in establishments; the chosen ingredients, the menu and the ambientation, through the choice of decorative objects. Although industrialized ingredients are widely accepted, there is some reluctance to replace craft products, which are emblematic icons of the German-brazilian owners. Menus, seeking to demand customers’ taste, incorporate dishes not only from the immigration cuisine, but also from gaúcha, Brazilian, German and international cuisines. The main conclusions are: 1) The spatial, temporal and social displacements confer different languages to German food; 2) the ethnic/geographic meaning of German restaurants can be evaluated from the analysis of their significance to the regulars today, in its heterogeneous origin and purpose; 3) the trajectory of the restaurants, their owners and clients illustrates the progressive fusion of the German community in the porto-alegrense society and the reduction of the ethnic boundary; it also illustrates the displacement of the bars and restaurants in different areas of the city, following the changes in the uses of urban space in Porto Alegre. Keywords: Porto Alegre, ethnic food, German restaurants, consumption. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Mercado Público Central de Porto Alegre (décadas de 1890/1900) ...................................................................................................... 105 Figura 2: Mercado Público Central de Porto Alegre (2010) ........................... 105 Figura 3: Representação da trajetória temporal e espacial dos restaurantes Rhenania e Walter ......................................................................... 109 Figura 4: Representação do envolvimento temporal e espacial da família S. com empreendimentos do setor gastronômico................................... 110 Figura 5: Sociedade Germânia (décadas de 1920/30) ................................... 112 Figura 6: Restaurante Floresta Negra (década de 1980) ............................... 112 Figura 7: Localização de antigos bares e restaurantes alemães de Porto Alegre ...................................................................................................... 117 Figura 8: Ano de inauguração e localização dos atuais restaurantes alemães de Porto Alegre .................................................................................... 120 Figura 9: Representação do envolvimento temporal e espacial da família B. com empreendimentos do setor gastronômico .................................. 124 Figura 10: Representação do envolvimento temporal e espacial da família L. com empreendimentos do setor gastronômico ................................... 125 Figura 11: Representação do envolvimento temporal e espacial da família B. com empreendimentos do setor gastronômico .................................. 129 Figura 12: Representação do envolvimento temporal e espacial da família D.P. com empreendimentos do setor gastronômico ............................... 130 Figura 13: Representação da trajetória temporal do restaurante Bier Garten ...................................................................................................... 131 Figura 14: Representação do envolvimento temporal e espacial da família N. com empreendimentos do setor gastronômico .................................. 133 Figura 15: Representação da trajetória do proprietário do restaurante Das Kleine ...................................................................................................... 134 Figura 16: Representação da trajetória temporal e espacial dos restaurantes Tirol e da rede de franquias Tirol Unique ....................................... 136 Figura 17: Localização das cidades de origem dos fundadores e proprietários dos restaurantes alemães de Porto Alegre .................................... 146 Figura 18: Origem étnica e/ou ascendência informada pelos clientes de restaurantes alemães ......................................................................................... 157 Figura 19: Origem da matéria-prima consumida pelos restaurantes – A......... 170 Figura 20: Origem da matéria-prima consumida pelos restaurantes – B ......... 170 Figura 21: Exemplos de fachadas de estabelecimentos, voltados para o interior (E) e para a rua (D) ................................................................................ 178 Figura 22: A: Estilo náutico e referências à Alemanha. B: Madeira combinada com telas. C: Motivos florais, quadros e cartoons na decoração. D: ênfase na madeira como revestimento. E: Fachada em estilo germânico. F: Visual asséptico e padronizado. ...................................................................... 181 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Total de restaurantes alemães localizados em Porto Alegre segundo diferentes fontes de informação. ........................................................... 33 Quadro 2: Total de restaurantes italianos localizados em Porto Alegre segundo diferentes fontes de informação. ........................................................... 34 Quadro 3: Restaurantes alemães de Porto Alegre, em 2012 ............................. 40 Quadro 4: Origem e identidade étnica de maior referência para proprietários de restaurante alemães em Porto Alegre ...................................... 145 Quadro 5: Cidades de origem dos clientes de restaurantes alemães .............. 156 Quadro 6: Frequência de realização de refeições fora de casa por clientes de restaurante alemães ..................................................................................... 161 Quadro 7: Turno de funcionamento e serviços dos restaurantes alemães de Porto Alegre .................................................................................................. 162 Quadro 8: Município de fabricação ou origem de alguns produtos e matérias-primas utilizados nos restaurantes alemães de Porto Alegre ............... 169 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Principais fontes de informação acerca dos restaurantes em Porto Alegre segundo 612 questionários respondidos por clientes noturnos ....... 37 Tabela 2: Especialidades preferidas pelos clientes noturnos de restaurantes porto-alegrenses ........................................................................... 159 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AMBEV: Companhia de Bebidas das Américas AMRIGS: Associação Médica do Rio Grande do Sul CEASA-RS: Centrais de Abastecimento do Estado do Rio Grande do Sul S/A FAO: Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IEPHA-MG: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de Minas Gerais IPHAN: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional RMPA: Região Metropolitana de Porto Alegre SINDPOA: Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Porto Alegre SOGIPA: Sociedade de Ginástica Porto Alegre SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 17 CAPÍTULO I. CAMINHOS E PRESSUPOSTOS ......................................................... 27 1.1 Materiais e métodos .......................................................................................... 29 1.1.1 Método de pesquisa ................................................................................... 29 1.1.1.1 Sobre as fontes de informação ................................................................. 35 1.1.1.2 Definição da amostra ............................................................................... 38 1.2 Fronteiras étnicas, iconografia e territórios-rede: considerações ....................... 42 CAPÍTULO II. A ALIMENTAÇÃO COMO OBJETO DE ESTUDO ................................. 46 2.1 A alimentação contemporânea .......................................................................... 48 2.2 A abordagem multidisciplinar da alimentação ................................................... 56 CAPÍTULO III. IMIGRAÇÃO E RESTAURANTES ÉTNICOS ..................................... 66 3.1 Restaurantes: uma invenção moderna ......................................................... 68 3.2 Cozinhas regionais e comida étnica em restaurantes ................................... 74 3.3 Imigração alemã no Rio Grande do Sul ......................................................... 78 3.4 Os imigrantes alemães em Porto Alegre ....................................................... 81 3.5 A alimentação teuto-brasileira ..................................................................... 89 CAPÍTULO IV. OS RESTAURANTES ALEMÃES DE PORTO ALEGRE ................... 95 4.1 Os antigos bares e restaurantes alemães ........................................................... 99 4.2 Localizações dos antigos e dos atuais bares e restaurantes alemães ................ 114 4.3 Os atuais bares e restaurantes ......................................................................... 122 4.3.1 Bar e restaurante Prinz ............................................................................. 123 4.3.2 Restaurante Chopp Stübel ........................................................................ 124 4.3.3 Restaurantes Baumbach Ratskeller e Steinhaus ........................................ 125 4.3.4 Bar e restaurante Bier Stube ..................................................................... 130 4.3.5 Restaurante Bier Garten ........................................................................... 131 4.3.6 Restaurantes Schullas e Schullas Kleines Haus ........................................... 131 4.3.7 Bar e restaurante Das Kleine ..................................................................... 133 4.3.8 Restaurante Tirol ...................................................................................... 134 CAPÍTULO V. A ATUAL EXPERIÊNCIA COM A COMIDA ALEMÃ EM PORTO ALEGRE .............................................................................................. 138 5.1 Ajudar e trabalhar ...................................................................................... 141 5.2 A origem dos proprietários ........................................................................ 144 5.3 Restaurantes alemães: entre o público e o privado .................................... 150 5.4 O perfil dos clientes ................................................................................... 154 5.5 Aquisição da matéria-prima ....................................................................... 164 5.6 Cardápio .................................................................................................... 171 5.7 Decoração e ambiente ............................................................................... 177 5.8 A construção de uma experiência do comer ............................................... 182 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 185 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 191 GLOSSÁRIO ...................................................................................................... 202 APÊNDICES ...................................................................................................... 203 ANEXOS ...................................................................................................... 212 17 INTRODUÇÃO Alimentar-se: uma necessidade vital de todas as espécies de seres vivos. Enquanto os animais reproduzem instintivamente os hábitos dos seus antepassados, sem a necessidade de copiá-los ou de se submeter a um processo de aprendizado, os seres humanos apresentam respostas diferentes a esta necessidade, variando as formas e os alimentos (LARAIA, 2004). O modo como o ser humano se alimenta depende do que aprendeu com os seus semelhantes, dos alimentos e da cozinha, enquanto linguagem socialmente construída e compartilhada. Depende também de suas escolhas pessoais. Por um lado, não podemos gostar daquilo que não conhecemos, tendendo a preferir o que é familiar, mas, por outro, não comemos tudo que se encontra à nossa disposição, havendo uma seleção entre os itens comestíveis que, de fato, tornam-se alimentos (FISCHLER, 1995). A compreensão de que, apesar de ser uma unidade biológica, a espécie humana apresenta uma grande diversidade cultural e de que a alimentação, mais do que reposição de energia, é também um ato social e cultural, torna-a um objeto de estudo multidisciplinar. Não apenas o corpo se nutre, mas também o imaginário: “Ingerir caviar ou um simples tomate é incorporar não apenas uma substância nutritiva, mas também uma substância imaginária, um tecido de evocações, de conotações e de significações que vão da dietética à poesia [...]” (FISCHLER, 1995, p. 17, tradução livre). Ao longo da vida passamos por diversas experiências marcantes que envolvem comida. A experiência do comer1 e a prática culinária podem nos fazer viajar no tempo e pelos lugares da memória e da imaginação. Por muitas décadas 1 Comer engloba tanto o ato cotidiano (e algumas vezes mecânico) de se alimentar, quanto as experiências gastronômicas. Gastronomia é aqui entendida como a arte de beber e comer bem, de consumir e preparar iguarias com o objetivo de obter delas o máximo de deleite (MIRADOR, 1987). Já a cozinha diz respeito ao conjunto de pratos e regras (MONTANARI, 2008). Culinária, por sua vez, é sinônimo de cozinha e também diz respeito à arte e técnica de cozinhar (HOUAISS, 2009). 18 lembramo-nos dos sabores e dos aromas das comidas da infância2, como demonstrado neste fragmento escrito por Lívia de Oliveira: “Assim, guardo na lembrança o sabor brotando da terra, os aromas telúricos exalando do imaginário, os ruídos do socar dos pilões, as gostosuras das carnes temperadas nas gamelas e o crepitar das lascas de madeira do fogão de lenha, o antigo poiá” (OLIVEIRA, 2011, p. 105). Rachel de Queiroz escreveu sobre nuances da cozinha da avó que marcaram sua infância: “A cozinha da fazenda Califórnia, onde reinava a minha avó, dona Rachel, era, como culinária, detestada por nós, crianças. Dizíamos entre nós que era feita na base de pimenta-do-reino, que abominávamos” (QUEIROZ, 2010, p. 28). O cardápio não era nem rico nem variado no que se refere às chamadas comidas de sal, mas nas sobremesas era a glória: “Doce de tudo, em massa ou em calda. E para nós, inesquecível, um doce de cajus pequeninos, em calda, tão disputado que quase sempre as merendas acabavam em brigas e empurrões pela compoteira em que restavam os últimos cajuzinhos [...]” (QUEIROZ, 2010, p. 29). As experiências do comer, como estas, são incorporadas ao nosso mundo de significados, e é a partir delas que, por exemplo, encontramos parâmetros de comparação para avaliar um alimento desconhecido. Nosso interesse pelo tema da alimentação foi despertado desde cedo, na criança que acompanhava, na cozinha doméstica, o preparo dos pães, doces e refeições diárias. Tal qual, o pão nosso de cada dia ainda é produzido artesanalmente, assim como todos os bolos de aniversário, de Natal e de Páscoa. Por vezes os ingredientes (preparados no fogão á lenha durante o inverno) vinham da horta, das plantações e criações dos parentes que permaneceram no campo, ou de algum animal criado ou comprado e abatido ali mesmo, no quintal. Considerados sempre mais puros que os da cidade, alguns alimentos foram substituídos com muita relutância pela família de ex-agricultores 2 A gastronomia pode explorar intencionalmente estes sabores da infância, confrontando o comensal com memórias afetivas. Alex Atala, chef e proprietário do premiado restaurante D.O.M., em São Paulo, criou um prato de canjiquinha com leite queimado. “É um erro que pode ser considerado virtude se você souber tirar partido daquele amargor [...]. Aquilo é um sabor que beira o desagradável, mas essas coisas de muita personalidade, quando usadas com precisão, podem ser um diferencial” (ATALA, 2011, 18min 48 seg. - 19min 18 seg.). 19 reterritorializados na cidade, como o leite fresco pelo de caixinha, o ovo caipira pelo de granja, a banha de porco pelo óleo de soja. Mais tarde, na adolescência, descobriram-se os livros de culinária. Por meio deles foram feitas tentativas, algumas vezes frustradas, de inserir novos paladares no gosto conservador da família. Em todo caso, ampliou-se o leque de possibilidades do nosso universo culinário. Ao longo do tempo cresceu o interesse pela agroecologia, pelo vegetarianismo, pelas culturas alimentares e pelo modo de preparo dos alimentos. Cada vez mais, percebemos a alimentação como um ponto de partida, e chegada, para a compreensão de amplas questões da relação sociedade-natureza e da inserção do homem na sociedade. A construção do objeto de estudos, os restaurantes alemães porto- alegrenses, está permeada pela nossa origem pessoal. Além de laços afetivos e de ascendência, motivamo-nos a estudar a cozinha alemã em sua versão comercial devido às transformações que esta vem sofrendo nas últimas décadas e à expressividade da colonização teuta no Sul do Brasil. Durante alguns meses dos anos de 2005 e 2006, tivemos a oportunidade de viver em Hamburgo, situação na qual a concepção familiar e escolar da Alemanha foi contrastada com a da Alemanha contemporânea. A imersão cultural motivou a reelaboração da identidade étnica teuto-gaúcha e da própria cozinha teuta, realizando-se a comparação e aproximação entre a cozinha alemã experimentada no Rio Grande do Sul e na Alemanha. A opção pelos restaurantes foi um desdobramento da pesquisa, cuja pretensão era abordar a comida ética. As primeiras levas de imigrantes alemães3 chegaram a São Leopoldo - RS em 1824. Nem todos os imigrantes eram de origem rural. Alguns, profissionalmente capacitados na Alemanha e habituados à vida citadina, optaram, tão logo quanto possível, por se estabelecer nas cidades e por exercer diversas profissões (ROCHE, 1969; WOORTMAN, 2000; GANS, 2004). Estudando a segunda metade do século XIX, Gans (2004) identificou, entre a comunidade teuta 3 No caso dos imigrantes europeus de origem germânica aportados no Brasil, a categoria “alemã” é globalizante, pois reúne grupos diferentes de imigrantes, simplificados por características semelhantes (WEBER, 2006). 20 estabelecida em Porto Alegre, registros de profissões como “confeiteiro”, “padeiro”, “fabricante de bebidas alcoólicas”, “padeiro e refeições”, “taberneiro”, “restaurateur, hoteleiro, armazém secos e molhados”, “produtos coloniais, Delicatessen”, “restaurateur”, “hoteleiro, proprietário de restaurante e bilhar”. Diversos viajantes dos séculos XIX e XX chamaram a atenção para a quantidade de casas comerciais e armazéns de importação de propriedade de imigrantes alemães na capital, indicando até mesmo um predomínio dos alemães sobre outros grupos sociais (NOAL FILHO; FRANCO, 2004). Sobre bares e restaurantes alemães das primeiras décadas do século XX, foi possível resgatar informações dispersas. Tinham como localização principalmente a região central de Porto Alegre e atraíam tanto a comunidade teuta quanto jovens, artistas, intelectuais e boêmios de outras etnias. Há quase 190 anos do início da imigração alemã no Rio Grande do Sul, qual o status do setor de gastronomia alemã no município de Porto Alegre, capital do estado e nossa área de estudos? Como as transformações na cidade, na gastronomia, nos hábitos e na indústria alimentar impactaram os estabelecimentos de “bandeira” teuto-brasileira? Por que a inserção de redes de fast food no ramo de comida alemã é tímida, ao contrário do que ocorreu com os restaurantes mexicanos, italianos e outros? Este trabalho tem como tema geral a alimentação e os restaurantes étnicos. Dentro deste domínio, optamos por estudar os restaurantes alemães cujos proprietários são, com alguma frequência, de origem alemã. O objetivo geral é analisar os processos de formação e desenvolvimento dos restaurantes alemães de Porto Alegre, priorizando nesta análise a construção da denominação étnica a eles atribuída e a relevância da etnicidade na experiência do comer. Os objetivos específicos são: 1) identificar a gênese dos restaurantes alemães de Porto Alegre; 2) identificar e caracterizar a existência e a intensidade de laços identitários entre os proprietários dos restaurantes e a cultura alemã; 3) identificar as relações de trabalho nos estabelecimentos, como se organizam e se relacionam com a etnicidade; 4) descrever a territorialização dos restaurantes, identificando os agentes do processo e a escala de atuação, gerando representações dessa 21 territorialização e 5) analisar as principais estratégias material e imaterialmente utilizadas nos restaurantes para criar e fortalecer a denominação étnica vinculada aos mesmos. A experiência do comer possui elementos materiais e imateriais. Os aspectos materiais incluem a origem da matéria-prima, a distância que os alimentos percorrem da produção ao consumo, o lugar onde se come e o que se come. Entre os aspectos imateriais, destacamos a origem da cozinha e dos que a praticam, os símbolos ligados à comida e o território como valor de referência nas escolhas alimentares (MONTANARI, 2008). Como forma de pensar e elaborar o percurso que permitiu atingir o objetivo, tratamos o objeto a partir da ótica territorial, valendo-nos, para tanto, do território-rede (HAESBAERT, 2009), das fronteiras étnicas (BARTH, 1998) e da iconografia (GOTTMANN, 1952 apud SAQUET, 2009a). A primeira noção amplia o entendimento sobre as diversas redes e fluxos, materiais e imateriais, estabelecidos durante a formação e operação dos estabelecimentos estudados. Já a segunda auxilia a compreender a negociação da identidade étnica e o papel da cultura alemã na sociedade porto-alegrense, considerando os traços étnicos como elementos de estratagema, manipulados estrategicamente pelos atores (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). A iconografia, que funciona como um sistema de resistência frente às mudanças e à circulação, ajuda a compreender que mudanças e permanências coexistem. A pesquisa foi realizada a partir de uma abordagem qualitativa. A amostra inicial foi definida com base em pesquisa na internet e expandida após trabalhos de campo, totalizando 17 estabelecimentos. Além de proprietários de restaurantes, foram entrevistados funcionários e clientes, antigos proprietários de estabelecimentos extintos e proprietários de outros tipos de estabelecimentos. Para seleção dos entrevistados, utilizou-se a segmentação de grupo “natural”, composto por indivíduos que partilham de experiências comuns, neste caso, ligadas à cozinha alemã e à identidade étnica (GASKELL, 2010). Foram realizadas 28 entrevistas semiestruturadas. Em bares e restaurantes alemães entrevistamos dez proprietários, uma ex-proprietária, dois clientes e oito 22 funcionários. Em restaurantes italianos entrevistamos dois proprietários e dois funcionários e, em estabelecimentos de outros segmentos, três proprietárias. A entrevista do tipo semiestruturada com uma única pessoa não se pauta em um conjunto rígido de perguntas pré-determinadas. Pelo contrário, ”as perguntas são quase um convite ao entrevistado para falar longamente, com suas próprias palavras, e com tempo para refletir” (GASKELL, 2010, p. 73). As entrevistas tiveram entre uma e três horas de duração. Ocorreram até quatro encontros com o mesmo entrevistado e complementação de informações via correio eletrônico e telefonemas. É oportuno lembrar que o projeto de pesquisa contemplava restaurantes alemães e italianos, mas o universo empírico foi reduzido após o segundo trabalho de campo. No terceiro trabalho de campo, aplicamos 50 questionários a clientes diurnos e noturnos de seis restaurantes alemães. Em algumas situações, dada a boa vontade dos clientes, a aplicação dos questionários culminou em conversas com até uma hora de duração sobre o tema em estudo, gerando um significativo conjunto de informações sobre bares e restaurantes extintos. Os proprietários dos restaurantes alemães atuais já não são fruto da leva inicial de imigrantes alemães que se fixou nas cidades gaúchas (GANS, 2004). Em geral, são descendentes de imigrantes fixados nas colônias4 que, por circunstâncias diversas, migraram para a cidade. Entre estas circunstâncias, destacamos os processos de industrialização da região metropolitana de Porto Alegre, que atraiu grandes levas de camponeses a partir da década de 1950. A reterritorialização na cidade implicou mudança de atividade econômica e aprendizagem de novos ofícios. Uma das opções consistiu na inserção no setor gastronômico. Alguns proprietários iniciaram como trabalhadores assalariados que, após alguns anos, adquiriram o próprio estabelecimento, no qual há, com frequência, envolvimento de mais de um membro da família. Outros já iniciaram 4 Cabe esclarecer que “colônia” é o termo geográfico corrente no Rio Grande do Sul para descrever as áreas que receberam imigração europeia ao longo dos séculos XIX e XX, constituindo núcleos de povoamento agrícola, núcleos urbanos que os integravam e fronteiras de expansão que abrigavam os descendentes dos primeiros imigrantes. Nessas áreas, podem ser encontrados processos identitários significativos, com apelo à origem e cultivo de tradições como festas de colheita, festas de imigração, celebração em línguas e dialetos europeus, grupos folclóricos etc. 23 como proprietários de estabelecimentos modestos, aprimorados com o tempo. O aprendizado dos ofícios próprios ao restaurante se deu por diferentes meios: trabalho assalariado, saber-fazer culinário incorporado nas práticas familiares, experiência familiar pretérita no ramo, pesquisas na internet e em livros de receitas, mas os cursos profissionalizantes são raramente citados. De modo geral, da comida de substância aos pratos mais requintados, os restaurantes respondem tanto à necessidade de parcela da população de se alimentar fora de casa durante o trabalho ou estudo quanto a uma atividade de lazer. Os restaurantes de hoje derivam de um longo desenvolvimento, provavelmente iniciado na França, na época que antecede a Revolução Francesa (PITTE, 1993; 1998, SPANG, 2003). No Brasil contemporâneo, o ato de comer é cada vez mais associado a locais que não envolvem o lar. Os restaurantes, bares e cantinas fazem parte do cotidiano da população. Atendem a diversos grupos sociais, que recorrem a eles em distintas situações, como refeições do dia-a-dia; ocasiões especiais (como formaturas, casamentos e aniversários) e reuniões. Em diferentes modalidades, da mais tradicional ao fast food, a alimentação fora de casa é relevante e presente no cotidiano, principalmente urbano. Realizar refeições fora do ambiente doméstico está relacionado à necessidade orgânica de alimentar-se, mas também à vida social, cultural, política e econômica. Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, os gastos com refeições fora de casa representaram 31,1% das despesas com alimentação nas famílias brasileiras nos anos de 2008 e 2009. A região que apresentou maior percentual foi o Sudeste, onde estes gastos representaram 37,2% dos gastos com alimentação. O menor percentual foi o da região Norte, 21,4%. Segundo a POF 2008-2009, na região Sul os gastos com alimentação fora do domicílio representaram 27,7% sobre o total gasto com alimentação, 4,4% a mais do que o apurado na POF 2002-2003 (IBGE, 2010). O aumento do consumo de alimentos fora do espaço de moradia reflete uma tendência comum a diversos países com altas taxas de urbanização, nos quais a alimentação, principalmente nas grandes cidades, identifica-se cada vez menos 24 com o universo doméstico. Segundo Fischler (1995, 1998), a urbanização e a industrialização modificaram profundamente os modos de vida. A profissionalização das mulheres, a elevação do nível de vida e de educação, a generalização do uso do carro, o acesso mais amplo ao lazer, férias e viagens transferiram a incumbência de prover as refeições, que antes era do lar, para restaurantes, escolas e empresas. Mais do que um fenômeno contemporâneo, o tamanho das cidades e sua dinâmica tem papel importante no aumento do percentual de refeições executadas fora do lar. Nos domicílios urbanos brasileiros, por exemplo, o percentual gasto com alimentação fora do lar sobre o total gasto com alimentação foi, nos anos de 2008-2009, quase o dobro (33,1%) do que o gasto nos domicílios rurais (17,5%) (IBGE, 2010). Nas grandes cidades é comum haver grande variedade de locais preparados para atender a demanda por refeições fora de casa. Entre estes locais estão os restaurantes étnicos, difusores de modos diferentes de comer e pensar a comida. Os restaurantes associam-se tanto ao consumo cotidiano das diferentes classes sociais quanto ao consumo hedonista, realizado com maior frequência à noite, nos finais de semana e nos feriados. Segundo Bolaffi (2006), os restaurantes étnicos, que nasceram com as grandes migrações europeias dos séculos XIX e XX, eram, no princípio, apenas uma forma dos imigrantes ganharem a vida, oferecendo aos seus conterrâneos a comida que eles já não podiam desfrutar no seu cotidiano. Posteriormente, os autóctones e os membros de outros grupos étnicos passaram a frequentar esses locais, popularizando-os. A operação de restaurantes étnicos não ficou restrita, porém, aos imigrantes e descendentes. A recente mundialização da indústria agroalimentar e de diversos hábitos alimentares contribui para a popularização dos restaurantes étnicos, ainda que em muitos casos tratem-se de pastiches, releituras caricatas e reproduções empobrecidas da culinária original, como no caso dos fast foods (POULAIN, 2006; GIRARDELLI, 2004). A alimentação étnica superou os bairros de imigrantes para situar-se, por exemplo, nas praças de alimentação dos shoppings, onde já não causa estranhamento. No caso em estudo existe uma correlação frequente entre origem 25 dos proprietários e identificação étnica atribuída ao restaurante, mas há exceções, como um restaurante alemão de propriedade de uma família ítalo-brasileira e uma rede de franquias. Em terra estrangeira, os restaurantes étnicos podem se tornar ponto de encontro da comunidade de imigrantes. Alguns dos antigos bares e restaurantes alemães de Porto Alegre desempenharam esta função, reunindo grupos de alemães, que lá conversavam, jogavam cartas, consumiam chope e petiscos. Criados na segunda metade do século XIX e na primeira do século XX, não resistiram ao tempo (entrevistados D, masculino, 58 anos; G, feminino, aprox. 80 anos e H, feminino, aprox. 50 anos; GOUVÊA, 1976). Os restaurantes hoje existentes, criados a partir da década de 1960, atendem a um público diversificado, composto por indivíduos com diferentes origens étnicas e que apresentam diferentes motivações de consumo, como trabalho, lazer e turismo. Por um lado, o hiato temporal entre o momento atual e o início da imigração alemã no Rio Grande do Sul (1824) torna os limites entre a alimentação teuta, gaúcha e brasileira menos nítidos, a fronteira étnica mais diluída; mas, por outro, permite observar movimentos de resgate, renovação e transformação da cultura gastronômica. Ao mesmo tempo, em um momento no qual os jornais em alemão já não existem e as associações e clubes fundados pelos imigrantes alemães se abriram para a participação de outros públicos, os restaurantes teutos são importantes para a reprodução da cultura material e imaterial teuto-brasileira e os principais veículos da culinária alemã em Porto Alegre. Os restaurantes são condição e resultado da redefinição das fronteiras da identidade teuto-brasileira, profundamente imbricada com outras identidades. No movimento de transformação da própria cidade - criação e destruição das suas formas e funções (SANTOS, 1997) -, assim como os restaurantes, a identidade alemã - na relação com as outras identidades - também se transforma. A denominação étnica do restaurante é construída por uma série de sugestões, presentes com ou sem intenção explícita. A expectativa é o reconhecimento pelo 26 comensal de que o restaurante oferece uma experiência do comer diferenciada e competitiva. Por fim, cabe mencionar que estruturamos a dissertação em cinco capítulos. No Capítulo I (Caminhos e pressupostos) detalhamos o desenvolvimento da pesquisa e os métodos adotados. Apresentamos, também, os referenciais utilizados para elaborar a análise do objeto empírico. No Capítulo II (A alimentação como objeto de estudo) apresentamos os enfoques dados ao estudo da alimentação em diferentes disciplinas e ciências, entre elas a Geografia. No Capítulo III (Imigração e restaurantes étnicos) resgatamos a história do restaurante enquanto instituição moderna, enfatizamos o processo de colonização alemã no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre, bem como as criações, transformações e adaptações da cozinha alemã no contexto do Sul do Brasil. No Capítulo IV (Os restaurantes alemães de Porto Alegre) apresentamos informações sobre antigos e atuais bares e restaurantes alemães da cidade, descrevendo e analisando a trajetória, história, localização, organização do trabalho e organização territorial. No Capítulo V (A atual experiência com a comida alemã em Porto Alegre) discutimos os elementos materiais e imateriais que compõem a experiência do comer, como a origem dos proprietários e dos clientes, as relações de trabalho familiar, o cardápio, o ambiente e a decoração dos restaurantes. 27 CAMINHOS E PRESSUPOSTOS CAPÍTULO I. 28 29 1.1 Materiais e métodos A definição do que caracteriza um estudo científico é controversa. Os cientistas muito já se debruçaram sobre esta questão e a própria história da Geografia demonstra momentos de debate, através de suas diferentes escolas. Eco (2010) estabelece alguns requisitos para que um trabalho seja científico. Segundo o autor, não somente trabalhos que envolvam fórmulas, experimentos laboratoriais e diagramas são científicos. A compreensão que se tem de cientificidade na universidade é bem mais ampla, e mesmo teses políticas, ligadas a interesses sociais e políticos, podem ser científicas. O trabalho é científico quando responde aos seguintes requisitos: O estudo debruça-se sobre um objeto reconhecível e definido de tal maneira que seja reconhecível igualmente pelos outros (...); o estudo deve dizer algo que ainda não foi dito ou rever sob uma óptica diferente o que já se disse (...); o estudo deve ser útil aos demais (...) e o estudo deve fornecer elementos para a verificação e a contestação das hipóteses apresentadas e, contanto, para uma continuidade pública (ECO, 2010, p.21-23). Embora não mencione o método explicitamente, o autor indica a necessidade de “elementos para a verificação”, o que sugere a utilização de técnicas passíveis de reprodução para apreensão da realidade. Não há consenso sobre a noção de cientificidade. Para alguns autores, pesquisas que adotam determinados pressupostos científicos, sem necessariamente haver a identificação do método como fundamento filosófico que baliza a pesquisa, também fazem parte da ciência, enquanto que para outros a adoção do método é crucial. 1.1.1 Método de pesquisa O método de pesquisa se refere ao conjunto de técnicas empregadas para a formação do corpus da pesquisa. “Refere-se mais ao conjunto de técnicas utilizadas em determinado estudo. Relaciona-se assim, mais aos problemas operacionais da pesquisa que a seus fundamentos filosóficos” (MORAES; COSTA, 1999, p. 27). 30 Os métodos de pesquisa permitem ao pesquisador obter informações que o ajudem a compreender a realidade. A coleta de dados, portanto, é uma etapa fundamental, que deve estar atentamente relacionada com o problema de pesquisa, os objetivos e as hipóteses. Segundo Eco (2010), é importante definir logo o objeto da pesquisa já que, desde o início, impõe-se o problema da acessibilidade às fontes. Ter clareza sobre a pesquisa como um todo é fundamental para a escolha dos métodos adequados. “Embora a pesquisa não possa dar respostas finais às perguntas que estuda, tem havido um constante esforço para criar processos que aumentam a provável precisão de respostas da pesquisa” (SELLTIZ et al., 1974, p. 09). A escolha de técnicas adequadas é, portanto, uma etapa importante na busca por respostas às perguntas formuladas e a delimitação do problema necessita ser coerente com os meios disponíveis ao pesquisador. Em algumas situações, a definição do problema precisa ser complementada com um estudo exploratório. Outras informações também podem ser obtidas desta forma, como a elaboração de hipóteses e alguns encaminhamentos para a elaboração de questionários e roteiros de entrevista. Os estudos exploratórios podem também: aumentar o conhecimento do pesquisador acerca de um fenômeno que deseja investigar em estudo posterior, mais estruturado, ou da situação em que pretende realizar tal estudo; o esclarecimento de conceitos; o estabelecimento de prioridades para futuras pesquisas; a obtenção de informação sobre possibilidades práticas de realização de pesquisas em situações práticas de vida real; apresentação de um recenseamento de problemas considerados urgentes por pessoas que trabalham em determinado campo de relações sociais (SELLTIZ et al., 1974, p.60). A etapa posterior ao estudo exploratório é o estudo descritivo. Nesta etapa os métodos a serem usados devem ser cuidadosamente planejados. Como o objetivo é conseguir informação completa, o plano de pesquisa deve prever maior cuidado com o viés do que os estudos exploratórios. Neste caso, O pesquisador precisa ser capaz de definir claramente o que deseja medir, e de encontrar métodos adequados para essa 31 mensuração. Além disso, precisa ser capaz de especificar quem deve ser incluído na definição de “determinada comunidade” ou “determinada população”. Ao coligir provas para um estudo desse tipo, não há tanta necessidade de flexibilidade, mas de uma clara formulação de que ou quem deve ser medido, bem como de técnicas para medidas válidas e precisas (SELLTIZ et al., 1974, p.77). Seguindo esta metodologia, primeiramente foi executado um levantamento sobre a localização, história e as principais tendências de restaurantes alemães e italianos, utilizando sites da internet e jornais. Além da familiarização com os estabelecimentos, analisamos textos extraídos de alguns sites, utilizando-se a técnica da análise do discurso (REKOVVSKY, 2011). A técnica foi empregada com base nas orientações de Gil (2010, p. 266), segundo a qual “uma análise de discurso é uma leitura cuidadosa, próxima, que caminha entre o texto e o contexto, para examinar o conteúdo, organização e funções do discurso”. Os elementos visuais (cores, imagens, logotipos, marcas) e textuais (nomes dos pratos, do restaurante e textos em geral) contribuem para a compreensão das estratégias utilizadas e a ênfase em determinadas características dos restaurantes, como a valorização da etnicidade e da vinculação com o tradicional e o moderno. O primeiro trabalho de campo foi realizado após esta etapa e teve como objetivo verificar a relevância do problema, e a acessibilidade aos informantes e às informações. Durante o mês de julho de 2011 foram realizadas oito entrevistas, seguindo o roteiro de entrevista semiestruturada (apêndice 01). Em três restaurantes italianos e em dois alemães entrevistamos cinco proprietários, um administrador, uma chef e um garçom. Os restaurantes foram selecionados pela sua popularidade e reputação de tipicamente étnicos. O embasamento teórico para realização deste tipo de entrevista foi obtido através dos textos de Gaskell (2010) e Selltiz et al (1974). As entrevistas foram transcritas e armazenadas, os ambientes foram fotografados. Com base neste material e nas impressões proporcionadas pelo campo, o projeto foi reavaliado, o que suscitou a necessidade de se fazer um levantamento que indicasse a dimensão do universo da pesquisa, ou seja, quantos restaurantes italianos e alemães há em Porto Alegre. 32 Definir o que é um restaurante italiano ou alemão não é nada simples, pois envolve a ideia de autenticidade. Como quantificar ou comparar a autenticidade dos estabelecimentos? Escapando deste impasse, realizamos um levantamento inicial utilizando a internet como fonte de pesquisa. Como apenas pequeno número de restaurantes mantêm páginas próprias, selecionamos algumas fontes de informação para localizar e obter informações sobre os demais. Optamos por seguir a orientação das fontes e considerar como restaurantes italianos e alemães somente aqueles para os quais esta informação estava explicitada nos sites. Evitamos, neste momento, considerar estabelecimentos registrados em outras categorias, ainda que o viés étnico fosse sugerido, pois a utilização de critérios subjetivos poderia gerar confusão. Utilizamos os buscadores Hagah, Food Brasil e TeleListas, guias de consulta populares entre consumidores, com destaque para o primeiro, que pertence ao Grupo RBS e possui ampla divulgação na mídia (HAGAH, 2011; FOOD BRASIL, 2011; TELE LISTAS, 2011). O guia on-line “Comer & beber”, da revista Veja foi outra fonte (COMER & BEBER, 2011). Consultamos ainda a página do Sindpoa, onde é possível encontrar informações sobre diversos estabelecimentos, não apenas associados (SINDPOA, 2011). O número de estabelecimentos localizados pelas fontes de informação varia bastante. Por exemplo: em uma fonte são listados seis restaurantes alemães, na outra, 14. A diferença é ainda maior entre italianos. Um site fornece informação sobre treze estabelecimentos, e outro, sobre 85. Ao realizar buscas nas fontes de informação utilizamos palavras de interesse para a pesquisa, como cozinha alemã, culinária alemã e alemães. Além de organizar os estabelecimentos nessas categorias, alguns sites têm um detalhamento da atividade e das características dos estabelecimentos, classificando um mesmo estabelecimento em outras categorias ou subcategorias. Nos quadros 1 e 2 apresentamos um resumo deste levantamento inicial. A categoria, em negrito, foi o termo principal da busca e as subcategorias, outras palavras que apareciam associadas aos estabelecimentos. 33 Quadro 1: Total de restaurantes alemães localizados em Porto Alegre segundo diferentes fontes de informação. Fonte: fontes de informação. Elaboração: ago. 2011. Identificamos 21 estabelecimentos com matriz alemã, mas este número é enganoso, pois se percebe em alguns casos falta de critério ao classificar o restaurante como alemão ou de cozinha alemã. Cita-se o exemplo da “Pizzaria do Alemão”, mencionada apenas na Tele Listas e que tem a seguinte descrição: Culinária Alemã/ Pizzarias. Fica a dúvida se o restaurante foi cadastrado nesta categoria devido ao nome ou ao cardápio, que serviria, além de pizzas, comida alemã. Outro exemplo é o “Espaço Gourmet Viver a Vida - Alimentação Saudável”, também citado apenas pela Tele Listas e definido como: Cozinha alemã/ Cozinha italiana/ Alimentos Orgânicos/ Cursos/ Cursos de Culinária/ Natural e light/ Cozinha chinesa/ Cozinha regional/ Cozinha vegetariana/ Restaurantes. A miscelânea de subcategorias pouco ajuda na compreensão do conceito seguido pelo restaurante. A indefinição é ainda maior entre os restaurantes italianos, para os quais identificamos 127 ocorrências. As subcategorias são ainda mais abundantes e incluem grande variedade de cozinhas, como a japonesa e a uruguaia (quadro 2). RESTAURANTES ALEMÃES EM PORTO ALEGRE Fontes de informação Categorias (em negrito) e subcategorias nas quais os estabelecimentos são classificados Nº de restaurantes encontrados Hagah Cozinha alemã/ Restaurantes/ Bufê/ Cozinha internacional/ Cozinha variada/ Bares/ Alimentos Orgânicos/ Cursos / Cursos de Culinária/ Natural e light/ Cozinha chinesa/ Cozinha regional/ Cozinha vegetariana/ Grelhados/ Feijoada 13 Food Brasil Cozinha Alemã/ Restaurante/ Confeitaria/Bares 14 TeleListas Culinária Alemã/ Restaurantes/ Self-service/ Bares e Choperias/ Pizzarias/ Culinária Suíça/ Culinária Internacional/ Frutos do Mar e Peixes 09 Comer & beber Porto Alegre Alemães 06 Sindpoa Cozinha Alemã 08 Total, excluídas as repetições: 21 34 Quadro 2: Total de restaurantes italianos localizados em Porto Alegre segundo diferentes fontes de informação. Fonte: fontes de informação. Elaboração: ago. 2011. Há uma visível dificuldade de classificação. Como há várias categorias para definir um estabelecimento, encontramos restaurantes citados na seção de comida italiana ou alemã em um site, e em outros sites, não. Outro exemplo: a galeteria Casa do Marquês é classificada no Hagah como galeterias/ restaurantes/ eventos/ locação de espaços para festas. No Food Brasil, como cozinha variada, e na Tele Listas como culinária brasileira/ galeterias/ culinária italiana. Na página de internet da galeteria não há referência à italianidade, mas a casa gaba-se de ter um cardápio que reúne o melhor do galeto primo canto (CASA, 2011). Embora esse prato seja considerado como de culinária gaúcha, sabe-se que se origina das passarinhadas preparadas pelos italianos, em que pássaros resultado da caça eram assados e servidos com e polenta e radicchio. O galeto ao primo canto é RESTAURANTES ITALIANOS EM PORTO ALEGRE Fontes de informação Categorias (em negrito) e subcategorias nas quais os estabelecimentos são classificados Nº de restaurantes encontrados Hagah Cozinha italiana/ Restaurantes/ Cozinha internacional/ Sopas/ Bufê/ Pizzarias/ Grelhados/ Galeterias/ Pubs/ Natural e light/ Cozinha alemã/ Cozinha chinesa/ Cozinha vegetariana/ Cozinha regional/ Cozinha francesa/ Bistrô/ Cozinha uruguaia/ Frutos do mar/ Cozinha japonesa/ Fast-food e Lancheria/ Cozinha variada/ Fondue/ Eventos/ Locação de espaços para festas/ Brunch 85 Food Brasil Cozinha italiana/ Restaurante/ Pastifício/ Pizzaria/ Churrascaria/ Bares/ Champanharia/ Galeteria/ Fast Food 70 TeleListas Culinária Italiana/ Adegas/ Restaurantes/ Pizzarias/ Steak House/ Bistrôs/ Culinária Francesa/ Bares e Choperias/ Culinária Brasileira/ Cafés/ Cafeterias/ Churrascarias/ Galeterias/ Grelhados/ A Quilo/ Self-service/ Lanchonetes/ Cantinas/ Fast Food/ Frutos do Mar e Peixes/ Comida Caseira/ Buffets/ Saladas 80 Comer & beber Porto Alegre Italianos 21 Sindpoa Cozinha italiana 13 Total, excluídas as repetições: 127 35 preparado, atualmente, com frangos jovens, abatidos aproximadamente aos 30 dias de vida. Realizando o mesmo procedimento para localizar restaurantes alemães e italianos, percebemos que a complexidade de definir o segundo grupo é maior devido ao número de estabelecimentos, mas também à maior transitividade que a identificação como comida italiana permite. Como alguns estabelecimentos parecem estar incluídos nas categorias e subcategorias das fontes de informação de maneira equivocada, decidiu-se eleger com cuidado os estabelecimentos a serem visitados no segundo trabalho de campo. 1.1.1.1 Sobre as fontes de informação O interesse em aparecer com frequência nas pesquisas realizadas pelos usuários dos sites de busca motiva alguns estabelecimentos a se cadastrarem em uma diversidade de subcategorias, o que pode gerar alguma confusão sobre o que é realmente servido e qual é o conceito da casa. Estas indefinições ou definições excessivas também remetem ao processo de fusão da alimentação étnica com cozinhas locais, regionais e internacionais. Há, no entanto, algumas diferenças básicas entre as fontes de informação que podem ajudar a esclarecer porque o número de restaurantes encontrados varia tanto entre elas. O portal Hagah atua nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e na cidade de São Paulo. Exibe reportagens sobre saúde, alimentação saudável, beleza, cinema, espetáculos, entre outras. Organiza promoções com ingressos para eventos, cupons de descontos e outras premiações, além de oferecer um guia de serviços bastante amplo, que inclui desde a venda de veículos e imóveis à divulgação de restaurantes, pet shops, farmácias, etc. Há duas modalidades de anúncio: gratuito e pago (no modo pago, há dois tipos de pacotes), que diferem quanto à posição de relevância no resultado de busca executada pelo internauta e à quantidade de informações agregadas ao anúncio. Apenas um entrevistado afirmou pagar pelo anúncio, os demais têm anúncios gratuitos. Este é um buscador amplamente utilizado e transmite bastante credibilidade. Por este motivo, foi muitas vezes utilizado no levantamento para 36 certificar endereços e nomes. Alguns estabelecimentos citados na categoria de restaurante italiano por outras fontes aparecem no Hagah com denominações que não indicam esta inclinação étnica (HAGAH, 2011). O Food Brasil é um guia de gastronomia que abrange mais de 50 cidades brasileiras. O cadastro é gratuito, assim como a exibição, mas a empresa aluga espaços para propaganda no site (FOOD BRASIL, 2011). Apesar de reunir informações sobre grande quantidade de estabelecimentos, sua popularidade é menor que a do Hagah. Os anúncios no site Tele Listas também são gratuitos, é fácil e rápido criar um cadastro. Encontramos neste catálogo diversos estabelecimentos que até então não tinham sido citados pelas outras fontes de informação. Ao mesmo tempo, há algumas incoerências em relação às outras fontes de informação consultadas. Erros como duplicidade de endereço para um mesmo restaurante, dois restaurantes diferentes no mesmo endereço, ou endereços e números de telefone errados ou obsoletos indicam que o site não é atualizado com frequência ou rigor, sendo a veracidade das informações menos confiável. O catálogo inclui negócios de pequeno porte localizados em bairros afastados das áreas elitizadas da cidade. Por um lado este buscador pode conduzir a trabalhos de campo em estabelecimentos pouco representativos, mas por outro, pode trazer contribuições preciosas para a compreensão da amplitude que a culinária étnica adquiriu na sociedade, em todas as classes econômicas. Definir o que é um restaurante italiano ou alemão é difícil, mas neste buscador, estabelecimentos que, por nossa experiência empírica, muito pouco têm a ver com comida étnica aparecem em tal categoria ou subcategoria. Curiosamente, alguns dos mais famosos restaurantes da cidade não estão cadastrados (TELE LISTAS, 2011). A revista Veja costuma premiar estabelecimentos que se destacam no setor gastronômico. Os vencedores são divulgados através da publicação “Comer & beber”. Há três categorias principais: bares, restaurantes e comidinhas. Para a premiação dos melhores da cidade são indicados dez juízes por categoria. Na categoria “restaurantes”, os jurados de Porto Alegre votam no melhor: alemão; brasileiro; carne; carne/rodízio; cozinha contemporânea; galeteria; italianos; 37 oriental; peixes e frutos do mar; pizzaria; variado; bom e barato; e chef do ano. O júri, na última votação de Porto Alegre (2011/2012), foi composto por um empresário, dois jornalistas, dois críticos de gastronomia, três professores universitários, uma apresentadora de televisão e um diretor de teatro (COMER & BEBER, 2011). A página de internet do Sindpoa disponibiliza uma série de serviços para empresários do setor. Além disso, um pequeno guia de gastronomia com estabelecimentos associados e não associados. Em geral, os estabelecimentos encontrados são bastante conhecidos como referências de comida alemã e italiana na cidade (SINDPOA, 2011). “Comer & beber” e “Sindpoa” nos pareceram as fontes de informação mais confiáveis. No primeiro caso, é possível ler uma pequena resenha sobre o restaurante, indício adicional de sua existência. No segundo, trata-se de uma entidade representativa do setor, da qual se espera maior acurácia nas informações publicadas. Sobre a relevância das fontes de informação como instrumento de pesquisa pelos usuários, Lionello (2011) afirma que, numa amostra de 612 clientes noturnos de restaurante de Porto Alegre, a consulta se dá com maior frequência em sites e blogs avaliativos (22,1%). Interessante observar que 22,7% dos clientes não costuma fazer uso de fontes de informação, preferindo, talvez, informar-se com amigos, eleger os locais por conveniência e curiosidade ou frequentar estabelecimentos já conhecidos (tabela 1). Tabela 1: Principais fontes de informação acerca dos restaurantes em Porto Alegre segundo 612 questionários respondidos por clientes noturnos PRINCIPAL FONTE DE INFORMAÇÃO ABSOLUTO (n) RELATIVO (%) Não costuma buscar 139 22,7 Sites/blogs avaliativos 135 22,1 Guias gastronômicos 98 16 Outro 87 14,2 Jornais ou revistas 78 12,7 Sites/blogs de especialistas 48 7,8 Outdoor 15 2,5 Rádio ou TV 12 2 Total 612 100,0 Fonte: Lionello (2011, p. 50). 38 Fontes que não envolvem navegação na internet, como televisão, rádio e outdoor têm baixa frequência de citação, enquanto jornais, revistas e guias gastronômicos tem maior expressividade. Essa informação aponta para o momento histórico vivido e para os meios de pesquisa utilizados pela população de uma grande cidade e que frequenta restaurantes à noite. Guias gastronômicos, como o Guia Quatro Rodas5 e o Veja Comer & beber, foram preferência de 16% dos inquiridos (LIONELLO, 2011). A internet é fonte de consulta de pelo menos 29,9 % dos clientes (sites/blogs avaliativos e sites/blogs de especialistas), além daqueles que utilizam guias gastronômicos on-line. 1.1.1.2 Definição da amostra Para o segundo trabalho de campo optamos por selecionar os estabelecimentos que apresentassem pelo menos uma repetição nas fontes de informação. O critério da repetição pode indicar que o conceito da casa tende a ser reafirmado nos diferentes cadastros, demonstrando interesse em que a casa torne-se conhecida por este aspecto. Desta forma, obtivemos o número de onze restaurantes alemães e 50 italianos. A realização de entrevistas (como o projeto inicial previa) em todos os restaurantes provavelmente resultaria em informações incompletas, pois além da limitação de tempo, uma quantidade muito grande de restaurantes italianos foi fundada nos últimos quinze anos, o que poderia trazer contribuições de reduzida significância para a pesquisa. Alternativa seria a aplicação de questionários ao invés de entrevistas, o que não contemplaria nossos objetivos. Desta forma, o número de estabelecimentos apurados durante o levantamento nos conduziu a três caminhos: 1) priorizar um tipo de estabelecimentos étnicos e investigar mais a fundo sua História e sua Geografia, realizando entrevistas, além dos outros procedimentos metodológicos previstos; 5 O Guia Quatro Rodas organiza os restaurantes de Porto Alegre em 18 especialidades, não contemplando a alemã. São elas: brasileira, carnes, carnes (rodízio), chinesa, cozinha contemporânea, francesa, galeto (rodízio), indiana, italiana, japonesa, pescados, pizza, polonesa, portuguesa, tailandesa, uruguaia, variada e variada/bufê. Dois dos restaurantes da nossa amostra estão na subcategoria “variada”. 39 2) continuar trabalhando com estabelecimentos alemães e italianos em paralelo, adotando uma forma de coleta dos dados mais simplificada; 3) realizar uma seleção ainda mais rigorosa dos estabelecimentos onde se realizariam entrevistas, o que poderia prejudicar os restaurantes alemães, por sua desproporcionalidade numérica em relação aos italianos. Optamos pelo primeiro caminho, ainda que esta escolha tenha como ônus a impossibilidade de se executar exercícios comparativos entre os dois tipos de restaurantes (alemães e italianos), como por exemplo, entre o perfil dos clientes, a forma de organização e gestão dos estabelecimentos, o papel que o trabalho familiar desempenha e a localização dos restaurantes. As informações geradas a respeito dos restaurantes italianos serviram como balizadores e permitiram elaborar algumas reflexões. A amostra dos restaurantes alemães foi definida, portanto, como a totalidade dos restaurantes alemães com mais de uma citação nas fontes de informação, o que totalizou dez casos, visto que um deles encerrou atividades em 2012 (apêndices 02 e 03). Após o segundo trabalho de campo optamos por incluir também as sete filiais dos dez estabelecimentos selecionados: dois restaurantes e cinco lojas franqueadas, totalizando 17 estabelecimentos (quadro 3). O segundo trabalho de campo, parte do estudo descritivo, teve como objetivo obter informações o mais completas possíveis sobre os estabelecimentos da amostra. Seguiu-se um roteiro previamente preparado (apêndice 04), tendo-se realizado, em fevereiro de 2012, treze entrevistas semiestruturadas e individuais. Em estabelecimentos teuto-brasileiros entrevistamos: seis proprietários, dois clientes e um gerente. Entrevistamos também uma ex-proprietária de restaurante alemão, a proprietária de uma confeitaria alemã e duas proprietárias de restaurantes diversos. 40 Quadro 3: Restaurantes alemães de Porto Alegre, em 2012 Restaurante Ano de inauguração Idade (anos). Referência: 2012 Prinz 1965 47 Chopp Stübel 1969 43 Steinhaus 1979 33 Bier Stube 1982 30 Tirol 1987 25 Baumbach Ratskeller 1989 23 Bier Garten 1993 19 Schullas 1994 18 Das Kleine 1998 14 Schullas Kleines Haus 2007 05 Tirol Strip Center* 2008 04 Bier Garten Mont’serrat* 2011 01 Franquia Tirol Unique* (cinco restaurantes) A partir de 2008 0-4 * Filiais e franquias incluídas na amostra após o segundo trabalho de campo. Fonte: autora. Elaboração: mar. 2012. Os cardápios, reportagens de jornal e fotografias foram copiados através de um scanner de mão. Os estabelecimentos foram fotografados. As entrevistas foram novamente gravadas, transcritas e armazenadas. A análise das informações se deu em escala ascendente de informações mais concretas sobre o trabalho, a história pessoal e o cotidiano para unidades de significação mais subjetivas e compatibilização destas com os conceitos e noções de análise como território, fronteira étnica e identidade. Em decorrência do trabalho de campo, avaliamos também os serviços e espaços oferecidos, o emprego da tecnologia e da inovação e o público predominante de cada estabelecimento visitado. Foram levantadas características que sugerissem tendências mais tradicionais e mais modernas da gastronomia, assim como influências regionais, nacionais e internacionais. Em complementação ao estudo descritivo, realizou-se um terceiro trabalho de campo, em dezembro de 2012, pois o desenvolvimento da pesquisa indicou a importância de traçar um perfil geral dos clientes. Com este intuito, aplicamos 50 questionários a clientes noturnos e diurnos de seis restaurantes localizados tanto em shoppings (fast food) quanto fora deles (apêndice 05). O local de aplicação foi 41 o interior dos restaurantes e as praças de alimentação, mas constatou-se que muitos clientes transitam por outros estabelecimentos alemães, o que permitiu perceber aspectos do público que frequenta alguns estabelecimentos não visitados. Entrevistamos 28 homens e 22 mulheres, com idades entre 21 e 81 anos. Dos entrevistados, 39 residem em Porto Alegre, sete em municípios da região metropolitana de Porto Alegre (Cachoeirinha, Canoas, Guaíba, Gravataí, São Jerônimo, São Leopoldo e Viamão), dois no interior do estado (Santo Ângelo e Morro Reuter) e dois em outros estados (Blumenau – SC e São Paulo - SP). Um questionário é composto por perguntas estruturadas com respostas a serem marcadas ou escritas, sem a realização de perguntas suplementares (SELLTIZ et al, 1974). Em alguns casos, no entanto, o contato com os clientes superou a aplicação do questionário, evoluindo para conversas mais abrangentes, o que foi acolhido de bom grado. Todas as respostas a questionários foram anotadas e gravadas, o que possibilitou que conversas e comentários de maior relevância fossem transcritos. A amostragem não probabilística por conveniência é um procedimento não sistemático no qual o pesquisador assume que os elementos considerados representam a população (GASKELL, 2010). Embora sem rigor estatístico, consideramos que foi possível traçar um perfil geral dos consumidores, encerrando-se a aplicação dos questionários quando as respostas tornaram-se repetitivas. Nas praças de alimentação, abordamos os clientes enquanto estes esperavam por seus pedidos nas mesas. Embora tenha sido fácil estabelecer contato com este público, fomos intimidados pela segurança dos shoppings. Evitando maiores constrangimentos, a cada duas ou três aplicações de questionário, fazíamos uma pausa para dissimular nossa real intenção. Nos restaurantes, contamos com a anuência dos proprietários para aplicação dos questionários. Em um deles, por receio de que os clientes se sentissem incomodados, os proprietários solicitaram aos garçons que recrutassem os voluntários, sendo a mediação posteriormente dispensada. Aproveitando-se a oportunidade de retorno aos estabelecimentos, realizamos entrevistas com seis funcionários e um proprietário, com os quais 42 ainda não havíamos feito contato. Retomamos ainda o contato com outros três proprietários, o que foi interessante para certificar informações. 1.2 Fronteiras étnicas, iconografia e territórios-rede: considerações A origem dos proprietários dos restaurantes é importante para a constituição de uma denominação étnica associada aos estabelecimentos? Poderíamos inicialmente afirmar que sim, que a origem confere credibilidade à cozinha. E no caso daqueles restaurantes em que não há correspondência entre a comida étnica e a identidade dos que a produzem, a comida ainda é reconhecida como étnica? Nas redes de fast food esta desvinculação parece ocorrer sem maiores questionamentos dos clientes. Já nos casos onde a origem de quem a prepara ou a explora corresponde à da comida comercializada, a identidade étnica pode ser uma excelente credencial, estrategicamente explorada no contexto da sociedade mais ampla. Nas experiências migratórias a comida pode desempenhar um importante papel, diferenciando os imigrantes da comunidade local e trabalhando como sinal diacrítico da identidade étnica do grupo. Os restaurantes éticos podem ser pontos de aglutinação dos imigrantes em processo de reterritorialização, assim como a comida pode ser um meio através do qual a cultura dos imigrantes torna-se mais conhecida pela sociedade receptora. Os restaurantes são um meio pelo qual a sociedade global acessa parte do universo particular dos imigrantes e seus descendentes. A comida é também um meio de aceitar o outro: incorporá-la torna-nos mais parecidos com o outro, pois a substância ingerida passa a fazer parte do nosso corpo. A identidade étnica é delimitada por fronteiras, que definem os grupos e podem permanecer mesmo quando há mobilidade, contato, informação e relações interétnicas intensas (BARTH, 1998). “As fronteiras persistem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam” (BARTH, 1998, p. 188). Apesar das transformações que estes fluxos acarretam, se mantêm categorias singulares de identificação étnica, sendo a principal a origem. 43 Não somente graças ao isolamento dos agrupamentos humanos a diversidade cultural é mantida. As distinções étnicas entre grupos não estão condicionadas à ausência de circulação e de mobilidade, de fluxo interétnico (BARTH, 1998). No entanto, numa situação de contato interétnico, o grupo étnico tende a selecionar elementos diacríticos e valorativos que o identifiquem enquanto tal: “Se um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar manifestas a pertença e a exclusão” (BARTH, 1998, p. 195). A interação interétnica ocorre, por um lado, possibilitando a manutenção das diferenças culturais e, por outro, sem ser banida por estas. A interação na sociedade ressignifica a identidade e fornece elementos que permitem, pelas semelhanças e diferenças, distinguir entre o grupo (“nós”) e os “outros”. Muitas vezes é devido ao contato com o outro que as fronteiras e os grupos étnicos são redefinidos e ressignificados, pois toda a identidade se define principalmente em relação a outras identidades. A cozinha, enquanto uma linguagem comum e de grande significado simbólico, pode persistir na prática dos imigrantes por um período mais longo que outros elementos da cultura (FISCHLER, 1995; CALVO, 1982). A comida é um dos marcadores da negociação da identidade étnica. Quando comercializada, no caso dos descendentes de imigrantes, passa de uma esfera privada para a pública, podendo haver adaptações entre a cozinha doméstica de uso cotidiano e o restaurante destinado a um público heterogêneo. As identidades étnicas se constroem e reconstroem em meio ao movimento e ao fluxo, já iconografias são elementos de resistência em meio à circulação e mudança. O geógrafo Jean Gottmann (1952 apud SAQUET, 2009a, 2011) abordou a circulação como um elemento característico do território. Ao invés do território estável e enraizado, a mobilidade lhe é inerente, compondo os sistemas de circulação, enquanto que as iconografias podem significar resistência ao movimento de expansão do capital (SAQUET, 2009a). Com base no pensamento de Gottmann, Saquet (2009a) afirma que a circulação é inerente à mudança social, tem seu locus principal na cidade e favorece a abertura, a fluidez. 44 Já as iconografias, definidas por símbolos, favorecem a resistência a partir da divisão política do espaço e da organização política de cada grupo social. A iconografia identifica o caráter distintivo e individualizante que permite reconhecer uma comunidade de outa limítrofe; é produto da história da comunidade e se manifesta nas tradições locais e na variedade das paisagens culturais e econômicas (GOTTMANN apud SAQUET, 2009a). A comida é parte importante da iconografia. Ela - e seus tabus, ritos e símbolos – é um elemento da identidade de um grupo, constitui um dos mediadores na relação com o outro e o mundo. A iconografia nem sempre significa resistência, pode apresentar-se como um movimento de reprodução, continuidade de aspectos culturais misturados às inovações. Podemos afirmar que os restaurantes alemães de Porto Alegre são marcados em sua trajetória por rupturas, modificações e continuidades, em um movimento de reprodução de aspectos culturais diversos, entre eles a cozinha, misturado às inovações. Tradicional e moderno, familiar e empresarial, cozinha caseira e cozinha profissional fazem parte da constituição desses restaurantes. Essa combinação é um diferencial importante, pois, por um lado, permite ampliar o público, agradar diferentes tipos de clientes e aumentar a competitividade e, por outro, preservar algumas tradições e aspectos valorizados da cozinha alemã pelos descendentes. As transformações pelas quais os restaurantes passam ao longo do tempo definem novas organizações do território, fortalecimento e enfraquecimento de vínculos, redes e fluxos, assim como as modificações no espaço intra-urbano e a produção de manchas de lazer influenciam a localização preferencial dos estabelecimentos. A trajetória dos restaurantes e das famílias proprietárias está pautada sobre diferentes territórios, estabelecendo diversos fluxos, como de migração, mão-de-obra, mercadorias e know-how. As rupturas, modificações e continuidades são alcançadas, em parte, graças aos fluxos. O aproveitamento da mão-de-obra formada em restaurante já extinto, por exemplo, permite que o saber-fazer culinário tenha continuidade em outro. 45 As redes configuram territórios descontínuos, fragmentados e superpostos (HAESBAERT, 2009). O território-rede está pautado em escalas que se estendem do local ao global, pois o espaço não pode ser compreendido apenas na sua contiguidade. É premente que as articulações e o movimento sejam considerados. Massey (2000) afirma que qualquer explicação adequada tem de colocar o lugar em seu contexto geográfico mais amplo. Desta forma, pensar os lugares como espaços articulados em redes de relações e entendimentos sociais é mais interessante do que pensá-los como áreas com fronteiras ao redor. Essas redes de relações se constroem em uma escala maior que o lugar. Pensá-lo assim permite um sentido de lugar que inclui a consciência de suas ligações com o mundo mais amplo, integra de forma positiva o global e o local (MASSEY, 2000). 46 A ALIMENTAÇÃO COMO OBJETO DE ESTUDO CAPÍTULO II. 47 48 2.1 A alimentação contemporânea As últimas décadas, de significativas e rápidas mudanças na alimentação, deram vida a um importante capítulo da história da alimentação. O capitalismo contribuiu para o processo que levou à universalidade das técnicas e processos de fabricação e preparo de alimentos, como podemos perceber na difusão de freezers, fornos de micro-ondas, comida congelada e enlatados. As transformações na agricultura, o aprimoramento das técnicas de conservação e processamento dos alimentos, o desenvolvimento dos transportes e as mudanças nas relações de trabalho deflagradas na sociedade ocidental após a Segunda Guerra Mundial produziram diferenças profundas entre o modo como pessoas de duas ou três gerações precedentes se alimentavam e o modo como hoje o fazemos. A sociedade, com a finalidade de obter alimentos de forma sistemática, age de forma cada vez mais intensa sobre a natureza, e em escalas até então inéditas na história do planeta. Atualmente, a maior parte da comida que chega às nossas mesas é beneficiada ou processada pela indústria, o que aumenta o tempo de conservação dos alimentos e torna o consumo mais prático. Os alimentos também são transportados por distâncias cada vez maiores, fazendo com que a dieta, até então muito baseada em alimentos locais e regionais, incorpore produtos nacionais, continentais e globais. E, graças às empresas multinacionais, como Unilever, Nestlé, Kraft e PepsiCo, há o consumo generalizado dos mesmos produtos em diferentes países, indo além de distinções de classe, idade e cultura. O supermercado reúne produtos do mundo inteiro, novidades destinadas a se tornar fundamentais na nossa alimentação (FISCHLER, 1995). A industrialização também diminui o trabalho necessário para o preparo das refeições. Fischler (1995) chama os alimentos industrializados de “alimentos- serviço”, pois incorporam cada vez mais trabalho e tempo, dos quais liberam o consumidor. Os restaurantes também se beneficiam das comodidades oferecidas pela indústria: molhos prontos para servir, alimentos congelados, temperos prontos, alimentos ionizados e com conservantes, entre outros. O trabalho dos 49 cozinheiros é parcialmente substituído pela preparação prévia dos ingredientes industrializados. O exemplo que melhor se adequa é o dos restaurantes de fast food. Os alimentos congelados e resfriados são distribuídos às lojas das redes. No momento de servir, executam-se procedimentos, em geral, rápidos e padronizados. O consumo de massa é uma das consequências da distribuição em larga escala. “Os alimentos se convertem em produtos industriais em sua totalidade, cada vez mais transportados, incorporando um valor agregado cada vez maior. A seguir se vende sob uma marca; são projetados, embalados e comercializados com o apoio de todas as técnicas de marketing, de publicidade e outras técnicas de promoção” (FISCHLER, 1995, p. 188, tradução livre). Entre as consequências deste consumo está a tendência de que as tradições locais se diluam em favor de um “mínimo denominador comum”, ou seja, o consumo massificado de alimentos industrializados substituiria gradativamente os alimentos locais e regionais (FISCHLER, 1995). Mas, no âmbito do consumo massificado, há também uma valorização das especialidades exóticas e regionais, produzidas e distribuídas globalmente pela própria indústria alimentícia (FISCHLER, 1995). “Assim o agro-business planetário serve-se dos folclores culinários, que contribuiu para desintegrar, para promover versões homogeneizadas ou açucaradas de tais tradições alimentares” (FISCHLER, 1995, p. 191, tradução livre). Neste caso, o local atua no interior da lógica da globalização, respondendo a uma demanda de produtos com identidade territorial, diferenciados, mas produzidos massivamente. Poulain (2006, p. 29) aponta um progressivo desenraizamento geográfico dos alimentos, fruto da superação das limitações de tempo e espaço antes vinculadas aos alimentos: “Os alimentos se deslocam de um país para outro e fazem, no curso de sua vida, que vai da semente para os vegetais ou do nascimento para os animais, até os pratos cozidos, viagens consideráveis”. O desenraizamento é, em grande parte, alcançado devido ao emprego de técnicas de cultivo, que superam as dificuldades climáticas tradicionalmente associadas, e de técnicas inerentes à indústria da alimentação. 50 Ao mesmo tempo em que há uma homogeneização do consumo, se notam tendências no sentido de uma diversificação dos produtos consumidos, elegendo- se produtos locais e artesanais (FISCHLER, 1995). Em certos casos, a modernidade não exclui, mas favorece a formação de particularidades locais, com o que concorda Poulain (2006) ao afirmar que, dentro das sociedades transnacionais, os particularismos regionais e nacionais ainda são muito fortes. As reações contra a industrialização ecoam através de diversas vozes. Os consumidores temem perder os sabores originais dos produtos e, numa reação à homogeneização, valorizam produtos naturais, artesanais, caseiros, orgânicos e da agricultura familiar. Na gastronomia, alguns críticos condenam a utilização de produtos industrializados no preparo dos pratos. Segundo Fischler (1998, p. 849), no início dos anos 1970 “os críticos gastronômicos Gault e Millau revistavam latas de lixo dos restaurantes, denunciando aqueles cujo lixo continha embalagens de congelados”. Na época isto poderia chocar os consumidores, mas hoje é fato banal. Abordando um universo mais amplo da alimentação, surgiu em 1989, na Itália, o movimento Slow Food, batizado desta forma a fim de realçar sua contraposição ao famigerado fast food. Além da substituição dos alimentos industrializados pelos produzidos localmente, de preferência orgânicos e da agricultura familiar, o movimento propõe que os consumidores adotem outras formas de relacionamento com o preparo e o consumo dos alimentos. A valorização das tradições culinárias regionais, o interesse pela alimentação e sobre como as escolhas alimentares podem afetar o mundo, o interesse pela procedência e a valorização do sabor dos alimentos estão entre os principais motes da associação fundada pelo italiano Carlo Petrini. “Bom, limpo e justo: é como o movimento acredita que deve ser o alimento. O alimento que comemos deve ter bom sabor; deve ser cultivado de maneira limpa, sem prejudicar nossa saúde, o meio ambiente ou os animais; e os produtores devem receber o que é justo pelo seu trabalho” (SLOW FOOD, 2011). Não é somente a industrialização: a adequação à legislação sanitária também impõe restrições ao modo de preparo tradicional de alguns alimentos. A 51 desintegração dos folclores culinários, segundo Poulain (2006) baseia-se em parte nas novas exigências sanitárias, que, por exemplo, bane os queijos artesanais, criando versões pasteurizadas distribuídas em diversos países. A discussão em torno da fabricação de queijo de leite cru ilustra bem esta questão. Diante da dificuldade de se adequar à legislação federal, diversos acadêmicos, produtores, e associações sem fins lucrativos preveem a diminuição drástica ou desaparecimento das tradições de produção de queijos artesanais no Brasil (SLOW FOOD, 2012). Segundo Cruz & Menasche (2011), em diversas ocasiões as exigências para a regularização dos produtos artesanais comprometem as características que lhes conferem singularidade e diversidade. Na medida em que os produtos artesanais buscam se inserir no mercado formal, torna-se necessário alterar o modo de fazer para cumprir as legislações. O saber científico sobre o qual se baseiam estas legislações pouco se aproveita dos conhecimentos tradicionais dos produtores, sendo, portanto, definidas de modo arbitrário. Um exemplo é a exigência legal de que a maturação do queijo de leite cru seja de, no mínimo, sessenta dias, o que não corresponde ao saber tradicional e ao que é praticado há mais de dois séculos pelos produtores de queijo serrano, no Rio Grande do Sul (CRUZ; MENASCHE, 2011). O queijo serrano surge como símbolo de uma questão identitária, tal como o camembert, produzido com leite cru, e combatido durante as negociações agrícolas do GATT, em 1993, e que acabou se tornando um símbolo da nação francesa (POULAIN, 2006). Em alguns casos, as exigências sanitárias sobre os produtos tradicionais podem desconsiderar a trajetória dos produtos e o saber-fazer oralmente transmitido. Iniciativas como o registro do processo de fabricação do queijo minas no IEPHA-MG e no IPHAN, no entanto, procuram proteger o patrimônio imaterial constituído pelos alimentos tradicionais. Segundo Netto (2012, p. 58), as ações de tombamento deste queijo “resgatam a importância deste produto, salientando seu valor cultural, social e ainda valoriza o potencial econômico do patrimônio preservado, incentivando o desenvolvimento e fortalecimento dessa atividade secular de agricultura familiar”. Além disso, a legislação estadual contribui para 52 que se encontrem soluções para questões sanitárias e de segurança alimentar sem, no entanto, comprometer a reprodução econômica das famílias produtoras, nem a continuidade da tradição. Os assuntos envolvendo mudanças na alimentação sempre suscitam polêmica e desconfiança. Na alimentação moderna, com a massiva presença de OCNI’s, (objetos comestíveis não identificados, termo cunhado por Claude Fischler que remete aos produtos altamente transformados pela indústria), há cada vez mais incerteza sobre quais critérios deve-se utilizar na eleição dos alimentos. Há, na visão do autor, uma verdadeira cacofonia dietética, na qual os discursos dietéticos se mesclam, se enfrentam ou se confundem com os discursos culinários e gastronômicos (FISCHLER, 1995). No mundo desenvolvido, uma linguagem dietética sem nexo se instalou de maneira praticamente constante: o Estado, o movimento dos consumidores, os médicos de diversas especialidades, os industriais, a publicidade, a mídia, contribuem a isso permanentemente, de maneira mais ou menos confusa e contraditória para o comensal (FISCHLER, 1995, p. 195). A falta de confiança nos alimentos tem seu auge quando são abordados temas como a doença da vaca louca, o uso de agrotóxicos, as gripes aviária e suína e os organismos geneticamente modificados (MENASCHE, 2006). Frequentemente, a ciência é chamada a responder aos consumidores inseguros sobre os riscos à saúde que certos alimentos podem oferecer. Através do discurso científico, são eleitos vilões, como a gordura trans e os transgênicos, e amigos da saúde, como ômega 3, vitaminas e cálcio. A indústria apropria-se destes discursos nas propagandas dos seus produtos (“livre de transgênicos”, “0% de gordura trans”, “com ômega 3 e 6” ), bem como desenvolve os alimentos-medicamentos, ou nutracêuticos6, com comprovada capacidade de trazer benefícios à saúde. Ironicamente, a indústria de alimentos causa a doença e vende a cura, produz alimentos que prejudicam a saúde, com dose excessiva de sal, gordura e açúcar, 6 Termo cunhado para designar os alimentos industrializados que isolam a parte funcional de algum alimento, transformando-a em cápsulas ou adicionando em algum produto, por exemplo, o leite com ômega 3 e vitaminas. 53 conservantes e outros aditivos químicos, mas também possui a alternativa, que não está no retorno a uma alimentação menos industrializada, mas na aquisição de produtos industrializados que prometem fazer bem à saúde. Na sociedade urbana contemporânea o comensal se tornou um indivíduo muito mais autônomo para realizar suas escolhas alimentares. A alimentação faz parte do seu estilo de vida, é muito mais uma questão de escolha do que de destino ou imposição do meio. Os tempos, ritos e a companhia se impõem com muito menos rigor e formalismo e os alimentos não precisam ser consumidos em família, mas podem ser consumidos fora do horário das refeições, caminhando, em frente à TV ou computador. O fim das refeições em família leva à erosão do próprio conceito de “refeição” numa sociedade em que nas casas vigora o império do micro-ondas e no trabalho, na rua ou na diversão expandem-se as práticas da “alimentação rápida”, de beliscar petiscos e lanches em “lanchonetes”, fenômeno que surge na fronteira difusa entre os bares e restaurantes e que simboliza esta nova revelação com os horários e os rituais da comida. (CARNEIRO, 2003, p. 19). Mas a liberdade também leva à incerteza. A alimentação se tornou objeto de decisões cotidianas, e tais decisões caíram na esfera do indivíduo. Para tomar tais decisões, não há critérios unívocos nem coerentes. “Há sim um mosaico, uma cacofonia de critérios propostos, muitas vezes conflitantes ou dissonantes” (FISCHLER, 1995, p. 205-6). Segundo Fischler (1995), no espírito dos comensais contemporâneos, a questão crucial é cada vez mais qualitativa: saber o que comer e em que proporção, e não mais a preocupação quantitativa, na qual uma boa alimentação é considerada abundante e saciável. No livro Comer, Fischler & Masson (2010), juntamente com outros pesquisadores, perguntam-se: o que é comer bem? Investigam a resposta em seis países, consultando a mais de sete mil pessoas. Os autores reconhecem, na relação com a alimentação contemporânea, dois polos opostos, representados, em cada um dos extremos, pela França e pelos Estados Unidos. No lado norte-americano, aparece uma relação privada e individualista com a alimentação. Cada indivíduo tem a liberdade de julgar e tomar decisões 54 racionais a respeito do que comer. O sujeito é autônomo, cabe a ele fazer suas escolhas alimentares, mas também cabe a ele buscar informações sobre os alimentos (dispondo de uma base médico-científica), assim como a responsabilidade pelas escolhas que faz (FISCHLER; MASSON, 2010). No polo oposto, estão os franceses. O destaque são as formas de comer (refeições estruturadas, tempo e lugares apropriados) e no tema do “bom alimento” compartilhado. As posições são mais “comensalistas”, no sentido em que reivindicam modos de fazer e de comer coletivos, sociais. Segundo os autores, parece que estamos caminhando para uma individualização-personalização da alimentação. Do ponto de vista do mercado e das políticas públicas, as causas dos problemas de saúde relacionados à alimentação estão no comportamento alimentar dos indivíduos, e não na estrutura alimentar coletiva. Muitos discursos afirmam que a questão é fazer as melhores escolhas, individualmente; logo, os obesos, por exemplo, são os que não fizeram as escolhas certas (FISCHLER; MASSON, 2010). Ressaltamos que a ampla industrialização dos alimentos produziu significavas mudanças na alimentação urbana e, em menor grau, na rural. A alimentação, no entanto, está em constante transformação. Segundo Santos (2007), as culturas alimentares, sejam quais forem o tempo e espaço geográfico, estão postas a situações de confrontos que podem levar a certas rupturas, diante da implementação de novas técnicas, de novas formas de consumo, da introdução de novos produtos e do encontro e fusão dos mesmos, a partir da inovação e criatividade. Montanari (2009, p. 12), em direção semelhante, afirma que “conservadoras, embora nada estáticas, as tradições alimentares e gastronômicas são extremamente sensíveis às mudanças, à imitação e às influências externas”. Situações de contato entre culturas diferentes, por exemplo, podem gerar uma extraordinária experiência de geração de novas identidades gastronômicas e tradições alimentares. Como discutiremos na próxima seção, as escolhas alimentares dos indivíduos não se baseiam apenas nos nutrientes contidos em cada alimento. A proteína foi descoberta no século XIX, as vitaminas, no século XX, e o ômega 3 na 55 década de 1970. Na história da humanidade, é recente o emprego do conhecimento científico como parâmetro para as escolhas alimentares. Os regimes alimentares foram estabelecidos, ao longo do tempo, a partir de outros critérios, como as condições ambientais e materiais, os modos de vida e os tabus religiosos. A alimentação possui, além de dimensão material e científica, dimensão simbólica. Segundo Da Matta (1987), a comida permite exprimir e destacar identidades que, de acordo com o contexto da refeição, podem ser nacionais, regionais, locais ou mesmo familiares. A comida tem enorme importância social, faz parte de importantes rituais de comensalidade. A forma como um dado grupo se alimenta se expressa também na organização do território, nas relações de troca, nos fluxos de pessoas e mercadorias, nas relações ambientais. A alimentação pode ainda conectar geografias distantes, seja pela procedência dos alimentos, seja pelos intercâmbios de práticas alimentares. Segundo Claval (1999, p. 83), “é através dos sentidos que os homens apreendem o mundo. Os estudos geográficos não desconhecem este domínio, mas tratam, quase que exclusivamente, da visão”. A audição não fornece uma apreciação insatisfatória dos espaços. Os odores podem ser lembranças tenazes dos lugares. O tato permite que se tenha dimensão do tamanho do próprio corpo e dos objetos, é um sentido para conhecimento do espaço de grande expressão na infância e fundamental para portadores de deficiências visuais. A experiência do gosto é menos diretamente associada aos lugares [que as outras experiências sensoriais]. Mas a capacidade que tem o paladar de reconhecer substâncias é muito profundamente socializada. É através dele que compreendemos a diferença entre o cru e o cozido. Cada civilização desenvolveu, através de sua cozinha, formas próprias de gastronomia. A geografia da alimentação não é importante apenas para compreender as atitudes a respeito dos corpos e as condições nas quais eles se desenvolvem. Ela nos introduz a uma das formas mais ricas das interações humanas (CLAVAL, 1999, p. 84). A experiência do gosto está associada à experiência geográfica. Além da visão, outros sentidos podem contribuir para uma leitura mais rica do território e 56 das interações humanas. Oliveira (2012, p. 28), afirma que “a experiência gustativa envolve, além do sabor, o cheiro, o som e a cor. A experiência evoca a memória, o imaginário e a identidade, transmitida mediante linguagens