UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro PROPOSIÇÃO DE UMA CARTOGRAFIA ESCOLAR NO ENSINO SUPERIOR Ismail Barra Nova de Melo Rio Claro (SP) 2007 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro PROPOSIÇÃO DE UMA CARTOGRAFIA ESCOLAR NO ENSINO SUPERIOR Ismail Barra Nova de Melo Orientadora: Profa. Dra. Lívia de Oliveira Tese de Doutorado elaborada junto ao curso de Pós-Graduação em Geografia – Área de Concentração em Organização do Espaço, para a obtenção do título de Doutor em Geografia Rio Claro (SP) 2007 3 910.07 Melo, Ismail Barra Nova de M528p Proposição de uma cartografia escolar no ensino superior / Ismail Barra Nova de Melo. – Rio Claro : [s.n.], 2007 157 f. : il., tabs., quadros Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Insti- tuto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Lívia de Oliveira 1. Geografia – Estudo e ensino. 2. Formação de docentes em Geografia. 3. Saber cartográfico. 4. Metodologia de ensino. 5. Formação inicial. 6. Componente curricular. I. Títu- lo. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP 4 ISMAIL BARRA NOVA DE MELO PROPOSIÇÃO DE UMA CARTOGRAFIA ESCOLAR NO ENSINO SUPERIOR TESE PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR COMISSÃO EXAMINADORA Profa. Dra. Lívia de Oliveira (Orientadora) Profa. Dra. Rosângela Doin de Almeida Prof. Dr. Miguel César Sanchez Prof. Dr. José Gilberto de Souza Pra. Dra. Marlene De Muno Colesanti Ismail Barra Nova de Melo Aluno RESULTADO: aprovado RIO CLARO, 08 de outubro de 2007 5 Dedico esta tese à minha esposa: Eliane, por ser minha fonte de energia, de ânimo, pela sua compreensão e colaboração em todos os momentos; aos meus filhos: Péricles e Yasmin, pelos momentos de minha ausência, nos quais as brincadeiras não foram compartilhadas; aos meus pais: Paulo e Antônia, pela torcida e incentivo. 6 AGRADECIMENTOS Trilhar um caminho pode ser perigoso, principalmente quando não se conhece o terreno no qual se está pisando; porém, quando se está sendo guiado por alguém que já mapeou o percurso e conhece todos os obstáculos e possui sabedoria, tal caminho obscuro passa a ser seguro, o seu trajeto à noite é facilmente transposto como se fosse dia, a ponte estreita sobre o rio torna-se larga, as pedras pelo caminho são como tapetes, cobrindo o chão para a passagem sem sujar os pés, a mata fechada propicia sombra e frescor, e os animais, mesmo os temíveis, são companheiros. No meu trajeto casa- universidade, pude contar com alguém que conhecia não só o caminho, mas também aqueles que por ele passavam. Conhecimento que não era só aparência, mas, acima de tudo, essência. Muitos foram os desvios, mas suas mãos firmes estavam lá para que o retorno fosse seguro, por isso, deixo aqui todo o meu agradecimento a minha orientadora Profª. Dra. Lívia de Oliveira, que soube, mais que qualquer instrumento de navegação, conduzir-me para o meu objetivo maior. Agradeço pelo seu acolhimento, pela sua paciência, pelos seus ensinamentos e, principalmente, pela sua amizade e generosidade. O meu eterno obrigado. Agradeço também à Profª. Dra. Rosângela Doin de Almeida e ao Prof. Dr. Miguel César Sanchez, membros da banca de qualificação, que fizeram sugestões relevantes, contribuindo significativamente para esta tese. Registro também os meus sinceros agradecimentos ao Prof. Vitório Barato Neto pelas revisões dos textos originais que muito contribuíram para o aperfeiçoamento da tese com suas correções e sugestões. Agradeço ainda, em nome de Eliana Correia Contiero, todas as pessoas da secretaria da Pós-Graduação que sempre atenderam com atenção e destreza as nossas solicitações. No nome da auxiliar de biblioteconomia, Mônica Maria Cães, agradeço a todos os funcionários das bibliotecas do Santana e do Bela Vista, que sempre nos atenderam com muita dedicação e cortesia nas buscas referentes às referências e normas de publicação. Ao amigo Alexandre, pelas revisões das normas da ABNT, deixo aqui também os meus agradecimentos. Agradeço também ao Prof. Demóstene, pela sua colaboração no abstract. 7 “Navegar por mares ignotos e palmilhar terras desconhecidas sempre foi um apelo aos homens, desde priscas eras. Desde sempre esses movimentos eram registrados através de estrelas e do sol, de picos e árvores, de rios e cachoeiras. Era a procura de conhecer seus territórios, explorar seus recursos, assinalar suas fontes de água e de caça. Era o nascer do mapa, do mapeamento. Era o Homo Sapiens sapiens percorrendo caminhos mapeando e manifestando artisticamente” (LÍVIA DE OLIVEIRA, 2005) 8 RESUMO Esta tese discute a importância do saber cartográfico socialmente produzido e sua trajetória no ensino superior de Geografia brasileira, configurando-se atualmente em componentes curriculares que, no geral, não levam em conta o contexto escolar, quer dizer, não há preocupação com o seu ensino no nível fundamental e médio. O saber cartográfico pode ser identificado com vínculos institucionais diferentes, constituindo- se em saber cartográfico acadêmico, aquele que se encontra na universidade; saber cartográfico a ser ensinado, constituindo a noosfera, e o saber cartográfico ensinado, construído no contexto escolar. Esse último aparece na literatura como problema didático. No entanto, mesmo reconhecendo suas especificidades, não se pode pensar esse saber isoladamente, ao contrário, deve ser visto de forma geral. Diante dos avanços da Cartografia Escolar, principalmente a partir dos Colóquios, consolidada como linha de pesquisa no País e sua fraca presença no contexto escolar, ensino fundamental e médio, colocamos a necessidade da sua discussão no ensino superior de Geografia, principalmente nas licenciaturas. Para isto, apresentamos uma proposta metodológica de Cartografia Escolar para o ensino superior dividida em três partes, mas que estão interligadas, a qual corresponde à preparação teórica dos licenciandos, preparação de práticas pedagógicas e aplicação das atividades. Espera-se, com essa proposição que o futuro docente trabalhe com a Cartografia enquanto linguagem no ensino de Geografia e respeite o nível mental dos alunos, ou seja, que faça uso da Cartografia Escolar no seu ambiente de trabalho. Palavras-Chave: Cartografia Escolar; Formação Inicial; Metodologia de Ensino. 9 ABSTRACT This thesis discusses the importance of cartographic knowledge socially produced and its trajectory in teaching Brazilian geography at university level. Presently, configuring in curricular components that, in general, do not take into account the school context, in other words, there is no preoccupation with its teaching in elementary and secondary schools. The cartographic knowledge can be identified with different institutional linkages: one at university level, the academic cartographic knowledge, which constitutes the noosphere, and the other the cartographic knowledge taught, which is built in a school context. The latter appears as a teaching problem. Though, even recognizing its specificity, one can not think of this knowledge isolated, on the contrary, it has to be seen in a generic way. Due to the advances in School Cartography, mainly after Colloquia, consolidated as a research line in Brazil and its weak presence in school context, elementary and secondary school, we put the needs of teaching School Cartography, mainly at university level, into discussion. For this, we propose a methodological view of School Cartography, at university level, divided in three integrated parts: undergraduate theoretical preparation, teaching practice preparation and applied activities. We hope, with such proposition, that in the future teachers work with Cartography as a Geography language and respect the students’ mental level, in other words, use the School Cartography in one’s teaching environment. KEYWORDS: School Cartography; Undergraduation; Teaching Methodology 10 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Licenciatura e Bacharelado………………………………………………....35 Quadro 2: Ementas das disciplinas cartográficas: Licenciatura e Bacharelado..............36 11 LISTA DE TABELAS Tabela 1: I Colóquio de Cartografia para Crianças.........................................................61 Tabela 2: II Colóquio de Cartografia para Crianças........................................................63 Tabela 3: III Colóquio de Cartografia para Crianças.......................................................65 Tabela 4: IV Colóquio de Cartografia para Escolares.....................................................68 Tabela 5: Colóquio Anual do Grupo de Trabalho da ACI..............................................70 Tabela 6: I Simpósio Ibero Americano de Cartografia para Crianças.............................72 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................12 CAPÍTULO I A CARTOGRAFIA NO ENSINO SUPERIOR..........................................................16 A Cartografia como Comunicação e Linguagem........................................................17 Cartografia no ensino superior do Brasil....................................................................23 Cursos de Licenciatura e Bacharelado........................................................................27 CAPÍTULO II SABERES CARTOGRÁFICOS..................................................................................40 Legitimação do saber.....................................................................................................41 Saber cartográfico: mapas............................................................................................47 Saber cartográfico ensinado.........................................................................................54 CAPÍTULO III CARTOGRAFIA ESCOLAR.......................................................................................59 Colóquios de Cartografia para Escolares....................................................................60 Cartografia Escolar.......................................................................................................74 13 CAPÍTULO IV UMA PROPOSTA METODOLÓGICA DE CARTOGRAFIA ESCOLAR PARA O ENSINO SUPERIOR................................................................................................86 Metodologia de ensino...................................................................................................98 1-Preparação teórica dos licenciandos.........................................................................99 Reconhecendo um saber..............................................................................................100 Cartografia Escolar.....................................................................................................101 O mapa como meio de comunicação..........................................................................104 Mapeamento.................................................................................................................105 Saber cartográfico a ser ensinado..............................................................................109 2-Preparação de Práticas Pedagógicas......................................................................110 Reconhecendo um saber..............................................................................................110 Cartografia Escolar.....................................................................................................112 O mapa como meio de comunicação..........................................................................114 Mapeamento.................................................................................................................116 Saber cartográfico a ser ensinado..............................................................................121 3-Aplicação das atividades..........................................................................................122 A Sala de Aula..............................................................................................................124 Vila Imaginária............................................................................................................127 Fotografia aérea: estudo do lugar..............................................................................128 O globo terrestre e mapas...........................................................................................130 Considerações Finais...................................................................................................137 REFERÊNCIAS...........................................................................................................141 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA............................................................................152 12 INTRODUÇÃO A Cartografia Escolar, atualmente, está consolidada no Brasil como linha de pesquisa referente ao saber cartográfico que leva em consideração o desenvolvimento cognitivo do aluno, principalmente do ensino fundamental. Os diferentes temas que envolvem o saber cartográfico são pesquisados e ao mesmo tempo divulgados, principalmente pelos colóquios de Cartografia para Escolares, que ocorrem desde 1995. Além dessas pesquisas, existem no mercado editorial materiais que auxiliam nas atividades cartográficas em sala de aula, com metodologias que explicam o desenvolvimento das mesmas. Ao mesmo tempo em que temos esse cenário promissor por parte das pesquisas referentes à Cartografia Escolar, existem do outro lado, no contexto escolar, práticas 13 cartográficas que não são condizentes com esse contexto. Os motivos são vários, mas todos dizem respeito às políticas públicas que acabam construindo um cenário com conseqüências que comprometem a qualidade do ensino público. As condições de trabalho do professor, como: jornada de trabalho exaustiva, salários aviltados, entre outros, são reflexos dessa situação. Nesse contexto, o saber cartográfico socialmente produzido, principalmente aquele destinado à iniciação cartográfica e que usa a Cartografia como linguagem no ensino de Geografia, acaba ficando ausente do ambiente escolar. Além dos fatores relacionados com o dia-a-dia do professor e também do ambiente escolar, há aquele vinculado à formação inicial, à graduação. Nessa, o saber cartográfico está presente nos componentes curriculares de cada curso, mesmo com variação da carga horária existente entre as instituições de ensino superior. No entanto, tal saber é, muitas vezes, colocado como um rol de conteúdos desarticulados e, o mais agravante, não é relacionado com o ensino, quer dizer, não se leva em consideração o contexto escolar do ensino fundamental e médio. Isso significa que o saber cartográfico é relevante e exerce um papel fundamental no curso de Geografia, mas deve estar relacionado com outros saberes para constituir a Cartografia Escolar. Essa é o resultado de interações de saberes e é a que melhor atende às necessidades do saber cartográfico ensinado. Portanto, é preciso ponderar que: Apesar dos avanços, a Cartografia Escolar no Brasil ainda depara-se com problemas que demandam grande esforço dos pesquisadores dedicados a essa área. A nosso ver, há dois focos mais urgentes: o desenvolvimento de materiais cartográficos locais adequados ao uso escolar; a inserção de conteúdos de Cartografia Escolar nos cursos de formação inicial de professores, assim como nas ações de formação continuada (ALMEIDA, 2001a, p.26). Com o objetivo de contribuir para o segundo foco é que propomos a inserção da Cartografia Escolar no curso de graduação em Geografia. Entendemos que o curso de Geografia, principalmente as Licenciaturas, não pode ignorar esse saber socialmente produzido, a Cartografia Escolar; por isso, estamos propondo que esse saber faça parte deste nível de ensino. Estamos considerando que o ensino não pode ser pensado isoladamente, ao contrário, deve-se pensar na sua 14 totalidade, englobando a formação inicial do professor, a sua prática pedagógica exercida no ambiente escolar no ensino fundamental e médio, e também sua formação continuada. O saber Cartográfico, como outros, encontra-se vinculado às instituições. Por meio dessas, o saber é difundido. A Cartografia Escolar também possui seus vínculos institucionais e sua difusão tem ocorrido de forma cada vez mais intensa. No entanto, como já ressaltamos, esse saber ainda não se faz presente no ambiente escolar do ensino fundamental e médio com a mesma relevância que se tem mostrado nas pesquisas da área, por isso consideramos que a presença de conteúdos da Cartografia Escolar no curso graduação de Geografia pode contribuir para que esse saber seja difundido também no ambiente escolar. Com essa proposta, esperamos contribuir com as discussões e reflexões no ensino da Cartografia, principalmente no nível superior, com a perspectiva de refletir positivamente no processo de ensino e aprendizagem no saber cartográfico ensinado. Nossa tese está fundamentada principalmente em autores que trabalham com a Cartografia Escolar, constituindo o nosso referencial teórico. Por meio dele é que nos guiamos para constituir a nossa proposta. Esta tese está dividida em quatro capítulos. O primeiro, denominado “Cartografia no ensino superior”, constitui uma abordagem da Cartografia como comunicação e linguagem, considerando tanto a produção quanto o uso de mapas, entendidos como partes de um mesmo processo. Além da análise da trajetória do saber cartográfico no ensino superior do Brasil, foi realizado um levantamento dos programas e currículos dos cursos de graduação em Geografia de universidades públicas brasileiras que oferecem mestrado e doutorado avaliados e recomendados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2006). No segundo capítulo, “saberes cartográficos”, discute-se o saber cartográfico com os diferentes vínculos, denominando-se em saber cartográfico acadêmico, ligado à universidade; saber cartográfico a ser ensinado, vinculado à noosfera, e o saber cartográfico ensinado, presente no ambiente escolar. Esses saberes foram considerados à luz da teoria da transposição didática. A importância do saber cartográfico na formação da cidadania, com destaque para o mapa, e o saber cartográfico que se manifesta na noosfera e no saber ensinado, também fazem parte dessas reflexões. No terceiro capítulo, “Cartografia Escolar”, foi descrita a trajetória dessa temática por meio dos Colóquios de Cartografia para escolares, que vêm ocorrendo 15 desde 1995, como espaço de discussão e consolidação dessa linha de pesquisa. Abordaram-se, também, os fundamentos da Cartografia Escolar e sua importância para o ensino da Geografia. O quarto capítulo constitui de “Uma proposta metodológica de cartografia escolar para o ensino superior”. Ela está divida em três partes que estão interligadas. A primeira corresponde à preparação teórica do licenciando em Geografia. Essa primeira parte está dividida em momentos: reconhecendo um saber, que serve como introdução aos estudos cartográficos; Cartografia Escolar, diz respeito aos estudos referentes aos autores relevantes nessa temática bem como da sua fundamentação teórica e sua importância para o ensino de Geografia; o mapa como meio de comunicação, está estruturado com atividades que permitem refletir o processo de mapeamento como um todo e entender o papel do mapeador com seu ponto de vista e, do outro lado, o usuário; mapeamento, corresponde à representação cartográfica a partir de problematização do espaço de vivência do licenciando, e saber cartográfico a ser ensinado, compõe-se de reflexões a partir de documentos, quer dizer, livros didáticos, a Proposta Curricular do Estado de São Paulo, Parâmetros Curriculares Nacionais. São produções que fazem parte da noosfera. A segunda parte compreende a preparação de práticas pedagógicas. Como ela está vinculada à primeira, os momentos são abordados novamente nessa parte: reconhecendo um saber, Cartografia Escolar, o mapa como meio de comunicação, mapeamento e o saber cartográfico a ser ensinado, porém acrescentamos os materiais e os procedimentos que não constam da primeira parte. Em linha geral, essa etapa tem como objetivo preparar as atividades cartográficas para o processo de ensino e aprendizagem no curso de Geografia. A terceira e última parte diz respeito à aplicação das atividades. Essa parte corresponde ao momento em que o licenciando colocará em prática o que aprendeu em momentos anteriores, possibilitando, assim, consolidar seu aprendizado e o aprender a ensinar numa situação real. São atividades que partem de ações que visam à iniciação cartográfica e atingem níveis mais complexos. Nas considerações finais, apresentamos alguns pontos relevantes da proposta e os seus desdobramentos a partir das reflexões realizadas. 16 CAPÍTULO I A CARTOGRAFIA NO ENSINO SUPERIOR “Os mapas seriam, então, um legítimo constructo que desmistifica a sociedade no seu espaço e tempo” (ELIZABETH SOUZA MACHADO, 1997). A Cartografia sempre esteve presente no ensino superior de Geografia, tanto como meio de comunicação quanto como linguagem. Pois a representação cartográfica fundamenta-se em um processo que implica a comunicação de um fato ou fenômeno e, ao mesmo tempo, é linguagem. Conseqüentemente, a Cartografia desempenha um papel fundamental para a Geografia, constituindo-se em conteúdo e forma, transformando a informação geográfica em representação cartográfica. Para ocorrer a comunicação, o cartógrafo recorre à linguagem cartográfica, codificando as informações processadas num mapa que, por sua vez, servirá de veículo na transmissão da mensagem, chegando até o usuário. Neste capítulo, será abordada a Cartografia como comunicação e linguagem, para em seguida analisar a trajetória da Cartografia do ensino superior no Brasil. Para 17 tanto, foi realizado um levantamento dos programas e currículos de Geografia de várias universidades brasileiras dos cursos de Licenciatura e Bacharelado. Com toda a leitura e o material organizado, espera-se contribuir com um novo olhar sobre a Cartografia no ensino superior. A Cartografia como Comunicação e Linguagem Comunicação cartográfica é a forma que o cartógrafo usa para enviar a mensagem codificada da realidade ao usuário por meio da linguagem cartográfica. Atualmente, a produção e o uso de representações cartográficas fazem parte de um mesmo processo (SIMIELLI, 1986). A comunicação cartográfica é entendida como processo e não há nele uma linearidade, porque depende de vários fatores para que cumpra a sua finalidade. Atualmente, existem vários modelos propostos de comunicação, sendo alguns mais complexos e outros mais simples, mas todos apresentam em seus esquemas certos elementos em comum que se referem a: a) observação da realidade por parte do cartógrafo, selecionando os elementos de acordo com os objetivos definidos, por isso é a realidade do seu ponto de vista. O conteúdo que está na mente do cartógrafo precisa ser externado, entrando em cena a função da linguagem cartográfica; b) a linguagem cartográfica com o seu sistema de símbolos e regras é que fará a ligação entre o cartógrafo e o usuário, ou melhor, das informações cartográficas que foram processadas, por isso é preciso conhecer as técnicas da representação para escolher as que melhor atendem aos propósitos estabelecidos na forma de mapa; c) o mapa nesse processo pode ser entendido como a materialização das informações cartográficas, quer dizer, o veículo que servirá de ponte entre o mapeador e o leitor, mas ele não é a concretização da realidade e, sim, a sua abstração para o usuário; d) o usuário, de posse do mapa, processa as informações ali registradas e cria na sua mente um modelo da realidade do local representado. É importante salientar que a leitura e o processamento das informações dependem dos conhecimentos de cada usuário e também da qualidade da representação cartográfica. Segundo Balchin (1978) os seres humanos possuem quatro formas de comunicação: graficacia, articulacia, literacia e numeracia. A graficacia refere-se à habilidade espacial, que pode ser observada nos homens e nos animais. A diferença é 18 que o homem executa essa habilidade de forma mais sofisticada por meio da leitura de mapa e do planejamento espacial, enquanto os animais a exercem apenas para encontrar alimentos e rotas. Essa parece ter sido a primeira a se desenvolver. A comunicação por meio de ruídos sociais entre os animais superiores, caracterizando o início da linguagem oral civilizada e também de todas as demais formas de inteligência social, caracteriza a articulacia, a segunda a se desenvolver. A literacia diz respeito à comunicação por meio da escrita, que, sem dúvida, permitiu o desenvolvimento da civilização por meio da transmissão da História. Por último, a numeracia, que envolve a habilidade do homem em trabalhar com símbolos numéricos, representada pela matemática e suas aplicações. Todas as quatro formas de comunicação são inatas nos cérebros humanos, mas todas necessitam da educação para o seu desenvolvimento. A produção sobre a comunicação cartográfica somente foi estruturada na década de setenta com o reconhecimento da comunicação como base da Cartografia para construir mapas eficazes, despertando na Associação Cartográfica Internacional (ACI) a necessidade de formar um Grupo de Trabalho que teve como tarefa elaborar uma síntese dos trabalhos sobre o tema. Na década seguinte, Board (1983) identifica seis estágios pelos quais tem passado a produção sobre a comunicação cartográfica. O primeiro estágio ele chama de publicações antigas. Tais publicações estavam dispersas em diferentes partes e idiomas sem que houvesse maior divulgação sobre as mesmas, isto é, os cartógrafos trabalhavam de forma isolada. O segundo trata-se de uma síntese dos trabalhos, antes dispersos. Em seguida, aparecem as primeiras críticas que dizem respeito ao uso das bases da teoria da matemática da informação. O quarto estágio correspondeu ao momento de avaliação dos resultados alcançados até aquele momento. A aceitação da comunicação cartográfica refere-se ao estágio seguinte. Tal colocação é baseada nas publicações de diversos idiomas sobre a temática. A aceitação sobre o assunto fez com que se tornasse trivial nas discussões e publicações de vários países. O sexto estágio corresponde à extensão. Chama-se de extensão, aqui, o fato de que outros autores, depois da comissão de comunicação cartográfica, continuassem pesquisando e escrevendo sobre o tema, abrindo-se novas perspectivas para o futuro. Independentemente da base teórica, a comunicação cartográfica apresenta a mesma estrutura: realidade, cartógrafo, usuário do mapa e imagem da realidade. O cartógrafo, ao coletar dados da realidade, processa-os transformando-os em informações cartográficas. Essas informações são codificadas por meio da linguagem cartográfica 19 nos mapas, sendo o veículo que levará a mensagem até ao usuário. A informação cartográfica corresponde ao conteúdo intrínseco, significado e sentido da descrição cartográfica da realidade. Quando usamos a literacia para nos comunicarmos, empregamos o alfabeto da língua oficial na construção de palavras e frases estruturadas com o auxílio das classes gramaticais. Ao empregarmos a graficacia na comunicação, representada pela linguagem cartográfica, também usamos uma estrutura específica, a sintaxe. Ao se tratar da semiologia gráfica, faz-se uso das variáveis visuais no tratamento da informação. Ao escrevermos um texto, estamos transcrevendo para o papel o que foi estruturado pelo pensamento através de símbolos. A escrita é sempre linear e não difere, independentemente da mensagem que se quer expressar, quer dizer, a não ser pelo tamanho da letra e da sua forma. Isso não ocorre com a linguagem cartográfica. Ao usá- la por meio da semiologia gráfica e apropriar-se das variáveis visuais, emprega-se a que melhor atende à finalidade que se quer alcançar; além disso, deve-se na graficacia delimitar-se a área, quer dizer, o componente espacial, do qual se escolherão os elementos que serão representados de forma qualitativa, ordenativa ou quantitativa. A linguagem cartográfica, por ser espacial, não é linear. O uso cada vez mais acentuado da informática na produção cartográfica e a popularização do uso de microcomputadores portáteis, associados com: a internet, o Sistema de Posicionamento Global (GPS), o Sistema de Informações Geográfica (GIS), entre outros, permitiu reflexões em relação à comunicação cartográfica, na qual o mapa tinha como função a transmissão de informação. Como resultado dessas reflexões, surge a visualização cartográfica. Ela tem-se consolidado como base conceitual para a cartografia no período atual, a era da informação, minimizando as discussões em torno da comunicação cartográfica (GIRARDI, 2003). A visualização cartográfica tem origem no desenvolvimento da própria cartografia com o uso de tecnologias de informação visual, somando-se a visualização científica e também a computação gráfica, juntamente com os avanços dos Sistemas de Informação Geográfica, destacando-se mais pelo seu caráter exploratório do que comunicativo, possibilitando o descobrimento e o entendimento dos fenômenos espaciais (RAMOS, 2003; DELAZARI, 2004). A Associação Cartográfica Internacional, em 1993, criou um grupo de trabalho na comissão de Uso de Mapas com o intuito de pesquisar a visualização e suas conseqüências na cartografia. Em 1995, o grupo foi transformado em Comissão de 20 Visualização e, em 1999, o nome foi ampliado para Comissão de Visualização e Ambientes Virtuais (DELAZARI, 2004). Um dos principais teóricos da visualização na Cartografia é MacEachren (1994) que elaborou um espaço tridimensional chamado de Cartografia ao cubo, no qual apresenta a comunicação e a visualização. Como pode ser visto na Figura 1, os eixos do espaço são definidos: domínio público x privado; alta interação x baixa interação homem-mapa; apresentação de conhecimentos x revelação do desconhecido. Verifica-se que a visualização permite uma alta interação homem-mapa, por isso, restringe-se ao domínio privado. Já a comunicação ocupa a posição oposta, ou seja, situa-se ao domínio público, mas de baixa interatividade. Com base no que abordamos até aqui podemos concluir que com a atual tecnologia disponível para a produção cartográfica, o usuário tem maior interação com o mapa digital, tendo acesso não só às informações geográficas registradas, como também a possibilidade de realizar inúmeras explorações de acordo com o seu interesse. Isso permite que o produto final seja algo exclusivo desse usuário, características básicas da visualização cartográfica. O mapa convencional, elaborado pelo cartógrafo, não possibilita essa exploração, cumprindo a função de transmissão de informação; por outro lado, esse veículo não será exclusivo de alguém, típico da comunicação cartográfica, que permitirá ao usuário ter acesso às informações geográficas por meio da linguagem cartográfica. Concordamos com Joly (1997) ao afirmar que a Cartografia pode ser legitimamente considerada uma linguagem, uma vez que usa um sistema de signos com o intuito de comunicar-se com outro. Ele destaca que se trata de uma linguagem estritamente visual e de caráter universal. Por ser visual, está sujeita às leis fisiológicas da percepção das imagens. É universal porque usa uma série de símbolos que podem ser compreendidos por todos com um mínimo de preparo. A cartografia faz parte da graficacia, uma vez que se preocupa com a representação do espaço. A semiótica é a responsável pela criação da linguagem cartográfica, mas dentre muitos autores que preferem a semiologia gráfica, destaca-se Bertin. Para os autores que adotam a semiologia gráfica, não se aplica o modelo clássico de comunicação para a informação cartográfica. A versão monossêmica, dada por meio das variáveis visuais, é a preferida (SIMIELLI, 1986). 21 Fig. 1. Modelo de Visualização e Comunicação Por Mapas, Segundo MacEachren, 1994 Fonte: MacEachren, 1994, p. 6. 22 A versão monossêmica, significado único, está fundamentada nas relações entre os significados dos signos, comparando-a com a matemática. Nesse caso, dispensando a convenção: É o domínio das operações mentais lógicas. Interessa, portanto, ver- se instantaneamente as relações que existem entre os significados signos que significam relações entre objetos geográficos, deixando para um segundo plano a preocupação com a relação entre o significado e o significante dos signos, característica básica dos sistemas semiológicos polissêmicos (significados múltiplos). É o que acontece na comunicação visual feita através da imagem figurativa: a fotografia, a pintura, a publicidade (MARTINELLI, 1999, p. 72). Especificamente, a semiologia gráfica trata dos estudos “[...] dos símbolos gráficos, suas propriedades e suas relações com os elementos da informação que eles revelam”(OLIVEIRA, 1993a, p.507). Essa característica da linguagem cartográfica, significado único, difere da maioria das linguagens, que possuem significados múltiplos. Essa propriedade da linguagem cartográfica, trabalhada satisfatoriamente pelo cartógrafo, facilita a leitura por parte do usuário. Outra diferença da linguagem cartográfica para as demais diz respeito ao tipo de informação. Todas as linguagens procuram transmitir alguma informação, mas somente a linguagem cartográfica será capaz de fornecer informações geográficas e se distingue das demais porque pode ser representada espacialmente. Assim, todos os meios de comunicação transmitem informações onde quer que elas estejam ocorrendo, repassando-as para qualquer parte do planeta, encurtando distâncias. Por meio dessas informações, o indivíduo pode fazer sua leitura do mundo. Mas, quando se quer mostrar o componente espacial, esses meios lançam mão da representação cartográfica, porque, por meio dela, é possível estabelecer uma linguagem capaz de se entender os elementos do espaço, seu arranjo de distribuição, sua dimensão, suas relações, enfim sua importância na organização espacial com visão do todo. Ao registrar informações cartográficas, o homem não só ampliou sua memória como também pôde obter mais informações e de forma mais rápidas por meio da leitura do espaço em diferentes escalas: local, regional, nacional ou global. Ler e interpretar corretamente os arranjos espaciais, como manifestações da sociedade atual, confere ao usuário da Cartografia vantagens importantes não só pela visão de distribuição dos fenômenos geográficos, como também permite estabelecer relações espaciais, que 23 seriam impossíveis sem o seu uso. Essa linguagem permite a compreensão da totalidade do espaço, diferente das demais. A linguagem é o elo entre o cartógrafo e o usuário, por isso ela precisa ser clara e eficiente, sendo útil tanto para a transmissão quanto para a leitura. Para ocorrer essa transmissão da mensagem, a linguagem cartográfica usa o signo. O signo é uma representação do objeto. Ele possui dois aspectos: o significante, que compreende o aspecto material, e o significado, que corresponde ao aspecto conceitual. A relação entre o significante e o significado corresponde à significação, ou seja, à decodificação da mensagem, que será feita pelo usuário, num processo inverso do cartógrafo. A codificação da realidade esteve sempre baseada nas necessidades de cada local, por isso o mapeamento faz parte da construção de cada sociedade. No Brasil, o mapeamento também deixou sua identidade registrada. Já a participação da Cartografia no ensino superior de Geografia ocorreu mais recentemente, depois de muitas experiências de atividades cartográficas já realizadas. Cartografia no ensino superior do Brasil A necessidade de mapear o território brasileiro, com dimensões continentais, a fim de conhecer o seu espaço geográfico, identificar seus limites e fornecer informações para um levantamento de toda a nação, constitui a precípua atividade cartográfica. Desde o bandeirantismo na procura de áreas auríferas até o próprio estabelecimento das jazidas e construções de cidades, foi uma preocupação da Cartografia. A cartografia praticada inicialmente no Brasil estava mais voltada para o levantamento topográfico, com as demarcações e identificações das fronteiras. Era usada como instrumento diplomático, porque se usavam os levantamentos para análises das fronteiras em disputas territoriais com outros países. Áreas que até o século XIX apareciam como desconhecidas, foram aos poucos sendo mapeadas. Podemos dizer que as atividades cartográficas no Brasil começaram pelo litoral e, aos poucos, se interiorizaram, consolidando o mapeamento do País, segundo “Estudo das Cartas Históricas” da Mapoteca da Diretoria do Serviço Geográfico de 1959 (BRASIL,1959). Mesmo com essa produção cartográfica do Brasil, a Cartografia no ensino superior brasileiro só apareceu em forma de disciplina pela primeira vez, em 1943, na Universidade Católica (PUC-SP) e, em 1947, na USP. Embora o primeiro curso de 24 Geografia da USP já datasse de 1934, o componente curricular de cartografia somente foi incluído na grade curricular nove anos depois (SOUKUP, 1953,1955). Antes mesmo dessa formalização como componente curricular, a Cartografia era utilizada nas aulas de Geografia no ensino superior. O seu uso estava diluído pelas disciplinas, ou seja, o professor de Geografia usava para mapear e representar qualquer conteúdo da sua disciplina. Também era usada nos trabalhos de campo, para se fazerem levantamentos expeditos, croquis, cálculos de distância, entre outros. Simultaneamente à criação do curso de Geografia no País, foi fundada a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), iniciada em São Paulo, em 1934, e, dez anos mais tarde, já tinha a adesão dos geógrafos do Rio de Janeiro, dando à instituição dimensões nacionais. A contribuição dessa instituição para o ensino superior foi significativa, constituindo-se num verdadeiro espaço de pesquisa de campo e discussões, reunindo geógrafos de diversos pontos do Brasil. “Ela difundiu métodos de trabalho numa época em que não havia cursos de pós-graduação em Geografia, contribuindo para consolidar a formação dos geógrafos mais novos ou menos experientes”(ANDRADE, 1987, p.92). Paralelamente à criação dos cursos superiores de Geografia no Brasil (em 1934, a USP e, em 1935, a Universidade do Distrito Federal, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), em 1937, foi fundado pelo governo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Era composto por três conselhos: de Geografia, de Cartografia e de Estatística. Tais conselhos tinham as funções de sistematizar a coleta de dados estatísticos e fornecer o conhecimento do território brasileiro. A ligação do IBGE com o ensino superior de Geografia ocorre com via de mão dupla, ou seja, inicialmente, os primeiros geógrafos ocuparam os postos de trabalhos no Instituto, propiciando aos profissionais da Geografia a primeira ocupação em pesquisa, além da dedicação ao ensino. Posteriormente, forneceu muitos profissionais para atuarem nos cursos de Geografia na disciplina de Cartografia. Além disso, influenciou na formação do Geógrafo por meio das suas duas publicações: o Boletim Geográfico, que funcionou de 1943 a 1978, e a Revista Brasileira de Geografia (ANDRADE, 1987). Em 1956, o Congresso Internacional foi um marco na Geografia brasileira porque permitiu que os geógrafos reunissem um volume considerável da sua produção e tivessem condições de sediar um evento dessa importância. Esse evento serviu para expor a Geografia brasileira e, ao mesmo tempo, de se inteirar das produções estrangeiras. 25 No período Pós-Guerra, assiste-se a um movimento pela institucionalização da Cartografia e sua autonomia como ramo do conhecimento, evidenciando a separação da Cartografia da Geografia. Em outras palavras, dos conhecimentos geográficos se desprenderam os conhecimentos cartográficos. Até então, as atividades cartográficas eram realizadas por geógrafos com especialização em mapeamentos e, a partir das novas exigências, houve a necessidade de um aperfeiçoamento mais preciso nas técnicas de mapeamento. O aparecimento da profissão de Cartógrafo foi só uma questão de tempo. Em 1958, durante a I Reunião de Consulta sobre Cartografia em São Paulo, foi deliberada a fundação da Sociedade Brasileira de Cartografia. Os principais interessados nessa reunião foram os profissionais ligados à Geodésia, pois a participação de geógrafos foi insignificante (SOUKUP, 1959). Houve nesse período, final da década de 1950, a discussão em torno da formação do profissional cartógrafo, que veio consolidar-se com a criação de graduação em engenharia cartográfica. Com tal formação, os recursos humanos para se trabalhar com levantamentos topográficos e mapas de base no País estavam disponíveis. Outro acontecimento relevante diz respeito à ampliação dos cursos de Geografia com as várias instalações de universidades públicas federais. Como não havia profissional de Geografia especializado em Cartografia suficiente para ministrar aulas nesses novos cursos, a solução foi o preenchimento das novas vagas com outros profissionais: agrimensores, engenheiros civis e militares. Os conhecimentos técnicos específicos desses profissionais pouco contribuíam para o conhecimento geográfico, principalmente quando tratados isoladamente, quer dizer, não usavam seus conhecimentos para a explicação geográfica, que é o papel da linguagem cartográfica na Geografia. Além disso, a falta de identidade desses profissionais com a Geografia não propiciou seu engajamento nas discussões geográficas da época, o que resultou no isolamento desses profissionais nos cursos de Geografia (GIRARDI, 2003). Além disso, não havia bibliografia em português na área que permitisse ser usada nas explicações geográficas. Poucas eram as pesquisas relacionadas ao tema, exceções feitas às publicações de Soukup (1953, 1955) e Libault (1971, 1975). A contribuição de Libault para a Geografia brasileira foi inegável. Prova dessa escassa publicação cartográfica pode ser verificada no balanço feito nos primeiros cinco anos de existência do Boletim Paulista de Geografia, realizado por Azevedo (1953), em que só apareceu uma publicação direta sobre Cartografia. 26 A década de 1970 foi marcada por grandes transformações no paradigma da Geografia brasileira. As discussões, os encontros e as publicações traziam a necessidade de mudança dos referenciais teóricos e metodológicos da época. Tal debate permitiu o aparecimento da chamada Geografia Quantitativa, que permitiu o desenvolvimento da Cartografia por meio da coleta e análise dos dados, além de usar técnicas estatísticas. Em oposição ao emprego da técnica pela Geografia Quantitativa, surgiu a corrente Geografia Crítica. Essa corrente, por não priorizar os conhecimentos técnicos e cartográficos, deixou uma lacuna no ensino superior. Esses embates provocaram extremos na formação do professor, quer dizer, de um lado uma formação técnica, desvinculada do seu uso como linguagem, de outro uma formação politizada sem o uso dos conhecimentos cartográficos. As influências das Geografias Quantitativa e Crítica podem ter minimizado suas conseqüências no tocante à Cartografia no ensino superior. Podemos colocar que esse acontecimento contribuiu mais por forças dos paradigmas praticados na época do que por questões estruturais. Outro ponto a ser ressaltado é que nem todos os profissionais de Geografia e universidades adotaram essas concepções. A Cartografia no ensino superior também sofreu modificações com a Lei nº 5692/71. Ela criou as licenciaturas curtas, influenciando significativamente na formação do professor, estabelecendo uma carga horária do curso muito reduzida. A Cartografia não ficou isenta dessa redução, prejudicando sensivelmente a formação dos futuros professores no domínio da linguagem cartográfica. Para se ter idéia de como essa mudança reduziu a carga horária de Cartografia, basta comparar a carga horária nos cursos de licenciatura plena, que não modificaram sua estrutura com essa Lei, que possuíam em média 180 horas, contra 60 horas em média para os cursos de licenciatura curta. Essa mudança não foi apenas quantitativa, mas principalmente qualitativa, uma vez que, com uma carga horária tão reduzida, pouco ou quase nada se podia apreender da Cartografia no ensino da Geografia (GIRARDI, 2003). De acordo com Kaercher (2002), a explicação para o abandono da técnica no ensino superior a favor de uma formação mais politizada pós-ditadura foi uma forma de romper com a neutralidade do período. Admitir que, depois da ditadura, houve no País grandes debates políticos, não justifica o empobrecimento da formação mais técnica, principalmente em se tratando da Cartografia, porque uma não exclui o outra. Verifica- se que o enfoque a uma dimensão na formação está mais ligado aos aspectos estruturais 27 de carga horária e à importância dada à Cartografia do que propriamente à conjuntura política do País. Na seqüência, apresentaremos um levantamento dos componentes curriculares e suas respectivas cargas horárias em algumas universidades selecionadas nos cursos de Geografia, nas modalidades de licenciatura e bacharelado. Cursos de Licenciatura e Bacharelado De acordo com o Parecer 492/2001 do Ministério da Educação, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais de Geografia, os colegiados das instituições poderão organizar o curso de Geografia em quatro níveis de formação: bacharéis, aplicada-profissional, de docente e de pesquisadores. Propõe que a licenciatura deverá ser orientada também pelas Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica. O perfil do formando em Geografia é: Compreender os elementos e processos concernentes ao meio natural e ao construído, com base nos fundamentos filosóficos, teóricos e metodológicos da Geografia. Dominar e aprimorar as abordagens científicas pertinentes ao processo de produção e aplicação do conhecimento geográfico (BRASIL, 2001a, p.10). As habilidades gerais que o curso de Geografia deve proporcionar são: a. Identificar e explicar a dimensão geográfica presente nas diversas manifestações do conhecimentos; b. Articular elementos empíricos e conceituais, concernentes ao conhecimento científico dos processos espaciais; c. Reconhecer as diferentes escalas de ocorrência e manifestação dos fatos, fenômenos e eventos geográficos; d. Planejar e realizar atividades de campo referentes à investigação geográfica; e. Dominar técnicas laboratoriais concernentes à produção e aplicação do conhecimento geográficos; f. Propor e elaborar projetos de pesquisa e executivos no âmbito de área de atuação da Geografia; g. Utilizar os recursos da informática; h. Dominar a língua portuguesa e um idioma estrangeiro no qual seja significativa a produção e a difusão do conhecimento geográfico; i. Trabalhar de maneira integrada e contributiva em equipes multidisciplinares (BRASIL, 2001a, p.11). Verifica-se que são habilidades que possibilitam uma formação com enfoques diversificados em relação ao domínio da própria atividade geográfica como campo de saber, dentro de um contexto da sociedade da informação. Nessas habilidades gerais estão implícitos os saberes cartográficos. Já em relação às habilidades específicas, o curso deve proporcionar: 28 a. Identificar, descrever, compreender, analisar e representar os sistemas naturais; b. Identificar, descrever, analisar, compreender e explicar as diferentes práticas e concepções concernentes ao processo de produção do espaço; c. Selecionar a linguagem científica mais adequada para tratar a informação geográfica, considerando suas características e o problema proposto; d. Avaliar representações ou tratamentos; gráficos e matemático- estatísticos; e. Elaborar mapas temáticos e outras representações gráficas. f. Dominar os conteúdos básicos que são objeto de aprendizagem nos níveis fundamental e médio; g. Organizar o conhecimento espacial, adequando-o ao processo de ensino-aprendizagem em geografia nos diferentes níveis de ensino (BRASIL, 2001a, p. 11, grifo nosso). Pelas habilidades específicas, nota-se que as Diretrizes em Geografia se preocuparam em relação à formação do geógrafo que atuará na docência e com aquele que irá atuar em outra atividade. Verifica-se, especificamente em relação ao saber cartográfico, que este se faz presente nas Diretrizes, tanto como processo de mapeamento quanto como fonte de informações. Outro ponto interessante refere-se à organização do conhecimento espacial nos níveis de ensino Fundamental e Médio. Em relação ao saber cartográfico, especificamente, significa que este deve estar de acordo com o nível mental do educando, principalmente para o ensino fundamental. Isso requer a presença da Cartografia Escolar no curso de licenciatura em Geografia. A licenciatura, como o próprio nome diz, corresponde a uma licença dada por uma autoridade pública competente para o exercício da atividade docente, inclusive de Geografia. De acordo com o Parecer CNE/CP 21/2001b, a carga horária mínima será de 2.800 horas para a formação de professores de Educação Básica; o curso de licenciatura terá duração de, no mínimo, três anos para integralizar a carga horária, bem como 200 dias letivos por ano. A Lei que regulamenta a profissão de Geógrafo (6.664/79) especifica como sendo sua competência: reconhecimentos, levantamentos, estudos e pesquisas de caráter físico-geográfico, biogeográfico, antropogeográfico e geoeconômico, e as realizadas nos campos gerais e especiais da Geografia, que se fizerem necessárias, além da organização de congressos, comissões, seminários, simpósios e outros tipos de reuniões, destinados ao estudo e à divulgação da Geografia. 29 Segundo o Parecer CNE/CES 329/2004, a carga horária mínima para o curso de bacharelado em Geografia é de 2.400 horas, e o estágio não pode ultrapassar 20% da carga horária. Caberá a cada Instituição de Educação Superior indicar a carga horária total dos cursos de graduação, determinando os tempos mínimo e máximo de integralização curricular, seguindo os duzentos dias de trabalho acadêmico anual. Essa diferenciação das modalidades de bacharelado e licenciatura, para alguns autores, não acaba efetuando-se na prática. Almeida (2002, p. 267) aponta que o curso de graduação está pautado no bacharelado, com estudos teóricos “[...] em disciplinas estanques, fechadas em si mesmas, tendo um currículo extremamente fragmentado. Para a maioria dos docentes do curso de Geografia, o ensino é visto como algo menos importante”. De acordo com Vesentini (2002, p.235), a estrutura dos cursos superiores é responsável pelos estereótipos construídos na imagem da Geografia nas escolas “[..] na qual se enfatiza a especialização e a titulação encarada como hierarquia ou relação de poder – quanto pela nossa cultura autoritária, na qual a escolaridade e a qualificação das pessoas sempre foi algo relegado a segundo plano.” De forma mais explícita, Abreu (2003, p.8) coloca que há um certo “descompromisso” na formação do professor nos departamentos de Geografia, tarefa que fica por conta dos professores de prática de ensino e dos componentes curriculares pedagógicos, “[...] de forma que as demais disciplinas dariam conta da formação do geógrafo, ou melhor dizendo, da formação geográfica”. Essa discussão em relação a valorizar o Bacharelado em detrimento da Licenciatura, não é exclusividade da Geografia, como constata o Conselho Nacional da Educação ao apontar que: As questões a serem enfrentadas na formação são históricas. No caso da formação nos cursos de licenciatura, em seus moldes tradicionais, a ênfase está contida na formação nos conteúdos da área, onde o bacharelado surge como a opção natural que possibilitaria, como apêndice, também, o diploma de licenciado. Neste sentido, nos cursos existentes, é a atuação do físico, do historiador, do biólogo, por exemplo, que ganha importância, sendo que a atuação destes como ‘licenciados’ torna-se residual e é vista, dentro dos muros da universidade, como ‘inferior’, em meio à complexidade dos conteúdos da ‘área’, passando muito mais como atividade “vocacional” ou que permitiria grande dose de improviso e autoformulação do ‘jeito de dar aula’ (BRASIL, 2001c, p.16). Para Sales (2005, p.13192, grifo da autora), os alunos do curso de licenciatura em Geografia têm sua formação voltada para o bacharelado, quer dizer, mesmo 30 cursando disciplinas pedagógicas e entendendo os fenômenos apresentam dificuldades em ensiná-los. “Valorizam mais os conceitos escritos nos livros do que os que podem ser construídos e problematizados em sala de aula, são mais geógrafos do que professores de Geografia.” É importante que a estrutura curricular da graduação em licenciatura, assim como no bacharelado em Geografia, possibilite a pesquisa-ação para que essa formação não fique deficitária. Na visão de Sales (2005, p. 13190), isso não está acontecendo porque “[...] a graduação estrutura seus currículos de forma dicotômica – como se a pesquisa fosse algo restrito às funções técnicas (bacharéis) e não à sala de aula (professores).” Entende-se aqui por pesquisa na formação do professor a mesma defendida por Lisita et al (2001, p.117) que “[...] cria condições para que os professores investiguem, indaguem, questionem e produzam explicações sobre o ensino como prática social [...].” As diferenças entre pesquisa acadêmica e a pesquisa feita pelos professores são reconhecidas. Segundo Lisita et al (2001, p.118), são várias as diferenças existentes, envolvendo condições epistemológicas, de trabalho, de tempo e mesmo de finalidade. A pesquisa acadêmica, em suas finalidades, preocupa-se com a originalidade, a validade e o reconhecimento por parte dos seus pares. Já a pesquisa feita pelos professores, ao contrário das finalidades da anterior, busca o [...] conhecimento mais detalhado da realidade para transformá-la, visando à melhoria das práticas pedagógicas e à autonomia do professor. Em relação à formação científica, Vesentini (2002, p.239) coloca que essa fica restrita ao bacharel como se o professor não fosse utilizá-la, e acrescenta: “O curso superior de Geografia não deveria enfatizar essa diferença entre bacharelado e licenciatura e muito menos subestimar a formação do professor.” A pesquisa é imprescindível nos cursos de Geografia tanto nas Licenciaturas quanto nos Bacharelados. Ao destacar a importância da pesquisa na formação inicial do professor, Callai (2002a, p. 259) afirma que a “[...] prática da pesquisa permite que o aluno efetivamente realize a aprendizagem e, como professor, possa pensar a sua prática, questionando as suas ações e construindo o seu pensamento.” Souza e Katuta (2001, p. 59) também apontam que é por meio do ensino e pesquisa que o professor pode tornar-se um profissional com mais autonomia e deixar de ser um mero executor de propostas ou “receitas pedagógicas.” “A qualidade formativa dos geógrafos-professores é, para nós, o elemento-chave para que se faça 31 avançar reflexões sobre o conjunto de metodologias e técnicas de ensino para o uso adequado de mapas”. Apesar da sua importância, a pesquisa na graduação ocorre somente em alguns momentos que, segundo Callai (2003), se efetivam com a prática de ensino e o Trabalho de Conclusão de Curso. O êxito de tais momentos como possibilidade de superação da linearidade do currículo diz respeito ao fato de que os alunos concluintes já passaram por todas as outras disciplinas que formariam a base. Concordamos com Pontuschka (1999), ao enfatizar que a formação inicial deve envolver vários aspectos. O domínio do conhecimento geográfico é a primeira condição. Mas alerta que o modelo que definia a competência do professor somente pelo saber acadêmico não é mais válido. Portanto, são necessários outros conhecimentos: [...] na área da psicologia de aprendizagem, da psicologia social, da história da educação, da história da disciplina geográfica, de linguagens e métodos a serem utilizados em sala de aula. Tudo isso deve fazer parte do acervo cultural e profissional do professor de geografia (PONTUSCHKA, 1999, p. 131, grifo nosso). Reforçamos que a Linguagem Cartográfica deve estar presente nessa formação, possibilitando a leitura da organização do espaço, perpassando o conhecimento geográfico em todas as suas escalas e variações. Além da Linguagem Cartográfica, esses outros conhecimentos mencionados permitem que o professor possa encarar os problemas relacionados ao processo de ensino e aprendizagem de Geografia na atualidade e tenha condições de superá-los. Além desses conhecimentos, ter acesso às pesquisas e usar diferentes recursos na prática pedagógica são imprescindíveis para o professor, e esses recursos vão: [...] desde as pesquisas empíricas, os inventários, os vídeos e a sua divulgação pelos geógrafos responsáveis pela história da ciência geográfica, até o instrumental utilizado na produção desse conhecimento, desde os mais convencionais, como o mapa, a carta geográfica, o gráfico e a tabela, até os mais recentes, como os levantamentos dos espaços territoriais feitos por sensoriamento remoto e os recursos oferecidos pela informática, que já começam a se expandir como auxiliares da pesquisa geográfica (PONTUSCHKA, 1999, p. 134). Apenas ter acesso a esses recursos não é garantia de êxito, é preciso saber utilizá-los de forma correta para que eles possam contribuir com o ensino e a aprendizagem da Geografia. “A utilização de diferentes linguagens na geografia (obras 32 literárias, cinema, vídeos, fotografias) pode auxiliar na compreensão e crítica da produção do espaço, se o seu uso como mera ilustração for superado” (PONTUSCHKA, 1999, p. 134, grifo nosso). Para Callai (2003, p. 68-69), o professor de Geografia, assim como o geógrafo, precisa dos conhecimentos da sua área. “O domínio técnico de como fazer a análise geográfica e os pressupostos pedagógicos são dois pontos que, intrinsecamente, devem fazer parte da formação do professor de geografia.” Isso significa dizer que o uso adequado dos recursos, entre os quais os cartográficos, não se restringe apenas a um aspecto técnico ou a um pressuposto pedagógico, ao contrário, deve-se pensar em ambos de forma integrada. Para se chegar a essa prática integrada, deve-se pensar na formação inicial do professor que não seja limitada a um ou a outro aspecto. Nessa linha, Souza e Katuta (2001) reforçam que a formação docente não pode ter uma única dimensão privilegiada, apontam a necessidade de uma unidade com as dimensões política, técnica, o domínio de conhecimentos específicos, além de outros, que garantam ao professor uma autonomia pessoal e intelectual. Com base no que foi exposto até aqui, analisaremos a distribuição dos componentes curriculares em Cartografia nos cursos de Geografia nas modalidades de bacharelado e licenciatura em catorze universidades brasileiras por nós selecionadas. Os critérios usados nas escolhas das universidades para analisar os componentes curriculares e suas ementas foram a existência de curso de graduação, programas de Pós-Graduação em mestrado e doutorado em Geografia, avaliados e recomendados pela CAPES (2006). A apresentação dos cursos de bacharelado permite fazer uma comparação com as licenciaturas com o intuito de verificarmos a relação entre a cartografia e o ensino. As informações referentes aos componentes curriculares e às ementas, de cada universidade, foram levantadas nos sites das próprias instituições de ensino, no ano de 2006. A ordem de apresentação das Universidades, no Quadro 1, obedeceu à data da instalação dos programas de Pós-Graduação em Geografia, em nível de mestrado, dos mais antigos para os mais recentes, ficando assim: Universidade de São Paulo (USP); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Universidade Federal do Pernambuco (UFPE); Universidade Estadual Paulista (UNESP/RC); Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Fundação Universidade Federal de Sergipe (FUFSE); Universidade Estadual Paulista (UNESP/PP); Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); 33 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS); Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS); Universidade Federal Fluminense (UFF); Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O Quadro I mostra os componentes curriculares cartográficos dos cursos de graduação em Geografia com suas respectivas cargas horárias. Constata-se que todas as universidades selecionadas oferecem cursos de Geografia nas modalidades em licenciatura e bacharelado. A grande maioria das universidades apresenta os mesmos componentes curriculares e as mesmas cargas horárias nas modalidades em licenciatura e bacharelado. A principal diferença ocorre na UFPE, em que a Licenciatura possui apenas 60 horas, com um componente curricular, e seis no Bacharelado, totalizando 348 horas. Nenhum curso do bacharelado possui um número menor de componente curricular cartográfico nem uma carga horária menor do que a licenciatura. Além do extremo apontado na UFPE, outras universidades apresentam, entre a modalidade em licenciatura e bacharelado, diferenças em relação ao número de componentes curriculares e suas respectivas cargas horárias. Na Unesp de Rio Claro, a licenciatura oferece dois componentes curriculares, totalizando uma carga horária de 180 horas, contra quatro componentes curriculares do bacharelado, totalizando uma carga horária de 300 horas. Uma diferença de 120 horas. Na Universidade Federal de Santa Catarina, a licenciatura oferece quatro componentes curriculares, totalizando 288 horas, contra 360 horas, distribuídas em seis componentes curriculares no bacharelado. Na Universidade Federal de Minas Gerais, a licenciatura possui cinco componentes curriculares, com o total de 300 horas, e o bacharelado conta com seis componentes curriculares, com o total de 360 horas. No geral, os componentes curriculares que aparecem no bacharelado e não constam da licenciatura, referem-se ao Sistema Geográficos de Informações, Geoprocessamento, Sensoriamento Remoto e Fotointerpretação, ou seja, componentes ligados à tecnologia. No geral, a carga horária dos componentes curriculares específicos de cartografia, em ambos os cursos, é superior a 180 horas. Ao compararmos a carga horária dessas Universidades públicas com o levantamento feito em 139 faculdades particulares realizado por Sampaio et al (2006) em cursos de Geografia, conclui-se que as públicas oferecem, em média, uma carga horária três vezes maior do que as particulares. 34 Os componentes curriculares, quanto a sua distribuição, conforme o Quadro 1, parecem não articulados entre si, quer dizer, cada componente trabalha com os conteúdos específicos de forma isolada no curso, não se constituindo numa proposta em que a linguagem cartográfica esteja sendo usada em situações problematizadas no ensino de Geografia, permitindo ao formando uma autonomia profissional e intelectual. Apenas dois componentes curriculares, Expressão Gráfica em Geografia (UFMG) e Cartografia Aplicada ao Ensino da Geografia (UFSC), esta última colocada como optativa na grade do curso, diferenciam-se dos demais componentes curriculares da licenciatura e principalmente do bacharelado, por trazerem explícita a relação com o ensino. As ementas dos componentes curriculares dos cursos de Geografia, nas modalidades de bacharelado e licenciatura, foram agrupadas em quatro categorias, conforme o Quadro 2, em: Cartografia Sistemática, Cartografia Temática, Geoprocessamento e Cartografia e Ensino. As ementas representam o panorama referente ao que o formando em Geografia está aprendendo. Pelo que dispõem as ementas, não se observa a preocupação colocada pelas Diretrizes em Geografia na organização dos conteúdos, de acordo com o nível de ensino, quer dizer, não se faz diferença, principalmente na licenciatura, dos conteúdos cartográficos que serão ministrados nas séries do Ensino Fundamental das do Ensino Médio. Outro ponto a ser ressaltado refere-se à distribuição dos conteúdos, que apresentam inúmeros saberes, mas sem fazer uma relação direta com o ensino. Em outras palavras, são apresentados os conteúdos, não ficando claro se estes serão trabalhados com o intuito de dar conhecimentos ao licenciando para ler e interpretar as representações cartográficas. Nesse caso, a Cartografia estaria sendo usada como linguagem, ou se são apenas conteúdos, nesse caso tendo o próprio fim em si mesmo. Não fica claro a preocupação a aplicação da Cartografia no curso de Geografia como linguagem, possibilitando a leitura dos fenômenos geográficos. A apresentação das ementas constitui apenas num rol de conteúdos que os alunos devem saber. O uso da Cartografia como linguagem no ensino superior, principalmente na licenciatura, não pode ficar restrito apenas à leitura daquilo que o cartógrafo registrou nos mapas. No caso do ensino de Geografia, é necessário que o formando também atue como mapeador de situações que queira discutir, principalmente quando se trata do local em que o processo de ensino e aprendizagem de Geografia estará ocorrendo. Na distribuição das ementas, não se verifica essa preocupação com o futuro professor. UNIVERSIDADE LICENCIATURA BACHARELADO USP Introdução à Cartografia (120h) , Elementos de Cartografia Sistemática (120h) ), Cartografia Temática (120h),Sensoriamento Remoto Aplicado a Geografia (90h), Aerofotogeografia (120h, optativa), Análise e Interpretação de Cartas Topográficas (120h, optativa), Cartografia Temática da Geografia (120 h, optativa), Cartografia Ambiental (90 h, optativa), Introdução ao Sistema Geográficos de Informação (120 h, optativa), Geoprocessamento (60 h, op). Introdução à Cartografia (120h) , Elementos de Cartografia Sistemática (120h) ), Cartografia Temática (120h),Sensoriamento Remoto Aplicado à Geografia (90h), Aerofotogeografia (120h, optativa), Análise e Interpretação de Cartas Topográficas (120h, optativa), Cartografia Temática da Geografia (120 h, optativa), Cartografia Ambiental (90 h, optativa), Introdução ao Sistema Geográficos de Informação (120 h, optativa). Geoprocessamento (60 h, optativa). 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Cartografia I (60 h), Cartografia II (60h), Fotogeografia (60h), Sensoriamento Remoto em Geografia 60h), Cartografia Digital (60h, optativa) e Cartografia Temática (60h). PUC–MINAS Cartografia Geral (72h), Cartografia Temática (60h), Sensoriamento Remoto (72h), Geoprocessamento (60h). Cartografia Geral (72h), Cartografia Temática (60h), Sensoriamento Remoto (72h), Geoprocessamento (60h) UFU Cartografia (60h), Cartografia Temática (72h), Sensoriamento Remoto (72 h), Sistema de Informações Geográficas (60h, (optativa) Cartografia (60h), Cartografia Temática (72h), Sensoriamento Remoto (72 h), Sistema de Informações Geográficas (60, optativa). UFRGS Cartografia (60h), Cartografia Temática digital (90h), Sensoriamento Remoto em Geografia (60h), Fotogrametria e Interpretação de Imagens Aéreas e Orbitais (90h), Sistemas de Informações Geográficas (60h), Processamento de Imagens (eletiva) (60h), Processamento Digital de Imagem de Radar (eletiva, 45h). Cartografia (60h), Cartografia Temática Digital (90h), Sensoriamento Remoto em Geografia (60h), Fotogrametria e Interpretação de Imagens Aéreas e Orbitais (90h), Sistemas de Informações Geográficas (60h), Processamento de Imagens (eletiva, 60h), Processamento Digital de Imagem de Radar (eletiva, 45h). Sensoriamento Remoto Aplicado à Geologia Marinha e Costeira (eletiva, 60h). UFF Cartografia Temática (60h), Interpretação de Imagens (60h), Cartografia Básica (60h). Cartografia Temática (60h), Interpretação de Imagens (60h), Cartografia Básica (60h). UFPR Cartografia Geral (72), Sensoriamento Remoto e Fotointerpretação Geográfica (120h), Cartografia Temática (72h), Sistema Informações Geográficas (60h ), Sistema Informações Geográficas II (60h, optativa), Processamento Digital de Imagens (60 h, optativa), Tópicos Especiais em Geoprocessamento (60h, optativa). Cartografia Geral (72), Sensoriamento Remoto e Fotointerpretação Geográfica (120h), Cartografia Temática (72h), Sistema Informações Geográficas (60h ), Sistema Informações Geográficas II (60h, optativa), Processamento Digital de Imagens (60 h, optativa), Tópicos Especiais em Geoprocessamento (60h, optativa). UNICAMP Sensoriamento Remoto (72h), Cartografia Temática (106), Sistema de Informação Geográfica (72h). Sensoriamento Remoto (72h), Cartografia Temática (106h), Sistema de Informação Geográfica (72h). Quadro 1: Licenciatura e Bacharelado Organizado por Melo (2006) CATEGORIAS EMENTAS Cartografia Sistemática Fundamentos da Cartografia (Cartografia Geral). Histórico da Cartografia, Noções de Astronomia, Projeções Cartográficas, Fundamentos de Topografia, Coordenadas Geográficas, Fusos Horários, Escala e Generalização, Convenções Cartográficas, Cartografia Digital, Planimetria, Altimetria, Gráficos, Leitura e Interpretação de Mapas e Série Cartográfica. Elaboração e interpretação de perfis topográficos e Cartografia Ambiental. Cartografia Temática Definições e Conceitos da Cartografia Temática, Semiologia Gráfica, Cartometria, Cartas temáticas, Gráficos e diagramas, Histórico e fundamentos da Cartografia Digital, Características do mapa digital. Métodos diretos e indiretos de aquisição de dados geográficos, Uso de cores em Cartografia, Métodos de representação temática, Aplicação da Cartografia Temática em projetos integrados, Interpretação e geração de mapas temáticos. O papel das Imagens Orbitais e das Fotografias Aéreas na Cartografia Temática e Elaboração de Cartogramas. Medidas estatísticas. Modelos cartográficos. Geoproces- samento SIG: Histórico, utilização de softwares e hardware adequados aos conhecimentos geográficos, Tecnologia do geoprocessamento, Tipos e aplicativos dos sistemas, A estrutura interna e o formato dos dados (raster/vector), Aplicações de um SIG no planejamento territorial, Cad x Sig e Sistema de cartografia automatizada. Sensoriamento Remoto:Conceito e elementos do Sensoriamento Remoto, Histórico, Princípios físicos de sensoriamento remoto: radiação eletromagnética (REM), espectro eletromagnético, Interação REM - superfície terrestre – atmosfera, Comportamento espectral de alvos, Imageadores fotográficos, de varredura, radar, Radiômetro, Princípios de análise visual de imagens, Sistemas multiespectrais, Aplicação de dados de satélites estacionários para resolver problemas específicos. Fotogeografia (Fotointerpretação): Noções e princípios básicos de aerofotogrametria, Exploração da visão tridimensional, Estágios da fotointerpretação, Elementos de fotointerpretação, Técnicas para execução de trabalhos. Planejamento de vôo, Estereoscopia, Particularidades do sensores fotográfico face aos demais sensores remotos e Fotografias aéreas e Geoprocessamento. Cartografia e Ensino Expressão Gráfica em Geografia: Natureza das mensagens gráficas e uso no ensino da Geografia: princípios, regras, elaboração análise e interpretação. Cartografia Aplicada ao Ensino da Geografia A cartografia e sua importância no ensino de Geografia. Noções sobre espaço e sua representação. Produção de mapas didáticos e outros modelos cartográficos auxiliares no ensino de Geografia. Leitura e interpretação de mapas. A documentação cartográfica: uso, organização e arquivamento. Quadro 2: Ementas das Disciplinas Cartográficas: Licenciatura e Bacharelado Organizado por Melo (2006) 37 Como já frisamos, as duas únicas ementas que trazem alguma preocupação com o ensino da Geografia, são Expressão Gráfica em Geografia e Cartografia Aplicada ao Ensino de Geografia, o que é muito pouco pelo número de componentes curriculares levantados. Entendemos que uma concepção passiva na formação do professor é aquela que fica restrita ao papel de usuário da representação gráfica, não lhe oferecendo a oportunidade de atuar criticamente em mapeamentos no contexto em que está inserido. Ser mapeador não exclui o uso, ou seja, a leitura de mapas. Devemos salientar que, em se tratando da formação do professor, esse deve ser atuante na pesquisa-ação, e o mapeamento é um dos caminhos que se pode oferecer na sua formação inicial. Essa medida ajuda consideravelmente na postura crítica do professor em relação às representações disponíveis, quer dizer, quando ele entende o processo de comunicação que envolve o cartógrafo, a mensagem e o usuário, sua ação pedagógica no ensino de Geografia não se resume em usar o mapa como ilustração. Não se trata de o professor assumir a função do Cartógrafo, mas que possa, principalmente na localidade em que atua, com o contexto que lhe é pertinente, observar a realidade, processar mentalmente essas informações e concretizá-las em forma de mapa, assimilando suas concepções, para que, no processo de ensino e aprendizagem de Geografia, possa atuar como mediador e não como mero transmissor de informações. De forma geral, tanto os componentes curriculares quanto suas ementas são mais itens formais na apresentação dos conteúdos cartográficos do que uma postura didático- pedagógica que busca fornecer autonomia ao professor. Ter disponível mais horas para se aprender um determinado conteúdo cartográfico pode ajudar no domínio desse conceitos, mas, além da carga horária, outro item importante refere-se ao modo de trabalhar esse conteúdo. Por isso, a diferença da carga horária existente em algumas universidades entre os cursos de licenciatura e bacharelado não nos parece ser a questão principal, visto que as universidades que apresentam a mesma carga horária entre as duas modalidades, também não apresentaram nenhuma relação com o ensino. Estamos de acordo com Kaercher (2002, p. 224), ao colocar que os licenciados em Geografia não entendem com facilidade que, para serem bons professores de Geografia, não basta sabê-la. “É preciso saber ensiná-la. O que não é nada simples”. Acrescentamos que saber ensinar não se resume em aprender os conteúdos específicos de uma determinada disciplina, mas é preciso ir além. Por isso, ter componentes curriculares cartográficos e muitas horas de carga horária nos cursos de Licenciatura não é suficiente, é 38 preciso saber ensiná-los, levando-se em consideração, principalmente, os alunos do Ensino Fundamental e Médio e entender o seu papel como linguagem no ensino de Geografia. Entendemos que os cursos de Geografia em Bacharelado e em Licenciatura, apesar de apresentarem pontos em comum, são formações específicas; portanto, cada uma deve ter uma grade curricular própria. No caso da Licenciatura, é importante que constem dessa grade, componentes curriculares que trabalhem com o saber escolar, como a Cartografia Escolar, oferecendo, na formação inicial do professor, conhecimentos relevantes em relação ao exercício da sua profissão. Com referência especificamente aos componentes curriculares de Cartografia, pudemos verificar, na grande maioria, a falta de relação com o Ensino Fundamental e Médio de Geografia. Nossa constatação não é isolada, Cazetta e Almeida (2002, p.70) também relatam que: [...] nas grades curriculares dos cursos de licenciatura em Geografia inexiste o Sensoriamento Remoto aplicado ao ensino de Geografia. Se existe é como uma disciplina técnica (e não como área da Didática) da formação do geógrafo que irá trabalhar com Sensoriamento Remoto para fins de pesquisa aplicada ou empresarial. Então, como explicar que o professor tenha este conhecimento aplicado ao ensino se ele não existe sistematizado em nenhuma instância. Nossa posição em analisar os componentes curriculares cartográficos e suas ementas e apontar a necessidade de se fazer a relação com o ensino, pauta-se na teoria e prática que deve “[...] ter a perspectiva do pedagógico, do educador e da ciência com que se está trabalhando, para não cair em conteudismo ou em uma ‘capa’ metodológica sem conteúdo” (CALLAI 2002a, p. 256). Qualquer extremo é prejudicial ao bom andamento da prática pedagógica coerente. Assim, não somos favoráveis aos conteúdos de Cartografia de forma fragmentada e descontextualizada e muito menos uma ênfase apenas nos aspectos metodológicos. Por isso, trabalhar a Cartografia como linguagem no ensino de Geografia é um desafio, principalmente no superior. O saber acadêmico, desenvolvido no ensino superior, deve ter uma sintonia com as pesquisas realizadas na ciência geográfica. Mas esse nível de ensino, principalmente nas licenciaturas, não pode perder de vista o saber escolar. Não se trata de propor uma transposição didática do saber acadêmico para o saber escolar, mas entender o dinamismo desse ambiente em que esse conhecimento será trabalhado, contextualizado nas suas necessidades. No caso específico da Cartografia como linguagem no ensino de Geografia, 39 é preciso ter uma formação cartográfica muito mais voltada para o ensino de Geografia do que ter um rol de conteúdos cartográficos que serão trabalhados nos componentes curriculares durante o curso, por isso concordamos com Oliveira (1978, p. 46), ao colocar que o “[...] ensino do mapa requer por parte do professor uma formação muito mais dinâmica do processo de mapeamento.” Abordamos até aqui a Cartografia no ensino superior, principalmente sua relação com o ensino, especificamente nas licenciaturas. Seu conteúdo presente no curso de graduação de Geografia está fundamentado no saber cartográfico científico vinculado à universidade. O saber cartográfico possui outros vínculos, como o sistema de ensino, representado pela escola do ensino fundamental e médio e a noosfera, esfera intermediária que decide teoricamente “o que” o sistema de ensino vai ensinar com base no saber científico, constituindo o saber a ser ensinado, presente nos livros didáticos e documentos oficiais. 40 CAPITULO II SABERES CARTOGRÁFICOS “Não existe reprodução pura ou pura transformação, mas, sim, o conflito entre ambas, no qual o novo transformado incorpora e, portanto, transforma o velho, superando-o ao mesmo tempo” (SOUZA & KATUTA, 2001, p.37). O saber pode estar vinculado a diferentes instituições e pode ter diferentes legitimações. O saber cartográfico, assim como os demais, pode estar vinculado à universidade, à noosfera, ao sistema de ensino e presente também no dia-a-dia das pessoas. O saber cartográfico ensinado, vinculado à instituição escola, no Ensino Fundamental e Médio, não pode ser confundido com o saber cartográfico científico e muito menos com o saber cartográfico a ser ensinado. Cada um possui um contexto próprio, e isso não quer dizer que entre eles não há nenhuma relação, mas possuem características específicas. O saber cartográfico ensinado, aquele que é objeto de ensino na escola do Ensino Fundamental e Médio, não é o conhecimento da academia, pode até ter nesse saber sua referência, mas é elaborado por meio das representações dos 41 envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, principalmente pelo professor, de acordo com as características dessa instituição. Neste capítulo, iremos discutir a legitimação do saber, quer dizer, o que valida determinado saber para que ele não seja questionado perante a sociedade. Para tanto, lançaremos mão da teoria da transposição didática que discute a viagem de um saber vinculado à academia até sua chegada ao sistema de ensino com todas as suas transformações. Na seqüência, destacaremos o saber cartográfico e sua importância para o ensino de Geografia, especialmente o mapa, demonstrando sua participação histórica, bem como sua contribuição na formação do cidadão. Para retratarmos o saber cartográfico ensinado, recorremos a autores que fizeram algum tipo de levantamento nesse nível de ensino, procurando vinculá-lo ao saber a ser ensinado, quer dizer, aquele presente nos livros didáticos e nos documentos oficiais, pertencentes à noosfera. Legitimação do saber O professor do Ensino Fundamental, Médio ou Superior seleciona e usa saberes na sua prática pedagógica do dia-a-dia. Estes saberes são frutos do processo histórico no qual a instituição educacional está inserida com todos os elementos internos e externos. O saber possui uma origem ou uma fonte de produção. Ao se tratar, por exemplo, do saber no ensino superior, sua fonte está vinculada, em geral, com as produções científicas. O saber escolar, Ensino Fundamental e Médio, tem sua origem, em geral, nos currículos oficiais e nos livros didáticos. Além dessas fontes de origem existe também o saber que é trazido pelos envolvidos no processo educacional que provém da própria sociedade. Independentemente das suas origens, os saberes formam o currículo que identifica o que é oferecido pela instituição educacional. Conforme nos aponta Apple (2002, p.59), o currículo não se resume apenas em um conjunto de conhecimentos neutros que aparecem na sala de aula, ao contrário, ele é fruto da seleção de alguém que julga quais conhecimentos são legítimos, por isso o currículo é “[...] produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo.” O currículo pode ser identificado por meio dos registros de uma instituição, constituindo o que Sacritán (2000) chama de currículo prescritivo, que é uma referência ao currículo formal ou institucional. O currículo também pode não aparecer de forma explícita, nesse caso é chamado de currículo oculto. Para Moreira e Silva (2002), o 42 conceito de currículo oculto foi proposto para expressar os aspectos da experiência educacional, os quais não aparecem no currículo oficial. A partir do currículo formal, especificamente em matemática, Chevallard (1991) usa a teoria da transposição didática, que se refere à passagem de um objeto do saber a ser ensinado em um objeto do ensino com suas modificações. Ela permite analisar o que ocorre com o saber quando este é transposto da esfera acadêmica ou saber científico para o saber escolar, além das pessoas envolvidas. Em cada uma das esferas do conhecimento, o saber adquire características próprias, mas, nessa viagem, o saber que foi produzido na esfera acadêmica, pode sofrer transformações, ocorrendo desvios, podendo criar até outros saberes. Os elementos envolvidos na transposição didática são: 1- A esfera sábia, constituída pelas universidades, responsável pelo saber sábio ou acadêmico. Entram aqui as pesquisas que são realizadas. São conhecimentos considerados válidos e legítimos, que foram aferidos e comprovados como lógicos e verdadeiros de acordo com os métodos científicos. 2- A noosfera, esfera intermediária, responsável pelo saber a ser ensinado, fazendo parte dessa esfera todos aqueles que pensam sobre o sistema de ensino. Entram nessa esfera os currículos, os livros didáticos e os programas oficiais. É nessa esfera que são decididos teoricamente “o que” do conhecimento científico será ensinado e “como” tais conhecimentos são preparados para passarem do saber acadêmico para o saber escolar. 3- O sistema de ensino, no qual se dá a realização das práticas, quer dizer, do saber efetivamente “ensinado” versus o “aprendido,” composto pela relação entre professor, aluno e saber ensinado, que ocorre no ambiente escolar, originando o saber escolar (além do saber a ser ensinado, preparado na noosfera, existe também o saber cotidiano, trazido pelos elementos envolvidos no sistema de ensino: alunos, professores, pais de alunos, funcionários, etc.). A transposição didática envolve três elementos: saber, professor e aluno, que Chevalard (1991) chama de “Contrato Didático”. Em relação à preparação do saber da instituição acadêmica para o ambiente escolar, o autor destaca o papel da noosfera. A noosfera realiza a seleção dos elementos do “saber sábio” que serão designados como “saber a ser ensinado”. É ela que assume a parte visível da transposição didática ou trabalho externo, enquanto o trabalho interno ocorre dentro do sistema de ensino, depois dos novos elementos do saber a ser ensinado, que são introduzidos oficialmente. 43 Para Arsac (1992), os dois pontos fundamentais da teoria da transposição didática são: o problema da legitimação de um conteúdo de ensino e o desvio que ocorre entre o saber ensinado em relação ao saber que o legitima. Na concepção de Astolfi e Develay (2001, p. 51), a escola, com todas as suas especificidades, nunca ensinou saberes “(‘em estado puro’, [...]), mas sim conteúdos de ensino que resultam de cruzamentos complexos entre uma lógica conceitual, um projeto de formação e exigências didáticas.” Por isso, os autores chamam a atenção para um outro olhar em relação às transformações ocorridas pelo saber sábio no ambiente escolar do que o peso dado aos desvios, mesmo sabendo que eles existem. Ainda referente ao saber escolar, acrescentam que: [...] todo conceito científico se integra numa nova economia do saber: ele deve poder designar alguma coisa que possa ser aprendida [...], deve abrir um campo de exercícios para produzir ou permitir conceber sessões de trabalhos práticos ... E também características e exigências que não existam no contexto do saber sábio (ASTOLFI; DEVELAY, 2001, p. 52). Nota-se pela visão dos autores que o saber escolar não pode ser considerado dependente do saber científico, mesmo porque, no ambiente escolar, existe uma série de particularidades que não constam do ambiente científico. Além deste ponto, devem-se considerar também os cruzamentos complexos que existem no ambiente escolar entre os diferentes sujeitos que o constitui. De acordo com Arsac (1992), em publicações recentes de Chevallard (88, 89, 91 e 92), a teoria transposição didática está organizada em termos do saber e das instituições. Assim, todo saber é vinculado a uma instituição. A partir de adaptações e submetendo-se a constrangimentos, gerando modificações, o mesmo saber pode “viver” em diferentes instituições. Caso não ocorram essas modificações com o saber, esse não pode manter-se na instituição. O autor observa duas novidades na noção de relação ao saber na teoria da transposição didática. Uma destaca que a relação pessoal ao saber está vinculada a uma instituição, ou seja, não existe saber sem nenhuma relação com uma ou várias instituições. Outra trata de considerar o sujeito na sua relação com o saber, quer dizer, a relação pessoal do sujeito referente a um objeto do saber. Para Arsac (1992), o conteúdo de ensino pode ter diferentes legitimações, como as práticas sociais, especialmente profissionais ou domésticas. Essa posição, salienta o 44 autor, é diferente da primeira apresentação de Chevallard (1985a), que insiste em priorizar o saber erudito como referência do ensino da matemática. Segundo Arsac (1992), a defasagem que existe entre o saber ensinado e o saber acadêmico ocorre por causa da singularidade do primeiro em relação ao segundo. O peso dos constrangimentos do saber ensinado advém dessa particularidade. O trabalho de fabricação do saber ensinado com base no saber acadêmico forma, por definição, a transposição didática. O autor destaca que existem saberes que, mesmo não sendo legitimados pelo saber acadêmico, são justificados pela sua utilidade social. Esse processo é chamado de contra-transposição. A geometria descritiva, criada por Monge, que deu legitimidade ao desenho técnico dos projetos e fortificações, é um exemplo. Mas o autor alerta que isso nem sempre acontece, pois alguns ensinamentos confirmam que a existência será sempre instável e duvidosa. Ao vincular o saber a uma instituição, a teoria da transposição didática evolui, porque o saber escolar está vinculado a essa instituição. O importante é considerar o saber de acordo com as características do ambiente da instituição na qual ele está vinculado. Portanto, o saber pode ter uma legitimação acadêmica ou pode ser referendado pelas práticas sociais. O saber geográfico e o saber cartográfico, assim como os demais, também podem ser identificados nessas esferas ou instituições, frutos de uma construção coletiva de acordo com o processo histórico. Nessa direção, Simielli (2003) coloca que a diferenciação entre o saber universitário e o saber ensinado é importante, bem como a diferença entre o saber ensinado e aquele realmente aprendido pelo aluno. E acrescenta: Transformar o saber universitário, sem desfigurá-lo e sem desvalorizá-lo, em objeto de ensino supõe uma transposição didática que nem vulgarize nem empobreça o saber universitário, mas que se apresente como uma construção diferenciada, realizada com a intenção de atender o público escolar (SIMIELLI, 2003, p. 92). Concordamos com Simielli (2003, p.93), ao afirmar que não se refere à pura e simples transposição didática quando se trabalha com temas da Geografia na sala de aula, “[...] trata-se de uma verdadeira reconstrução do saber geográfico sobre bases parcialmente diferentes, porque as finalidades, os objetivos e os meios da prática de geografia não são os mesmos na universidade e no ensino fundamental e médio.” 45 Ainda de acordo com Simielli (2003), a reconstrução do saber geográfico deve ser feita em quatro níveis: a) nível dos programas oficiais; b) nível do professor; c) nível da lição, e d) nível do aluno. a) Na reconstrução no nível dos programas oficiais, somente uma parte dos conteúdos do ensino deve ser determinada pela temática universitária, considerando-se a formação geral dos educandos. “O método indutivo, que vai do particular ao geral, do concreto ao abstrato, é mais utilizado no Ensino Fundamental e Médio do que o método dedutivo, que vai do geral ao particular”(SIMIELLI, 2003, p. 93). b) Na reconstrução no nível do professor, não existe uma padronização, pois cada professor, mesmo a partir do mesmo programa, reconstrói a geografia do seu jeito. Assim, o professor “[...] retém apenas uma parte do programa oficial em função do tempo, dos conteúdos e dos métodos, dos seus objetivos, sua capacidade e interpretação pessoal, suas necessidades e a motivação de seus alunos”(SIMIELLI, 2003, p. 93). c) Na reconstrução no nível da lição durante o processo, de acordo com as manifestações do aluno e tentando superá-las, o conteúdo e os métodos do ensino são modificados e reconstruídos. d) Na reconstrução no nível do aluno “[...] constrói ele mesmo seu saber, retendo apenas uma parte dos conteúdos propostos, integrando-a à sua maneira nos esquemas de pensamento e ação”(SIMIELLI, 2003, p. 94). Para Simielli (2003, p.94), o principal problema que deve ser administrado pelo professor com o saber ensinado em relação ao saber universitário, é não deixar que os desvios passem a desvirtuamento total do projeto geográfico ou contradizê-lo. “Não se pode calcar totalmente uma lição de ensino fundamental ou de ensino médio sobre o saber universitário, mas ela também não pode estar em oposição à essência da disciplina nem contradizer o saber universitário”. Essa preocupação é importante, mas temos de ter cautela, caso contrário, corremos o risco de: Ao assumir o papel do falante anônimo, ao exercer a realidade do poder, temos ao nosso lado Agamemons de nosso tempo: a Ciência (com seus aparatos teóricos e práticos de produção da Realidade ou de realidades) e o currículo oficial (com seus PCNs pretendendo universalidade para suas Verdades) (OLIVEIRA JÚNIOR, 2002, p.354). Por isso, não somos favoráveis ao saber científico em oposição ao saber escolar, e vice-versa. Essa é uma relação muito mais complexa, em que um não elimina o outro, 46 pois trata-se de conhecimentos diferentes. Apesar das particularidades entre o saber científico e o saber escolar: [...] não significa que não existam ou que não devam existir relações de complementaridade entre a universidade e os níveis fundamental e médio de ensino. Mas essas relações são mais complexas do que a idéia preconceituosa segundo a qual aqueles níveis de ensino devem apenas ‘simplificar’ e reproduzir os conteúdos produzidos na academia (VESENTINI, 2004, p. 226). Essa relação entre os níveis de ensino é importante, porque o ensino não pode ser pensado isoladamente, ao contrário, deve ser pensado no conjunto, pois o: [...]ensino/aprendizagem da Geografia deveria ser planejado no todo, compreendendo os diferentes níveis de ensino, atendendo às diferenças, aos interesses e às necessidades das diversas clientelas, considerando o desenvolvimento intelectual e visando a formação de uma cidadania responsável, consciente e atuante (OLIVEIRA, 2002a, p. 218). Retomando a discussão entre o saber científico e o saber escolar, Simielli (2003, p.94) coloca que o tratamento feito com a Cartografia no ensino superior é outro dado que podemos colocar na discussão do saber universitário e do saber ensinado, que apresenta um “[...] encaminhamento voltado quase exclusivamente para uma clientela que se direcionará ao planejamento, à pesquisa, entre outros ramos, sendo poucas as colocações quanto ao ensino fundamental e médio”. Essa constatação é importante, principalmente quando se analisa o uso da Cartografia no saber escolar, normalmente subutilizado. Essa discussão do saber escolar no ensino universitário é importante para que o licenciado não fique refém de parte da noosfera: Assim, há um declínio franco da qualidade do ensino/aprendizagem realizada. Mal formados intelectualmente e com a remuneração em declínio, os professores encontram-se reféns dos currículos e instrumentos didáticos, como os livros didáticos que lhes são apresentados; em parte, porque é pequena sua capacidade/autonomia intelectual de seleção e definição de opções para a realização de seu trabalho didático; em parte, porque a ampliação da jornada de trabalho e do número de escolas em que realizam seu trabalho tornam exíguo seu tempo livre para a formação continuada e preparação de seu material de trabalho (SPÓSITO, 2002, p.309, grifo nosso). 47 Mesmo reconhecendo que é o professor quem faz a leitura e a seleção dos conteúdos para depois colocá-los em prática, não se pode ignorar a força da noosfera como esfera intermediária entre o saber acadêmico e o saber ensinado, uma vez que é ela quem elabora o saber a ser ensinado. Exemplos de autores que estudaram a transposição didática no Brasil em Matemática e em Geografia, respectivamente, foram (MENEGHETTI, 1995; BOLIGIAN, 2003). O primeiro estudou a transposição didática dos cardinais e ordinais e o segundo, sobre a transposição didática do conceito de território no ensino de Geografia. Saber cartográfico: mapas O saber cartográfico é muito amplo e bem difundido na sociedade, tornando seu uso possível em diversas situações do dia-a-dia por diferentes pessoas e podendo ser encontrado em instituições distintas. Podemos identificar o saber cartográfico na esfera acadêmica, constituindo o saber científico, resultado das pesquisas realizadas nas universidades. Existe também o saber cartográfico a ser ensinado que se encontra nos PCNs, nos livros didáticos e também nas propostas pedagógicas. O saber cartográfico se faz presente na escola do Ensino Fundamental e Médio denominado de saber ensinado. O saber cartográfico ensinado está em grande parte vinculado ao saber a ser ensinado, principalmente aquele presente nos livros didáticos, mas também nas representações dos envolvidos no processo. Não podemos deixar de mencionar o saber presente na própria