unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LÍVIA VALILI A transitividade verbal em livros didáticos: contribuições para o ensino de Língua Portuguesa ARARAQUARA – SP 2022 LÍVIA VALILI A transitividade verbal em livros didáticos: contribuições para o ensino de Língua Portuguesa Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática Orientadora: Prof.ª Drª. Angélica Terezinha Carmo Rodrigues ARARAQUARA – SP 2022 V172t Valili, Lívia A transitividade verbal em livros didáticos: contribuições para o ensino de Língua Portuguesa / Lívia Valili. -- Araraquara, 2022 235 p. : il., tabs., fotos Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Angélica Terezinha Carmo Rodrigues 1. Transitividade. 2. Livro didático. 3. Ensino de gramática. 4. Ensino Fundamental. 5. PNLD. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. LÍVIA VALILI A transitividade verbal em livros didáticos: contribuições para o ensino de Língua Portuguesa Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática Orientadora: Prof.ª Drª. Angélica Terezinha Carmo Rodrigues Data da defesa: 27/05/2022 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof.ª Dr ª. Angélica Terezinha Carmo Rodrigues Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Juliana Bertucci Barbosa Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM/Uberaba Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Caroline Carnielli Biazolli Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/São Carlos Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Agradecimentos Agradeço à minha mãe Glauce, que em vida se dedicou à minha educação e sempre me incentivou a buscar o caminho do conhecimento, ao meu pai Paulo, pelo exemplo de esforço e de persistência em busca de seus sonhos e aos meus irmãos Neto e Júlia, por não me deixarem esquecer da importância de se ter em quem confiar independentemente dos caminhos escolhidos. Agradeço também aos meus avós Helena, Lázaro e Luzia por todo carinho e apoio. Agradeço ao meu esposo Mateus, por ter me apoiado e incentivado do início ao fim desta pesquisa, por ter sido meu suporte nos momentos difíceis em que achei que não conseguiria associar o exercício da docência com a pesquisa. Agradeço também por compartilhar, em nossos inúmeros diálogos, seus conhecimentos e entusiasmo pela ciência, assim se tornando parte da minha constituição como professora e pesquisadora. E em especial, o grande auxílio sociológico dado na construção da reflexão sobre a relação da educação básica com as pesquisas educacionais, ter uma parceria que se estende da vida pessoal para a profissional é um privilégio. Agradeço à minha orientadora Angélica, que desde os primeiros anos de graduação não apenas nos guia no conhecimento sobre a linguagem, como nos apresenta ao caminho reflexivo do estudo da língua. Agradeço toda sua dedicação em minha formação como professora e pesquisadora, por me orientar desde a graduação até a pós-graduação sempre com muita atenção. Ter uma orientação de competência inquestionável e tão prestativa, não somente qualificou toda a pesquisa, como tornou o caminho mais tranquilo. Agradeço à Professora Juliana Bertucci Barbosa, pelas importantes contribuições prestadas a esta pesquisa, como em minha formação como um todo. Obrigada pelas aulas de Sociolinguísticas e pelas instigantes discussões no grupo de pesquisa SOLAR. À Professora Caroline Carnielli Biazolli, agradeço pelos inúmeros conhecimentos compartilhados tanto nas reuniões do SOLAR, como na leitura desta pesquisa com sugestões essenciais para seu desenvolvimento. Ao SOLAR, grupo de pesquisa que me ensinou a importância do compartilhamento e da construção coletiva do conhecimento, meu sincero agradecimento. Por fim, aos meus amigos de graduação, Maria Rita, Alan, Jayne, Luana, Valéria e Caroline obrigada pela companhia diária, pelas conversas infindáveis nos corredores e nas mesas da cantina da nossa querida FCLAr, com certeza parte essencial da vida acadêmica. “O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.” (Manoel de Barros) VALILI, Livia. A transitividade verbal em livros didáticos: contribuições para o ensino de língua portuguesa. Araraquara, 2022. 235p. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Ciências e Letras, UNESP - Campus Araraquara. RESUMO O presente trabalho tem como finalidade investigar o tratamento concedido ao fenômeno da transitividade e à descrição dos argumentos verbais por três coleções de livros didáticos aprovadas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para uso no Ensino Fundamental Anos Finais e, portanto, presentes no Guia do livro didático do PNLD 2020, dentro das quais selecionamos como nosso córpus os materiais destinados ao 7º e 8º anos do EF, anos em que se abrange na grade curricular o tema da transitividade. Ao verificarmos que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece um ensino de gramática reflexivo e articulado com as práticas linguísticas, procuramos aprofundar a discussão sobre a abordagem adotada no ensino de gramática na educação básica, olhando de forma mais específica para a abordagem da transitividade, tema continuamente previsto pelos currículos escolares dentro de análise sintática. Além disso, partimos da visão da linguística funcionalista sobre transitividade verbal e ensino para observamos contrastivamente com a abordagem das gramáticas tradicionais (GT), normalmente adotadas pelos livros escolares. Desse modo, notamos como as GT restringem a descrição do fenômeno transitivo ao critério sintático, definindo-o como propriedade intrínseca ao verbo, com argumentos verbais caracterizados pela ausência (objeto direto) ou presença de preposição (objeto indireto), enquanto a abordagem funcionalista baseada na língua centrado no uso, conforme esclarece Furtado da Cunha (2015), propõe um estudo da transitividade por intermédio de todos os aspectos que pautam a construção da língua. A fim de observarmos como a BNCC é integrada nas coleções e qual a fundamentação teórico- metodológica adotada para a ensino de gramática, tanto na teoria quanto na concretização desse ensino na abordagem da transitividade, incluímos em nossa investigação o manual do professor e os livros didáticos do aluno. Nossas análises, mostraram-nos que todas as coleções didáticas incluíram em seus manuais: (i) os principais critérios avaliativos do PNLD 2020; (ii) a concepção de linguagem como interação comunicativa em seu fundamento-teórico metodológico; (ii) a adoção de uma abordagem de ensino produtiva com foco na língua em uso e não em uma metalinguagem pura. Em contrapartida, os livros do aluno apresentaram: (i) abordagem de ensino tradicional, tendo como centro a metalinguagem; (ii) análises linguísticas descontextualizadas, com pouco aproveitamento dos gêneros textuais; (iii) fixação das análises no aspecto sintático e desconsideração dos demais aspectos linguísticos. Diante do resultado das análises, percebemos uma dissonância entre os manuais dos professores e os livros do aluno visto que os critérios avaliativos do PLND que se baseiam na BNCC e visam um ensino linguístico contextualizado são apontados nos manuais e não cumpridos nos livros que seguem uma abordagem tradicional, logo aparentando-nos que os manuais são feitos para as coleções serem aprovadas e não para modificar a forma de ensino, já que não há a mesma preocupação no desenvolvimento dos livros dos alunos. Com o objetivo de contribuirmos para a construção de um ensino de gramática mais produtivo, ao final desta pesquisa revisitamos os materiais analisados e propomos um uso alternativo dos livros do aluno, o qual pode possibilitar um estudo da transitividade de forma contextualizada com a finalidade de compreensão do fenômeno no funcionamento da língua. Palavras-chave: Transitividade. Livro didático. Ensino de gramática. Funcionalismo. Ensino Fundamental II. Ensino Fundamental Anos Finais. História do livro didático. PNLD. BNCC. VALILI, Livia. Verbal transitivity in textbooks: contributions to Portuguese language teaching. Araraquara, 2022. 235p. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Ciências e Letras, UNESP - Campus Araraquara. ABSTRACT This work aims to investigate the treatment given to the phenomenon of transitivity and the description of verbal arguments by three different collections of textbooks, approved by the National Book and Didactic Material Program for use in Elementary School Final Years, and present in the National Book and Didactic Material Program 2020 Textbook Guide, from where we selected the materials intended for the 7th and 8th grades of elementary school, years in which the subject of transitivity is covered in the curriculum. By verifying that the National Common Curricular Base establishes a reflective grammar teaching articulated with linguistic practices, we seek to deepen the discussion about the approach adopted in grammar teaching in basic education, looking more specifically at the approach to transitivity, a theme continuously foreseen by school curriculums within syntactic analysis. In addition, we started from the functionalist linguistic perspective and its view on verbal transitivity and teaching to observe in contrast with the approach of traditional grammars, usually adopted by textbooks. Thus, we observed how the traditional grammars, restrict themselves to the syntactic criterion in the description of transitivity defined as an intrinsic property of the verb, with verbal arguments that are differentiated by the absence (direct object) or the presence of a preposition (indirect object), while the functionalist linguistic approach aims at a study of language centered on use, as clarified by Furtado da Cunha (2015), thus proposing a study of transitivity through all aspects that guide the construction of language. In order to observe how the National Common Curricular Base is integrated in the collections and what is the theoretical-methodological foundation adopted for the teaching of grammar, both in theory and in the concretization of this teaching in the approach to transitivity, we included in our investigation the teacher's manual and the student textbooks. Our analyzes showed us that all didactic collections included in their manuals: (i) the main evaluative criteria of the PNLD 2020; (ii) the conception of language as communicative interaction in its methodological theoretical foundation; (ii) the adoption of a productive teaching approach focused on the language in use and not on a pure metalanguage. On the other hand, the student's books presented: (i) traditional teaching approach, centered on metalanguage; (ii) decontextualized linguistic analysis, with little use of textual genres; (iii) fixation of the analysis on the syntactic aspect and disregard of the other linguistic aspects. Given the results of the analyses, we noticed a dissonance between the teacher's manuals and the student's books, since the PLND's evaluation criteria, which are based on the BNCC and aim at a contextualized linguistic teaching, are pointed out in the manuals and not met in the books that follow a traditional approach, thus appearing to us that the manuals are made for the collections to be approved and not to change the way of teaching, since there is not the same concern in the development of the student's books. In order to contribute to the construction of a more productive grammar teaching, at the end of this research we revisit the analyzed materials and propose an alternative use of the student's textbooks, which can enable the study of transitivity in a contextualized way with the purpose of understanding the phenomenon in the functioning of language. Keywords: Transitivity. Textbook. Grammar teaching. Functionalism. Elementary School II. Final Years Elementary School. History of the textbook. PNLD. BNCC. ÍNDICE TABELAS Tabela 1- Parâmetros de transitividade propostos por Hopper e Thompson (1980) ................. 56 Tabela 2 - Dados dos materiais didáticos do córpus ................................................................ 114 Tabela 3 – Transitividades nos livros didáticos ....................................................................... 196 Tabela 4- Descrição da transitividade ...................................................................................... 197 Tabela 5- Abordagem do ensino da transitividade .................................................................. 199 Tabela 6- Verbos mais recorrentes nos LD do córpus ............................................................. 201 ÍNDICE FIGURAS Figura 1 - Recorte do índice (GT, Cegalla) ............................................................................. 43 Figura 2 - Organização do PCN para ensino de Língua Portuguesa ....................................... 90 Figura 3 - Eixos de Uso e Reflexão da língua ......................................................................... 91 Figura 4 - Estrutura da BNCC ................................................................................................. 95 Figura 5 - Estrutura BNCC do Ensino Fundamental (Linguagens) ........................................ 96 Figura 6 - Estrutura do PCN para o EF ................................................................................... 97 Figura 7 - Quadro conhecimentos linguísticos (I) ................................................................. 100 Figura 8 - Campos de atuação (BNCC) ................................................................................. 101 Figura 9 - Organização BNCC por habilidades ..................................................................... 105 Figura 10 – Habilidades ........................................................................................................ 106 Figura 11 - Sumário do manual da coleção SL ..................................................................... 119 Figura 12 - Formato U – Coleção SL .................................................................................... 121 Figura 13 - Índice: Capítulo 6 (Coleção SL) ......................................................................... 122 Figura 14 - Grade de avaliação uso da língua (Coleção SL) ................................................. 127 Figura 15 – Sumário manual da coleção PC ......................................................................... 130 Figura 16 - Quadro com panorama da organização dos temas contemporâneos (Coleção PC) ................................................................................................................................................ 133 Figura 17 - Unidade 6 (Coleção PC) ..................................................................................... 135 Figura 18 – Sumário do manual da Coleção GA ................................................................... 136 Figura 19 - Manual do professor em “Formato U” (Coleção GA) ........................................ 139 Figura 20 - Introdução da seção sobre transitividade (Coleção SL) ..................................... 142 Figura 21 - Parte teórica sobre transitividade (Coleção SL) ................................................. 143 Figura 22 - Sequência da teoria sobre transitividade (Coleção SL) ...................................... 146 Figura 23 - Abordagem prática (Coleção SL) ....................................................................... 148 Figura 24 - Atividade com o gênero textual: tirinha (Coleção SL) ....................................... 151 Figura 25 - Atividade com o gênero textual: verbete de um romance (Coleção SL) ............ 151 Figura 26 - Atividade com o gênero textual: notícia (Coleção SL) ...................................... 152 Figura 27 - Atividade com o gênero textual: romance (Coleção SL).................................... 152 Figura 28 - Atividade com o gênero textual: tirinha (questões - Coleção SL) ...................... 153 Figura 29 - Atividade com o gênero textual: verbete (questões - Coleção SL) .................... 153 Figura 30 - Atividade com o gênero textual: notícia (questões - Coleção SL) ..................... 153 Figura 31 - Atividade com o gênero textual: romance (questões - Coleção SL) .................. 154 Figura 32 - Índice livro 8º ano (Coleção SL) ........................................................................ 156 Figura 33 - Regência (Coleção SL) ....................................................................................... 157 Figura 34 - Transitividade livro 8º ano (Coleção SL) ........................................................... 157 Figura 35 - Verbo assistir (Coleção SL) ................................................................................ 158 Figura 36 - Uso de preposições (Coleção SL) ....................................................................... 159 Figura 37 - Regência verbo assistir (Coleção SL) ................................................................. 159 Figura 38 - Regência verbos obedecer e pagar (Coleção SL) ............................................... 160 Figura 39 - Exercício regência verbal e transitividade (Coleção SL) ................................... 161 Figura 40 - Índice Unidade 6 (Coleção PC) .......................................................................... 162 Figura 41 - Verbo transitivo (Coleção PC)............................................................................ 163 Figura 42 - Verbo intransitivo (texto - Coleção PC) ............................................................. 164 Figura 43 - Verbo intransitivo (questões - Coleção PC) ....................................................... 164 Figura 44 - Atividade com verbo transitivo (Coleção PC) .................................................... 165 Figura 45 - Objeto direto e objeto indireto (Coleção PC) ..................................................... 167 Figura 46 - Atividade OD e OI (Coleção PC) ....................................................................... 168 Figura 47 - Verbos bitransitivos (Coleção PC) ..................................................................... 169 Figura 48 - Atividade 3 (Fragmento 1 – Coleção PC) .......................................................... 170 Figura 49 - Atividade 3 (Fragmento 2 e questões - Coleção PC) .......................................... 170 Figura 50 - Atividade 4 (Coleção PC) ................................................................................... 171 Figura 51 - Regência verbal e transitividade (Coleção PC) .................................................. 172 Figura 52 - Regência verbal e os complementos (Coleção PC) ............................................ 173 Figura 53 - Contextualização da análise linguística (Coleção PC) ....................................... 174 Figura 54 - Índice Unidade 7 e 8 (Coleção GA) ................................................................... 176 Figura 55 - Início da seção “Língua em estudo” (Coleção GA)............................................ 177 Figura 56 - Continuação explicação transitividade (Coleção GA) ........................................ 178 Figura 57 - Classificação e definição (Coleção GA) ............................................................. 178 Figura 58 - Complementos verbais (Coleção GA) ................................................................ 179 Figura 59 - Classificação dos verbos transitivos (Coleção GA)............................................ 179 Figura 60 - Subseção “Atividades” (Coleção GA) ................................................................ 180 Figura 61 - “A língua na real” (Coleção GA)........................................................................ 182 Figura 62 - Respostas da subseção: “A língua na real” (Coleção GA) ................................. 183 Figura 63 - Destaque teórico sobre transitividade (Coleção PC) .......................................... 184 Figura 64 - Definição OD e OI (Coleção GA) ...................................................................... 185 Figura 65 - Observação manual do professor (Coleção GA) ................................................ 185 Figura 66 - Pronomes como argumentos verbais (Coleção GA) ........................................... 186 Figura 67 - Citação manual do professor (parte lateral - Coleção GA)................................. 187 Figura 68 - Citação manual do professor (parte inferior – Coleção GA) .............................. 187 Figura 69 - Orientações didáticas do manual do professor (Coleção GA) ............................ 188 Figura 70 - Capítulo 2: Seção “Atividades” (Coleção GA) .................................................. 189 Figura 71 - Capítulo 2: Seção “A Língua na Real” (Coleção GA) ....................................... 189 Figura 72 - Sumário Capítulo 1 – 8º Ano” (Coleção GA) .................................................... 191 Figura 73 - Atividade parte 1 – 8º Ano (Coleção GA) .......................................................... 192 Figura 74 - Exercício 1 - Atividade parte 2 – 8º Ano (Coleção GA) .................................... 192 Figura 75 - Exercício 2 - Atividade parte 2 – 8º Ano (Coleção GA) .................................... 193 Figura 76 - Contexto de interação verbal e estrutura argumentativa (Coleção GA) ............. 193 Figura 77 - Texto introdutório da transitividade (Coleção SL) ............................................. 206 Figura 78 - Texto (Notícia) - (Coleção SL) ........................................................................... 208 Figura 79 - Texto (Conto) - (Coleção GA) ............................................................................ 208 Figura 80 - Texto (Verbete) - (Coleção SL) .......................................................................... 209 Figura 81 - Texto com verbo triargumental (Coleção PC) .................................................... 210 ÍNDICE GRÁFICOS Gráfico 1 - Gradação de abordagens de ensino: menos para mais produtiva ............ 200 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 16 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ..................................................................................... 20 1.1 Considerações sobre diferentes conceitos de gramática ............................................... 20 1.1.1 A Gramática Tradicional ................................................................................................. 22 1.1.2 A Gramática Descritiva ................................................................................................... 27 1.1.3 A Gramática Internalizada ............................................................................................... 28 1.2 Concepções de linguagem e o ensino de língua .............................................................. 30 1.3 Abordagens da transitividade ......................................................................................... 40 1.3.1 Transitividade na Gramática Tradicional ........................................................................ 46 1.3.2 Abordagem funcionalista da transitividade ..................................................................... 53 1.4 O ensino da transitividade e o funcionalismo ................................................................ 57 2. OS LIVROS DIDÁTICOS: história e estrutura .............................................................. 67 2.1 Breve contextualização da instituição do livro didático no Brasil ............................... 67 2.2 A produção nacional do livro didático ............................................................................ 72 2.3 O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) ................................. 76 2.4 PNLD 2020 – Ensino Fundamental Anos Finais ........................................................... 79 2.5 Considerações acerca dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) ....................... 84 2.6 Considerações acerca da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ........................ 91 2.6.1 Área de conhecimento linguagens: Componente Língua Portuguesa ............................. 96 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E CÓRPUS DA PESQUISA .................. 110 3.1 Enumeração dos procedimentos metodológicos .......................................................... 112 3.2 Critérios de escolha das coleções didáticas................................................................... 113 3.3 As coleções didáticas selecionadas ................................................................................ 114 3.4 Critérios de análise dos materiais do córpus ............................................................... 115 4. ANÁLISE DAS COLEÇÕES DIDÁTICAS ................................................................... 116 4.1 Análise do manual do professor ................................................................................... 117 4.1.1 “Se liga na Língua” (SL) – Editora Moderna ................................................................ 118 4.1.2 “Português: Conexão e uso” (PC) – Editora Saraiva ..................................................... 129 4.1.3 “Geração Alpha: Língua Portuguesa” (GA) – Editora SM Educação ........................... 135 4.2 Análise do livro do aluno e da abordagem da transitividade ..................................... 141 4.2.1 “Se liga na língua” (SL) - Seção “Mais da língua” ....................................................... 142 4.2.1.1 Livro do aluno – 7º Ano .............................................................................................. 142 4.2.1.2 Livro do aluno – 8º Ano .............................................................................................. 155 4.2.2 “Português: Conexão e uso” (PC) – Seção “Reflexão sobre a língua” ......................... 162 4.2.2.1 Livro do aluno – 7º Ano .............................................................................................. 162 4.2.2.2 Livro do aluno – 8º Ano .............................................................................................. 172 4.2.3 “Geração Alpha: Língua Portuguesa” (GA) – Seção “Língua em estudo” ................... 175 4.2.3.1 Livro do aluno 7º Ano ................................................................................................. 175 4.2.3.2 Livro do aluno 8º Ano ................................................................................................. 190 5. DADOS DOS LIVROS DIDÁTICOS ............................................................................. 196 6. PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM PRODUTIVA COM O USO DOS LIVROS DIDÁTICOS ......................................................................................................................... 204 6. 1 Reflexões sobre os conhecimentos produzidos pelas pesquisas educacionais e a sala de aula.........................................................................................................................................213 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 223 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 229 16 INTRODUÇÃO Esta pesquisa é motivada por alguns fatores observados no ensino de gramática no nível da educação básica, como a relação direta entre o domínio da língua e o domínio da norma padrão, o entendimento que a língua é homogênea e formada por um rol de regras fixas, que as variações linguísticas dessas regras compreendem um uso errado da língua, aspectos que acabam por serem perpetuados após o término deste ensino, muitas vezes se tornando crenças sociais, como a ideia de que português é uma língua difícil de aprender e consequentemente muitos não sabem “bem” o português, ou que as aulas de gramáticas são “chatas” e que a única finalidade é ensinar a norma “correta” da língua. Em consideração ao exposto, optamos por um trabalho envolvendo a sintaxe, uma vez que nossa experiência pessoal em sala de aula como professora, como também nossa familiaridade com o estudo sobre ensino de gramática mostram que essa é uma área que oferece grandes desafios no processo de ensino-aprendizagem. Além disso, o ensino de sintaxe é priorizado nas abordagens pedagógicas sobre os fenômenos linguísticos, principalmente quando se trata de um ensino normativo. Nesse sentido, Neves (1990) em pesquisa realizada com 170 professores do ensino fundamental anos finais e médio do Estado de São Paulo, na qual objetivava investigar duas questões: o porquê se ensina gramática nas escolas e o que se ensina, observou que a sintaxe é uma das maiores áreas de foco dos planos de ensino de língua portuguesa, chegando a registrar uma frequência de “35,85%” dos conteúdos trabalhados na escola, ficando atrás apenas de “classes de palavras” com “39.71%” (NEVES, 1990, p. 14). No entanto, observando o amplo conteúdo de ensino de sintaxe, escolhemos fazer um recorte e dedicar nosso trabalho à abordagem do fenômeno linguístico da transitividade, fenômeno sempre presente nos livros didáticos e nas aulas de gramática por ser conteúdo constante nos documentos oficiais e exigido pelos currículos escolares. Ademais, também é comumente considerado de difícil aprendizagem e como parte de um ensino sem utilidade na realidade comunicativa dos alunos, que o aprendem através de um processo de memorização com fim de realizar provas. Além de compreendermos ser um fenômeno linguístico que não está completamente desenvolvido em pesquisas voltadas ao ensino e aprendizagem de língua portuguesa. Diante disso, temos como objetivo geral fomentar a discussão sobre ser papel das aulas de gramática proporcionar instrumentos que capacitem o aluno a refletir sobre o funcionamento de sua língua materna, como também verificar aspectos que na prática do ensino ainda precisam 17 ser modificados para que o objetivo de um ensino gramatical significativo seja atingido. Para tanto, entre nossos objetivos específicos estão (i) analisar quais são as propriedades linguísticas que caracterizam a transitividade para as abordagens tradicional e linguística, (ii) observar quais traços são concedidos por essas abordagens aos complementos verbais e (iii) delimitar a forma de abordagem do fenômeno da transitividade pelos livros escolares em contraste com as abordagens tradicional e da linguística funcionalista a fim de averiguar se o processo de ensino- aprendizagem estabelecido pelos materiais didáticos do córpus, é um processo metalinguístico baseado em normas abstratas ou reflexivo baseado no funcionamento da língua em uso. Para podermos examinar com mais propriedade a relação entre o ensino tradicional de gramática, pautado em normas abstratas, desconectadas da vivência linguística do aluno, e sua concepção de linguagem, iniciamos nossos estudos pela observação de diferentes conceitos de gramáticas e das concepções de linguagens a eles relacionadas. Isso observando que o ensino de gramática nas escolas tradicionalmente é fundamentado nos parâmetros da gramática normativa, como salienta Travaglia (2001, p. 101): “O ensino de gramática em nossas escolas tem sido primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de gramática normativa que, como vimos, são estabelecidas de acordo com a tradição literária clássica, da qual é tirada a maioria dos exemplos”. A partir da compreensão dos conceitos de gramáticas e suas finalidades, buscamos investigar como diferentes coleções de materiais didáticos, constantes no Guia do livro didático publicado pelo Programa Nacional do Livro e do Material didático (PNLD) para uso no Ensino Fundamental Anos Finais, concebem a linguagem e então discutem as questões relativas à transitividade e à descrição dos complementos verbais. Com vistas a aprofundar essa reflexão, trazemos para o debate uma análise dos dois documentos oficiais que embasam os currículos escolares de forma nacional, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), além do exame do PNLD, uma vez que esse é responsável pelo processo de implementação dos livros didáticos nas escolas, principalmente na rede pública, estabelecendo desde os critérios para a elaboração como os requisitos de avaliação e aprovação dos materiais. Nessa perspectiva, observamos que a BNCC, em vigência desde o ano de 2017, não apenas é o documento mais atual que fundamenta a elaboração dos currículos escolares de todas as esferas, como também tem caráter normativo. Desse modo, procuramos verificar sua relação com o PCN, documento anterior, como sua integração ao PNLD e às coleções didáticas por ele selecionadas. Por conseguinte, examinamos os respectivos documentos procurando analisar 18 como é realizada a avaliação das obras didáticas para que constem no Guia do Livro Didático do PNLD e como esses critérios avaliativos influenciam na abordagem gramatical dos materiais didáticos, desde os manuais dos professores até os livros dos alunos. Para isso, trazemos como embasamento a abordagem da transitividade adotada pelas coleções didáticas em contraste com as abordagens linguísticas e tradicional. Dessa forma, também observamos estudos sobre a natureza sintático-semântica dos complementos tendo em vista os tipos de verbos que os requerem como argumentos e os respectivos papeis temáticos que podem assumir na sentença. Ademais, com a finalidade de amplificarmos a discussão sobre a importância de um ensino gramatical significativo, ou seja, que esteja em referência a língua em uso considerando o funcionamento linguísticos nas diversas situações comunicativas, trazemos como fundamento da nossa pesquisa a linguística funcionalista, e assim sua proposta de abordagem da transitividade por intermédio de todos os aspectos que pautam a construção da língua: o sintático, o semântico, o pragmático, e o discursivo, conforme esclarece Furtado da Cunha (2015). E, ainda dentro de uma análise contrastiva, observamos os critérios que envolvem a abordagem do ensino de gramática pela gramática tradicional e a abordagem de algumas propostas de ensino trazidas pela linguística funcionalista quanto ao fenômeno da transitividade. Além disso, também tomamos como base as duas abordagens de forma contrastiva ao examinarmos os documentos oficiais e as coleções didáticas, procurando verificar quais são os fundamentos teórico-metodológicos por eles apresentados, como convergem ou não com as duas abordagens e como possibilitam ao professor construir em sala de aula um ensino produtivo. Dessa forma, visando ainda desenvolver um estudo que contribua com o ensino de gramática e com a realidade atual do professor, escolhemos como objeto de análise coleções didáticas aprovadas no PNLD 2020, último processo ocorrido para a seleção de obras didáticas para o Ensino Fundamental Anos Finais e o primeiro realizado na vigência da BNCC. Por conseguinte, compomos nosso córpus com materiais didáticos dos 7º e 8º anos, anos que abrangem o conteúdo da transitividade no Ensino Fundamental, de três coleções didáticas presentes no Guia PNLD 2020 e atualmente em uso nas escolas públicas. O trabalho está estruturado na seguinte sequência: (1) Fundamentação Teórica – seção na qual discutimos alguns conceitos de gramática, de concepção de linguagem, a transitividade na perspectiva tradicional e funcionalista e questões sobre o ensino de transitividade; (2) Os 19 livros didáticos: história e estrutura – nessa seção percorremos brevemente a história dos livros didáticos no Brasil e investigamos a constituição do PNLD e dos principais documentos organizadores da educação nacional: PCN e BNCC; (3) Procedimentos metodológicos – no qual detalhamos o percurso da nossa pesquisa de acordo com os objetivos gerais e específicos, os materiais didáticos do córpus e os critérios que embasaram nossa análise dos manuais dos professores e dos livros dos alunos; (4) Análise dos materiais didáticos – seção dedicada ao exame detalhado de todos os materiais didáticos do córpus, como também a exposição dos resultados da análise dessas obras; (5) Dados levantados nos livros didáticos – seção na qual expomos de forma mais objetiva (por intermédio de tabelas) os elementos presentes ou ausentes nos livros didáticos do córpus; (6) Proposta de uso produtivo dos livros didáticos – seção na qual revisitamos os materiais didáticos e expomos uma proposta de uso dos livros analisados para a construção de um ensino produtivo da transitividade, também refletimos sobre o caminho de aproximação entre as pesquisas acadêmicas e as salas de aula; (7) Considerações finais. 20 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para o desenvolvimento da presente pesquisa, com o objetivo de realizarmos uma análise que contribua com o trabalho do professor em sala de aula e auxilie na construção de um ensino de gramática que tenha no centro de suas finalidades a reflexão do aluno sobre o uso da língua, partimos da observação de diferentes conceitos de gramáticas que estão relacionados à concepções de linguagem também diversas, que por sua vez levam a distintas visões de ensino de língua. Diante desses conceitos e concepções, discutimos a necessidade do ensino de língua portuguesa (LP) ser embasado em um conceito de gramática que considere a língua a partir da realidade linguística dos falantes, visto que apenas por meio desse processo se possibilitará aos alunos refletir sobre o funcionamento da língua e desenvolver suas competências comunicativas. De tal modo, expomos como fundamentar o ensino em uma gramática que concebe a língua de forma isolada de seu contexto, com o objetivo de ensinar regras abstratas, torna a aprendizagem mecânica distanciando o aluno de sua língua e inviabilizando um ensino que tenha significado a esses estudantes, logo rechaçamos a adoção da abordagem tradicional. Assim, discorremos também sobre a linguística funcionalista e o desenvolvimento de sua teoria, para entendermos como sua proposta de ensino de gramática está relacionada a uma concepção de linguagem que toma a língua como interação comunicativa, logo partindo suas análises da língua em uso. Além disso, nesta seção temos o intuito de examinar como um ensino de gramática baseado no funcionalismo tem a capacidade de proporcionar instrumentos para que o aluno amplie seu domínio linguístico, não por imposição e aceitação de normas abstratas baseadas em uma língua ideal, mas por meio de um processo de reflexão sobre a língua e seu funcionamento dentro dos diversos contextos sociais. 1.1 Considerações sobre diferentes conceitos de gramática Conforme exposto na introdução desta seção, objetivamos primeiramente observar diferentes conceitos de gramática para com isso podermos compreender como entendem a língua e, por conseguinte, que tipo de ensino fundamentam. Quando olharmos para o trabalho com língua materna na educação básica, notamos que existe uma dificuldade dos alunos em visualizar uma relação entre as normas linguísticas 21 ensinadas e o uso da língua, problema que se associa à mística de ser o estudo gramatical muito complexo e a língua portuguesa de difícil aprendizagem. Fatos que vemos como decorrentes de um ensino baseado em normas “corretas” e “erradas”, ou mesmo, “cultas” sendo opostas às “populares”, parâmetros usados pela denominada gramática normativa, como observaremos na sequência desta seção, e que acaba hierarquizando a língua ensinada à utilizada cotidianamente pelos alunos. De tal modo, partimos do entendimento que as lacunas deixadas por um ensino de gramática pautado somente na gramática normativa, a qual fundamenta um ensino- aprendizagem transmissivo e não reflexivo, possam explicar a conclusão equivocada de ser impossível compreender a língua e sua gramática, e justificar a resistência às aulas de português que os docentes encontram nos discentes no ensino básico. Nesse sentido, Possenti (1996) frisa a grande necessidade de se compreender que o estudo de gramática não está diretamente relacionado ao domínio ativo da língua. Antunes (2007, p.39) discorre que há, na sociedade, uma crença “ingênua” que língua e gramática são equivalentes e isso deriva da visão que “a língua é constituída de um único componente: a gramática”, embasando o pensamento que saber a gramática é ter domínio de uma língua e que “o estudo da língua é o estudo de sua gramática”. Diante disso, entendemos ser importante para a pesquisa observarmos que existem diferentes conceitos de gramática e concepções de linguagem antes de discorrermos sobre o ensino de gramática e da transitividade, para com isso conseguirmos compreender melhor o que de fato está se ensinando ou propondo que os alunos aprendam. Antunes (2007) ao discutir como as gramáticas não são neutras, apolíticas, mas sim representam determinadas visões da língua, expõe: As gramáticas também (é bom lembrar) são produtos intelectuais, são livros escritos por seres humanos, sujeitos, portanto, a falhas, imprecisões, esquecimentos além, é claro, de vinculados a crenças e ideologias. Por isso, não faz sentido reverenciar as gramáticas como se nelas estivessem alguma espécie de verdade absoluta e eterna sobre a língua – são produtos humanos, como outros quaisquer (ANTUNES, 2007, p. 33-34). Por conseguinte, entendemos que para que se possa fazer mudanças no ensino com língua materna no âmbito escolar, é imprescindível que os professores e os alunos reconheçam que existem diferentes tipos de gramática e que o trabalho com cada uma delas em sala de aula leva a diferentes resultados. 22 1.1.1 A Gramática Tradicional Ao começarmos a pensar sobre os diferentes conceitos de gramática, nos deparamos com a noção geral de gramática, e, como destaca Possenti, essa noção é controvertida por aqueles que se dedicam ao estudo, dessa forma propõe considerarmos gramática como um “conjunto de regras”, pois mesmo não sendo “uma definição muito precisa” não é equivocada e serve como “guarda-chuva” para refletirmos o ensino no âmbito escolar (POSSENTI, 1996, p. 62). Assim, tomamos essa linha para trazermos a reflexão sobre alguns distintos conceitos de gramática. Partimos da Gramática Tradicional (GT), também conhecida como Normativa1, ou mesmo Prescritiva que se conceitua por ser aquela que prescreve a língua dentro de um conjunto de usos corretos ou “usos bons”, conforme explica Castilho (2016), em oposição a um outro conjunto de usos “errados” da língua. Dessa forma, dentro da definição de “conjunto de regras” de Possenti, ela é o conjunto daquelas “regras que devem ser seguidas” (POSSENTI, 1996, p. 63). Franchi (2006, p. 16), discutindo algumas definições de gramática, também descreve a gramática normativa como “o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores”, de tal modo que quando se afirma que uma pessoa sabe a gramática significa dizer que ela domina esse conjunto de normas consideradas como o uso bom da língua. É essa gramática que trata a denominada variedade culta da língua como aquela que deve ser preservada e necessariamente prescrita aos que ainda não a dominam, e, portanto, não fazem o uso correto da língua. De acordo com essa concepção, Travaglia explica: [...] afirma-se que a língua é só a variedade dita padrão ou culta e que todas as outras formas de uso da língua são desvios, erros, deformações, degenerações da língua e que, por isso, a variedade dita padrão deve ser seguida por todos os cidadãos falantes dessa língua [...]. A gramática só trata da variedade de língua que se considerou como a norma culta, fazendo uma descrição dessa variedade e considerando erro tudo o que não está de acordo com o que é usado nessa variedade da língua (TRAVAGLIA, 2001, p. 24). Nesse sentido, Castilho (2016) destaca que em inúmeras comunidades existe sempre uma variedade linguística de maior prestígio, a que comumente recebe a denominação de 1 Esclarecemos que nesta pesquisa usaremos os termos gramática normativa e gramática tradicional como sinônimos do mesmo conceito de gramática. 23 norma2, ou norma-padrão, como inclusive notamos em nossa comunidade de língua portuguesa. E, o autor também frisa que a literatura conceitua essa norma por meio de critérios ora antropológicos ora linguísticos. Os antropólogos apontam a norma como um fator de aglutinação social, argumentando que ela resulta de forças coletivas que cobram certa fidelidade de seus membros aos diferentes produtos culturais, entre os quais ressalta a língua. Os linguistas mostram que a norma é uma variedade à qual as demais variedades sofrem discriminação (CASTILHO, 2016, p. 90). Possenti (1996, p. 63-64) salienta que dentro do conceito das gramáticas normativas há “um conjunto de regras, relativamente explícitas e relativamente coerentes, que, se dominadas, poderão produzir como efeito o emprego da variedade padrão (escrita e/ou oral)”. Para Antunes (2007) a gramática tradicional além de estar entre as gramáticas que apresentam uma perspectiva de estudo dos fatos da linguagem, como a gerativa, a estruturalista ou a funcionalista, ela também marca uma “tendência histórica de abordagem”. Castilho (2016) ainda realça que esse tipo de gramática apresenta consequências prejudiciais à sociedade, uma vez que conceder importância apenas a uma variedade linguística acarreta discriminação a todas as outras variações, e, por consequência, a seus falantes. Além disso, podemos observar por meio de estudos sociolinguísticos que a variedade culta está relacionada a um determinado grupo de pessoas que detêm posições sociais de maior prestígio. Dessa maneira, os aparatos de ensino se mostram sensíveis a esse tipo de prescrição e, consequentemente, a escola, que na visão de Castilho (2016) é uma representação do Estado, “estabelece em suas práticas condutas que privilegiam a variedade culta a opondo a chamada 2 Norma é um termo polissêmico, que envolve muitos debates acadêmicos e muita confusão em suas diversas utilizações. Dessa forma, visando maior clareza definiremos aqui alguns termos que são importantes no desenvolvimento desta pesquisa e por isso aparecerão muitas vezes. Tomamos norma, segundo o conceito explicado por Faraco (2008, p. 40) como um termo utilizado “para designar os fatos de língua usuais, comuns, correntes numa determinada comunidade de fala”, ou seja, é um conjunto de hábitos linguísticos de uma comunidade de fala, onde também estão inclusos os fenômenos de variação linguística. Logo, norma culta é conjunto de fenômenos linguísticos comumente observados no uso dos falantes considerados cultos (indivíduos com nível de letramento considerado alto) em situações orais ou escritas; norma-padrão se caracteriza por ser um conjunto de regras com ideário de regulação linguística como destaca Bagno (2012), baseada na norma culta, porém que se torna ideal ou abstrata por não acompanhar a heterogeneidade da própria norma culta. Neste trabalho, não distinguimos a norma-padrão da norma gramatical, assim quando nos referimos ao ensino da norma-padrão com base na GT, estamos nos referindo a prescrição de conjunto de regras abstratas baseadas em apenas uma variação linguística, realizada pelas gramáticas encontradas nos livros didáticos. Ademais, destacamos que os termos variedade padrão e variedade culta são termos usados para designar o uso da língua de acordo com a norma-padrão e a norma culta, como encontramos nas gramáticas normativas, conforme destaca Possenti (1996). Os livros didáticos também usam o termo variedade padrão como o emprego da norma- padrão no uso da língua, comumente opondo variedade padrão (ou norma-padrão) a variedade popular. 24 variedade popular”. (CASTILHO, 2016, p. 90). O autor também salienta que o ensino da norma gramatical é um dos objetos da Gramática tradicional, sendo o outro a ortografia. Para entendermos mais precisamente o conceito de norma-padrão comumente adotado por essas gramáticas, podemos observar a explicação de Castilho (2016) sobre os três aspectos linguísticos englobados no conceito de norma: norma objetiva, norma subjetiva e norma pedagógica. Conforme explicita o autor, a norma objetiva está relacionada ao uso linguístico real praticado pelos falantes de uma comunidade de fala socialmente prestigiada, ressaltando que normalmente a origem da ascendência está ligada a questões econômicas. Nota-se que sendo um uso linguístico concreto, a norma objetiva é um dialeto social, e, por conseguinte, está sujeita às mudanças e às variações linguísticas, conforme explica Castilho (2016, p. 91) quando afirma: “A norma objetiva é então um feixe de normas [...]”. A norma subjetiva por sua vez é “um conjunto de juízos de valor emitidos pelos falantes a respeito da norma objetiva” (CASTILHO, 2016, p. 91), o mesmo autor citando Rodrigues (1968) também descreve a norma subjetiva como tudo o que se espera que os falantes façam uso linguisticamente em determinadas situações. Das duas normas acima, objetiva e subjetiva, surge a norma pedagógica que tem como finalidade o ensino formal da língua portuguesa, sendo que apresenta como instrumento de seu trabalho a Gramática Normativa ou Tradicional. Por isso, é a gramática normativa se torna a gramática do professor da educação básica, como também explica Possenti (1996, p. 63) “é em geral a definição que se adota nas gramáticas pedagógicas e nos livros didáticos.”. E, essa norma pedagógica que aparentemente tem como finalidade se pautar na norma culta ou objetiva como denominada por Castilho (2016), o que por si já a colocaria distante da realidade linguística que abarca muitas outras variações linguísticas de outras comunidades de fala que não a de prestígio, mostra-se ainda mais distante quando sequer consegue representar a própria norma objetiva, uma vez que essa representa um dialeto social que está em constante processo de mudanças. No entanto, a norma pedagógica opera com uma gramática que não acompanha essas variações se mantendo estática e com isso abstrata a toda realidade linguística, inclusive da camada de prestígio. Nesse contexto, Labov (1972a) apud Castilho (2016) afirma que os falantes de uma língua trabalham por meio de uma variedade de gramáticas que são elegidas segundo a situação linguística em que se encontram e por ser a heterogeneidade da língua estruturada, tem-se a possibilidade de estudá-la em situações reais de uso. 25 Dessa forma, as gramáticas pedagógicas constantes nos livros didáticos ao usarem como instrumento a GT trazem para o ensino escolar uma visão abstrata da língua, que não encontra paralelo com a realidade linguística, principalmente dos estudantes que não fazem parte da comunidade de fala de prestígio. Esse modo de ensino gramatical acarreta um ensino que se ocupa não em ensinar a se refletir sobre a língua que já se domina e usa, mas em incutir nos cidadãos desde os primeiros anos a existência de uma língua correta, a qual todos que pretendem saber sua língua devem dominar, ou seja, devem dominar normas abstratas e para a maioria das pessoas muito distantes de sua realidade linguística. Possenti (1996, p. 63) assim destaca: “como se pode ler com bastante frequência nas apresentações feitas por seus autores, esses compêndios se destinam a fazer com que seus leitores aprendam a "falar e escrever corretamente".” Perini (2005), ao discorrer sobre o ensino de gramática nas escolas, reflete como o uso apenas do instrumento normativo para a exibição de uma língua correta, usando-o para “correção” de supostos erros linguísticos, leva a consequências desastrosas na aprendizagem, uma vez que continua a se mostrar como uma disciplina complexa aos estudantes. O autor ainda ressalta que a tradição do estudo gramatical repetidamente ignora a fundamentação teórica e metodológica, por isso exibindo inconsistências e desconexão com a língua real. (PERINI, 2005). Para melhor ilustrar a visão da GT, podemos ressaltar alguns pontos da gramática de Cunha e Cintra (2017). Os autores em sua gramática chamada “Nova gramática do português contemporâneo”, no capítulo “Conceitos Gerais”, tratam da variação linguística presente na sociedade. Neste ponto, reconhecem ser o sistema da língua heterogêneo, fato que possibilita a existências de mais de uma variedade linguística dentro de uma mesma língua e, portanto, mais de um conjunto de regras. Contudo, mesmo ao observarem a variação linguística e o caráter mutável da língua, os gramáticos permanecem trabalhando com o conceito de “correto” e “errado”, o qual é mais detalhadamente delineado no subcapítulo “A Noção de Correto” (CUNHA; CINTRA, 2017, p.5). Desse modo, nesse subcapítulo, Cunha e Cintra (2017) discorrem sobre o “linguisticamente correto” e trazem algumas visões sobre o tema colocando inicialmente que as posições “anticorretistas”, iniciadas no século passado, estavam contaminadas pelo radicalismo ideológico e “contra essa concepção demolidora do edifício gramatical, 26 pacientemente construído desde a época alexandrina com base na analogia, levantam-se alguns linguistas modernos, procurando fundamentar a correção idiomática em fatores mais objetivos.” (CUNHA; CINTRA, 2017, p. 5). Nesse sentido, os autores traçam uma linha para alcançarem um conceito “mais preciso de ‘correção’”, como podemos observar no trecho abaixo: Sem investigações pacientes, sem métodos descritivos aperfeiçoados nunca alcançaremos determinar o que, no domínio da nossa língua ou de uma área dela, é de emprego obrigatório, o que é facultativo, o que é tolerável, o que é grosseiro, o que é inadmissível; ou, em termos radicais, o que é e o que não é correto (CUNHA; CINTRA, 2017, p. 8). Notamos, então, que apesar da breve discussão sobre variação linguística, a preocupação central da gramática de Cunha e Cintra está em determinar o correto e o errado na língua, determinando uma escala entre esses dois pontos, dentro da qual seria possível a variação linguística. Visão que observamos trazer uma abordagem equivocada de variação linguística, uma vez que não modifica a concepção de língua como normas que podem ser examinadas de forma isolada de seu contexto e que trazem uma hierarquia entre si. Logo, os autores se mantêm dentro da mesma perspectiva da GT, na qual existem normas linguísticas corretas e outras erradas, portanto a variação linguística não é observada como um fenômeno linguístico que ocorre em todas as língua por influência dos contextos sócio-históricos que seus usuários estão inseridos, estando todas cumprindo a finalidade da linguagem de possibilitar a comunicação, mas como uma degradação da norma considerada correta, por isso há uma hierarquia escalar, quanto mais distante do parâmetro tido como “correto” mais inadmissível é considerado. De tal forma, vemos a gramática de Cunha e Cintra em oposição aos estudos de outras concepções de gramática que contestam justamente esse paradigma de “correto” postulado pela GT, uma vez que o estudo da língua em uso é para analisar e entender seu funcionamento nas diversas situações comunicativas e não para determinar uma escala de usos, do correto ao errado. Na sequência deste trabalho, na subseção 1.3.1, observaremos outros pontos da gramática de Cunha e Cintra (2017) relativos à transitividade, os quais tornarão mais clara a observação de como sua gramática é normativa e não traz qualquer debate ou reflexão sobre os processos gramaticais da língua em uso. 27 1.1.2 A Gramática Descritiva Uma outra concepção de gramática ocorre quando observamos uma descrição das estruturas e do funcionamento da língua em uso por meio de um córpus escrito ou oral. Essas são denominadas de gramáticas descritivas e são o trabalho de linguistas que têm como finalidade principal descrever as línguas como elas são. Antunes (2007) explica que uma gramática quando numa perspectiva mais descritiva, focaliza os elementos estruturais da língua para descrevê-los ou para descrever algumas de suas especificidades. Podemos entender esse sentido por meio da definição de Franchi: Gramática é um sistema de noções mediante as quais se descreve os fatos de uma língua, permitindo associar a cada expressão dessa língua uma descrição estrutural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o que é gramatical do que não é gramatical (FRANCHI, 2006, p. 22) Nessa gramática, o “conjunto de regras” é composto por aquelas de fato seguidas pelos falantes, consequentemente a preocupação está em explicitar essas regras para que se tornem conscientemente conhecidas. De tal maneira, podemos fazer duas observações: (i) todos os falantes sabem, ou seja, dominam sua língua materna que é estruturada por normas em todas as variedades linguísticas; (ii) as regras seguidas pelos falantes não precisam coincidir com as regras prescritas pela GT. Pode haver diferenças entre as regras que devem ser seguidas e as que são seguidas, em parte como consequência, do fato de que as línguas mudam e as gramáticas normativas podem continuar propondo regras que os falantes não seguem mais —ou regras que muito poucos falantes ainda seguem, embora apenas raramente (POSSENTI, 1996, p. 64). Assim, muitas regras, ainda prescritas pela GT e ensinadas nas escolas como desejáveis, são decorrências de uma visão estática da língua que não a observa em uso e não acompanha quando há mudanças. Podemos notar exemplos desse fato quando observamos o ensino de regência verbal, que muitas vezes é englobado na discussão sobre transitividade verbal. Como no exemplo recorrente do verbo assistir como um modelo de verbo transitivo indireto quando requer um argumento preposicionado, o que acontece, nos termos da GT, no seu significado de ver/presenciar algo. Logo, quando usamos o verbo assistir no referido sentido, como “assisto ao filme”, devemos empregar o uso da preposição, caso contrário estaríamos fazendo uso incorreto da língua portuguesa. Contudo, se nos atentarmos para a língua utilizada pelos falantes, inclusive os detentores da variedade de prestígio, notaremos que essa preposição praticamente entrou em 28 desuso, possivelmente permanecendo em contexto de maior monitoramento, como em situações formais escritas e por conta da obrigação social de seguir essa norma-padrão. Por fim, compreendemos como importante destacar que não são apenas as gramáticas descritivas que descrevem a língua, até as GTs trazem partes descritivas Franchi (2006) salienta que apesar da gramática descritiva parecer mais científica que a normativa, ela não é neutra, a descrição passa por quem descreve a língua. Quem está descrevendo uma língua pode, muito bem, simplesmente desconsiderar os fatos da linguagem coloquial e popular como devendo ser “a priori” rejeitadas por vulgares. Como se elas não existissem ou não devessem existir como fatos. E não é assim a gramática tradicional e escolar, referindo- se, exclusivamente, aos fatos e exemplos da língua “abonados” por um grupo selecionados de escritores? (FRANCHI, 2006, p. 23). Logo, mesmo que as gramáticas puramente descritivas não apresentem pretensão prescritiva, conforme explica Possenti (1996), comumente as gramaticas das práticas escolares incorporam os preceitos das gramáticas descritivas como “um instrumento para as prescrições da gramática normativa” como explica Franchi (2006, p. 23). 1.1.3 A Gramática Internalizada Numa terceira concepção de gramática, temos a gramática relativa a um conjunto de regras que o falante adquire no processo de aquisição da linguagem ainda na infância através do contato com outros falantes adultos, sendo que aos poucos vai tomando para si com o fim de se comunicar. Antunes (2007) discorrendo sobre o que é gramática, mostra, com alguns exemplos cotidianos, como essa gramática “interiorizada” é parte de um conjunto de conhecimentos que os falantes desenvolvem desde as primeiras fases da infância. Por isso, essas são as regras que o falante domina, como destaca Possenti: A terceira definição de gramática — conjunto de regras que o falante domina — refere-se a hipóteses sobre os conhecimentos que habilitam o falante a produzir frases ou sequências de palavras de maneira tal que essas frases e sequências são compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma língua (POSSENTI, 1996, p. 68). Notamos que para aprendizagem dessa gramática não é necessário o processo de escolarização, visto que o fato que propicia sua aquisição é o contato com os outros falantes em situações comunicativas, como destaca Franchi (1991) apud Travaglia (2001) é por meio da própria atividade linguística que o domínio da língua ocorrerá, uma vez que no uso da 29 linguagem acontece progressivamente a construção do conhecimento sobre ela, de suas normas e princípios. Franchi (2006, p. 24) destaca que nesse sentido a gramatica é um “patrimônio característicos de toda humanidade. Uma propriedade do homem independentemente de fatores sociais, de raça, de cultura, de situação econômica, de circunstancia de nascimento ou de diferentes modos de inserção em sua comunidade.” Dentro dessa concepção não existe “erro” gramatical, visto que para que os falantes se comuniquem e se entendam é necessário o domínio recíproco das regras da língua, portanto, o que há é uma inadequação de uma variedade linguística usada em uma situação comunicativa na qual socialmente se espera outra. Isto posto, podemos notar que os critérios de observação desses “erros” não são linguísticos, mas sociais. Além dessas três concepções de gramáticas que destacamos, há outras estudas e descritas pelos linguistas que tomam outros objetos e objetivos em suas explicitações, como a gramática histórica, a contrastiva, a comparada, entre outras. Antunes (2007) expõe, além das concepções discutidas, alguns outros conceitos de gramática que se mostram importantes para esta pesquisa, como a acepção de gramática como “uma disciplina de estudo” e como “um compêndio descritivo-normativo sobre a língua” (ANTUNES, 2007, p. 32-33). Quando a autora define gramática como disciplina de estudo, aloca no sentido de gramática o uso nas salas de aula, nessa acepção gramática se relaciona às aulas de gramática nos meios escolares, as quais recebem uma enorme ênfase sendo muitas vezes entendidas como o estudo da língua e, consequentemente, como destaca Antunes (2007) recebendo carga horária especial e sendo até apartada de outras aulas como as de literatura e redação, “como se redigir um texto ou ler literatura fosse coisa que pudesse se fazer sem gramática; ou como se saber gramática tivesse alguma serventia fora das atividades de comunicação” (ANTUNES, 2007, p.32). Por último, gramática como um compêndio sobre a língua, caracteriza-se por ser um livro que organiza uma descrição do funcionamento da língua, podendo adotar uma perspectiva mais descritiva ou prescritiva, olhando a língua de forma descontextualizada, um “sistema em potencial” (ANTUNES, p. 33), como encontramos nas GTS, ou pelos seus usos reais em interações sociais observado em gramáticas com abordagens linguísticas. Como frisamos incialmente, o conhecimento da existência de distintas acepções de gramática é importante visto que quando usadas como fundamento do ensino escolar irão acarretar em diferentes resultados. Nos termos desse raciocínio, que argumentamos que a adoção da GT como base do ensino de gramática na educação básica leva a um ensino 30 mecânico, de memorização de regras abstratas, o que é uma abordagem não compatível a um ensino reflexivo sobre a língua. 1.2 Concepções de linguagem e o ensino de língua Nos termos que estabelecemos na introdução desta seção, observamos que ter consciência da existência de diferentes conceitos de gramática é um primeiro passo para se pensar no trabalho com língua materna na escola, uma vez que ele permite notarmos quais são os fundamentos da abordagem que escolhemos usar. Entendemos que os fundamentos da abordagem gramatical estão correlacionados com os objetivos de ensino que pretendemos, já que, como incialmente mencionado, cada conceito gramatical permite alcançar determinados resultados. E, ao olharmos para o ensino da educação básica, vemos que popularmente ou até midiaticamente muito se discute sobre sua qualidade, contudo com menos frequência se ouve debates, externo ao campo acadêmico, quanto a finalidade social desse ensino, o “para que se ensina?”. A docência traz inúmeras preocupações, como com o planejamento de aulas pensando em seus conteúdos e metodologias, com a elaboração e o uso de materiais didáticos, com o contexto social no qual se encontra a escola e o alunato, entre ouros. Portanto, para o professor interessado no desenvolvimento de seus alunos, o modo de ensinar é uma preocupação que aparece recorrentemente. Porém, antes de se chegar a esse ponto é preciso pensar o “para que” ensinamos, e depois “o que” e “como” ensinamos, conforme ressalva Geraldi (2011). Por isso, quando pensamos na metalinguagem no ensino de gramática devemos refletir qual é a finalidade da nossa aula, qual é a nossa concepção de língua. Posto que, como afirma Britto (1997), o problema que fundamenta a questão está além do uso ou não da metalinguagem, está na redefinição do conteúdo e do método através do “estabelecimento da própria finalidade do ensino” (BRITTO, 1997, p. 86). Desse modo, se temos conhecimento que a noção de gramática tradicional, conforme explica Ilari (1988) apud Britto (1997), carrega a crença de ter a função de representação dos pensamentos e de preservação da língua, logo sendo concedida a essa gramática a função de controlar o uso da língua e então de prescrever padrões (ANTUNES, 2009 apud SILVA, 2015), visualizaremos como sua adoção como fundamento do ensino leva a uma determinada concepção de linguagem dissociada das situações comunicativas e que reforça a construção de uma metodologia de ensino prescritiva. No entanto, para que possamos refletir a finalidade do 31 ensino de gramática na escola e os fundamentos adequados aos objetivos pretendidos, é importante compreendermos que, além de existirem diferentes conceitos de gramáticas, eles estão relacionados à distintas concepções de linguagem, que implicam diferentes processos de ensino-aprendizagem. Seguindo Travaglia (2001), podemos ressaltar três concepções diferentes sobre linguagem: (i) a primeira toma a linguagem como uma expressão do pensamento; (ii) a segunda como meio para a comunicação, um instrumento; e (iii) a terceira como um processo de interação entre os indivíduos. De tal modo, na primeira concepção ao ser a linguagem expressão do pensamento, quando se considera que um indivíduo não se expressa bem, isso é visto como consequência de uma forma inadequada de pensar. Para essa corrente, toda a expressão se forma dentro da mente, não influenciada pelo outro e pelo contexto social na qual a enunciação ocorre, ou seja, a enunciação é vista como um ato individual. Essa concepção da linguagem prevê regras do falar e escrever adequadamente, pois são elas que possibilitam a organização lógica do pensamento, estando relacionada aos estudos tradicionais da linguagem que originaram a GT (TRAVAGLIA, 2001), discutida na seção 1.1. Logo, a escolha do conceito da GT como fundamento do ensino gramatical, leva ao entendimento da língua concebida como um objeto externo ao falante, distante do aluno e do contexto no qual está inserido, uma vez que a expressão “correta” do pensamento é transmitida por uma língua também “correta”, ou seja, que segue todas as normas prescritas. Por consequência, quando os educandos são encaminhados a compreenderem a língua dentro dessa concepção tradicional, tendem a visualizarem-na como um objeto que não dominam e que deve ser apropriado. De tal modo, entendemos que o resultado do ensino por essa abordagem é o aprendizado mecânico de normas abstratas, que não estão ligadas às situações comunicativas reais, que não levam a compreensão do funcionamento da língua. Além de construir uma língua ideal que reforça o preconceito linguístico às demais variações linguísticas e aos seus falantes. Paralelamente, temos a segunda concepção, na qual a língua é concebida como um instrumento codificado a ser dominado pelos falantes, pois é ele que possibilita a transmissão de uma mensagem de um emissor a um receptor. Essa é uma concepção que estuda a língua também de forma isolada, como um código não afetado pelo uso, portanto, como na primeira temos uma acepção monológica da língua. Por essa acepção a mensagem está na mente do falante e ele a transforma em código para remeter ao outro por intermédio de um canal. O ouvinte conhecendo o código, ao recebê- 32 lo realiza a decodificação, transformando novamente a informação em mensagem. Nesse processo de comunicação, também não são consideradas a influência do interlocutor e da situação comunicativa, analisa-se apenas a mensagem presente na mente do indivíduo e o código que possibilita a comunicação. Cabe ressaltar que as teorias estruturalistas são adeptas dessa acepção de linguagem, logo há uma separação da língua do seu contexto social de uso, conforme destaca Travaglia (2001). Aspecto dos estruturalistas também destacado por Martelotta e Kenedy (2015) quando explicam que o aspecto função não estava enquadrado nos estudos linguísticos de Saussure, que propôs a distinção de langue e parole, sendo que apenas a primeira foi estabelecida como objeto de estudo da linguística. Nesse sentido, os autores afirmam: “Essa estratégia teórica retirou do âmbito dos estudos linguísticos o interesse por possíveis influências sofridas pela estrutura gramatical das línguas, provenientes de aspectos pragmáticos-discursivos.” (MARTELOTTA; KENEDY, p. 12). Já a terceira concepção observa a linguagem não como um ato monológico, mas como um processo de interação. Logo, dentro dessa concepção os indivíduos usam a linguagem para realizar ações, atuar sobre o interlocutor, não apenas para expressar e traduzir pensamentos, ou transmitir e decodificar informações de forma mecânica. Por consequência, a linguagem é uma forma de interação comunicativa com criação de efeitos de sentidos entre os interlocutores da enunciação dentro de “um contexto sócio-histórico e ideológico” (TRAVAGLIA, 2001, p. 23), é uma atividade, um lugar de interação humana caracterizada pelo diálogo em sentido amplo. Podemos ressaltar que as teorias de estudo da língua que são de algum modo ligadas à pragmática são correntes que observam a terceira concepção de linguagem, como também salienta Geraldi (2011, E-book) ao apontar brevemente que as três concepções da linguagem “correspondem as três correntes dos estudos linguísticos: a gramática tradicional; o estruturalismo e o transformacionalismo; a linguística da enunciação.”. Além disso, temos o funcionalismo como uma abordagem que descreve a língua como um instrumento de interação social e coloca o estudo da linguagem como o estudo do uso em interações comunicativas, por conseguinte se opondo ao formalismo, o qual é fundamento das duas primeiras concepções da linguagem. Dentro desse aspecto, observamos ser importante destacar que o estruturalismo linguístico não se caracterizou por ser um movimento unificado, variando seus sentidos conforme a visão de diferentes autores e também segundo a ênfase concedida a função nos respectivos modelos teóricos. Dirven e Fried (1987) apud Martelotta; Kenedy (2015) expõem 33 a divisão em dois grandes polos: Formalista, no qual a análise principal está na forma, consequentemente a função é delegada a uma preocupação secundária; Funcionalista, para os quais a função que a forma linguística realiza no ato da comunicação é a principal preocupação da análise. Neves (2018) explica que a existência de cada um dos modelos está em oposição ao outro, enquanto um modelo prega a investigação da linguagem como objeto autônomo, independentemente de seu uso, o outro dispõe sua preocupação central no estudo da língua por meio do ato comunicativo. Isto posto, notamos, de acordo com Travaglia (2001), como a concepção de linguagem como um instrumento autônomo de comunicação, que pode ser analisado de modo segmentado do contexto comunicativo, está ligada aos fundamentos dos estudos formalistas. Dirven e Fried apud Martelotta e Kenedy (2015) citam a Escola de Copenhague como importante produtora desta tradição, ainda afirmando que para esses formalistas a língua tem um caráter estático e abstrato, não associado ao ato comunicativo. Logo, entendemos que a escolha dessa concepção de linguagem, que a entende como um instrumento passível de ser estudado de forma apartada das situações comunicativas, por ser como um código mecânico que traduz a mensagem e, portanto, não ser influenciado pelos interlocutores e pelo contexto social no qual estão inseridos, acarreta, como a primeira concepção, a compreensão de que a língua é externa ao falante, que suas estruturas existem independentemente do contexto de uso. Podemos perceber que as duas primeiras concepções de linguagem, não resultam em uma reflexão sobre o funcionamento da língua, uma vez que trabalham com estruturas ideais que ao não considerarem as situações comunicativas como importante aspecto na formação dessas estruturas, não apresentam entre suas finalidades observar e levantar hipóteses sobre as variações linguísticas e os aspectos semânticos-pragmáticos que caracterizam os elementos linguísticos. Dessa maneira, um ensino que concebe a língua como expressão do pensamento, que pode ser “bom” ou “ruim”, ou como instrumento de transmissão de mensagens que independe do seu uso social, resulta em análises de estruturas abstratas e ideais. Ademais, essas primeiras concepções estão em conformidade com as gramáticas normativas, que como vimos se fundamentam somente em uma variedade linguística, a de maior prestígio social, e muitas vezes realizam análises com normas abstratas que sequer refletem essa variedade, portanto fazendo análises linguísticas por meio da metalinguagem, sem nenhuma ou com rasas discussões sobre as motivações da existência das estruturas argumentais. 34 É diante dessa questão que Geraldi (2011) aponta um dos principais problemas no ensino de língua portuguesa no âmbito escolar: Parece-me que o mais caótico da atual situação do ensino de língua portuguesa em escolas de primeiro grau consiste precisamente no ensino, para alunos que nem sequer dominam a variedade culta, de uma metalinguagem de análise dessa variedade – com exercícios contínuos de descrição gramatical, estudo de regras e hipóteses de análise de problemas que mesmo especialistas não estão seguros de como resolver (GERALDI, 2011, E-book). À vista disto, se temos o objetivo de um ensino de gramática que possibilite ao aluno visualizar a língua como parte de seu contexto para com isso construir um ensino significativo, precisamos concebê-la como um elemento proveniente da interação humana e motivado pelo contexto social de uso. Nesse sentido, argumenta Britto (1997): É admissível supor que, idealmente, o ensino de Gramática não visa fazer com que o sujeito decore nomenclatura, mas sim que domine procedimentos de análise que lhe permitam pensar sobre a língua e ampliar suas possibilidades de uso. O problema é que os alunos não conhecem procedimentos analíticos, e não conhecem porque na prática escolar não se explicam, nem se apresentam os motivos por que tal coisa é como é (BRITTO, 1997, p. 86). De tal modo, se, ao nos questionarmos o “para que” ensinamos, temos como resposta para que os estudantes possam conhecer, refletir e dominar os recursos da língua que usam em distintas situações sociais, por conseguinte, ampliando sua capacidade de interação comunicativa, não podemos seguir uma fundamentação gramatical que estabelece a língua como independente da interação dos interlocutores, com estruturas autônomas. Para que se conheça os motivos de determinadas análises e processos gramaticais, é necessário questionamentos e observação da língua em seu uso, o que não é abarcado por um ensino prescritivo e não se basta em um ensino descritivo, mas é preciso se conceber um ensino significativo ou produtivo, como denomina Travaglia (2001). A finalidade de um ensino produtivo está em auxiliar o aluno a pensar sobre o funcionamento linguístico para que possa compreender a língua que domina, com suas variações linguísticas, e assim desenvolver habilidades que aumentem sua capacidade de usar a língua de forma eficiente em diferentes situações comunicativas. Travaglia citando Halliday e outros expõe o objetivo do ensino produtivo: [...] não alterar padrões que o aluno já adquiriu, mas aumentar os recursos que possui e fazer isso de modo tal que tenha a seu dispor, para uso adequado, a maior escala possível de potencialidades de sua língua, em todas as diversas situações em que tem necessidade delas (HALLIDAY; MCINTOSH; STREVENS, 1974, apud TRAVAGLIA, 2001, p. 39-40). 35 Apenas tendo clara a finalidade do ensino, o professor pode pensar “o que” e “como” ensinar. E, a partir desse ponto torna-se importante compreender que como discorre Possenti (1996, p. 45), “Língua não se ensina, aprende-se”, ou seja, é preciso ter consciência que na escola não se ensina a língua materna em um sentido amplo, pois o aluno a aprende e domina através da interação comunicativa com outros falantes desde a infância, mas que na escola devemos ensinar pensar sobre o funcionamento da língua em distintos contextos sociais, buscando que o aluno amplie sua capacidade de produzir enunciados, ao mesmo tempo que reflete sobre as estruturas linguísticas socialmente consideradas adequadas, em diferentes situações comunicativas. Raciocínio que encontra ressonância nas ideias de Geraldi: Entretanto, uma coisa é saber a língua, isto é, dominar as habilidades de uso da língua em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados, percebendo as diferenças entre uma forma de expressão e outra. Outra, é saber analisar uma língua dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua, se apresentam suas características estruturais e de uso (GERALDI, 2011, E-book). Isto posto, entendemos que o domínio de conceitos e metalinguagens, instrumentos para a análise da estrutura da língua, não estão necessariamente relacionados ao domínio da língua e, portanto, não devem ser tidos como sinônimos de ensino de língua nem de ensino de gramática, assim como devem ser o último ponto a ser alcançado. Como também defende Geraldi (2011) ao discutir que o ensino na educação básica deveria se focar em desenvolver habilidades de uso da língua refletindo sobre as várias formas de expressão e apenas subsidiariamente se valer da metalinguagem, colocando que esse seria um método inclusive para se chegar à variedade padrão. Dentro dessa perspectiva, também afirma Possenti (1996, p. 28-29): “Ora, se abríssemos os ouvidos, se encarássemos os fatos, eles nos mostrariam uma coisa óbvia: que todos os que falam sabem falar.”, e complementa: “Saber falar significa saber uma língua. Saber uma língua significa saber uma gramática. [...] Saber uma gramática não significa saber de cor algumas regras que se aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises morfológicas e sintáticas.”. À luz do exposto, observamos ser o funcionalismo linguístico é uma corrente teórica que concede subsídios para a construção de uma perspectiva de ensino que coloque no centro da aprendizagem a reflexão sobre a língua em uso e suas formas de expressão, uma vez que seus estudos partem do princípio de que se deve olhar a sintaxe a partir do contexto comunicativo. Conforme destaca Neves (2018) citando Carnie e Harley (2003), o funcionalismo mais característico observa a sintaxe de forma dependente da semântica e da 36 pragmática, desse modo não há como se realizar uma análise gramatical “sem a interveniência de fatos semânticos e pragmáticos.” (NEVES, 2018, p. 52). Ainda, Neves (2018), com base em Dik (1989a; 1997), ressalta que no paradigma funcionalista a pragmática se mostra como o campo que abarca a sintaxe e a semântica, dentro do qual essas devem ser estudadas, dessa maneira não há como a sintaxe ser observada de forma autônoma. Pelo contrário, até onde se pode fazer uma clara divisão entre sintaxe e semântica, a sintaxe é o que permite que se formem expressões complexas para expressar significados complexos, e tais significados são o que permite às pessoas comunicar-se de modos diferenciados, até com sutilezas (NEVES, 2018, p. 58). Em suma, a abordagem funcionalista tem como concepção a linguagem como instrumento de interação social, por isso seu interesse de estudo ultrapassa a estrutura gramatical englobando o contexto discursivo para com isso analisar a motivação dos fatos da língua. Nesse contexto, inclui-se nas investigações a sintaxe, a semântica e a pragmática de forma relacionadas e interdependentes, isso diante da hipótese funcionalista que coloca a estrutura gramatical como dependente do uso real da língua, visto que essa estrutura tem como motivação as situações comunicativas (MARTELOTTA; KENEDY, 2015). Givón (1995) apud Martelotta; Kenedy (2015) refuta os estruturalistas no que considera seus três dogmas centrais: a arbitrariedade do signo linguístico, a distinção idealizada entre langue e parole e a diacronia e sincronia, explicando que quando os formalistas analisam isoladamente uma palavra, sem considerar seu contexto de uso, surge uma relação não necessária (arbitrária) entre a estrutura e seu significado. Contudo, ao alterarmos o foco da análise para uma abordagem fundamentada no uso social da língua, notamos a existência recorrente de mecanismos que estão relacionados a processos funcionais de criação e modificação de estruturas e referentes da língua. Ou seja, o falante não cria de forma arbitrária novos referentes, pois isso seria mais custoso, por conseguinte a tendência é a utilização de materiais já existentes, por isso há motivações nessas criações (MARTELOTTA; KENEDY, 2015). Nos termos do que explicita Martelotta e Kenedy (2015), no campo da sintaxe, os funcionalistas avaliam ser mais admissível a não arbitrariedade e as tendências de motivações denominam de iconicidade. Dessa forma, de acordo com Givón (1995), observamos, que independente de qual modelo funcionalista está em foco, a necessidade de olhar para a sintaxe por meio da semântica e da pragmática permanece. 37 Diante dessas características, podemos observar algumas acepções que embasam a visão funcionalista da linguagem: primeiro que é uma atividade sociocultural com uma estrutura motivada (icônica) sempre sujeita a mudanças e variações, segundo que se mostra como um instrumento comunicativo e cognitivo. Além disso, o sentido das estruturas depende do contexto inserido, logo as gramáticas são emergentes dos discursos, por isso que “quando algum fenômeno discursivo, em decorrência da frequência de uso, passa a ocorrer de forma previsível e estável, sai do discurso para entrar na gramática”, fazendo com que gramática seja um conjunto de regularidades advindas de usos contínuos e, portanto, sujeita a exceções e mudanças (MARTELOTTA E KENEDY, 2015, p. 42). Nesse sentido, discorre Neves (2018): As regularidades das línguas podem ser explicadas em termos de aspectos recorrentes das circunstâncias sob as quais as pessoas usam: A Gramática funcional tem posição em um ponto intermédio entre teorias que se ocupam apenas da estrutura da língua (sistematicidade) e as que se voltam apenas para o uso da língua (instrumentalidade) (MACKENZIE, 1992, apud NEVES, 2018, p. 30). Ainda na mesma linha, Neves (2018) ao citar Halliday (1985;2004) explica que as línguas são meios para se alcançar um fim, portanto se mostram como um sistema semântico que a Gramática funcional objetiva, por meio da análise das sequências linguísticas, investigar os significados dessas sequências, sendo assim as formas são vistas somente como o meio que leva à compreensão do funcionamento da língua. Neves (2018, p. 32) também determina os pontos centrais que estão relacionados às análises de uma gramática funcionalista: “(i) o uso (em relação ao sistema); (ii) o significado (em relação à forma); (iii) o social (em relação ao individual)”. Em vista desses princípios, defendemos ser o funcionalismo fundamento teórico que se relaciona com a terceira concepção da linguagem, na qual a linguagem é uma forma de interação entre os indivíduos, logo um ensino embasado nos fundamentos do funcionalismo permite que alcancemos como resultado a compreensão da língua em uso e consequentemente o crescimento do domínio linguístico do aluno, de sua capacidade de reconhecimento das diferentes situações comunicativas e de adaptação da linguagem a essas situações. Por exemplo, a proposta de Halliday (1985) para o estudo da linguagem pode ser vista de forma resumida como a relação que o autor estabelece entre a linguagem, a produção de significado e sua inserção nas diversas situações sociais. Por isso, linguagem, para o linguista, é a capacidade de significar em certo contexto social originado pela cultura. 38 Neves (2018) explica que dentro da teoria de Halliday uma gramática funcional é uma gramática onde é possível explicar tudo se fazendo referência à língua usada, logo em uma língua todos os elementos são explicados por referência a sua função no sistema linguístico. Conforme esse raciocínio, Halliday (1985) explica: É essa, pois, a unidade de sentido em consideração, e a língua é vista como o sistema de produção de sentidos nos seus enunciados, o que significa que ela é um sistema semântico. O termo semântica implica todo sistema de significados de uma língua, os quais se codificam na organização de itens lexicais e de itens gramaticais. É a gramática que codifica o significado, e ela o faz [...] provendo o isolamento de variáveis e de suas possíveis combinações na consecução de funções semânticas especificas (HALLIDAY, 1985 apud NEVES, 2018, p. 75). Ainda dentro da teoria de Halliday, observamos que, na análise a ser feita na estrutura oracional, é a relação sintático-semântica que está sob exame e essa relação está ligada à representação da realidade, a qual a oração/texto se remete. Logo, a cada oração há seleção de um predicado segundo sua perspectiva e dos argumentos que devem entrar nesta relação de predicação. Por exemplo, um predicado de ação seleciona, necessariamente, um agente, o que define um determinado esquema de estruturação sintático-semântica, em contrapartida um predicado que exprime processo seleciona um participante (argumento) experimentador, criando outro tipo estrutural. Consequentemente, notamos que o predicado não é notado como uma entidade sintática, mas uma entidade informativa, ou seja, é o denominado “rema”, aquilo de que se diz/informa, em oposição ao “tema”, aquilo de que se comenta. E ao modificar a visão tradicional da oração como exclusivamente sintática, observando sua natureza e funcionamento, ampliamos os aspectos que formam a oração, possibilitando que ela seja vista como determinada textual- interativamente (NEVES, 2018). Além disso, Neves (2018) explica que se ao analisarmos a Gramática funcional de Halliday vemos que a questão principal está na organização semântica, então trata-se da forma de organização da transitividade (sintático-semântica) que concede suporte à oração, unidade que se explicita pela escolha entre construção ativa e passiva e é determinada discursivo- textualmente. A semântica e a gramática têm uma relação de interpretação, na medida que um elemento não tem significado quando isolado, mas quando analisado dentro do enunciado como um todo. Ademais, também no modelo de Givón (1995), que se centra na não autonomia do sistema linguístico, a sintaxe é o aspecto que organiza os dois domínios funcionais, o semântico e pragmático. 39 Através desses fundamentos, observamos que o estudo da gramática pode se tornar parte importante na formação intelectual do estudante, uma vez que possibilitará que ele compreenda sua língua e os recursos disponíveis, aprendendo a notar como todos os fatos têm uma motivação, e portanto, podendo e devendo ser questionados, discutidos, explicados e até modificados. Além disso, essa forma de ensino gramatical também pode auxiliar no processo de desenvolvimento de um pensamento crítico e científico para além da área linguística. Incluir no ensino as variantes mais próximas dos alunos (e também dos professores) não significa dizer que devemos ensiná-los a “falarem o que já falam”, mas sim a entender por que falam de tal maneira, compreender que há motivos, internos e externos ao sistema linguístico, que os fazem utilizar determinadas formas em determinados contextos, percebendo o modo como as variantes se manifestam naturalmente na língua, embora algumas não gozem do prestígio social de que se valem outras, o que também faz parte do aprendizado. Isso significa elevar o aluno à condição de estudante- investigador, aproveitando sua intuição linguística na busca por novos conhecimentos (SANTANA, 2017, p.61). Para isso, é necessário que se pense em um ensino por meio de atividades gramaticais que proporcionem exercícios propícios ao questionamento, argumentação e raciocínio, que mostrem que o ato de falar/ler/escrever está intrinsecamente relacionado com gramática. Logo, possibilitando que o ensino de gramática se transforme em um processo pelo qual se aprende a trabalhar com a estrutura linguística da língua materna, compreendendo as possibilidades de uso dentro do sistema linguístico. Ensinar gramática é ensinar a operar com nossa estrutura linguística, compreender e saber utilizar com propriedade as possibilidades do nosso sistema linguístico. Não se pode confundir o ensino de gramática em geral com o ensino de normas (que é apenas parte do primeiro) e, menos ainda, com o ensino de estruturas idealizadas em modelos de norma padrão apenas (SANTANA, 2017, p.61). Nesse caminho, entendemos que o papel do professor de português não se resume a ensinar normas de maior prestígio social ou mesmo regras abstratas, mas auxiliar o aluno a refletir sobre a língua portuguesa, a compreender que o “correto” é o que é eficiente e produtivo dentro de determinada situação de uso (SANTANA, 2017). Dessa forma, não apenas possibilitando que o estudante compreenda o funcionamento da língua e seu caráter heterogêneo, como amplie o domínio de recursos linguísticos e a capacidade de usá-los com eficiência em diferentes contextos. Além disso, esse processo também possibilitará que o aluno desenvolva uma visão crítica sobre os parâmetros que hierarquizam as variedades linguísticas, entendendo que os critérios envolvidos são sociais e não linguísticos. 40 Em resumo, realizamos nosso percurso olhando para diferentes conceitos gramaticais e suas finalidades, posteriormente completamos nossa compreensão sobre os conceitos gramaticais observando a existência de três concepções de linguagem que se relacionam a diferentes teorias de estudos linguísticos. Esse conhecimento nos permitiu aclarar como cada conceito gramatical e acepção de linguagem permitem alcançar resultados diferentes quando aplicados no ensino de gramática. Em vista disso, discorremos sobre nosso alinhamento à corrente de estudo linguístico que concebe a língua como interação comunicativa, observando- a através dos contextos de uso. Isto posto, pretendemos mostrar como o ensino da transitividade pode ser mais produtivo ao partir dos contextos textuais e de questionamentos semânticos- pragmáticos ao invés de puramente sintáticos, pois, como argumentado nesta seção, esse caminho possibilita que o aluno reflita sobre o funcionamento da língua a partir do discurso presente em situações comunicativas reais. De tal forma, discutimos alguns dos principais fundamentos do funcionalismo linguístico, analisando como podem se ligar a um ensino reflexivo e concatenado às experiências linguísticas dos educandos, construindo um processo de ensino-aprendizagem que entendemos ser produtivo ao ter a língua em uso como objeto e considerar as experiências dos alunos como parte do processo de análise e aprendizagem. Portanto, vamos nas seções seguintes abordar o tratamento concedido à transitividade através do conceito tradicional de gramática comumente adotado nos livros didáticos, como observaremos na análise do córpus deste trabalho, em contraposição ao modelo funcionalista. 1.3 Abordagens da transitividade Nas subseções anteriores, observamos diferentes conceitos de gramática e concepções de linguagem analisando a base conceitual de cada um e como a adoção de um determinado conceito e acepção de linguagem influencia no ensino, e, portanto, nos resultados possíveis a serem alcançados. Desse modo, trouxemos algumas críticas às gramáticas normativas e ao derivado ensino de gramática tradicional que parte de uma análise linguística que desconsidera o contexto da enunciação. Em contraposição, mostramos como a adoção de uma gramática que observa a linguagem por meio de uma concepção de interação sociocomunicativa, permite um ensino gramatical significativo ou produtivo que tem como finalidade levar o estudante pensar sobre o funcionamento da língua e a partir disso conhecer os recursos linguísticos e realizar análises. 41 É nesse raciocínio que vamos discutir sobre o fenômeno da transitividade, pensando como ele é tradicionalmente abordado pela GT e no âmbito escolar, e qual outra forma de abordagem encontramos que observa a transitividade dentro da língua em uso, em contexto de interação verbal. Primeiramente, consideramos relevante retomarmos o conceito geral de transitividade e seu papel no ensino de gramática na educação básica. A transitividade considerando seu sentido original, conforme salienta Furtado da Cunha (2011, p. 31), “denota a transferência de uma atividade de um agente para um paciente.”, dessa maneira o fenômeno transitivo caracteriza um tipo de oração que, formada dentro do contexto discursivo-pragmático, concede características específicas para a enunciação que a tornam diferentes de enunciações com orações não transitivas, logo modificando o discurso. Portanto, observar o funcionamento da transitividade verbal é analisar o funcionamento da língua em distintos contextos de interação comunicativa. Dessa forma, a transitividade se mostra um objeto importante de ser analisado não somente por ser um tema sempre presente nos currículos escolares e materiais didáticos, mas também por ser um fenômeno linguístico que permite ao aluno observar o funcionamento da língua em uso na formação de diferentes tipos de discursos. Ademais, entendemos também ser necessário o exame do fenômeno ao notarmos como apesar de estar continuamente presente nos currículos escolares, ser parte do conteúdo gramatical do PCN e agora das habilidades da BNCC, continua a ser um assunto de difícil aprendizagem e o qual o alunato compreende como parte da gramática sem função na realidade linguística. Essa visão sobre o aprendizado da transitividade, coincide com um problema geral do ensino de gramática no nível básico, que é apontado por Oliveira e Wilson (2015) quando questionam o motivo da grande dificuldade dos educandos na área da língua escrita em contextos comunicativos considerados mais formais. Dentro desse questionamento, os autores levantam a hipótese de ser uma consequência de um ensino predominantemente prescritivo que não abarca os usos da língua em diferentes contextos, metodologia que verificamos no e