Dô – Caminho da arte Do belo do Japão ao Brasil Cecilia Kimie Jo Shioda Eunice Vaz Yoshiura Neide Hissae Nagae (Orgs.) C ecilia K . Jo Shioda, Eunice V. Yoshiura e N eide H . N agae (O rgs.) D ô – C am inho da arte Cecília Kimie Jo Shioda é docente e pesquisadora do curso de graduação em Japonês do departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus de Assis. Eunice Vaz Yoshiura é docente e pesquisadora da Faculdade Messiânica da Fundação Mokiti Okada (MOA), com mestrado e doutorado em Artes pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Neide Hissae Nagae é docente e pesquisadora do curso de graduação em Japonês e de pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa do departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). O Brasil é o país que recebeu o maior número de imigrantes japoneses do mundo. Atualmente residem no país cerca de 1,5 milhão de nipo-brasileiros que estabelecem inter-relações cultu- rais que já duram mais de um século. Assim, a inclusão do olhar brasileiro na arte e na cultura japonesas ou do olhar japonês na arte e na cultura brasileiras proporciona um rico cruzamento de visões e procedimentos distintos, extremamente originais e desconhecidos até então em outros lugares. É essa perspectiva que se apresenta neste livro, cujos textos assinalam, em solo brasileiro, a trajetória da música okinawana, a formação de alguns grupos de haikai, as experiências brasileiras de teatro e dança no cruzamento com as estéticas japonesas, os significados do shodô (caligrafia japonesa), a relação entre arte e religião, as artes da terra de origem e os conhecimentos de arte budista e das estéticas provenientes da literatura japonesa. Dô – Caminho Da arte FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Mário Sérgio Vasconcelos Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Assessor Editorial João Luís Ceccantini Conselho Editorial Acadêmico Alberto Tsuyoshi Ikeda Áureo Busetto Célia Aparecida Ferreira Tolentino Eda Maria Góes Elisabete Maniglia Elisabeth Criscuolo Urbinati Ildeberto Muniz de Almeida Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Nilson Ghirardello Vicente Pleitez Editores Assistentes Anderson Nobara Jorge Pereira Filho Leandro Rodrigues CECILIA KIMIE JO SHIODA EUNICE VAZ YOSHIURA NEIDE HISSAE NAGAE (ORGS.) Dô – Caminho Da arte DO BELO DO JAPÃO AO BRASIL Editora afiliada: © 2013 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ D66 Dô – caminho da arte: do belo do Japão ao Brasil. Organização Cecilia Kimie Jo Shioda , Eunice Vaz Yoshiura , Neide Hissae Nagae. São Paulo: Editora Unesp, 2013. Recurso digital ISBN 978-85-393-0502-5 1. Arte japonesa – Brasil. 2. Arte – Japão. 3. Literatura. 4. Língua japonesa – Escrita. I. Shioda, Cecilia Kimie Jo. II. Yoshiura, Eunice Vaz. III. Nagae, Neide Hissae. 13-06866 CDD: 709.52 CDU: 7.036(52) Este livro é publicado pelo projeto Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduados da UNESP – Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UNESP (PROPG) / Fundação Editora da UNESP (FEU) Prefácio 9 Michiko Okano Introdução 17 Eunice Vaz Yoshiura 1 Música japonesa transterritorial: atitude ética ou estética? 31 Alice Lumi Satomi 2 As traduções estéticas no trânsito Japão-Brasil 51 Christine Greiner 3 A introdução do budismo e de sua arte no Japão 69 Fernando Carlos Chamas 4 A missão da Arte: reflexões a partir de Meishu-Sama 99 Heloísa Helena Guedes Terror 5 Os poemas japoneses tradicionais e as suas peculiaridades – a concretude da beleza numa arte motivada pelo encanto sazonal 113 Neide Hissae Nagae Sumário 6 Percursos em definição: a caligrafia japonesa no Japão e no Brasil 131 Rafael Tadashi Miyashiro, Arthur Hunold Lara, Anna Paula Silva Gouveia 7 Iconografia da compaixão no budismo japonês: máscaras de Kannon 155 Teresa Augusta Marques Porto Referências bibliográficas 169 Sobre os autores 179 Dô, leitura chinesa. Michi, tradução japonesa do ideograma. Suas semânticas: caminho, trajeto, percurso, circuito, passagem, modo de fazer, método, ensinamento, princípio, taoismo... O Santuário Ise, na província de Mie, um dos mais representati- vos do Japão, concretiza a imagem desse ideograma. Um visitante, ao chegar no santuário, atravessa várias fronteiras que simbolizam a passagem do território profano para o divino, como os portões torii ou as pontes que se elevam sobre o Rio Isuzu, que corre por baixo. A água está presente como um elemento divisor entre o lado mundano e o universo espiritual a ser desvelado. Inicia-se, assim, o percurso até o santuário, que se segue por um caminhar marcado pela polissensorialidade – ouve-se o barulho do fluir da água no rio, das batidas dos pedregulhos ocasionadas pelo deslocamento dos pés do transeunte, sente-se o frescor do aroma das árvores do bosque sagrado, de onde se extrai a madeira para a edificação do santuário. Trata-se de uma rota nada semelhante àquelas retilíneas e geometricamente traçadas de alguns espaços públicos ocidentais; o caminho de Ise é sinuoso, curvo e um tanto labiríntico. Num determinado local, quase no final da caminhada, há uma zona de ablução na qual o peregrino tem a experiência sensorial da purificação – a água está novamente presente nesse momento, em que se lavam as mãos Prefácio Dô – caminho Da arte 道 Michiko Okano 10 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) e a boca. Essa é a última fronteira que indica a proximidade da construção sagrada. No entanto, quando chega na área do santuário, o caminhante não consegue vê-lo, pois a sua visão é bloqueada pelas cercas e muito me- nos se faz possível penetrar a morada de deus. O tão almejado espaço divi- no é invisível e intocável: apenas um vazio se apresenta no final do trajeto. O que significa, então, o ato de visitar o santuário? Tal visita é nada mais nada menos que a própria ação do caminhar. Valoriza-se, assim, o percurso e não o objetivo a ser alcançado, porque o processo da construção é a essência do ato. Assim é o dô, o caminho de construção da arte e da busca da apren- dizagem, que faz parte de palavras relacionadas à arte como kadô (ou ikebana), sadô (cerimônia do chá), kôdô (arte do aroma), shodô (caligrafia japonesa), nôgakudô (teatro nô), englobando também as artes marciais como judô, quendô, aiquidô etc. A arte do dô, de forma similar ao santuário, em vez de valorizar a consequência, lança luz sobre o “modo pelo qual” se efetiva uma ação, sobre a montagem processual para alcançar ou conquistar uma determinada habilidade artística juntamente com a busca de uma espi- ritualidade mais elevada. Em razão dessa característica, a efemeridade marca a sua presença, pois nada permanece a não ser a experiência e a vivência conjugadas, que constituem fundamento dessas artes tradicio- nais japonesas, com um refinamento da sensibilidade, da aprendizagem estética, ética e da elevação espiritual, que decorre desse experienciar. Um outro espaço exemplifica ideia do dô, o MOA Museum of Art, de Atami, um dos mais representativos do Japão. Ele foi construído por ocasião do centenário de aniversário do fundador Mokiti Okada. Tal casa da arte expõe as obras que foram por ele colecionadas com o intuito de preservá-las no Japão e evitar a sua venda para fora do país, no período pós-Segunda Guerra Mundial. Lá se encontram em torno de 3.500 obras, dentre as quais três tesouros nacionais do Japão e mais de cem obras consideradas importantes patrimônios culturais e artísticos nacionais. O museu sedia a renomada e encantadora obra Biombo de ameixeiras vermelhas e brancas, de Ogata Kōrin (1658-1716), composta de dois painéis de 1,56 x 1,722 metro, do século XIX, mos- trada ao público apenas três meses por ano. Dô – CAMINHO DA ARTE 11 Ao se chegar no museu, é preciso atravessar um longo túnel, que in- terliga a diferença de 30 metros de altitude, por meio de escadas rolantes que parecem não acabar mais. Tem-se a audição e a visão aguçadas durante a permanência na escada, ao escutar a música e passar pelas sete cores do arco-íris. A escada realiza a intermediação para se entrar no templo da arte, pois o visitante, ao permanecer imóvel por algum tempo, numa progressiva aproximação ao hall, fica em suspensão. Ou seja, perfaz um espaço-tempo de acomodação e preparo espiritual para a apreciação das obras, como se fosse um caminho de passagem entre a vida cotidiana e o universo da apreciação da arte. Chega-se, primeiramente, num hall em forma de domus, com um jogo de luzes que anuncia um lugar diferenciado. A escada rolante continua subindo. Quando se chega ao topo, ao se andar mais adiante, tem-se uma grande surpresa: não é a obra de arte humana que está à espera, mas a da natureza, que se descortina perante os olhos – o mar. O visitante está no alto de uma colina e, ao avistar a natureza, encanta-se com a obra de arte divina por excelência, antes de seguir para apreciar os outros trabalhos artísticos produzidos pelos homens. A arquitetura do museu elabora um trajeto de espaço-tempo preparatório, que inclui a grande natureza, antes de entrar no espaço da arte propriamente dito. A importância do caminho e do processo na arquitetura do san- tuário ou do museu faz parte do mesmo pensamento, que considera a arte como dô. Essa maneira diferente de pensar torna-se importante e, no mínimo, curiosa e interessante na atualidade em que vivemos. Trata-se de uma época em que persistem os conceitos modernos baseados no fordismo, fundamentado numa produção linear de mon- tagem mecânica, e o seu itinerário é racionalmente predeterminado e certeiro, e a introdução de acasos não é admitida. É um modelo marcado por fragmentação, compartimentalização e hierarquização; por um pensamento linear e multidirecional em busca de eficiência e progresso; pela utilização de um método a priori centrado na razão, em que tudo deve ser planejado; e por um ávido e rápido agir no alcance de objetivos específicos. Não há tempo nem disponibilidade para nada além do planejado, muito menos para lançar os olhos sobre o percurso, porque o que interessa é alcançar o alvo o mais rapidamente possível, 12 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) para atingir o sucesso imediato. Muito se perde nessa louca corrida dos afazeres cotidianos sintonizados com um sistema direcionado sempre para o futuro, na certeza do alcance do progresso, ao se deixar de ver e perceber o que ocorre no percurso das ações e da vida. No pensamento do dô, a construção faz-se durante o processo, no próprio ato do fazer da montagem construtiva. Muito distante do caráter programático do moderno, que determina uma forma fixa de pensar e agir, o dô permite trilhar um caminho labiríntico para alcançar ou conquistar algo que se almeja, com o olhar voltado para o presente em constante formação e modificação. Visualmente, encontramos um bom exemplo no cotejo de uma imagem da arquitetura do Jardim de Versalhes, ou, ainda, do nosso Parque do Ipiranga, geométrica e matematicamente construídos, e do percurso sinuoso do Santuário de Ise, que descrevemos anteriormente. Os cientistas e estudiosos ocidentais contemporâneos projetam o seu olhar sobre esse modo diferente de ver e conceber o mundo em que, no lugar de se ter um programa racionalmente elaborado, há a possibilidade de incluir as polissensorialidades e estruturar uma dinâmica móvel, flexível e líquida, isto é, em constante mudança (conforme Zygmunt Bauman, 2001), na qual possa haver uma siner- gia da razão e do sensível e consequente vínculo entre arte e natureza na produção de uma ciência criativa, que inclua a experiência do vivido (segundo Michel Maffesoli, 2008), sem estarem atados ao dualismo cartesiano. Do belo do Japão ao Brasil As vidas e experiências de japoneses e seus descendentes têm feito parte da construção dos caminhos do Brasil. Essa profunda relação já dura um período de 102 anos. É o país que recebeu o maior número de imigrantes japoneses do mundo e hoje nele residem cerca de 1,5 milhão de nipo-brasileiros. Atualmente, registram-se nikkei de quinta geração, que testemunham os frutos das raízes encravadas no solo brasileiro pelos primeiros imigrantes. Dô – CAMINHO DA ARTE 13 É de extrema importância registrar a história do percurso das vidas dos imigrantes japoneses, a sua radicação no Brasil e as contaminações resultantes desse processo. O nosso país possui um caso extremamente raro de construção de identidades e de artes nipo-brasileiras, pecu- liaridade esta que se tornou evidente quando participamos de uma conferência de Estudos Japoneses, que reuniu 745 pesquisadores do mundo todo, realizada no mês de agosto de 2011 em Tallinn, Estônia, e verificamos que inexiste uma experiência tão rica em outros cantos do mundo. A identidade de uma cultura aprofunda-se com a introdução de um olhar externo, segundo o linguista russo Mikhail Bakhtin. Esse fenômeno é por ele denominado “extraposição”: “A cultura alheia só se manifesta mais completa e profundamente aos olhos de uma outra cultura [...]” (Bakhtin, 2003, p.366). Assim, a inclusão de um olhar brasileiro na arte e na cultura japonesas ou do olhar japonês na arte e na cultura brasileiras acarreta um rico cruzamento de visões e pro- cedimentos distintos, que podem gerar um resultado extremamente original, desconhecido até então em outros lugares. É essa perspectiva que se apresenta neste livro, cujos textos assinalam, no solo brasileiro, a trajetória da música okinawana, segundo Alice Lumi Satomi; das formações de alguns grupos de haikai, de Neide Hissae Nagae; o registro das experiências brasileiras de teatro e dança no cruzamento com as estéticas japonesas, de Christine Greiner; do shodô, caligrafia japonesa, por Rafael Tadashi Miyashiro; e a relação entre a arte e a religião, de Heloisa Terror. Outros pesquisadores relatam as artes da terra de origem: Fernando Carlos Chamas e Teresa Augusta Marques Porto oferecem um apro- fundamento dos conhecimentos de arte budista e Neide Hissae Nagae traz-nos as estéticas provenientes da literatura japonesa. Os organizadores fizeram uma feliz escolha para o nome do livro, Dô – Caminho da arte: do belo do Japão ao Brasil, ao introduzir o dô e todo o pensamento de construção que se insere na noção de caminho e correlacioná-los com o deslocamento de pessoas, modos de viver, pensamentos e estéticas que se estabeleceu entre o Japão e o Brasil. Essa transposição entre os dois hemisférios propicia a transcriação, 14 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) conforme Haroldo de Campos (1994). Transcriar significa ir além da tradução, com a inclusão de processos criativos, de modo que se produza algo novo com base nas referências tradicionais japonesas, assim como Haroldo extrapolou as características linguísticas do ideograma e considerou-o um “ícone de relações criativas” nas suas análises poéticas. O Brasil oferece, assim, um fértil terreno que permite a coexistência de variadas etnias e culturas e a construção de uma arte peculiar e hí- brida, em uma montagem original de cruzamento entre a arte brasileira e japonesa: o belo do Japão ao Brasil, que propicia criações possíveis apenas num país como o nosso. Um olhar retrospectivo na história da humanidade põe em evidên- cia a distinção entre as culturas do Oriente e do Ocidente. Os contatos entre ambas se realizavam de forma esporádica e não muito profunda, privilegiando, via de regra, fins comerciais. Costumes, línguas, grafias, religiões e artes mantinham-se distintos... pelo menos no âmbito do que foi descoberto e divulgado amplamente. Isso ocorreu com relação ao Japão pelo menos até a metade do primeiro milênio da era cristã ocidental. Segundo Shuichi Kato (1994, p.116), em três períodos bem marcados esse país exerceu influência artística na cultura do Ocidente: o primeiro, nos séculos VII e VIII, com a exportação e importação de utensílios de cerâmica; o segundo, em meados do século XIX, com a popularização das gravuras em madeira no estilo ukiyo-e; e o terceiro, na virada desse mesmo século, nas áreas de arquitetura, ornamentação e design. Em sentido inverso, no século XVI, com as grandes navegações, portugueses ousaram aportar naquelas terras orientais, numa tentativa de expansão do cristianismo. Os jesuítas lá deixaram algumas marcas na busca de implementação de sua fé religiosa. A receptividade à religião católica foi circunscrita, devido às diferenças culturais – o monoteísmo contrastava fortemente com a profusão de deuses (kami) que povoava a mentalidade tradicional japonesa e, por outro lado, uma introDução Eunice Vaz Yoshiura 18 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) proibição oficial fez cessarem as missões em 1587. Mesmo assim, vo- cábulos de origem portuguesa, a influência na pintura do período e o modo de preparo de alguns alimentos se fizeram presentes na cultura japonesa; o cristianismo ocultou-se na fé popular dos convertidos e a presença holandesa no Japão continuou a ser a pequena janela para o conhecimento do mundo europeu. Três séculos mais tarde, na era Meiji, uma nova aproximação aconteceu: em 1871, o Japão enviou aos Estados Unidos e à Euro- pa uma delegação formada por cerca de cinquenta pessoas, com o propósito de pesquisar instituições, empresas, fábricas e culturas de países estrangeiros e, especialmente, adquirir conhecimentos que possibilitassem modificar tratados desiguais firmados com potências ocidentais. Logo muitos livros europeus e americanos de diversas áreas de conhecimento estavam traduzidos para o japonês, incluindo geografia, astronomia e medicina; especialistas estrangeiros foram contratados para educar os japoneses e estes também continuaram a ser enviados para estudar áreas de conhecimento estratégicas na Europa e nos Estados Unidos. O estreitamento das aproximações comerciais no século XIX ocasionou também influências sobre o Ocidente: gravuras japonesas no estilo ukiyo-e, registrando cenas de costumes da época e aspectos da vida diária, impressionaram fortemente os artistas europeus. O povo japonês, para quem o presente sempre teve prioridade, não só gostava de participar de eventos, festividades e assistir a peças teatrais como se comprazia em rever os seus registros. A maior parte da população não tinha condições de pagar pelas pinturas no estilo yamato-e; dessa forma, por permitir reprodução e consequentemente reduzir custos, as gravuras, impressas em diversas cores, tornaram-se muito populares. Conta-se que elas eram utilizadas até mesmo para embalar os produtos importados do Japão pelos países europeus. Elas provocaram tanta admiração nos artistas da época que os fez representar motivos orientais em suas pinturas, e ainda os impulsio- naram a produzir uma nova linguagem artística: o impressionismo. A história da arte registra, além da influência na arte, a existência de um período, o japonismo, em que o encantamento pelo País do Sol Dô – CAMINHO DA ARTE 19 Nascente gerou até um modismo: surgiram diversos estabelecimen- tos e lojas especializadas para vender, na época, produtos importados do Japão e também da China. Marianne Delafond (1987), em artigo da revista L’Oeil, identifica fontes japonesas na arte e na indústria da França, como nos escritos de Baudelaire, Philippe Burty e dos irmãos Goncourt, no desenho de objetos industrializados produzidos por Charles Haviland, nas bijuterias de Henri Vever e nas pinturas de Edgar Degas, Édouard Manet e Claude Monet, sensibilizados pelas estampas do “mundo flutuante” expostas em grandes retrospectivas, como a organizada em 1890 pela École des Beaux-Arts e a da Galerie Durand-Ruel em 1893, consagrada a Utamaro e Hiroshige. Marchands e colecionadores, como Samuel Bing, Bondleau, Théodore Duret, Louis Gonse, Charles Haviland, Philippe Burty, Tadamasa Hayashi, Émile Javal e Henri Vever, reunindo inúmeras gravuras e desenhos japoneses, efetivamente concorreram para a popularização dessa arte. Motivos japoneses – modelos vestidas de geisha, leques, guarda- -chuvas e biombos com estampas características – impregnaram as obras de pintores da época. Van Gogh revela o grau de fascinação que a arte japonesa exerceu sobre ele nas pinturas em que reproduz, quase integralmente e de forma praticamente idêntica, imagens de gravuras japonesas. É o caso de A floresta (1886-1888), que teve como referência O jardim de Kameido e Ponte na chuva (1887), a partir de Ohashiatake no Yudachi, ambas de Utagawa Hiroshige (1787-1858), conforme aponta Shuichi Kato (1994, p.132-3). Além dos motivos orientais e da representação de cenas do co- tidiano, pode-se constatar nas pinturas da época uma nova forma de usar e compor as cores – mais puras e em contrastes marcantes –, assim como a busca da planificação da representação pictórica. Surgiram também novas maneiras de organizar formas e espaços: variação no ângulo visual, figuras cortadas em primeiro plano, cap- tação precisa de movimentos – elementos presentes nas gravuras japonesas. Tais características podem ser observadas em diversos cartazes de Toulouse-Lautrec. 20 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Como afirma Shuichi Kato (1994, p.116-7), não se pode dizer que os pintores ocidentais desconhecessem tais características, mas o fato novo para os impressionistas era encontrar todas elas reunidas em um mesmo conjunto harmônico. A partir desse impacto visual, a arte ocidental se desdobrou em seguidas transformações, caracterizando novos estilos e diferentes períodos expressivos. Um olhar atento pode identificar a influência da arte japonesa no Art Nouveau, embora vinda de outra fonte – a escola Rimpa, estilo criado no século XVIII no Japão, da qual Ogata Kōrin é o mais ex- pressivo representante (ibidem, p.118). Originário da França no século XIX, o Art Nouveau logo foi assimilado por diversos países da Europa. Na Alemanha, recebeu a denominação de Jugendstil. E chegou também ao Brasil, especialmente na arquitetura, na decoração de interiores, no design de móveis, em objetos de vidro e também na pintura. De fato, Shuichi Kato, na série Japan: spirit & form, em DVD, lembra que um editor inglês, em uma de suas viagens àquele país, trouxe para o continente europeu um livro de arte com imagens de pinturas de Ogata Kōrin. As fluentes e elegantes linhas sinuosas desse estilo lembram muito aquelas traçadas pelos pintores da escola Rimpa, assim como os moti- vos trazidos da natureza, como flores, folhas, animais, água corrente. Há semelhança também quanto ao objetivo – trazer a arte para a vida cotidiana. Essas características estão presentes nas belíssimas criações em vidro de Émile Gallé e outros artistas franceses do período. Avançando mais no tempo, encontra-se no início do século XIX uma nova influência da cultura do Japão na arte ocidental: a simplificação das linhas e a amplificação dos espaços da arquitetura modernista re- velam uma analogia com a simplicidade dos espaços internos das cons- truções japonesas e faz lembrar algo da estética do vazio zen-budista. Por outro lado, no século XX, o pós-guerra originou no Japão um movimento de ocidentalização. Desde então, o desenvolvimento tecnológico e econômico colocou esse país no cenário das grandes potências mundiais. Novas trocas vão se dando: as correntes migra- tórias trouxeram ao território brasileiro um pouco das religiões e artes Dô – CAMINHO DA ARTE 21 tradicionais do Japão. Além do budismo, novas religiões japonesas reforçaram a divulgação e a introdução de artes como a ikebana, o hai- kai, a cerâmica e, com esta, os fornos noborigama, com várias câmeras para a queima; vieram também artes marciais, como o judô, o aiquidô e diversas outras. O estudo da língua e da cultura japonesas em nível superior encontrou lugar em algumas universidades públicas brasilei- ras, iniciando-se na capital paulista com a Universidade de São Paulo (USP) e estendendo-se depois para instituições de outras cidades, com a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), na cidade do Rio de Janeiro, a Universidade de Brasília (UnB), no Distrito Federal, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), em Porto Alegre, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, e a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em Manaus. Este livro nasceu do desejo de revelar um pouco mais do espírito que anima essas artes e trazer a público um enfoque acadêmico do percurso e do acontecer entre nós, no Brasil, das artes vindas do Japão, eviden- ciando suas características, seu espírito, sua filosofia, sua muito especial e misteriosa estética do belo. Animou os organizadores a vontade de desvelar esse belo, que parece ser mais do que simples harmonia de formas, e que fascina por trazer em sua essência algo mais profundo. Embora a estética contemporânea ocidental não tenha o belo como foco, não se pode ignorar que ainda nos comovemos ante um magní- fico pôr do sol, uma paineira no ápice de sua floração, um movimento harmonioso, um gesto de grandeza... Goethe (1749-1832), escritor, artista e influente representante do pensamento ocidental, indica que o conceito de belo transcende a ques- tão formal: “O mais elevado princípio dos antigos era o significativo, mas o resultado mais elevado de sua feliz aplicação era o belo” (Goethe apud Hegel, 1996, p.68). Entretanto, tal concepção fica restrita ao campo da obra de arte, apontando para questões de forma e conteúdo. Na ampliação dessa linha de pensamento e considerando o belo na natureza e na obra de arte, Mokiti Okada (1882-1955), conhecido também como Meishu-Sama, foi amante incondicional da arte do belo; 22 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) retomou, redefiniu e pragmatizou o conceito de Belo, já enunciado na antiguidade grega por Sócrates e difundido por Platão. Integrando a trilogia verdade-bem-belo, este último conceito era visto como abso- luto, assim como os outros dois termos, gerando concepções abstratas e distanciadas da realidade concreta. Mokiti Okada traz esse conceito para a temporalidade humana ao afirmar que verdade é o estado natural das coisas, o bem é a ação baseada na verdade e o belo, a sua manifestação (Meishu-Sama, 2007, v.1, p.35). Em outras palavras, o belo é a concretização da inteireza e da amorosidade do sentimento que impulsionou uma ação reta. Para ele, o belo na obra de arte depende do nível espiritual do artista e de seu sentimento, no intuito de propor- cionar a evolução do espírito daqueles que a contemplam, conforme explicita detalhadamente Heloisa Terror no artigo “A missão da arte: reflexões a partir de Meishu-Sama”, desta publicação, que insere tal concepção no contexto das religiões e das artes tradicionais do Japão. Conforme o exposto, a arte é vista por Mokiti Okada como caminho de espiritualidade. Para colocar em prática essa ideia e possibilitar essa condição a muitas pessoas, ele reuniu, durante muitos anos, obras de arte de alto nível – principalmente pinturas, caligrafias e cerâmicas – da China, da Coreia e também do Ocidente, mas sobretudo da arte tradicional do Japão. Essas obras constituíram o acervo do MOA Museum of Art, de Atami – um dos maiores e mais conceituados museus de arte oriental do mundo, conforme artigo publicado na revista L’Oeil por ocasião de sua fundação, em 1982 –, e do museu de Hakone, fundado em 1952, mais voltado para a cerâmica pré-histórica. Esses museus estão situados em locais denominados Solos Sagrados, que abrigam diversas construções e jardins projeta- dos por Mokiti Okada, com o objetivo de constituir protótipos do mundo ideal – o mundo da verdade, do bem e do belo, ou, segundo suas próprias palavras, o mundo da arte (Meishu-Sama, 2007, v.5, p.58). Sua intenção era tocar a sensibilidade dos visitantes por meio da beleza natural conjugada com a arte criada pelo homem, mobi- lizando seus espíritos para a busca de níveis mais elevados. Nesses locais foram edificados templos, museus e pavilhões especiais para teatro nô e para chanoyu – a cerimônia do chá – e criados magníficos Dô – CAMINHO DA ARTE 23 jardins. Em Atami foi construído o protótipo do mundo ocidental; jardins e construções seguem o estilo moderno. O MOA Museum of Art é um exemplo de arquitetura contemporânea ocidental. Seu acervo inclui obras tombadas como Tesouro Nacional do Japão, a exemplo do Biombo de ameixeiras vermelhas e brancas – obra-prima do já mencionado artista Ogata Kōrin. A adoção de ambos os estilos reflete o pensamento de Mokiti Okada, que afirma em seus escritos que o mundo ideal somente se tornará realidade com o cruzamento das culturas oriental e ocidental (ibidem, v.1, p.57). Mokiti Okada foi também o fundador, em 1935, no Japão, da igreja Sekai Kyusei Kyo, onde recebeu dos fiéis o título de Meishu- -Sama. Constituiu, assim, uma religião que tem como princípio a concretização da verdade, do bem e do belo, e como formas básicas de atuação a transmissão da luz divina (johrei), a agricultura natural e o cultivo do belo. O johrei tem por finalidade a restauração do equilíbrio físico e espiritual do indivíduo; a agricultura natural visa à preservação da saúde; o belo – no sentimento, na natureza e na arte – é concebido como o meio mais fácil para se obter a evolução espiri- tual. Considerando a abrangência dessas atividades, Mokiti Okada caracterizou sua igreja como uma ultrarreligião, para significar uma entidade que atua muito além da esfera religiosa. Por obra de seus seguidores, essa crença chegou ao território brasileiro em 1955. A Igreja Messiânica Mundial do Brasil – designação recebida em portu- guês – é uma entre as diversas novas religiões de origem japonesa que vêm difundindo as artes tradicionais daquele país. Destaca-se como a de maior penetração entre a população brasileira, segundo artigo publicado na revista Japanese Journal of Religious Studies, em 2008 (Watanabe, 2008, p.115). O Solo Sagrado brasileiro – considerado pela revista Time um dos dez jardins mais lindos do mundo – situa- -se na cidade de São Paulo, junto à represa Guarapiranga. Embora concebido em estilo ocidental, inclui jardins com a estética oriental (Fundação Mokiti Okada – MOA, 2009, p.50-1), abriga exposições periódicas e difunde artes tradicionais japonesas, como a cerimônia do chá, a ikebana, caligrafias e pinturas japonesas. 24 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) O que as artes tradicionais do Japão têm de especial é que são con- cebidas e praticadas como caminho de elevação da espiritualidade. Não se trata da veiculação de motivos religiosos, mas de vivenciar princípios considerados importantes para a arte de viver. O ideograma 道, que expressa a ideia de caminho, na leitura da linguagem japonesa, como michi, significa caminho em geral. Na leitura pelo som aproximado da língua chinesa, tem o som de dô; expressa o sentido de caminho filosófico e doutrinário e compreende os princípios que orientam a arte japonesa: jin/virtude – entendida como caráter íntegro; gui/justiça – significando ser justo e igual com todos; rei/respeito – reverência e cortesia com os demais; ti/sabedoria – com relação ao viver humano; shin/coração, bondade – compreendidos como paz e fraternidade (Furihata, 2008, p.20). Assim, as artes têm a finalidade de cultivar, no artista e nos apreciadores, a sensibilidade para a prática da arte de viver. Não se trata, como em geral ocorre no Ocidente, da concepção de arte como algo suplementar, apenas para deleite, mas algo que se pragmatiza na vivência cotidiana. Tal fato é perceptível na atitude do povo japonês de serenidade e respeito pelo invisível, mesmo em situações caóticas, como após as catástrofes naturais e os consequentes acidentes com as usinas nucleares em 2011; não ocorreram desordens, saques ou manifestações de desespero, causando mesmo estranha- mento entre os ocidentais, mas refletindo o autocontrole e o domínio emocional cultivados como valores por esse povo. Resultado da fusão da cultura originária do Japão, caracterizada pela convivência harmônica com a natureza e pela atitude de respeito a seus kami – que com o tempo tomou o nome e a forma religiosa do xintoísmo –, com a cultura chinesa impregnada da sabedoria do taoismo e do confucionismo, e amalgamada com a influência pro- veniente dos mosteiros zen, a arte japonesa assumiu novas formas de expressão artística e cerimonial, e seus princípios gradativamente se incorporaram aos hábitos do povo, modelando sua sensibilidade e gosto estético. Assim, à arte japonesa se vinculam as ideias de harmonia – wa; de um estado espiritual de profunda sutileza e percepção intuitiva – yû- gen; de introspecção e meditação que conduzem à iluminação – satori; Dô – CAMINHO DA ARTE 25 e ainda de contemplação, isto é, o ato de concentrar o pensamento e visualizar com os olhos da mente – kanshô (Furihata, 2008, p.21). Aos princípios do caminho – dô – cada forma de manifestação artística acrescentou outros que lhe são específicos. Com a esperança de que a expansão do conhecimento dos princí- pios desse caminho estético venha enriquecer o campo da educação no âmbito da cultura brasileira, foram reunidos neste volume artigos de pesquisadores focalizando aspectos particulares da tradição japonesa e dos percursos de sua extensão no Brasil. Assim, no artigo “Iconografia da compaixão no budismo japonês: máscaras de Kannon”, Teresa Augusta Marques Porto apresenta os fundamentos do budismo – de que se originaram as artes tradicionais japonesas – por meio da Escritura da Flor do Lótus do Darma Excelente, considerada no Japão a transmissão oral mais significativa do Buddha Śākyamuni (século VI a.C.), enumerando as diferentes formas que Avalokiteśvara, divindade indiana da compaixão, pode assumir para comunicar-se de modo eficaz com os seres em sofrimento nos mundos de existência. Com o budismo, também a escrita chinesa, estruturada com ca- racteres ideográficos, foi adotada no Japão. Cada um dos ideogramas que a compõem traz em si, além dos significados que veicula, a ideia do Tao. A partir daí, esse pensamento, que permeia toda a vida dos chineses, passa a integrar também, de forma essencial, a cultura ja- ponesa. Tal condição, aliada ao gosto pela simplicidade e pelas coisas da natureza, conferiu à arte do Japão características que encantaram os ocidentais, primeiramente da Europa e, mais recentemente, do continente americano. O haikai tocou a sensibilidade de literatos brasileiros. No artigo “Os poemas japoneses tradicionais e as suas peculiaridades: a con- cretude da beleza numa arte motivada pelo encanto sazonal”, Neide Hissae Nagae trata do poema nas formas haiku, tanka e shi, assim como dos princípios de permanência e transformação – o geral e a particularidade. E revela, nessa criação poética, a harmonia entre o sujeito e a natureza: o olhar japonês que apreende como dádivas os fenômenos naturais em sua impermanência, ao mesmo tempo que 26 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) transita sutilmente pela variação dos sentimentos humanos. Comenta ainda alguns termos estéticos, a riqueza da percepção derivada do requinte da expressão, os elementos geradores da beleza e o poder encantatório desses poemas. Na abordagem do comportamento estético em contexto transter- ritorial, Alice Lumi Satomi, no artigo “Música japonesa transterri- torial: atitude ética ou estética?”, retoma o sentido sociocultural do fazer artístico nos grêmios kai japoneses no Brasil, em São Paulo, apresentando um recorte conclusivo do estudo sobre as escolas da música para koto sōkyoku, que envolve também outros instrumen- tos tradicionais como o shakuhachi (sopro) e shamisen (cordas) – na Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa (ABMCJ) e na Miwa-kai, continuidade do Grupo de Estudos da Música Japonesa (GEMJ) – e os equivalentes kutū, fuyê e sanshin, vinculados à Asso- ciação Okinawa do Brasil (AOKB). Assim, são elencadas as atitudes culturais predominantes observadas, como etnicidade, ideologia, herança cultural, bem como a função terapêutica. A partir da fala dos interlocutores, é articulada uma análise etnomusicológica, com referências da antropologia, da sociologia, da estética musical, da psicologia e da educação. O artigo “As traduções estéticas no trânsito Japão-Brasil”, de Christine Greiner, apresenta no eixo histórico as primeiras refe- rências à arte do Japão no Ocidente – japonismo – e, a seguir, em território brasileiro, mesmo antes da primeira leva de imigração. Faz aproximações entre a língua tupi e o japonês. Traz as perspectivas de Gilberto Freyre, Haroldo de Campos e Décio Pignatari; chega até nossos dias, focalizando tanto obras de descendentes de japoneses como as de autores de outra ascendência que incorporam elementos da arte originária do Japão. São objeto de sua consideração o ideo- grama, o haikai, a dança e o teatro nô e butô, assim como exposições relativas a essas artes. Rafael Tadashi Miyashiro, Arthur Hunold Lara e Anna Paula Silva Gouveia, no artigo “Percursos em definição: a caligrafia ja- ponesa no Japão e no Brasil”, focalizam o sho como potencialidade e o shodô como tradição – um panorama do que foi e do que é a Dô – CAMINHO DA ARTE 27 caligrafia japonesa na contemporaneidade –, e permitem leituras de semelhanças e diferenças da caligrafia japonesa no Brasil e no Japão. Comentam o clichê no bairro paulistano da Liberdade e o histórico desde a China e sua introdução no Japão. Tratam dos novos estilos e das novas escolas, da caligrafia moderna de vanguarda extrapolando a escrita e envolvendo outras formas de expressão. Abordam ainda questões relativas ao ensino e à aprendizagem da escrita japonesa. Esta publicação apresenta ainda um levantamento precioso para o estudo da temática aqui abordada, no capítulo intitulado “A intro- dução do budismo e de sua arte no Japão”, de autoria de Fernando Carlos Chamas. Na transliteração do japonês, em cada um dos textos a seguir, foram utilizadas as opções de romanização adotadas por cada autor. No Japão não há ética. Tudo é estética.1 (Hans-Joachim Koellreutter) Para a abordagem do comportamento estético num contexto trans- territorial – externo ao habitat natural –, retomo o sentido sociocultural do fazer artístico nas agremiações japonesas no Brasil, sobretudo os de música “clássica”, em São Paulo. Trata-se, pois, de um recorte conclusivo do estudo sobre as escolas de “música para koto” sōkyoku (Satomi, 2004), em que se buscou uma análise de resultados com base em conversas informais e questionários semiestruturados aplicados na Associação Okinawa Kenjin do Brasil (AOKB), na Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa (ABMCJ) e na Miwa-kai. Nestas duas últimas associações, a música para koto, espécie de cítara, envolve também outros instrumentos tradicionais, como o aerofone shakuhachi e o cordofone shamisen, que equivaleriam ao kutū, ao fuyê e ao sanshin2 da cultura okinawana. 1 Assertiva proferida em aula de Estética, em 1980. Nascido em Freiburg e radicado no Brasil desde 1937, Koellreutter foi formador de várias gerações de influentes compositores e educadores musicais. Viveu alguns anos no Japão, fato que se reflete nas suas composições Yūgen (1980) e Yume no naka no hito. 2 Ícone principal da cultura das ilhas Ryūkyū, constituindo um item essencial da bagagem do imigrante okinawano. 1 múSica jaPoneSa tranSterritorial: atituDe ética ou eStética? Alice Lumi Satomi 32 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Considerando que a perspectiva sociocultural retrata e reflete sobre modos de pensar, agir e sentir de um grupo social, e que a estética parte da verbalização sobre a valoração e o papel que a arte exerce nos seus praticantes ou apreciadores, há uma forte proximidade entre ambas as abordagens. Assim, o artigo reporta às atitudes culturais predo- minantes observadas – como etnicidade, ideologia, herança cultural, bem como a função terapêutica –, a partir da fala dos interlocutores, cuja análise etnomusicológica, por sua intermultidisciplinaridade, articula-se com referências da antropologia, da sociologia, da estética musical, da psicologia e da educação. Embora a predominância musical entre os nikkei3 seja o karaokê (ver Hosokawa, 1993b) – herdando, talvez, a “cultura da folhinha”4 da própria minoria, ou o gosto pelo show de calouros, da maioria social –, o enfoque se restringe a uma parte ínfima, mas de alta representatividade, entre as atitudes musicais decorrentes da presença japonesa no Brasil. Atitudes culturais predominantes A maioria dos grupos musicais observados foi instaurada no pe- ríodo anterior à Segunda Guerra e conseguiu ser formalizada apenas no pós-guerra, quando as medidas restritivas aos oriundos dos países do Eixo cessaram. Com exceção do Miwa-kai – uma continuidade do Grupo de Estudos da Música Japonesa (GEMJ), fundado por Miwa Miyoshi na década de 1930 –, todos os grupos ou subgrupos (ryū, kai ou ha) se afiliaram a uma matriz japonesa. Observando como se estabeleceram as escolas, é possível discernir que as três escolas corres- pondem a três territórios ou camadas sociais distintos. O grupo Miwa representaria a iniciativa informal de um núcleo familiar. As filiais da 3 Comunidade japonesa além-mar, isto é, fora do país de origem. Os termos em japonês não sofrem concordância, pois inexiste o plural no idioma. 4 Expressão do artista plástico Tomoo Handa (1988, p.141) para diagnosticar, como perda do senso artístico, o hábito de pendurar calendários, justificando a desorganização da fase em que o imigrante japonês perde as esperanças de retornar à terra de origem. Dô – CAMINHO DA ARTE 33 Preservação do Kutū do Brasil (PKB) e da Difusão do Kutū do Brasil (DKB), das sōkyoku de Ryūkyū,5 que representariam a camada “local” da prefeitura de Okinawa. E a Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa (ABMCJ) – aglutinadora dos grupos Miyagi-kai,6 Seiha7e Yamada-ryū8 – representaria a esfera “nacional”. Durante a sondagem de campo do projeto das escolas de koto, eu havia pressuposto categorizações para cada grupo: etnicidade para as sōkyoku de Okinawa, herança cultural para o grupo Miwa e ideologia para o grupo ABMCJ. As inferências foram suscitadas através das seguintes peculiaridades: no primeiro grupo não se observa a presença de membros provenientes de outras prefeituras japonesas, senão de Okinawa, nem de brasileiros não nikkei; no segundo grupo, a filha assume a função de professora e líder após o falecimento da fundadora do GEMJ; os articuladores dos grupos da ABMCJ pertencem a um grupo de elite da comunidade, prevalecendo nele uma mentalidade moderna e ocidentalizada. Etnicidade e coesão Nas agremiações de Ryūkyū, a etnicidade seria uma continuidade do comportamento de minoria da terra de origem, que, ao alcançar a terra de acolhimento, as microterritorialidades, ou as possibilidades associativas do okinawano, pode adquirir dimensões redobradas. Por exemplo, partindo do macro, temos vários patamares de “sentimento de pertença” e necessidade de ajustamento à maioria circundante: 5 Nomenclatura êmica, que parece enfatizar mais o limite histórico do que o território geográfico, referindo-se ao tempo de reino independente, anterior à sequência de dominações: chinesa, japonesa, americana e japonesa. 6 Escola de koto fundada por Michio Miyagi, líder do movimento Shin Nihon Ongaku (música nova japonesa), que contribuiu para a modernização, ou oci- dentalização, do repertório sōkyoku, “sem perder a essência da música japonesa”, segundo os adeptos da corrente. A professora nisei Yūko Ogura foi sua discípula e começou a dar aulas em São Paulo em meados do século XX. 7 Ramificação da Ikuta-ryū, fundada por Utashito Nakashima, em Nagano, em 1913. 8 Fundada por kengyō Yamada, que viveu entre 1757 e 1817, na região de Kyoto e Osaka. No Brasil, foi implementada por Tomii Iwami, que imigrou em 1956. 34 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) o nacional, Japão-Brasil; o estadual, Okinawa-São Paulo, Campo Grande (MS); o municipal, São Paulo-Naha; o de associações de bairros, Oroku-Vila Carrão, Casa Verde etc.; o de outras paragens anteriores, Guam, Havaí-Bolívia, Aliança Getulina; até chegar em troncos familiares munchyō. Os agrupamentos se acomodam ainda de acordo com outras camadas subjacentes como gênero, geração e faixa etária, mas a mais evidente é a fronteira Uchina/Naichi,9 salien- tada por um formador de opinião como o jornalista Humberto Kinjô (1996, p.3): “Que nos perdoem os demais, mas ser okinawano é como ser corintiano:10 sofredor mas orgulhoso, pobre mas com garra. Mas fundamentalmente fiel!”. Um dos diretores da AOKB,11 pertencente à Associação Nomura- ryū,12 define: “O koten para nós não é canto de samurai. A voz e a letra são especiais e têm muita profundidade...”. Em seguida o diretor salientou a característica da voz emitida como se estivesse apertando a garganta, ou seja, de um povo oprimido, mas que resiste à imposição dos “outros”. Para reforçar a nítida oposição ao espírito guerreiro do japonês, a diretora da DKB, quando indagada se o formato dos plectros da sōkyoku de Ryūkyū seria parecido com o formato da Yamada-ryū, respondeu que não conhece muita coisa sobre a sōkyoku de Naichi, mas sabe que o tipo de tsume de Okinawa é único. E acrescenta: “Dizem que em Naichi também tem Rokudan,13 mas o nosso deve ser mais 9 Uchina é uma terminologia êmica para denominar Ryūkyū, ou Okinawa, e Naichi é outro termo idiossincrático para designar as demais regiões do Japão: Kyūshū, Honshū e Hokkaidō. 10 Uma das maiores torcidas de futebol da cidade de São Paulo. Quem sabe outro patamar de etnicidade, ou necessidade de ajustamento à maioria circundante. 11 Morador da Vila Alpina, zona oeste paulistana, onde há a maior concentração de okinawanos da capital. A autoria de alguns depoimentos foi omitida, salvo quando foram publicados pela imprensa da comunidade. 12 Grêmio musical de música koten, ou música antiga, geralmente a da corte, em que homens tocam o alaúde sanshin e as mulheres, kutū. 13 Rokudan no shirabe [Estudo em seis ciclos] é a peça mais tocada do repertório sōkyoku, composta por Yatsuhashi kengyō (topo da hierarquia da corporação de cegos), do século XVII, fundador da corrente secular zokusō, predecessora das escolas vigentes Ikuta e Yamada. Alguns estudiosos sinalizam que o danmono de Ryūkyū pode ser anterior ao de Yatsuhashi (ver nota 16). Dô – CAMINHO DA ARTE 35 bonito porque nosso toque é delicado e suave. Lá, as cordas soam mais estridentes e o toque é mais agressivo”. A atitude de elaborar a diferença Okinawa/Naichi, análoga à de nordeste/sudeste, sinaliza que os okinawanos continuam sofrendo algum tipo de discriminação dos japoneses de outras províncias, mesmo no Brasil. Acredito que os okinawanos em São Paulo continuarão sentindo a necessidade de coesão, enquanto perdurar a condição de minoria no país de origem. O fato, por exemplo, de a ilha continuar alugada para uma base militar norte-americana reflete o descaso da política central. Soma-se, ainda, a superioridade dos demais nikkei, que parecem ter assimilado o mesmo complexo da elite paulistana.14 Desse modo, confirma-se que as atitudes culturais podem ser consideradas tanto de manutenção dos valores da terra da qual se emigra quanto de adaptação ou absorção dos valores da terra para a qual se imigra. O repertório específico para kutū15 é mantido apenas nas apresen- tações internas das sōkyoku. O relevante é participar das apresenta- ções em conjunto com as escolas de sanshin da corrente Nomura,16 principalmente nos eventos em que desfilam todas as escolas de música e dança da comunidade, incluindo o membranofone têku ou taiko. A conduta de etnicidade da sōkyoku de Okinawa pode ser comprovada pelos depoimentos das principais articuladoras, que atribuíram ao significado de tocar koto as atitudes de união, preserva- ção e divulgação. Hosokawa (1993a, p.141) explica que, enquanto no Japão a interpretação é mais valorizada que a composição, no Brasil ocorre o inverso. Ou seja, no Japão é mais importante preservar do que inventar novas músicas. 14 No ambiente paulistano ainda se podem ouvir expressões pejorativas de ex- clusão – “isso é baianada”, “aquilo é caipirada”, “fulano deu uma de português [o imigrante recente]”, “programa de índio” – que refletem acúmulos históricos nos 450 anos da cidade, destacando os povos que ajudaram a construí-la, mas que desagrada(ra)m à classe dominante. 15 Consiste em apenas sete peças puramente instrumentais, classificadas por Adri- aansz (1973) como “protótipos de danmono” do século XVII. 16 Corrente de música clássica da região de Ryūkyū, fundada no século XIX por Nomura Anshoku, que aprimorou a notação criada por Yakabi Choki. A filial brasileira foi oficializada em 1964, com o empenho de Kaisaku Nakamoto. 36 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Creio que esse comportamento cultural se coaduna com a seguinte comparação estabelecida por Koellreutter (1983, p.72): “O pensamen- to e ação do ocidental são centrados no eu enfatizando a personalidade, enquanto o pensamento e ação do japonês são descentrados do eu, voltados para a comunidade”. Segundo Akira Tamba (1988, p.317), na criação japonesa o sujeito não reivindica a autoria de suas obras e incentiva seus discípulos a utilizá-las e recriá-las. No quesito “significado de ensinar, ou aprender, o instrumento” dos questionários aplicados, percebi que a resposta “união” se ma- nifesta também nas jovens sansei do grupo Miwa e nas professoras nisei e jun-nisei da ABMCJ. O “pensamento e a ação voltados para a comunidade” são mais acentuados nas pessoas que vivenciaram a ex- periência rural, passando esse espírito para os descendentes. Portanto, o desejo de coesão, como atitude de etnicidade para aumentar as forças do “nós”, não é exclusividade do grupo oriundo de Okinawa. Contudo, a generalização pretende destacar o traço mais determinante do grupo. A maioria das respostas fornecidas pelas professoras okinawanas, como “preservação” e “divulgação para as novas gerações” – conceitos aparentes no próprio nome das entidades PKB e DKB –, vem reforçar a atitude missionária da enculturação através da música, revelada pelo professor de taiko: “[...] e é assim que vamos colocando a música de Okinawa na cabeça das nossas crianças. Mesmo sem entender a letra das canções, elas vão percutindo o ritmo e terminam absorvendo a cultura ancestral”. O “sentimento de pertença”, ou conceito de etnicidade, delimitado pela fronteira geográfica pode ser uma reprodução da conduta na terra natal. Mas, na terra receptora, os grupos mantêm a conduta dos seus fundadores ou articuladores, construindo mais um patamar de etni- cidade demarcado pela Segunda Guerra, ou seja, um limite temporal. Assim, nas associações fundadas por imigrantes pré-guerra – AOKB e grupo Miwa – prevalecem atitudes rurais, e nas fundadas por imi- grantes pós-guerra – ABMCJ –, condutas urbanas. A etnicidade, tanto a espacial quanto a temporal, só não procede, logicamente, nos não nikkei, mas estes apresentam o sentimento de pertença à escola, seja de koto ou shakuhachi. Dô – CAMINHO DA ARTE 37 Ideologia por herança cultural A maioria das pessoas vai formando seu conjunto de ideias sem muita reflexão. Esse conjunto de ideias recebe o nome de ideologia. Todos nós temos nossa ideologia, mas de maneira geral não temos consciência disso. Julgamos que nossas ideias refletem sempre a realidade. Não nos damos conta de que muitas dessas ideias foram colocadas em nossa cabeça pela educação familiar, pela escola, televisão, jornais, moda, cinema etc. (Pi- letti, 1994, p.11) Com base na definição acima, o emprego do termo “ideologia” será subdividido em dois níveis de enculturação, o familiar e o nacional. Neste se incluem “escola, televisão, jornais, moda, cinema etc.”. A herança cultural familiar é o traço mais característico do grupo Miwa, pois sua professora, casada com o líder do Shinzan-kai – grêmio de shakuhachi da Tozan-ryū –, é filha dos precursores de koto e shakuhachi e mãe da terceira geração, que mostra uma tendência na continuidade dos instrumentos da fundadora Miwa Miyoshi. A única variação é que a professora atual prioriza o repertório sōkyoku em detrimento do repertório nagauta,17 pois os nisei e sansei do grupo não parecem demonstrar interesse pelo estilo predominante da primeira geração. Como no caso da etnicidade, a herança cultural familiar não é conduta exclusiva do grupo Miwa. Embora não sucedam à mes- ma escola de suas mães, as professoras dos grupos Miyagi e Seiha tocam koto por hereditariedade musical. Em depoimento gravado em janeiro de 2003, a professora do grupo Seiha responde sobre o significado musical, sintetizando os comportamentos ideologia por herança cultural. Eu sou simples. Eu gosto de música e não sei explicar o porquê. Sempre gostei de cantar, tocar e esqueço de tudo quando pratico. Desde pequena eu participava de coral ou conjunto e era muito requisitada [...]. Minha mãe, que tocava shamisen e era professora de dança, sempre nos incentivou para a música. Uma vez minha filha foi solicitada a explicar as partes do 17 Gênero de música vocal acompanhado de shamisen utilizado no teatro kabuki. 38 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) quimono na escola. Ela estranhou que, entre tantas colegas nikkei, só ela sabia. O fato de ela reconhecer a importância em conhecer sua cultura de origem, isso já foi muito gratificante.18 Com exceção dos grupos de Okinawa – que manifestam, em maior escala, atitudes coletivistas, importando-se mais com a continuidade do grupo social do que com a linhagem familiar –, observou-se o eixo comum da herança familiar. Seguindo o exemplo das pioneiras Miwa Miyoshi e Kikue Hayashida, além da professora Saito, do Miwa-kai, as professoras Tomoi Inoki, da Yamada-ryū, Yūko Ogura e Reiko Nagase, do Miyagi-kai, e Tamie Kitahara, do grupo Seiha, ensinaram koto para as filhas, apontando para a continuidade de suas respectivas escolas. Cabe incluir uma observação de Renato Ortiz (2000, p.62-3) sobre a percepção nipônica de família: Uchi (dentro) e soto (fora) são conceitos que as crianças aprendem desde a infância. A casa, a família são uchi, o que se encontra fora de seu âmbito tem uma conotação negativa, perigosa. [...] o universo da família é associado à noção de “limpeza”. Ele seria por natureza “seguro, contrapondo-se à sujeira” e às diversidades existentes “lá longe”. O que se encontra “dentro” está protegido, fora do seu alcance dos elementos estranhos existentes no dia a dia dos “outros”. Essa dicotomia não é um atributo endógeno da sociedade japonesa. Indagada sobre a motivação principal para se estudar koto, uma das mães do Miwa-kai respondeu, abrangendo qualquer tipo de atividade ou aprendizado da cultura, sobretudo, ancestral: Ocupar o tempo com o conhecimento nunca é demais. Aprender o koto ajuda a criança a fixar o idioma entrando em contato com suas raízes 18 Uma das apresentações do grupo Seiha abriu com um poema de Akira Morioka como se fosse um lema da preservação, mesmo “ao longe”, ou seja, discretamente, mas para sempre. “O céu azul límpido e o vento que sopra suave/ Ao longe o som de uma roca a fiar/ As meninas depositam seus sonhos/ Neste fio firme e delicado/ O fio que se transformará no tecido/ O tecido num lindo quimono/ Este sonho continuará para sempre/ Ontem, hoje e amanhã.” Dô – CAMINHO DA ARTE 39 de maneira prazerosa. É muito bom também porque, como a juventude de hoje corre muitos riscos, a criança fica ocupada prevenindo as possibi- lidades de más companhias, vícios, enfim, de fazer tudo o que não presta. Roberto da Matta (2001, p.27), após enfatizar que a casa, na cos- mologia brasileira, é onde deve reinar a ética, o correto, “a harmonia sobre a confusão, a competição e a desordem”, prossegue: Tudo que está no espaço da nossa casa é bom, é belo e é, sobretudo, decente. [...] Os tabus são como nós e nos ajudam a estabelecer nossa mais profunda identidade social, como membros indiferenciados de um mundo anônimo e asfaltado onde ninguém conhece ninguém – esse mundo tenebroso da selva de pedra; e como membros diferenciados que residem numa dada parte da cidade e que podem transformar esse local onde moram em algo único, especial, singular e “legal”. Passando da ideologia inculcada no núcleo familiar para o âmbito da nação, há um dado relevante. A maioria das entrevistadas issei não respondeu à pergunta sobre o significado do fazer musical. As palavras de Satoshi Tanaka (apud Koellreutter, 1983, p.69)19 talvez expliquem o fato: [...] não possuímos o dom de formular opiniões, o que procuro explicar pelo fato de que todos somos homens que “pensamos da mesma maneira”. [...] Frequentemente o medo impede o japonês de expressar livremente o que pensa, pois receia ser mal interpretado. O receio mencionado por Tanaka seria ainda mais acentuado nas mulheres. E o pensamento homogêneo da nação talvez advenha da própria escrita japonesa. O termo ongaku/música é composto pelos ideogramas “som” e “prazer”. Apenas dois issei responderam o óbvio, ou seja, o sentido literal “som prazeroso”. Até aqui o conceito não parece conflitante com a definição da palavra “música” encontrada em 19 Publicação resultante da troca de correspondência sobre estética, entre o professor Koellreutter e o sr. Tanaka. 40 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) dicionários brasileiros: “arte ou ciência de combinar o som de forma agradável ao ouvido”. Para se ter uma ideia melhor do que representa o termo “praze- roso”, havia duas perguntas sobre o gosto musical nos questionários aplicados. Para o issei, o gosto musical predominante é o da música clássica ocidental e, em segundo lugar, vem a música popular urbana japonesa do gênero ryukōka. Quanto à questão “insatisfações mu- sicais”, novamente as respostas em branco predominaram, ou pelo motivo exposto por Tanaka, de não querer fazer juízos de valor, ou por desconhecerem a música brasileira.20 Função formativa e terapêutica por geração Para os imigrantes Algumas issei, que forneceram respostas em branco sobre o “significado da música”, acabaram por responder à pergunta sobre “significado de aprender o instrumento” de forma semelhante ao con- junto de respostas do primeiro “significado”. Aglutinando ambos os resultados, temos: “saudades”, “música ameniza o coração”, “acalma o espírito”, “polimento da alma”, “purifica o coração”, “alimento da alma”, “elevação do espírito”, “educa para a vida”, “forma a perso- nalidade” e “refinamento estético”. Essas atribuições funcionais da música ou do aprendizado de koto, que explicam o pragmatismo japonês, desembocam em princípios budistas com aplicabilidade psicológica e pedagógica, sugerida pela seguinte resposta de uma das alunas decanas do Miyagi-kai:21 20 Por exemplo, “música de trilha sonora de novela”, que inclui canções internacio- nais, constou em algumas das respostas para preferência por música brasileira. 21 Nascida em Mie Ken, em 1922, imigrou em 1949 e reside em São Paulo desde 1959. Foi professora de piano e natação da escola regular, sob orientação japonesa, em Campo Limpo. Praticava ikebana e arte com espada naginata e ainda dá aulas de caligrafia shodô. Dô – CAMINHO DA ARTE 41 Quando se ouve o koto, o espírito se acalma. Toda criança deveria aprender música para, quando crescer, estar preparada para enfrentar as intempéries da vida, as feridas e as perdas. Tendo um hobby como a música, desenho ou caligrafia, elas terão como extravasar. Principalmente aprendendo koto, ikebana ou artes marciais. Na caligrafia, por exemplo, desde o preparo do carvão há a preparação do espírito. Essas atividades ajudam a criança a construir a verdadeira alma e sensibilidade japonesas e a firmeza do caráter. (depoimento gravado em fevereiro de 2003) O depoimento aponta para a própria experiência das artes tradi- cionais japonesas como solução para superar traumas e também para esclarecer o senso estético fundindo-se com o ético, exposto na epígrafe. A depoente, imigrante pós-guerra que perdera três dos cinco irmãos durante a guerra, começou a aprender koto depois que ficou viúva. O psicólogo Francisco Hashimoto (1995, p.31, 35) equipara o ato de emigrar ao do luto: [...] emigrar passa pelo mesmo processo de enlutamento cujas raízes se encontram no complexo jogo de presença-ausência do objeto amado. [...] A ausência do objeto amado que é ao mesmo tempo uma fonte de iden- tificação, produz no indivíduo um mecanismo de luta para se defender desse vazio provocado por essa ausência. Nesse sentido, praticar a música clássica japonesa pode representar um poderoso mecanismo de defesa do vazio do “objeto amado”. A resposta de uma das issei, que veio para o Brasil com 16 anos – “eu aprendo koto porque eu tenho saudades da infância” –, seria uma for- ma sadia de resolver o conflito da perda da terra mãe, pois, conforme Hashimoto (ibidem, p.31): Nessa luta frente à possibilidade de deterioração de objetos e imagens afetivas, pela introdução de novos objetos e imagens, nega-se a outras a possibilidade de amá-las. Teme-se que com o amor novo ocorra a atrofia das imagens ausentes e isso [o jogo que recupera lógicas internas para enfrentar e elaborar a perda ou ausência] as faz tornarem-se cada vez mais nítidas, positivas e cuidadosamente separadas de qualquer contaminação. 42 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Essa elaboração da perda poderia explicar a razão da resistência cultural e do purismo veemente nas expressões tradicionais “transter- ritorializadas”. Para os imigrantes, tocar koto, kutū, sanshin, shamisen, fuyê, têku ou shakuhachi representa o “cordão umbilical onde se tem a perspectiva de continuar sendo nutrido pela terra mãe” (Satomi, 1998, p.145). Muitos encaram a música como algo vital, inerente ao desenvol- vimento da sensibilidade humana. Outra integrante issei do grupo Miyagi, que é bibliotecária e professora de japonês, reafirma: “Seja alegre ou triste, a música revitaliza e fortalece. Música é indispensável para a vida”. Na assertiva intrigante da epígrafe do presente artigo, “No Japão não há ética. Tudo é estética”, Koellreutter sugere que a arte japonesa se entrelaça com modos de ser, arraigados pelos preceitos budistas, xintoístas ou confucionistas, o que a distanciaria do conceito de música como “ciência”, como consta dos dicionários. Tendo em mente que “ética” está embutida no termo “estética”, o fazer musical representaria um dos “caminhos para elevação do espírito”. Uma das alunas mais exímias do Miyagi-kai22 confirma: “Música é alimentação para a alma. Ao mesmo tempo, algo indispensável para mim. Acho que no Japão não significa apenas música, mas, principalmente, um refinamento estético”. A decana entrevistada salienta que todas as artes chadô, kadô, judô têm em comum o sufixo dô, cujo significado é “caminho”. O que importa não é o fim e sim o meio, ou seja, a preparação do espírito, a concentração de praticar com a “retidão dos sentidos” e “firmeza do ca- ráter”. E, se a condução da preparação for bem-feita, necessariamente se alcança um belo resultado em todas essas artes dô da cerimônia do chá, do arranjo floral e das artes marciais. Os depoimentos das inte- grantes da Escola Miyagi e a cerimônia Ireisai23 indicam que tocar koto 22 Imigrou em 1994, casada com um nissei que regressou depois de trabalhar temporari- amente no Japão. Coincidentemente com a formação de algumas professoras de koto, nativas do ano do Cavalo, Yumiko recebeu uma refinada educação artística, apren- dendo koto, shimai (canção xintoísta em chinês), aiquidô, cerimônia de chá e caligrafia. 23 Missa budista realizada todo 18 de junho, dia da imigração japonesa no Brasil, com cerimônia de chá, ikebana e música sōkyoku, tocada pelo Miwa-kai. Dô – CAMINHO DA ARTE 43 estaria no mesmo território das artes do “caminho”. Outra decana, a mais idosa do grupo Miyagi, reforça essa proximidade, fornecendo a receita de sua longevidade: A música e a ikebana só podem fazer bem para a longevidade, porque usam a cabeça e a coordenação motora. Para fazer boa música é preciso concentração. [...] Outro dia fulano faleceu... Como é que uma pessoa pode passar uma vida inteira sem fazer música [aprender a cantar ou tocar]?!24 Para os descendentes internos e externos à comunidade As nisei já não apresentam receio em expor suas opiniões. Apenas uma descendente de Okinawa afirmou não saber o significado de música. A resposta mais frequente foi a do significado do ideograma ongaku/prazer e outros próximos, como “paz” e “alegria”. Em segundo lugar, ela foi relacionada ao poder terapêutico, salientando-se a aplica- bilidade na fadiga corporal e mental: “música significa descontração”, ou “relaxamento”, “higiene mental”, “terapia”, “liberdade”, “poder mágico de mudar a energia das pessoas ou lugares”. Outras respostas encontradas, a partir dos descendentes, são: “interesse em aprofundar a cultura japonesa através do koto ou sha- kuhachi”, “música é arte”, “é expressão de sentimentos”. Em ques- tionário escrito, uma aluna do Miyagi-kai sintetiza o pensamento das nisei, revelando um misto entre a ideologia japonesa e a brasileira nos seguintes versos: Quando ouço é a emoção de alguém que entendo Quando canto é a minha emoção que estou externando Música é alegria, por mais triste que a música seja, eu não canto se estiver triste. Música é vida, é arte, é emoção, é cultura, é terapia.25 24 Comentário informal anotado em caderno de campo em julho de 2002. 25 Depoimento anotado em caderno de campo em fevereiro de 1997. 44 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Para as jovens sansei e os não descendentes, a resposta mais comum foi novamente o significado do ideograma “música”. Uma aluna não nikkei do grupo Seiha26 reforça: “Estudo koto quando estou estressada, meio triste e me faz muito bem”. Em segundo lugar, o pensamento ocidental de “forma de expressão de sentimentos”. Em terceiro, a ideologia miscigenada com o valor terapêutico. Em quarto e quinto lugares, a continuidade dos propósitos da primeira geração, em man- ter o grupo étnico, tais como “união”, “harmonia”, “perseverança”, “persistência”. E a retomada de acepções budistas como “reflexão”, “instinto”, “insight”, “interiorização” e os atributos a seguir, de um entrevistado não nikkei da AcademiaTozan :27 “Para mim, música é a principal forma de entrar em contato comigo mesmo, ou [com] aspectos do meu interior, para atingir outros níveis de consciência. Contribui para minha elevação espiritual, serena a mente, purifica o coração”. Outra adepta não nikkei,28 que também se aproximou da cultura oriental por razões filosóficas, sublinha o fazer musical como uma forma de escapar da vida moderna, em que a música oriental seria uma receita, um antídoto específico para o excesso de notas,29 ou decibéis, da música contemporânea e midiática: Eu acho que todo músico deveria conhecer o princípio mesmo da música oriental. Não teoricamente, mas praticando. Para completar e harmonizar o seu som, deixar mais delicada a música, pois a nossa música ocidental está cada vez mais barulhenta e dissonante... [...]. Minha visão atual da música. Muita gente compreende as notinhas da música como se fossem as estrelas num céu, numa noite bem límpida, onde a gente pode ver aquele espaço imenso, que é o silêncio, pontilhado de luz, que seriam os sons.30 26 Aluna do grupo Seiha, regente, compositora e ex-integrante do grupo Mawaca, de “música étnica”. 27 Aluno do professor Shūzan Saeki, líder da Academia de Shakuhachi Tozan. 28 Aluna do Miyagi-kai, pianista e professora de apreciação artística e adepta da filosofia de Piotr Demianovitch Ouspensky e George Ivanovich Gurdjieff. 29 O professor Koellreutter frequentemente ressaltava a qualidade da pausa na música japonesa, ou seja, o som não é valorizado se não houver o silêncio. 30 Entrevista gravada em janeiro de 2004. Dô – CAMINHO DA ARTE 45 De forma similar, um dos nisei mais idosos do grupo de minyō da Associação Okinawa31 acrescenta que a simplicidade e a pureza da música podem suscitar a união estabelecendo a seguinte correlação: A nossa música não parece música do índio? Só que índio é dono da terra [?], mas o sentimento de união, a pureza e a simplicidade são iguais. Quanto mais civilizado é mais complicado. Em Okinawa não. É mais puro.32 Sem ser apologista de Merriam (1964), o entrevistado realiza uma analogia do modelo tríplice do eminente etnomusicólogo: a música como produto do conceito e comportamento humanos. Antagoni- zando dois universos, o entusiasta de minyō declara nas entrelinhas que a função da música para ele é de autopreservação, defendendo da desunião, da impureza e da complicação do neurotizante e estressante mundo civilizado. Nessa perspectiva, o papel da manutenção musical, que para o imigrante é de reconstrução do ethos de sua pátria, se desloca para o sentido de uma estabilidade ética, moral e emocional para os seus descendentes (Satomi, 1998, p.149). A reconstrução “pura” do elo perdido Muitos imigrantes do pós-guerra relatam que, antes de virem para o Brasil, nunca tinham se interessado em aprender instrumentos tradi- cionais japoneses. Na pesquisa de campo viu-se que uma boa parte das executantes de koto outrora aprende(u) piano. O professor da Shinzan- -kai tocava clarinete e um casal (ele do Shinzan-kai, e ela do Miyagi- 31 Morador de Santos, cidade histórica dos imigrantes japoneses, ele integra um dos assentos cativos da diretoria da AOKB e frequenta as aulas de minyō, para praticar o canto ancestral acompanhado do seu sanshin, percorrendo o trajeto Santos-São Paulo sempre que um desses compromissos o chama. 32 Depoimento anotado em caderno de campo em fevereiro de 1997. 46 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) -kai) era integrante de orquestra, antes de emigrarem. Emprestando as lentes de Hashimoto (1995, p.31), analiso que, trocando o violino e o clarinete pelo shakuhachi, o piano pelo koto, eles conseguiram, pois, administrar o conflito da perda da terra mãe. E, para garantir a nitidez do objeto amado longínquo, eles passam a defender energicamente a própria cultura, condenando atitudes de “deterioração” ou “contami- nação dos valores” na terra nativa. Conforme depoimento de um dos membros mais ativos do Shinzan-kai: Alguns instrumentistas jovens japoneses percorrem o mundo afora e arrebatam prêmios em concursos internacionais tocando Beethoven, Bach etc. Mas se alguém pedir para ele tocar alguma peça japonesa, ele sequer sabe de alguma. O jovem alemão, além de Bach, sabe alguma melodia tradicional, mas o japonês nada... E aí, como é que ficamos?33 Sua expressão seria uma indignação pela falta da “virtude da ver- gonha” (ver Benedict, 1997) nesses jovens ocidentalizados. Tanaka (apud Koellreutter, 1983, p.70) expõe também um temor similar sobre a ocidentalização: Receio que muitos japoneses que desde a Restauração Meiji se ocupam com demasiada assiduidade da cultura ocidental, não percebam o quão distante estão de sua própria cultura. [...] não estão apenas interessados em integrar outras culturas, mas tentam também, além disso, e sempre de novo, renunciar à sua própria cultura. Uma aluna da Escola Miyagi também se revolta com a recente diretriz da escola japonesa, fornecendo uma associação de causa e efeito: “Como é que se retira o hino nacional das escolas japonesas?! É por isso que a juventude começou a pintar os cabelos de amarelo e cantar aquelas músicas barulhentas...”. O hino nacional do Japão representaria o sentimento de lealdade ao imperador e às dinastias, orgulho nacional. Considero que romper com o símbolo ameaçaria 33 Entrevista concedida em fevereiro de 2003. Dô – CAMINHO DA ARTE 47 todos os preceitos construídos na história, a identidade, o porto seguro do povo japonês. No entanto, a nova diretriz do ensino japonês impôs a música tradicional como disciplina obrigatória: os meninos aprendem shakuhachi e as meninas, koto. Enquanto observadora participante, consta que o hino nacional Kimigayo faz parte do repertório sōkyoku. Os imigrantes parecem ignorar o preenchimento da lacuna, pre- ferindo lembrar que aqui estão seguros da contaminação ocidental na terra natal. No Japão, os meios de comunicação de massa divulgam, por exemplo, um trio de koto tocando a Ária da quarta corda, de J. S. Bach, ou um duo de shakuhachi e koto interpretando um tango virtuosístico de Astor Piazzolla. Os executantes substituem o quimono por vestes de grife, preocupados com a fachada altamente moderna, ou com a tal da aparência ocidental forjada ou artificial, inferida no depoimento acima, através do formato e cor dos cabelos, cirurgia plástica nos olhos, nariz, seios etc. No Brasil, a TV Cultura, de São Paulo, apresentou Rokudan [Peça em seis ciclos], Haru no umi [Mar da primavera]34 e Shika no tone [O cio do veado],35 executadas por professores e assistentes da ABMCJ, com as mulheres trajando quimono e todos em sua aparência natural. Quando há cabelos claros, não são tingidos, pois pertencem a descendentes de europeus. O professor da Academia Tozan sustenta uma inédita relação entre afinação e comportamento humano, na seguinte assertiva: Em 1680, na fusão da música chinesa no gagaku havia doze modos distintos. Cada escala tinha um temperamento diferente de acordo com o shō. O koto então era afinado na quinta natural da escala dos físicos, onde o coração fica mais puro. [...] Depois do temperamento do piano, a música ficou comercial, o homem perdeu a sua profundidade, ficou mais ambicioso e propenso a guerrear.36 34 Peça para shakuhachi e koto, de Michio Miyagi, composta em 1929. Através dos programas recolhidos e da pesquisa de campo, foi observado que Haru no umi é a terceira peça mais tocada das escolas de koto no Brasil. 35 Peça para shakuhachi, uma das preferidas da Kinko-ryū, liderada pelo iemoto grão-mestre Iwami Bai-kyoku V. 36 Depoimento gravado em julho de 2002. 48 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Dessa forma, para os imigrantes o fazer musical, além de ser um eficaz meio de gerenciar o luto da terra amada, pode recuperar, por meio da sua reconstrução, a sua mais pura fragrância na terra de acolhimento, já que se mostra deteriorada na terra natal. E os descendentes, internos e externos à comunidade, na busca de um refinamento pessoal, de sua- vização de suas vidas ou de aperfeiçoamento espiritual, reconstroem um mundo idealizado, livre de contaminações. Se retomarmos os de- poimentos mencionados, recolhidos nas escolas de koto e shakuhachi, sejam de issei, nisei, sansei sejam de não nikkei, poderíamos afirmar que, num consenso geral, portanto, a música representa a reconstrução da terra ou de uma terra perdida no espaço e no tempo. Retomando a assertiva do professor Koellreutter, não há como separar ética de estética, pois o fazer artístico, a acepção do “belo”, compreende antes uma postura ética. Esse amálgama entre ética e estética pode ser mais bem esclarecido pelo posicionamento de Shūji Izawa, que empreendeu a reforma do ensino musical das escolas pri- márias e secundárias do Japão, em 1879. Segundo Izawa (Tamba, 2001, p.155), além de favorecer o desenvolvimento físico, o papel da música é promover a formação sociomoral da criança e do jovem. Desse modo, o belo seria o ser eticamente correto antes do fazer estético. Acredito que, em contexto transterritorial, a prática da música tra- dicional japonesa pode conservar essa mentalidade de Izawa, conforme externou anteriormente a pedagoga em relação ao caminho das artes para a “retidão dos sentidos” e a “formação do caráter”. No Brasil, a maioria das alunas parece não se importar com a obtenção de diplomas por estágio, enquanto no Japão há um sistema de taxas em progressão geométrica para se alcançar a habilitação máxima. Herança talvez do que William Malm (1978, p.71) chamou de “outorga” mercantilista para “jovens ansiosas” em melhorar o “dote matrimonial”. Atual- mente, a tradição ainda representa a ascensão de status social, mas sob a égide do consumo, enquanto no Brasil o fazer estético pode estar mais relacionado à preservação de um mundo não contaminado, con- servando os ideais éticos de forma mais acentuada. Ou talvez, menos artificial do que no Japão, onde a tradição aparenta ter se tornado quase um produto mercadológico, um item a mais da sociedade de consumo. 2 aS traDuçõeS eStéticaS no trânSito jaPão-BraSil1 Christine Greiner A chegada da cultura japonesa ao Brasil passou por diversas fases. Pode ser documentada a partir do dia em que o navio Kasato Maru atracou no porto de Santos (SP) em 1908 e do trânsito de tatames, quimonos, sushis e banheiras ofurô que se integraram, pouco a pouco, ao nosso cotidiano. Mas ela também pode ser reconhecida através de “operadores poéticos” que, até hoje, têm papel fundamental na obra de muitos artistas e pesquisadores brasileiros e foram se transformando, da admiração pelo Japão tradicional até a febre de consumo estimulada pelos produtos da indústria cultural j-pop ou do Japão pop. Nos últimos cem anos, aconteceu de tudo nos encontros entre Brasil e Japão: casamentos, experimentos culinários, troca de superstições e assim por diante. Algumas experiências foram particularmente importantes para reafirmar nosso caráter antropofágico, uma vez que não preten- deram, em nenhum momento, imitar ou preservar as manifestações nipônicas e sim incorporá-las. Como essas ações não são de mão única, a cultura brasileira também foi devorada e nunca mais voltou a ser mesma. 1 Uma versão preliminar deste artigo foi publicada no livro Tokyogaqui: um Japão imaginado, organizado por mim e Ricardo Muniz, paralelamente à exposição “Tokyogaqui”, realizada no Sesc São Paulo e em outras de suas unidades do interior durante o ano de 2008. 52 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Algumas das iniciativas mais radicais aconteceram entre as décadas de 1950 e 1970, resultando em manifestos artístico-revolucionários para abandonar de vez o lastro das certidões de nascimento. Os encontros que se sucederam passaram a ter um perfil bem definido: mestiço, provisório e “fermentador do acaso”,2 como gostava de definir o poeta Haroldo de Campos (1929-2003). Algumas dessas iniciativas renderam muita polêmica nas facções mais ortodoxas que teimavam em preservar o Japão no Brasil sem se deliciar com as impertinências das muitas versões do Japão do Brasil. Hoje, o panorama está bem diferente e as contaminações com a cultura japonesa fazem parte do nosso cotidiano a ponto de nem sempre a identificarmos com clareza. Os primeiros japonismos As culturas asiáticas já vinham trilhando conexões simbólicas e intercâmbios de procedimentos de criação no Ocidente, desde as Grandes Navegações. No entanto, no final do século XIX, quando o Japão abriu as suas portas ao Ocidente com a Restauração Meiji (1868-1912), o mercado internacional se aqueceu. O gosto pela arte asiática havia começado na Europa, principal- mente relacionado às tradições de artesanato no século XVI. A beleza dos artefatos e manifestações artísticas asiáticas fascinavam o Ocidente. Os objetos de jade, de laca, as pedras semipreciosas, as porcelanas e cerâmicas chamavam muita atenção dos consumidores, assim como a literatura e o teatro. No mundo das artes, o termo orientalismo foi usado para identificar um estilo e uma certa qualidade associada ao que se julgava ser “um jeito ou uma visão oriental”. Evidentemente, algumas “reinvenções do Oriente” tinham conotações políticas questionáveis, embaladas pela arrogância ocidental, como foi bastante discutido 2 A expressão “fermentador do acaso” foi usada por Haroldo de Campos no curso sobre ideograma, ministrado no início dos anos 1980, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, que tive a oportunidade de fre- quentar na época em que realizava minha dissertação de mestrado. Dô – CAMINHO DA ARTE 53 por autores como Edward Said (1996), Abdel-Malek (2000) e Homi Bhabha (2003), entre outros. No decorrer da história, os debates sobre orientalismo deixaram de se restringir apenas ao dualismo Oriente e Ocidente, passando a interessar a todos os países que um dia foram colonizados e ainda hoje sofrem com abusos pós-coloniais. Mas até o começo do século XX, tratava-se, sobretudo, de uma relação comercial. A Europa parecia mais encantada com as culturas indiana e chinesa. A chinoiserie (“chinesice” ou “arte exótica chinesa”) envolvia cerâmicas, porcelanas e indústria têxtil. Em 1862, em Lon- dres, e em 1876, em Paris, a moda japonesa começou a aparecer nas exibições, muitas vezes misturada com objetos chineses, e, na verdade, ninguém se incomodava em distinguir uma da outra. Tudo fazia parte do mercado asiático emergente. Em 1888, foi fundada a revista Le Japon Artistique [O Japão artístico], com versões em francês, inglês e alemão. Ela chamou a atenção do público e dos artistas para a necessidade de entender a arte japonesa não apenas como algo exótico, mas como uma tentativa de aproximação dos processos de criação e dos materiais usados pelos artistas. O seu fundador, Samuel Bing, havia nascido em Hamburgo, na Alemanha, mas logo mudou-se para Paris, onde abriu uma loja na rua Provence, que era frequentada por artistas como Van Gogh. Através de suas curadorias e publicações, Bing construiu um verdadeiro berçário de pintores impressionistas. A partir dessa época, a fascinação pela arte asiática disparou. Entre 1919 e 1928, pôsteres da famosa revista Harper’s Bazaar vão se inspirar nas gravuras eróticas imaginadas pelo mestre Tsukioka Yoshitoshi (1839-1892). E, da noite para o dia, o Japão transforma-se em objeto de fetiche. A experiência concreta Não se sabe exatamente como tudo começou no Brasil. As expe- riências mais antigas relativas à cultura asiática, a exemplo do que aconteceu em países europeus, estavam relacionadas à pintura, a por- celanas, esculturas e à tecelagem. Em 1903, o diplomata e historiador 54 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Manoel de Oliveira Lima escreveu No Japão: impressões da terra e da gente, livro reeditado em 1997 pela editora carioca Topbooks. Oliveira Lima tratava da sua experiência de dois anos no país, descrevendo os japoneses como “pequenos de estatura, curtos de pernas, mas todos músculos e tendões”. Em 1936, Gilberto Freyre incluiu, em seu livro Sobrados e mu- cambos, um capítulo chamado “O Oriente e o Ocidente”, no qual também chamou a atenção para o tema dos contrastes culturais. E, particularmente sobre a China, a tese de doutorado do professor José Roberto Teixeira Leite (1999) fez um apanhado histórico recheado de curiosidades e imagens como as de São Francisco e São Bento com olhos amendoados, exibidas em diferentes igrejas brasileiras; e caricaturas que marcavam a chegada das primeiras pastelarias ao Rio de Janeiro no começo do século XX. Evidentemente, em todas essas experiências, os deslocamentos de costumes e modelos estéticos sempre envolveram transformações adaptativas aos novos ambientes. Isso valia para os temperos de pas- téis, para o uso de estampas asiáticas em diferentes tecidos brasileiros ou para encenações teatrais. A tradução sempre foi criativa e estava inevitavelmente presente mesmo quando não parecia estar, ou seja, quando a proposta era criar uma “obra original”. Um dos primeiros a chamar a atenção para a preciosidade dessas transformações e para a riqueza do processo de “imaginar o Japão do Brasil” foi o poeta e tradutor Haroldo de Campos, que reconheceu o que chamava de “uma perspectiva existencial da provisoriedade do estético”. Haroldo sempre teve orgulho das prateleiras de sua estante, onde guardava com especial cuidado poemas, ensaios e romances de autores asiáticos. No entanto, pelo próprio ofício de tradutor, o seu objetivo nunca foi analisar o Oriente enclausurado no próprio Oriente e sim conferir à cultura e, sobretudo aos poemas, vitalidade e movimento. Ao contrário da estética clássica que considerava o objeto artístico eterno, Haroldo reconhecia que a arte incorporava, cada vez mais, o relativo e o transitório. A permanência de um traço da obra artística, mais do que nunca, parecia situada, fragmentada e aleatória. Seguindo os passos do poeta Stéphane Mallarmé (1842-1898), afirmava que a Dô – CAMINHO DA ARTE 55 permutação e o movimento haviam se tornado os agentes estruturais da obra de arte. Nesse sentido, o autor de um livro seria apenas um autor-operador, uma espécie de leitor situado em uma posição privi- legiada diante da objetividade do livro, finalmente “anonimizada”. O livro, concluía Haroldo, havia se transformado em um livro-limite da própria ideia ocidental de livro. Essas e outras propostas-intuições foram apresentadas ao público dia 4 de dezembro de 1956 na abertura da “Exposição Nacional de Arte Concreta”, que marcou o nascimento oficial do concretismo brasileiro. Era a segunda vez que São Paulo sediava um movimento estético importante para a cultura brasileira, uma vez que o primeiro havia sido a Semana de Arte Moderna de 1922. O impacto não foi o mesmo, embora estivessem reunidos 21 artistas plásticos e 6 poetas. Especialmente o grupo de poetas (Décio Pignatari, Haroldo de Cam- pos, Augusto de Campos, Wlademir Dias Pinto, Ronaldo Azeredo e Ferreira Gullar) acabou gerando muita polêmica. Em 1957, a famosa revista O Cruzeiro batizou o movimento de “rock’n’roll da poesia”. Dois anos depois, o “Manifesto neoconcreto”, publicado no Jornal do Brasil, comentou “a perigosa exacerbação racionalista dos concretos”, encontrando apoio em artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e o próprio Ferreira Gullar. Era um debate de natureza filosófica.3 Com o passar dos anos, os fundadores do movimento tomaram rumos diferentes e, na verdade, nunca se deixaram confinar no rótulo de “poetas concretos”, apesar de preservarem algumas noções impor- tantes em comum como a capacidade de criar “topologias poéticas” – como observou Octavio Paz – e novas estratégias além da “negação do discurso pelo discurso”.4 Essas duas características estavam direta- mente relacionadas à descoberta do Oriente, especialmente da China e do Japão. Isso porque, além de Mallarmé, a transformação radical de Haroldo nos seus modos de pensar e sentir a arte havia nascido da leitura do ensaio “Os caracteres da escrita chinesa como instrumento 3 Informações mencionadas por Décio Pignatari, durante curso ministrado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, em 1983. 4 Idem. 56 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) para a poesia”, do filósofo e orientalista Ernst Francisco Fenollosa (1853-1908), publicado no livro Ideograma (Campos, 1977b). O ponto de partida eram os processos de mestiçagem cultural e de tradução criativa que Haroldo batizou de “transcriação”. Mas a história rumou especificamente em direção ao Japão, quando o poeta Paulo Leminski apresentou-lhe, em 1969, o texto da peça nô Hagoromo. O projeto de tradução dessa obra o fascinou por completo, acompanhando-o durante muitos anos. Um dos primeiros resultados foi um capítulo do seu livro A operação do texto (1976), dedicado a Hélio Oi- ticica, inventor dos parangolés. O parangolé era uma espécie de capa, que ganhava forma a partir do movimento daquele que o vestia. Com a desco- berta do nô, Haroldo criou uma relação imediata e explícita com a obra de Oiticica e tudo passou a fazer sentido: o quimono, o parangolé, os poemas haikai, o teatro e os ideogramas. Um ano depois, em seu livro Ideograma: lógica, poesia, linguagem, Haroldo de Campos (1994) explicou que para entender o nô era preciso ler Fenollosa, porque ele abria caminhos para conexões inusitadas – daí, por exemplo, a empatia entre os quimonos e os parangolés, afinal as duas vestimentas não eram de fato vestimentas, mas operadores de movimentos-pensamentos-sentimentos. Não eram iguais em sua aparência, mas partilhavam a mesma qualidade capaz de reinventar o corpo. O parangolé era uma “estrutura ambiental” que possuía um núcleo principal, o participador-obra. Este se desmembrava em “participador” quando assistia à obra, e “obra” quando era assistido de fora nesse espaço-tempo ambiental. De todo modo, o parangolé estimulava estruturas perceptivo-criativas no mundo ambiental. Era disso também que tratava o nô: da criação de estruturas perceptivas e cognitivas que deslocavam o espectador do seu universo particular. Fenollosa foi um dos pesquisadores que traduziram para o Ocidente aspectos da lógica chinesa incorporada pelos japoneses, e, curiosa- mente, o fez já com olhos contaminados porque, ao mesmo tempo que vivia no Japão, relia a lógica hegeliana. Então de que Japão falava Fenollosa, afinal? Que Japão vivia sendo reinventado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari, Paulo Leminski, Roland Barthes, os músicos Koellreutter, Vinholes e tantos outros “transcriadores”? Dô – CAMINHO DA ARTE 57 Para entender o percurso da imaginação desses artistas-filósofos geniais, é preciso acompanhar o enredamento de suas traduções em uma cronologia que corre para a frente e para trás. O herdeiro dos escritos de Fenollosa, por opção de sua esposa Mary, foi o poeta Ezra Pound. Apesar de não ter sido ainda iniciado nos estudos das línguas orientais na ocasião em que recebeu os manuscritos, ele intuiu que não tinha em mãos um tratado filológico, mas os fundamentos de uma nova estética. O ideograma era, para Pound (1959), um método poético de composição, testado nos seus famosos Cantos, publicados em 1917, e que acabou repercutindo na obra de outros artistas como T. S. Eliot, James Joyce, William Carlos Williams e nos manifestos poéticos do Brasil publicados em 1965. Como havia reconhecido o filósofo Jac- ques Derrida (1973), Fenollosa arrombou a episteme logocêntrica na literatura, assim como Nietzsche o havia feito na filosofia. No Brasil, tal função ficou a cargo dos artistas e semioticistas que embarcaram nessas viagens invisíveis e buscaram reconhecer o Oriente entre nós. Da revista-livro Noigandres, criada por Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos em 1952, à canção Oriente, composta por Gilberto Gil em 1972, surgiram as experiências mais diversas, no entanto, a atitude permanecia a mesma: mais sintética do que sintática e abso- lutamente apegada aos substantivos que, no universo ideogramático, desbancavam a cascata de adjetivos típica do pensamento ocidental. Amálio Pinheiro (ver 2006), que foi um dos alunos brilhantes de Haroldo, faz questão de lembrar que há um tipo de antropofagia reincidente não só entre nós, no Brasil, mas em toda a América Lati- na. Ele menciona o poeta argentino Oliverio Girondo, que explicou como, na nossa qualidade de latino-americanos, possuímos o melhor estômago do mundo, capaz de digerir, e digerir bem, arenques se- tentrionais, cuscuz oriental ou churrascos de Angola. A poesia, entre latino-americanos, sempre mostrou grande afinidade com a culinária, desde a época da Colônia, como foi o caso de Gregório de Matos e suas citações multilíngues. Matos, Pound, Oswald de Andrade, Caetano Veloso, Glauber Rocha, entre tantos outros, foram artistas unidos pelo estômago, aparentados em seu apetite eclético, ensinando que não há origem perdurável superior ao que se mescla e traduz, mas sim uma 58 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) rede em contínuo processo de organização e reorganização. Nesse sentido, estavam todos sintonizados com a lógica ideogramática da amarração, que, por sua vez, lembrava a trama e a trança das esteiras e cestarias indígenas. Mas o que teria a ver uma coisa com outra? O que conectaria índios e japoneses? Como explicou Pignatari em Semiótica e literatura (1979), o índio não tem verbo ser e por isso Oswald de Andrade rapidamente con- cluiu que, na aldeia, todo problema ontológico se resolvia em termos odontológicos. No Japão não era diferente. “Ser” era existir concreta e provisoriamente. As ações eram descritas preferencialmente de manei- ra específica e não geral. Não havia sentido em se discutir a “natureza do ser”. A percepção e as qualidades de sensação valiam mais do que os discursos. E valiam por si mesmas. A cor, a textura, a materialidade das imagens eram soberanas em relação aos significados abstratos. Assim, o método ideogrâmico de composição nada mais era do que o uso de imagens materiais para sugerir relações imateriais ou, como explicou o cineasta Sierguéi Eisenstein (1994, p.150), a passagem do pensamento por imagens para o pensamento conceitual: “Riscada com um estilete sobre uma tira de bambu, a imagem de um objeto mantinha a semelhança com o seu original, em todos os aspectos”. O que é interessante observar é que no ideograma a representação se dá sempre na forma de imagens, representando algum vestígio concre- to, reconhecível. Nada faz sentido como pensamento meramente abs- trato. No entanto, é preciso tomar cuidado para não simplificar demais, uma vez que esse apego ao concreto não quer dizer que as ideias-coisas existem fechadas em si mesmas. De acordo com Fenollosa, as coisas eram fundamentais, todavia, mais do que as “coisas”, importavam as “relações”, o “entre”. Era preciso aprofundar a analogia estrutural para discernir as linhas de força da natureza e captá-las em uma nova síntese. A natureza tem suas próprias chaves e, se o universo não estivesse cheio de simpatias e identidades, o pensamento teria vivido à míngua, concluía Haroldo. Nesse sentido, Fenollosa acusava frontalmente a tira- nia da lógica tradicional e, apesar de ter sido criticado por cometer muitas simplificações polêmicas, representou, ao lado dos pintores impressio- nistas, uma porta de entrada vigorosa para a arte japonesa no Ocidente. Dô – CAMINHO DA ARTE 59 No Brasil, a pesquisa de Haroldo lançou Fenollosa em outra teia de referências para experimentar uma lógica analógica que possibili- taria um método indicativo e não de oposição. O Oriente também foi deslocado e nunca mais voltou à sua posição antípoda. Irradiando-se para uma língua não ocidental (o japonês) que na sua escrita preser- vava os caracteres ideográficos chineses, a poesia concreta produziu um movimento que se tornou uma espécie de reverso complementar, ou seja, nada além da exploração dos elementos combinatórios do ideógrafo enquanto possibilidades formais. Daí em diante, forma e conteúdo não poderiam mais ser separadas. Na prática poética, excluía-se de uma vez a questão da origem e os limites entre moti- vação externa e interna. Através dessas novas referências, o pensamento japonês passou ser reconhecido entre nós, antes mesmo da chegada do Kasato Maru. Recentemente, o professor Shuhei Hosokawa (2003), do Centro Nichibunken, de Kyoto, relembrou o exemplo pitoresco da pesquisa de Rokurô Kôyama. Além de criar o primeiro jornal nipo-brasileiro, usando um mimeógrafo a bordo do próprio Kasato Maru, ainda em alto-mar, ele intuiu e começou a desenvolver um estudo em torno da hipótese de que o tupi-guarani e o japonês teriam a mesma origem na antiga Polinésia. Mais do que uma investigação linguística relevante, a noção de uma língua originária tupi-japonesa buscava sustentar uma espécie de narrativa mítico-poética para ancorar a posição marginal dupla, tanto na comunidade brasileira como na japonesa, uma vez que os japoneses imigrantes pareciam ter se tornado irremediavelmente estrangeiros, tanto aqui como lá. Anos depois, atravessando a ponte tupi-japonesa, a passos oswal- dianos, Décio Pignatari (1979) concluiu que a arte é sempre o oriente dos signos. Pouco importa de onde veio ou para onde vai. O signo artístico é o signo da criação e da liberdade. Ele rompe o automatismo verbal que durante séculos conduziu o pensamento ocidental para a ilusão de que as coisas só têm significado quando são traduzidas para o mundo das palavras. O oriente dos signos mostra que os antípodas não estavam do outro lado do mundo, mas eram, ao mesmo tempo, o nosso avesso do avesso. 60 CECILIA K. J. SHIODA, EUNICE V. YOSHIURA, NEIDE H. NAGAE (ORGS.) Os diálogos na dança e no teatro Durante as primeiras décadas do processo de imigração japonesa para o Brasil (1908-1938), muitas atividades de dança e teatro fica- ram restritas aos integrantes das comunidades, fiéis aos costumes de províncias específicas do Japão. Mesmo durante o segundo período (1953-1979), após os quinze anos do governo nacionalista de Getúlio Vargas, ainda era mais comum encontrar grupos de jovens ou senhoras com roupas típicas, festejando datas do calendário nipônico em praças ou salões organizados para aulas de japonês e atividades lúdicas, do que propriamente identificar um intercâmbio que pudesse gerar alguma manifestação artística profissional, culturalmente híbrida. Foi apenas em torno da década de 1980 que artistas descendentes de famílias japonesas e mesmo alguns brasileiros sem qualquer laço de sangue começaram a se interessar por técnicas e/ou modelos esté- ticos das manifestações nipônicas. Dessa época em diante, é possível identificar situações distintas. Havia, por exemplo, os artistas que frequentavam aulas de dança japonesa oferecidas pela Aliança Cultural Brasil-Japão ou por imi- grantes interessados na preservação da cultura, sem qualquer vínculo institucional. Os motivos variavam entre a mera curiosidade e a reali- zação de projetos pontuais (por exemplo, uma peça de teatro com tema japonês). Outra situação, bastante distinta, era a dos profissionais que buscavam uma pesquisa específica, em vez de workshops pontuais. Alguns decidiram viajar para o Japão para vivenciar os treinamentos e a cultura em seus contextos de origem; e outros ficaram no Brasil, mas contaram com a orientação de artistas imigrantes e/ou daqueles que estudaram fora e retornaram para transmitir os ensinamentos. Por fim, é importante mencionar ainda uma situação atípica, mas mesmo assim cada vez mais presente no cenário art