1 KEISSY GUARIENTO CARVELLI ANSEIOS TEÓRICOS DE UM PENSADOR SELVAGEM: A FUNÇÃO SOCIAL DA POESIA NOS ENSAIOS DE PAULO LEMINSKI ASSIS 2023 2 KEISSY GUARIENTO CARVELLI ANSEIOS TEÓRICOS DE UM PENSADOR SELVAGEM: A FUNÇÃO SOCIAL DA POESIA NOS ENSAIOS DE PAULO LEMINSKI Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, e à Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Coimbra/Portugal para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador: Prof. Dr. Benedito Antunes Coorientador: Prof. Dr. Osvaldo Manuel Silvestre Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 Processo número 88882.432679/2019-01 Bolsista: Capes Print Processo número 88887. 570180/202-00 ASSIS 2023 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 C331a Carvelli, Keissy Guariento Anseios teóricos de um pensador selvagem : a função social da poesia nos ensaios de Paulo Leminski / Keissy Guariento Carvelli. — Assis, 2023 267 f. : il. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Benedito Antunes Coorientador: Dr. Osvaldo Manuel Silvestre 1. Leminski, Paulo, 1944-1989 - Crítica e interpretação. 2. Literatura brasileira - História e crítica. 3. Poesia brasileira. 4. Ensaio crítico. I. Título. CDD 869.909 4 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO DA TESE: ANSEIOS TEÓRICOS DE UM PENSADOR SELVAGEM: A FUNÇÃO SOCIAL DA POESIA NOS ENSAIOS DE PAULO LEMINSKI AUTORA: KEISSY GUARIENTO CARVELLI ORIENTADOR: BENEDITO ANTUNES Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Doutora em Letras, área: Literatura e Vida Social pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. BENEDITO ANTUNES (Participação Virtual) Departamento de Estudos Linguísticos e Literários / UNESP/FCL- Assis/SP Profa. Dra. ALVA MARTÍNEZ TEIXEIRO (Participação Virtual) Universidade de Lisboa - Portugal Prof. Dr. MARCELO CORRÊA SANDMANN (Participação Virtual) UFPR - Curitiba/PR Prof. Dr. ALBERTO SISMONDINI (Participação Virtual) Universidade de Coimbra - Portugal Prof. Dr. GILBERTO FIGUEIREDO MARTINS (Participação Virtual) Departamento de Estudos Linguísticos e Literários / UNESP/FCL- Assis Assis, 09 de outubro de 2023 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, 19806900, Assis - São Paulo www.assis.unesp.br/posgraduacao/letras/CNPJ: 48.031.918/0006-39. 5 À memória de minha avó Alice 6 AGRADECIMENTOS A jornada de uma tese, embora tão individual, é construída por muitas vidas cruzadas, pensamentos trocados, apoio irrestritos e orientações inspiradas e cautelosas. Não são suficientes os agradecimentos, são fundamentais. Agradeço, por princípio, aos meus pais pela crença na minha trajetória de estudo ao longo de tantos anos dedicados ao silencioso trabalho de pesquisadora. Agradeço ao Prof. Dr. Benedito Antunes por diversas razões que ultrapassam a mera formalidade de ser ele o orientador dessa tese. Agradeço-o por ter confiado no meu projeto de pesquisa quando da candidatura ao Doutorado da Unesp. Agradeço-o por ter dirigido pedagógica e criativamente meu pensamento com aulas e práticas de leitura de textos (romances e críticos) e escrita de ensaios a respeito deles – o que me permitiu exercitar uma das técnicas fundamentais para a escrita da minha tese. Agradeço-o pela paciência, pela confiança e pelas conversas serenas ao longo desses anos. Agradeço igualmente ao Prof. Dr. Osvaldo Silvestre, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC/UC), por ter coorientado essa tese e pelo apoio irrestrito durante o Doutorado Sanduíche e todo o processo de Doutorado em regime de cotutela. Agradeço-o pelos livros frequentemente indicados, pelas portas abertas do Instituto de Estudos Brasileiros da FLUC para a minha pesquisa e por ter confiado em mim em diversas ocasiões de organização e participação em eventos científicos. Exemplo disso foi a realização do Colóquio “Desbundados e Porras Loucas. A contracultura revisitada”, ocorrido em setembro de 2022, em que, além de contribuir com a organização do evento, apresentei um trabalho sobre Paulo Leminski entre as inspiradas leituras de Alcir Pécora, Pedro Serra, Graça Capinha, Alva Teixeiro, Gustavo Ribeiro, entre outros. Agradeço também a todos os professores do Programa de Pós-graduação em Letras do campus de Assis da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” que, diretamente ou indiretamente, contribuíram para a construção do meu pensamento sobre Literatura, Linguística, Educação, Cultura, História e outros tantos assuntos que instigam os pesquisadores do campo das humanidades. Agradeço imensamente ao técnico do Programa de Pós-graduação em Letras, Marcos Francisco D’Andrea, pelo apoio irrestrito ao longo de todo o meu percurso como discente. Agradeço à técnica responsável pela Biblioteca da Unesp campus de Assis, Ana Paula Silva, pela assistência primorosa dada a mim diante das necessidades típicas da relação entre uma pesquisadora e os livros, os mais preciosos objetos de estudo nessa etapa. 7 Agradeço a todos os profissionais da Universidade de Coimbra e da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” que deram o suporte necessário durante o processo de realização do Doutorado em Regime de Cotutela. Agradeço, com todo o respeito e admiração, ao poeta Régis Bonvicino, com quem estabeleci diálogos a respeito de Paulo Leminski e da poesia de modo geral durante o período dessa pesquisa. Agradeço ao fotógrafo Dico Kremer, que me recebeu gentilmente para uma longa conversa a respeito da relação que teve com Leminski deste a década de 1960, em Curitiba, e que me cedeu a cópia de muitos dos datiloscritos analisados nessa tese e que são, certamente, uma das grandes obras de arte de Leminski ainda não publicadas. Agradeço à historiadora Meg Dias, pela companhia durante grande parte dessa jornada e pelo apoio intelectual, espiritual e emocional. Também pela colaboração durante todo o processo da pesquisa de campo, desde à coleta até à catalogação de centenas de arquivos fotografados em Curitiba/Pr e em São Paulo/SP. Agradeço também a todos os amigos, artistas e poetas com os quais cruzei ao longo dessa pesquisa e que são partes de quem sou. Agradeço àqueles que estiveram mais presentes na origem dessa jornada e que contribuíram (direta ou indiretamente) para que eu pudesse pensá-la de modo provocativo e curioso: Giba, Kaio Miotti, Vinícius Comoti, Mano Maia, Mávilo Galo, Karol Jacomel e Carla Lavorati. Agradeço também aos amigos, poetas e artistas que conheci em Coimbra e que transitaram comigo entre as performances artísticas e os eventos científicos: Mattia Faustini, Daniel Cruz, Alex Lima, Pedro Sáfara, Raquel Lima, Élia Ramalho, e, no gesto final e derradeiro, Tutto Gomes – artista que conheci na escrita destes agradecimentos e me acolheu na difícil tarefa das páginas finais com um papo inspirador e com jantares nutritivos. Agradeço à Malu Patury, pela companhia inspiradora na reta final dessa tese e por ter me feito relembrar que a poesia também é dança, ou nos termos de Pound, é a dança do intelecto. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 8 A fábula é o desabrochar da estrutura, arquétipo em flor. Uns são transformados em flores, outros são transformados em pedra, outros ainda, se transformam em estrelas e constelações. Nada com seu ser se conforma. Toda transformação exige uma explicação. O ser, sim, é inexplicável. Uns se transformam em feras, outros são mudados em lobos, em aves, em pombos, em árvore, em fonte. Só a ninfa Eco se transformou em sua própria voz. Em que língua falar com um eco? Uma uma língua língua lembra lembra uma uma lenda lenda, Narciso, Narciso, Narciso. (LEMINSKI, 1994, p. 21). 9 CARVELLI, Keissy Guariento. ANSEIOS TEÓRICOS DE UM PENSADOR SELVAGEM: a função social da poesia nos ensaios de Paulo Leminski. 2023. Tese (Doutorado em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Assis, 2023. RESUMO A tese aqui apresentada consiste na defesa da existência de um método crítico no ensaísmo de Paulo Leminski (1944-1989) latente ao longo das três fases literárias que o constitui e que se realiza com maior êxito na publicação de Ensaios e anseios crípticos (2012), obra editada pela Editora da Unicamp e que seguiu os critérios utilizados pelo próprio poeta quando projetou a publicação dos ensaios em dois volumes: Anseios crípticos (anseios teóricos): peripécias de um investigador do sentido no torvelinho das formas e das ideias (1986) e Anseios crípticos 2 (2001). O pressuposto que se mostrou fecundo, portanto, é o de que o ensaísmo em Paulo Leminski torna manifesto um intérprete interessado em ser um “pensador selvagem”, dotado da capacidade de “atacar para todos os lados” prevendo somente os lucros resultantes de um pensamento em constante movimento de sístoles e diástoles. Por isso, faz de sua crítica um espaço poliédrico: ora pretende “ensinar uns raciocínios, uns conceitos, para um público maior e não sofisticado”; ora formula a utopia de uma “Itaipu poética” (LEMINSKI, 2012, p. 335); ora traz à tona interpretações sobre categorias literárias como “novo”, “poesia de criação e poesia de comunicação”, “leitor” e “vanguarda”. Uma questão axial transpassa todas essas reflexões: a natureza e função social da poesia e do poeta no contexto da geração 70. A partir dessa hipótese, verificou-se que tal inquietação é constante ao longo da vida literária de Paulo Leminski e está estruturada nos ensaios, nos ensaios-poemas e nos “minifestos” – gêneros em que expressa sua crítica – por uma visão filosófica e histórica, uma linguagem sintética, cortante e poética e por um tom que oscila entre o bem-humorado, o ácido e o melancólico. Portanto, verificou-se que o ensaio é um gênero fundamental praticado por Paulo Leminski ao longo de suas três fases, tendo sido suporte – com estilo, linguagem e forma própria – para a formulação de suas maiores obsessões relacionadas ao campo da Literatura e do seu próprio fazer literário. Palavras-chave: Paulo Leminski; Literatura Brasileira – História e crítica; Poesia brasileira; Ensaio crítico. 10 CARVELLI, Keissy Guariento. THEORETICAL ANGUISHES OF A SAVAGE THINKER: the social role of poetry in Leminski’s essays. 2023. Tese (Doutorado em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Assis, 2023. ABSTRACT The thesis here presented is a defense of the existence of a critical method in the essays of Paulo Leminski (1944-1989), which is latent throughout three literary periods, but becomes fully realized by the Ensaios e anseios crípticos (2021), a work edited by Unicamp following a set of criterias used by the poet himself, when projected the essays publication in two volumes: Anseios crípticos (anseios teóricos): peripécias de um investigador do sentido no torvelinho das formas e ideias (1986) and Anseios Crípticos 2 (2001). What comes out of this research assumption is that Leminki’s essays become manifest an interpreter interested in being a “savage thinker”, one able to “attack by all the sides”, predicting a surplus resulting from a thinking characterized by its constant movement of systole and diástole. Therefore making his critique a polyhedral space: in a moment, his intent is to “teach some of the reasonings, some of the concepts to a wider, but uneducated public”; in other, he formulates the utopia of a “Itaipu poética” (LEMINSKI, 2012, p. 335); he also taps into interpretations concerning literary categories such as “the new”, “the poetry of creation e the poetry of communication”, “reader”, “vanguard”. One central question goes through all these reflections: the nature and social role of poetry and the poet in the context of the Geração 70. Coming from this hypothesis, we verified that these aspirations are of a constant presence throughout Leminski’s literary life, taking proper structure in his essays, poem-essays and in the “minifestos” - genre where he expresses his critical remarks - for a philosophical and historical outlook, a synthetic language, biting and poetic, and by a mood which oscillates between humor, acidness and melancholy. This thesis affirms that the essay is a fundamental genre practiced by Paulo Leminski through his three literary periods, having been a ground - with style, language and a form of his own - to the formulation of his major obsessions in literature and its doing. Palavras-chave: Paulo Leminski; Brazilian Literature – History and criticism; Brazilian poetry; Critical essay. 11 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Minifesto .................................................................................................................. 66 Figura 2 - Minifesto 2 ............................................................................................................... 71 Figura 3 - Código 1 ................................................................................................................... 76 Figura 4 - Código II .................................................................................................................. 77 Figura 5 - Qorpo Extranho ....................................................................................................... 80 Figura 6 - Muda I ...................................................................................................................... 82 Figura 7 - Muda II .................................................................................................................... 83 Figura 8 - Muda III ................................................................................................................... 85 Figura 9 - Anexo 16 de dezembro 1976 ................................................................................... 91 Figura 10 - Anexo 31 de dezembro de 1976 ............................................................................ 94 Figura 11 - Polo Cultural n. 1 ................................................................................................. 101 Figura 12 - Polo Cultural n. 17 ............................................................................................... 103 Figura 13 - Raposa Magazine ................................................................................................. 125 Figura 14 - 40 clicks em Curitiba (1976) ............................................................................... 132 Figura 15 - Quarenta clicks em Curitiba (1976) ..................................................................... 133 Figura 16 - Capa Não fosse isso e era menos [...] .................................................................. 135 Figura 17 - Poema Não fosse isso e era menos [...] ................................................................ 136 Figura 18 - Não fosse isso e era menos [...]............................................................................ 137 Figura 19 - Não fosse isso e era menos [...]............................................................................ 138 Figura 20 - Não fosse isso e era menos [...]............................................................................ 139 Figura 21 - Não fosse isso e era menos [...]............................................................................ 140 Figura 22 - Não fosse isso e era menos [...]............................................................................ 141 Figura 23 - Polonaises ............................................................................................................ 142 Figura 24 - Imagem do autor em Polonaises .......................................................................... 143 Figura 25 - Polonaises ............................................................................................................ 144 Figura 26 - Datiloscrito 1978 ................................................................................................. 167 Figura 27 - Sol-te I (1983/2016) ............................................................................................. 176 Figura 28 - Sol-te II (1983/201) ............................................................................................. 180 Figura 29 - Capa de Anseios Crípticos (1986) ....................................................................... 194 Figura 30 - Leminski em Cine Hai Kai (1984) ....................................................................... 196 Figura 31 - Leminski em Cine Hai Kai (1984) ....................................................................... 196 Figura 32 - Leminski em Cine Hai Kai (1984) ....................................................................... 197 Figura 33 - Leminski em Ervilha da Fantasia (1985) ............................................................. 198 Figura 34 - Leminski vive Kafka no Jornal de Vanguarda (1988) ......................................... 201 Figura 35 - Leminski vive Kafka (II) em Jornal de Vanguarda (1988) .................................. 202 Figura 36 - Leminski performa o harakiri no Jornal de Vanguarda (1988) ........................... 203 Figura 37 - Leminski performa o harakiri no Jornal de Vanguarda (1988) ........................... 204 Figura 38 – Capas de Anseios Crípticos (1986) e Anseios Crípticos 2 (2001) ...................... 212 Figura 39 - Capa de Ensaios e Anseios Crípticos (1997) ....................................................... 213 Figura 40 - Ensaios e Anseios Crípticos (2011; 2012) ........................................................... 214 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865575 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865576 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865580 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865581 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865585 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865587 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865588 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865591 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865597 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865599 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865602 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865603 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865605 file:///C:/Users/keiss/Documents/Doutorado%202017_2022/TEXTO-TESE/Escrita%20final/Capítulos/CAPÍTULO%201_%20CAPÍTULO%202_COMPLETO_23_agosto.docx%23_Toc143865606 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 – PRIMEIRA FASE (1963-1975): TESE ..................................................... 24 1.1 O PRIMEIRO POETA CONCRETO DO PARANÁ..................................................... 27 1.2 UM POETA CONTRA A INTELIGÊNCIA PROVINCIANA ..................................... 40 1.3 UM POETA ENTRE A GUERRA E A FESTA ............................................................ 49 2 SEGUNDA FASE (1976-1980): ANTÍTESE ..................................................................... 61 2.1 “MINIFESTOS” E OS ANSEIOS VANGUARDISTAS NAS REVISTAS NANICAS .............................................................................................................................................. 65 2.2 INVENÇÃO E TRIBUTO EM ANEXO, POLO CULTURAL E RAPOSA MAGAZINE ......................................................................................................................... 88 2.3 O POETA EM DESENCANTO EM NÃO FOSSE E ISSO E ERA MENOS NÃO FOSSE TANTO E ERA QUASE E POLONAISES........................................................................... 130 3 TERCEIRA FASE (1981-1989): SÍNTESE ..................................................................... 152 3.1 DOIS DATILOSCRITOS, DISCURSO PUBLICITÁRIO E A EXISTÊNCIA DE UMA REALIDADE ‘POESIA’ .................................................................................................... 154 3.2 UM KAMIQUASE NO MERCADO EDITORIAL ..................................................... 172 3.3 DO CRÍTICO E ESCRITOR LITERÁRIO AO PERFORMER AUDIOVISUAL ..... 185 4 ANSEIOS CRÍPTICOS: GENEALOGIA, MÉTODO E INTERPRETAÇÃO .......... 212 4.1 ENSAIOS E O ANSEIO FORMAL: AS CHAVES DE LEITURA ............................ 218 4.2 DELÍCIA E LIÇÃO: UM INTÉRPRETE PARA A SUA PRÓPRIA GERAÇÃO ..... 230 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 253 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 256 FONTES ................................................................................................................................ 264 BIBLIOGRAFIA DO AUTOR ............................................................................................ 268 13 INTRODUÇÃO Embora exista um quadro aparentemente coeso das produções artísticas a partir da metade do século XX no Brasil, segundo Viviana Bosi (2018) tal unidade é “tripartida” em correntes que “surgem ou se fortalecem a partir dos meados dos anos 1950, entram em conflito ao longo da década de 1960, e se transfiguram nos anos 1970” (BOSI, 2018, p. 20). Trata-se de três tendências: a primeira chamada de “construtivista” ou “concreta”1, que se apresenta nos anos desenvolvimentistas da década de 1950, chegando ao ápice em 1960; a segunda chamada de “engajada” ou “nacional-popular”2, cujo auge se dá na primeira metade da década de 1960; e a terceira, já no pós-68, designada como “arte em questão”3, “contracultural”, ou “marginal” guiada por projetos “experimentais alternativos” (BOSI, 2018, p. 20). 1 De acordo com Gonzalo Aguilar, o movimento da poesia concreta, além de poder ser pensado através da figura do “trio noigandre”, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, pode ser periodizado também em três principais períodos. De 1956 a 1960, momento de “imposição do modernismo, movimento amplo e não articulado que, no Brasil, caracterizou-se por sua vontade de Estado” (AGUIAR, 2005, p. 22) cujo marco final está ligado à construção de Brasília por ser percebida como momento em que são colocadas em destaque as “contradições e os diferentes graus de participação e de êxito dos protagonistas da empresa modernista” (Idem, p. 22-23). O segundo período se dá de 1960 a 1966, caracterizado pela “ideologema da ‘revolução’ e pelo questionamento ou ampliação dos critérios modernistas que haviam orientado a fase precedente” (Idem, p. 23). É neste período em que se inclui o “salto participante” e a publicação da revista Invenção (1962-1966). Para Aguiar, são ampliados os critérios modernistas menos em relação à política e mais em relação à publicidade e às novas linguagens do design. Por fim, o terceiro período é sistematizado pelo teórico como aquele compreendido entre 1967 e 1969, sendo a etapa “suscitada pelo crescimento dos meios de comunicação de massa como linguagem já instalada no espaço social” (Idem, ibidem). Uma espécie de marco final deste ciclo vanguardista concreto se dá em 1969 com o regime militar em seu momento mais agudo de cerceamento das liberdades de expressão. Uma fase posterior ao concretismo é vista a partir da década de 1970 não mais como uma atividade programática coletiva, mas com diferentes perspectivas suscitadas nas trajetórias individuais dos poetas concretos. 2 Pela perspectiva de Heloisa Buarque de Hollanda, trata-se da produção cultural controlada pela esquerda no período pré e pós-64 e ligada tanto aos temas do debate político quanto às discussões a respeito das vanguardas, da modernização, da democratização e do nacionalismo. A tendência que se apresenta é a de afirmação da “necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética” (HOLLANDA, 2004, p. 21). A sistematização dessa tendência é dada, em 1962, pelo anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura (CPC) que “postula o engajamento do artista” (Idem, ibidem) bem como a impossibilidade de existir arte popular que não seja a arte política. 3 Essa tendência é marcada, de modo geral e inicial, pela desconfiança do discurso nacionalista e pela valorização da ocupação dos canais de comunicação em massa partindo da concepção de ser necessária (HOLLANDA, 2004). A tendência que melhor apresenta essa faceta é o Tropicalismo, articulado por artistas de natureza extraliterárias, tais como Hélio Oiticica, Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas ligados profundamente às reflexões no campo da linguagem. Basta pensar na relação profunda entre Caetano Veloso e o concretismo na realização de discos como Araçá Azul (1973), ou entre Hélio Oiticica e Haroldo de Campos, como fica evidente na curiosíssima entrevista que Oiticica faz com o poeta em Nova York, em 1971 (chamada de heliotapes), em que, entre outros assuntos, discutem longamente sobre o Tropicalismo e o desdobramento do termo “Tropicália”, cunhado por ele mesmo e apropriado por Caetano. Para Oiticica, Tropicália é um “método de informação de trabalho” (OITICICA; CAMPOS, 1971, p. 2) ao passo que Tropicalismo já é termo “carregado de coisas dissolventes”. Para Hollanda (1982, p. 101), o Tropicalismo “é a expressão de uma crise”, argumento frequente quando esboçado o campo literário do pós-vanguarda e que Franchetti (2021) contesta quando afirma já estar em crise a própria versão da modernidade como crise. 14 No pós-684, quando entra em cena a “arte em questão”5, a perspectiva é distinta da observada nas décadas anteriores, quando tanto a tendência concretista quanto a engajada apostavam na função “utilitária” da arte que para esta última deveria, além de útil, ser agregada à vida cotidiana, contribuindo para a edificação de uma nova sociedade. Essa outra geração não encara mais com entusiasmo a ilusão nacional-desenvolvimentista típica dos anos 1950, tampouco está convicta da direção unilateral da transformação social pelo engajamento político via poesia6. De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna (2014a), são inerentes a essa “unidade tripartida” alguns impasses, sendo o principal deles o fato de se tratar de um tempo marcado por uma dualidade formada de “duas ilusões perdidas”: o conceito de vanguarda e o conceito de revolução popular. Ambas as ilusões ligadas à ideia central de “ruptura”, cujo resultado no contexto da pós-modernidade, quando é recomendável “a cópia, a paráfrase e a apropriação” (SANT’ANNA, 2014a, p. 23), é o de uma “síndrome vanguardista da ‘ruptura da ruptura’” (SANT’ANNA, 2014a, p. 23) que instaura espécie de “[...] oxímoro paralisante – como se a serpente mordesse a própria cauda – e que leva a certos impasses epistemológicos” (SANT’ANNA, 2014a, p. 23). Nesse sentido, a atitude existencial e poética da geração de 707 altera-se de modo que a perspectiva dos intelectuais e dos poetas é a de que todos deveriam, acima de tudo, retomar as discussões sobre as funções sociais da poesia. Esse movimento, segundo T.S Eliot, é sintoma principal do desenvolvimento (ou da mudança) da própria poesia que, por sua vez, é um “sintoma das mudanças sociais” (ELIOT, 2015, p. 34). 4 Para Iumna Simon, trata-se da ebulição poética que tem início com a “poesia marginal”, movimento que reivindica uma “ruptura com os valores literários em voga em nome da experiência e do comportamento” (SIMON; DANTAS, 1985, p. 48). É o momento do “boom poético da década de 70” (HOLLANDA, 1982, p. 4). 5Trata-se da experiência tropicalista, da poesia marginal, dos chamados pós-tropicalistas e pós-concretos. Em relação à literatura, há a coexistência de autores já canônicos e de outros mais novos. Entre esses últimos, Viviana Bosi cita uma lista abrangente: Hilda Hilst, Waly Salomão, Paulo Leminski, Raduan Nassar, Caio Fernando Abreu, entre outros. Os traços comuns entre eles são: a indeterminação de gênero, a mistura de vozes e de estilos, a fragmentação e o pastiche, e a tendência à prosa experimental, caso do romance-ideia Catatau (1975), de Paulo Leminski (BOSI, 2018). 6 O poema “manchete” de Paulo Leminski, composto na forma que o poeta chama de “para-choque de caminhão” atesta a impossibilidade de um poema assumir a função prática de engajamento: “MANCHETE / chutes de poeta // não levam perigo à meta/” (LEMINSKI, 1983/2016, p. 74). 7 Paulo Leminski frequentemente utilizou o termo geração de 70 para se referir ao movimento de poetas, músicos, cartunistas e outros artistas atuantes no pós-68. Para Sirinelli (2003), o fenômeno da geração está ligado ao campo intelectual e deve ser considerado como uma “solidariedade de idade” fundamental aos processos de transmissão cultural, definido “[...] sempre por referência a uma herança [...]”. Assim, “quer haja um fenômeno de intermediação ou, ao contrário, ocorra uma ruptura e uma tentação de fazer tábua rasa, o patrimônio dos mais velhos é portanto elemento de referência explícita ou implícita. Além disso, e exatamente por esta razão, o esclarecimento dos efeitos da idade e dos fenômenos de geração no meio intelectual vai além do procedimento apenas descritivo ou taxinômico: reveste-se, em determinados casos, das virtudes explicativas, pois esses efeitos e fenômenos não são inertes: são às vezes engrenagens determinantes do funcionamento desses meios” (SIRINELLI, 2003, p. 254-55). 15 Coincidem com esse período artisticamente múltiplo os três principais momentos na produção de Paulo Leminski (1944-1989), aqui denominados de três fases tendo em vista a busca por uma organização metodológica. São elas: I) de 1963 a 1975, fase inicial de contato com a poesia concreta paulista e seus preceitos, culminando na publicação de Catatau (1975) e de aproximação com a música8; II) de 1975 a 1980, fase predominantemente marcada pela marcada pela colaboração assídua em jornais e revistas literárias denominada “nanicas”9, publicação do álbum 40 clics em Curitiba (de 1976, com poemas de Leminski e fotos de Jack Pires) e da edição, de forma independente, dos primeiros livros de poesia Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase (1980) e Polonaises (1980); e III) de 1980 a 1989 atua como compositor sendo gravado por diversos nomes da música popular brasileira10, insere-se definitivamente no mercado editorial, com a publicação de Caprichos e Relaxos11 (1983), de biografias12, de traduções13, de um trabalho assíduo na imprensa14 via resenhas, artigos e ensaios, bem como participação em 8 Em 1975, a banda precursora do rock curitibano, A chave (1969-1979), lança o primeiro compacto de estúdio com duas canções, Buraco no coração e Me provoque pra ver, nos créditos aparecem Orlando Azevedo, Ivo Rodrigues, Paulo Teixeira, Carlos Gaertner e Paulo Leminski. Em Me provoque pra ver aparece, curiosamente, a primeira imagem do poeta como aquele que faz “chover no piquenique”: “se o dia é de sol/sou eu quem faço chover//sou de carne e osso/ adoro uma tentação//me provoque pra ver”. Em 1975, há registro ao vivo d’ A chave em Londrina, no Ginásio de Esportes Moringão, tocando uma série de parcerias com Leminski que, ao que indicam as cartas do poeta a Régis Bonvicino (1999), compôs um total de sete canções nessa época, sobretudo em parceria com o vocalista Ivo Rodrigues. No mesmo ano, a banda faz o primeiro concerto de rock’n’roll do Teatro Guaíra, em Curitiba, abrindo o show da banda norte-americana de rock Bill Haley & His Comets. É de 1977 a última gravação d’A chave, que se dissolve em 1979. Já em 1978, Ivo Rodrigues passa a fazer parte da banda Blindagem, fundada em 1977, mantendo composições em parceria com Leminski, uma delas Verdura, regravada posteriormente por Caetano Veloso. No primeiro LP de Blindagem (1981), há oito composições em parceria com Leminski (MELO, 1999). Essa relação muito próxima da poesia de Paulo Leminski com o rock’n’roll, sobretudo num momento de precursão do gênero em Curitiba e no Paraná de modo geral, enfatiza o meio pelo qual Leminski viu a possibilidade de transitar entre o formalismo concretista e a abertura popular da poesia. Em palestra realizada no dia 24 de agosto de 2020, pelo VI Seminário do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da FFLCH (USP), Heloisa Buarque de Hollanda reafirma ser a relação entre a poesia e o rock’n’roll um dos traços mais distintivos da poética da geração de 70, tal como é próxima hoje a relação entre a poesia de slam e o rap, por exemplo, ao que Heloisa Buarque atribui o conceito de “práticas da palavra”. 9 Código; Muda; Qorpo estranho; Raposa Magazine; suplemento Anexo do jornal Diário do Paraná e Polo Cultural/Inventiva, onde assumirá a função de editor geral desta seção voltada apenas para assuntos de poesia de vanguarda. 10 Caetano Veloso, Moraes Moreira, Ney Matogrosso, A Cor do Som, Ângela Maria, MPB4, Blindagem. 11 Editado pela Brasiliense, o livro inclui parcialmente os dois anteriores (Polonaises e Não fosse isso e era tanto não fosse tanto e era quase) tendo sido um bestseller, à época. 12 Cruz e Sousa: o negro e branco (1983); Matsuó Bashô: a lágrima do peixe (1983), Jesus a.C (1984) e Leon Trótski, a paixão segundo a revolução (1986), todas pela editora Brasiliense. 13 Foram nove traduções entre 1984 e 1987, oito delas encomendadas pela editora Brasiliense. São elas: Pergunte ao Pó (1984), de John Fante; Vida sem fim (1984), de Lawrence Ferlinghetti; O supermacho (1985), de Alfred Jerry; Giacomo Joyce (1985), de James Joyce; Um atrapalho no trabalho (1985), de John Lenon; Sol e Aço (1985); de Yukio Mishima; Satyricon (1985), de Petrônio; Marlone Morre (1986), de Samuel Beckett; Fogo e água na terra dos deuses (1987), Poesia egípcia antiga (1987), tradução de alguns poemas coletados pelo poeta. A totalidade dos textos que constituem os Anseios teóricos 2 (2001) são, na origem, introduções, posfácios e ensaios sobre as obras traduzidas. 14 Escreveu para a Folha de S. Paulo de 1982 a 1987; para a revista Veja de 1982 a 1985. Escreveu também para os periódicos curitibanos Diário da tarde, Correio de Notícias, Gazeta do Povo, O Estado do Paraná, Quem. 16 palestras e bate-papos15. É nessa fase também a publicação do último livro de poesia, organizado em vida, Distraídos venceremos (1987). Se a poesia e a prosa de Leminski já foram objetos de análises importantes, incluindo até mesmo a sua faceta cancionista16, ainda são raros os estudos voltados à sua formulação crítica, aquela interessada em responder tanto a “questões particulares” quanto a “questões gerais” da “função da poesia como poesia” (ELIOT, 1991). Dois estudos sobre essa face se destacam. O primeiro deles é o intitulado Ensaísmo de Paulo Leminski: panorama de um pensamento movente17, dedicado ao perfil intelectual do poeta, cujo ponto fundamental é o de mapear centenas de artigos publicados na grande imprensa e não organizados. O segundo, O caminho dos meios: a poética de Paulo Leminski e suas reflexões sobre a natureza comercial do poema (FERRAZ, 2018) que, embora não se ocupe dos ensaios críticos, contribui substancialmente para a compreensão da teoria da inutilidade como última chave inventiva de Paulo Leminski, de modo que é possível verificar no poeta uma latência crítica interessada em apresentar questões como a natureza da poesia e a sua função social no contexto da poesia contemporânea brasileira. Esse percurso, segundo Affonso Romano de Sant’Anna (1962) e Carlos Felipe Moisés (2012), indica não só a natureza ambígua do modo de ser da poesia “ao mesmo tempo cerne de todas as artes e a mais irrelevante das manifestações artísticas” (MOISÉS, 2012, p. 283), mas também sua função intransitiva, uma vez que, “quando a poesia triunfa perante a sociedade [...], fracassa perante si mesma, ao passo que sua vitória, seu êxito perante ela mesma, representa seu fracasso social” (SANT’ANNA, 1962, p. 34)18. O pressuposto, no entanto, é o de que há um quadro mais abrangente no que tange à formulação crítica de Paulo Leminski, da qual a teoria da inutilidade é apenas um dos eixos latentes, o que parece corroborar a figura do poeta 15 “Significado do movimento e a poesia dadá”, palestra proferida no Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC) em 1984; também “Literatura e Artes Plásticas”, no mesmo local, no ano de 1986; e a conferência “Poesia paixão da linguagem”, proferida em curso de extensão da Universidade Federal do Paraná publicada pela Companhia das Letras na antologia “Os sentidos da paixão” (NOVAES, 2009, p. 322-349). 16 Dentre as quais se destacam as realizadas por Affonso Romano de Sant’Anna (1976), Ivan da Costa (1978/2013), Antonio Risério (1990), Haroldo de Campos (1992), Wilson Martins (1996), Leyla Perrone-Moisés (2000), José Miguel Wisnik (2013). Além disso, o mapeamento de Leite (2012) indicou o quadro crescente de teses e dissertações sobre Leminski desde os anos 2000. Entre os estudos mais recentes, apresentam-se os seguintes: o recém-publicado capítulo de livro, O caminho dos meios: a poética de Paulo Leminski e suas reflexões sobre a natureza comercial do poema (2018), de Paulo Ferraz; a obra A Pau a pedra a fogo a pique: dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski (2010), organizada por Marcelo Sandmann, que reúne investigações a respeito da poesia, da prosa-experimental, da tradução, da cultura midiática, da letra de música e, de maneira breve, da crítica; a antologia A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (2004), organizada por André Dick e Fabiano Calixto; e ainda Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (2001), de Fabrício Marques. 17MOREIRA, Paula Renata Melo. Ensaísmo de Paulo Leminski: Panorama de um pensamento movente. 2011. Tese (Doutorado em Estudos Literários). Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2011. 18 Trata-se da recuperação, por Sant’Anna (1962), do “o problema sartreano” relacionado à poesia. 17 moderno definido por Eliot como aquele que “forçosamente coloca a si próprio questões como ‘Para que serve a poesia?’” (ELIOT, 2015, p. 41). Nesse sentido, o exercício da metalinguagem e da crítica, em Leminski, é identificado predominantemente e com muita intensidade em dois momentos fundamentais. O primeiro, na segunda fase, quando passa a colaborar para as revistas literárias nanicas, onde, além de publicar muitos de seus poemas reunidos posteriormente em edições próprias, publica também um dos gêneros mais praticados durante toda sua vida literária: os ensaios, os ensaios-poemas e aquilo que designa como “minifestos”. E o segundo, na terceira fase, quando colabora com artigos, ensaios e resenhas para a Folha de S. Paulo e a revista Veja. As cartas de Leminski a Régis Bonvicino, datadas de 1976, por exemplo, são amostras do ímpeto de compor “ensaios/anseios”, os quais designa como “elos/an/elos” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, carta 3, p. 37). A figura desses anelos indica, mais do que a aspiração dada pelo próprio substantivo, um objetivo fixo do poeta: o de ser um poeta-crítico19. Sobre essa faceta, o poeta assume uma posição múltipla e inquietante: “Sou uma espécie de pensador selvagem, assim no sentido que se fala em capitalismo selvagem. Vou lá, ataco um lado, ataco o outro lado, meu pensamento é um pensamento assistemático, como, aliás, eu acho, é o pensamento criador” (LEMINSKI, 1985, p. 284). Embora afirme ser portador de um “pensamento assistemático”, é evidente que a obra de Paulo Leminski é tão vasta e múltipla quanto tão relacionada ao sistema da série literária a que pertence, concepção formalista de Tynianov acionada por Sant’Anna (1971) a fim de ressaltar que “[...] a mais bem acabada análise de uma obra será aquela em que a obra não for tomada isoladamente, mas em sua relação com o sistema da série literária a que pertencem” (SANT’ANNA, 1971, p. 21-22). Num sentido mais amplo, apresenta-se como fundamental não apenas a relação da obra leminskiana com tal série que, em termos gerais, está vinculada às três tendências de arte metodologicamente organizadas por Bosi (2018). Mas sobretudo a sua relação com o sistema interno instaurado através dos diversos gêneros praticados: poesia, palestras, bate-papos, cartas, traduções, biografias e, principalmente, ensaios. Atua como elemento axial desse sistema interno espécie de poética constituída não apenas como código da criação literária20, mas principalmente como exercício da consciência crítica a respeito da natureza e da função social 19Para Haroldo de Campos, em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura (1996), a coexistência do poeta, do crítico e do tradutor é a tríade típica do poeta moderno. 20 Definição de poética a partir de Aristóteles sintetizada no E-Dicionário de Termos Literários por Roberto Acízelo de Souza (2009). 18 da poesia, atitude existencial da tendência do pós-68 sobre a qual Leminski se debruça menos de um modo “assistemático”, como afirma, e mais a partir da operação crítica que Haroldo de Campos chama de “dimensão heurística” (CAMPOS, 1976, p. 10), método de atalho mental interessado em tocar questões mais complexas através de um mecanismo tão radical quanto mais simples, ao que Campos define como um “pólo de negatividade crítica” (CAMPOS, 1976, p. 10) via “radicalização do pensar histórico” (CAMPOS, 1976, p. 10). A hipótese geral, nesse sentido, é a de que tal dimensão heurística, na crítica realizada por Paulo Leminski, suscita um método operado a partir de dois procedimentos axiais: um didático21, interessado em ensinar alguns raciocínios e conceitos fundamentais da poesia moderna, e outro criativo, voltado à assimilação da linguagem poética e da forma experimental também ao gênero do ensaio. De onde partir, então, para realizar as análises necessárias à verificação dessa hipótese e dessa consciência crítica – que parece evocar um método – sem que nisso incida numa investigação unilateral, superficial e mecânica de comparação entre texto e contexto? Ora, partir do ponto mais interno possível, o do levantamento e cruzamento de textos a fim de identificar e problematizar, na manifestação de formas22, significados e formulações, o mecanismo que funda, ou pelo menos forja, esse método. A partir da identificação do mecanismo interno, portanto, pensa-se ser possível relacioná-lo à série e ao contexto literário do qual faz parte. Esse percurso envolveu a articulação ativa e simultânea entre pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo que, por sua vez, pressupôs a concepção dos arquivos literários como uma “figura epistemológica” (MARQUES, 2007, p. 15) constituídos “[...] em instância de produção de valores estéticos e simbólicos” (MARQUES, 2007, p. 15). Na pesquisa de cunho teórico- bibliográfico, desenvolvida desde as pesquisas realizadas durante o Mestrado (2013-2015) e acentuada com os estudos voltados ao objeto do doutoramento, foi possível identificar sincronicamente os principais contextos teóricos e culturais com os quais Paulo Leminski manteve contato e que têm ressonância em sua produção literária. Trata-se de teorias e poéticas predominantemente ligadas às vanguardas do século XX, sobretudo a experiência concreta e o seu desdobramento no Tropicalismo e, ainda, de teorias da linguística e comunicação (a semiótica também ligada aos estudos e traduções dos poetas concretistas, principalmente de 21 Em entrevista a Denise Guimarães (NICOLAU, 1989), Leminski afirma ser um “professor frustrado”. A justificativa é a de que tem grande paixão por ensinar, mas pouco se adaptou aos rigores do ofício escolar. Sabe- se que, durante a década de 60 e parte da década de 70, Leminski atuou como professor de cursinho pré-vestibular lecionando disciplinas como História, Literatura, Língua Portuguesa e Inglês (VAZ, 1991). 22 Para Gonzalo Aguilar, a forma se apresenta na dimensão da escritura poética como “lugar de encontro da poesia com as forças sociais.” (AGUILAR, 2005, p. 19). 19 Décio Pignatari), atuando como desdobramento possível à prática da linguagem no contexto da segunda metade do século XX23. Já a pesquisa de campo envolveu três principais etapas. Na primeira delas, desenvolvida entre 2017 e 2019, foi realizado um levantamento dos arquivos relacionados a Leminski nos principais espaços de documentação de Curitiba, em que foi recolhido o máximo de material possível capaz de contribuir para a dimensão da prática literária do paranaense, reconhecendo, assim, os gêneros e os suportes praticados. Foram visitadas as seguintes instituições: Arquivo Público do Estado do Paraná, onde foi possível encontrar a ficha de Paulo Leminski no Catálogo das Fichas Nominais do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) com data de fichamento de 1966; Biblioteca Pública do Paraná, onde foram consultados dezessete números do periódico literário Polo Cultural, além de ter sido visitada a exposição “Templo das Musas” em homenagem ao Instituto Neopitagórico e com a presença marcante da figura do poeta como um tributário do Instituto; e o Centro de Documentação Casa da Memória, onde foi possível ter acesso ao arquivo Paulo Leminski, sendo consultados sete números de Raposa Magazine e o livro Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase (1980), além de entrevistas a jornais do poeta e reportagens sobre ele. Na segunda etapa, a pesquisa de campo foi estendida também ao Acervo Haroldo de Campos, localizado na Casa das Rosas (São Paulo), onde foi possível ter acesso à outra parte de material significativo da produção de Paulo Leminski, sobretudo no tocante à sua atuação nas revistas literárias “nanicas”. Foram consultados e reproduzidos parcialmente24 os seguintes materiais: Primeira edição de Catatau (1975); edição de 40 clics em Curitiba (1976); exemplar do único número da revista Muda (1977); dois números da revista Qorpo Estranho (1976); o número 13 da Revista Maldoror (1977); Revista Código (n. 1, n. 2); edição de Polonaises (1980) com dedicatória de Paulo Leminski a Haroldo de Campos; Revista Íma (n. 1, 1985 e n. 3, 1993); Revista Através (n. 1, 1983), além de prefácio de Leminski para os seguintes livros, Auto de fé ocidental, de Mário Stasiak (1968), O pássaro que comeu o sol, poesia moderna da Coréia (1988), e O Caderno erótico de Sylvio Back (1986). Por fim, fez parte da pesquisa de campo a consulta ao Acervo Digital Paulo Leminski (Cd-rom), onde foi possível ter acesso a fontes primárias como manuscritos, cadernetas, cadernos de estudo e rascunhos, além de textos inéditos, repercussão do autor em jornais 23 Isto quer dizer que atua como episteme da obra lemisnkiana a simbiose típica do século XX entre os movimentos de vanguarda e aqueles da comunicação em massa, o que, nos termos de Affonso Romano de Sant’Anna (1962) a partir de Tynianov, remete à evolução dos sistemas literários. 24 A política do acervo permite uma reprodução de até 10% das obras consultadas. 20 variados, entre outros. Além desse, foram consultados também o acervo digital do jornal Diário do Paraná, disponível na Biblioteca Nacional Digital – onde foi possível consultar todas as colaborações de Leminski para o suplemento literário Anexo – e o acervo digital da Revista Código. A partir da extensa pesquisa de campo, foi possível analisar os materiais coletados e encontrar não só a origem de muitos dos ensaios organizados como obras posteriormente, mas sobretudo a relação temática e formal entre eles e os diversos outros textos mapeados, o que possibilitou uma visão geral e detalhada de uma produção literária tão ampla quanto aguda25. Levanta-se, então, a hipótese de que a crítica leminskiana também pode contribuir tanto para compreender o seu próprio fazer poético quanto “[...] para tirar conclusões a respeito do que é permanente ou eterno na poesia, e o que é meramente a expressão do espírito de uma época, e ao descobrir o que muda, como e por que se dá essa mudança tornamo-nos capazes de perceber o que não muda.” (ELIOT, 2015, p. 39-40). Em primeira instância, o suporte do qual são originários os ensaios (a imprensa) encaixa-se com a proposição do poeta de serem os meios de comunicação, além de um modo mercadológico de sobreviver da escrita, um fecundo espaço para se libertar de “um monte de vícios letrados” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, carta 51, p. 148), aproximando-o da “propalada nostalgia do intelectual pela ação” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, carta 51, p. 148). É também o jornal o suporte típico da difusão de grande parte da crítica, sobretudo aquela anterior à sistematização dos estudos literários realizados no seio dos cursos de pós-graduação das Universidades brasileiras que, em suma, passam a se desenvolver com mais afinco a partir da década de 1960. Aliada ao suporte, a escolha da forma ensaio26 para as formulações críticas indica que o poeta opta criteriosamente por um gênero que “ocupa um lugar entre os despropósitos” (ADORNO, 1974, p. 16), cujo procedimento deriva da interpretação e da tentativa de interrogar e iluminar determinado objeto, portanto uma expressão do modo experimental de pensar e agir (BENSE, 2014, p. 2). Isto é, onde a ciência prevê conclusões, o ensaio prevê formulações e, embora seja em si a prática do julgamento, não é o veredicto nem a distinção de valores a sua essência, mas sim o “processo de julgar”, momento em que “todos os sentimentos e vivências, 25Para Paulo Franchetti (2014, p. 79), Paulo Leminski foi um caso de escritor que “fugiu” do “aparato conceitual e de toda a forma de funcionamento do campo” estabelecendo uma “voz pessoal, no meio da gritaria programática geral”. 26 O termo “ensaio” tem, historicamente, origem nos Ensaios de Montaigne que, segundo Pierre Villey (1962) no estudo “Os ensaios de Montaigne”, não tem novidade apenas pelo uso inédito do termo “ensaios”, mas sobretudo porque a “própria coisa” em si era nova (VILLEY, 1962, p. 3). 21 que estavam aquém e além da forma, recebem uma forma, se fundem e se concentram numa forma” (LUKÁCS, 2018, s/p). Portanto, interessado na essência dos “poemas intelectuais”, segundo a definição assumida por Lukács, Paulo Leminski, quando interessado nas reflexões sobre a natureza e a função social da poesia, opta por um gênero que, segundo Villey (1962), volta-se para a valorização e consolidação de assuntos frequentemente já refletidos por outros pensadores, mas que, pela mão do ensaísta, assume uma rota particular sem artifício e capaz de pintar a si mesmo, suas crenças, opiniões e experiências próprias acerca dos objetos sobre os quais apresenta esboços reflexivos. Assim, se o gênero ensaio se mostra como a primeira camada visível dos objetos de estudos selecionados, a “crítica” deve ser entendida como uma segunda camada de mesma importância, ainda que estrategicamente tenha sido associada pelo próprio Leminski ao “anseio”, isto é, à dupla afirmação de se tratar não exatamente de uma “crítica literária” aos moldes rígidos da academia e do alinhamento a um método específico27, mas a uma espécie de esboço e tentativa ligando-se tanto à própria natureza do ensaio quanto aos preceitos de Haroldo de Campos, para quem “Crítica é metalinguagem.[...] ou linguagem sobre a linguagem” (CAMPOS, 1992, p. 11) para a qual devem ser convocados “[...] todos aqueles instrumentos que lhe pareçam úteis, mas não poderá jamais esquecer que a realidade sobre a qual se volta é uma realidade de signos, de linguagem portanto” (CAMPOS, 1992, p. 11). Disso, advém que, se há crítica (ou pelo menos o anseio da crítica) deve (ou deveria) haver um método crítico (CANDIDO, 1988) que, embora “assistemático”, como afirma Leminski, contempla eixos e procedimentos investigativos fixos. Portanto, partindo dessa perspectiva e da finalidade geral de identificar e problematizar o anseio crítico de Paulo Leminski no tocante à função social da poesia, mostra-se imperativa a investigação de três principais aspectos: a) o estudo do ambiente cultural e literário em que atuou Paulo Leminski; b) análise dos ensaios do ponto de vista da sua historicidade de publicação, do método crítico, 27 O campo da Crítica Literária, no Brasil, tem em sua origem um traço predominantemente historicista ligado ao objetivo de constituição de um passado literário que, em termos de alinhamentos, voltou-se, até praticamente metade do século XX, à busca pela identidade nacional. A partir da segunda metade do século XX, há uma transformação da crítica literária brasileira voltando-se para as correntes estéticas e sociológicas (COUTINHO, 1957). Nesse sentido, para Afrânio Coutinho (1957), o fundamental à crítica é a sua dissociação do entendimento do objeto literário como um documento apenas social, cujos estudos estão pautados nos fatores extrínsecos ao fato literário. Isto é, historicamente “A obra literária era vista como uma instituição social, um documento – de uma raça, uma época, uma sociedade, uma personalidade. As relações entre a literatura e a vida se resolviam em favor da vida, de que a literatura tinha que ser um espelho.” (COUTINHO, 1957, p. X). 22 dos seus fundamentos e procedimentos, dentre eles o historicista-sincrônico, o criativo e o didático); c) possível significado histórico de sua crítica28. Consonantes a esses aspectos, apresentam-se quatro capítulos. Os três primeiros capítulos integram a investigação minuciosa a respeito das três principais fases produtivas do poeta. A análise dessas fases segue uma cronologia organizada conforme o critério de adoção de alguns momentos decisivos, como, por exemplo, o contato com os poetas concretos e a publicação de Catatau (1975), na primeira fase; a colaboração intensa nas revistas nanicas e a publicação, de forma independente, dos dois primeiros livros de poesia (1980), na segunda fase; e a inserção no mercado editorial via Editora Brasiliense, a aproximação com os canais de comunicação em massa, via música e colaboração para a grande imprensa, e a publicação de Caprichos & relaxos (1983), na terceira fase. Para uma dimensão ampla e aprofundada de todas essas fases foram selecionadas, relacionadas e analisadas todas as fontes e obras consultadas a fim de identificar não só o panorama geral de cada uma delas, mas o fio condutor que as aproxima, dando ênfase ao pensamento crítico que permeia todas as instâncias produtivas do poeta. Nos três capítulos, ao analisar os momentos decisivos e aqueles complementares de cada uma das fases, foi possível identificar a simultaneidade de algumas das práticas literárias de Leminski, sobretudo aquela relacionada à produção de ensaios para periódicos ora de alcance restrito, ora de grande repercussão nacional. Já o quarto e último capítulo teve como movimento primordial o aprofundamento a respeito tanto da genealogia quanto dos procedimentos formais, temáticos e estilísticos dos Anseios crípticos (1986), dos Ensaios crípticos 2 (2001) e dos Anseios e ensaios crípticos (2012), três obras fundamentais por se tratar da organização dos ensaios em livro. Buscou-se perceber o modo como Leminski articula filosófica e historicamente as formulações a respeito da natureza e da função social da poesia e do poeta – e das reflexões complementares a respeito da língua e da função do leitor no contexto da poesia brasileira da segunda metade do século XX. O pressuposto que norteou essa análise é o de que, engajado criativa e criticamente, o poeta procura equacionar um dos dilemas de grande parte da geração de 70 e, portanto, de sua própria poesia: urgência de criar uma linguagem potencialmente experimental e comunicativa. Outro pressuposto é o de que, ao operar os procedimentos históricos-sincrônicos, didáticos e 28 Esses três aspectos apresentam-se como um método de análise de Antonio Candido ao investigar a crítica literária de Silvio Romero (CANDIDO, 1988). 23 criativos para operacionalizar sua crítica, Leminski não só pretende fixar a figura de poeta- crítico, instância típica do poeta moderno, mas tem por intenção também contemplar a instância do crítico como um professor, um mediador interessado em ensinar, de modo heurístico, raciocínios e conceitos literários, sobretudo aqueles ligados à poesia moderna, a um público não especializado e mais amplo. 24 CAPÍTULO 1 – PRIMEIRA FASE (1963-1975): TESE Tal qual o tempo curto do homem29, rápida também é a trajetória literária em vida de Paulo Leminski, visto que se somam apenas vinte e seis anos a contar do primeiro poema publicado30 até o último texto produzido31. Breve a passagem, porém de alta voltagem, seja pela quantidade e variedade de gêneros e suportes, seja pela relevância da obra, constatada pela fortuna crítica acerca dela que ganha fôlego a partir da década de 1990. Em busca de uma organização metodológica, pode-se elencar três principais fases de Paulo Leminski (1944-1989)32. São elas: de 1963 a 1975, fase formativa; de 1975 a 1983, fase predominantemente marcada por dois movimentos simultâneos e complementares, um que propõe uma poesia ligada aos princípios vanguardistas, outro que, ao contrário, tem por princípio o objetivo de comunicar; e de 1983 a 1989, fase de em que parece haver um maior grau de síntese (ou de resolução) dos impasses vividos nas fases anteriores. Além dessas três fases sobre as quais será realizada uma análise pormenorizada nos três primeiros capítulos, é preciso ressaltar o movimento póstumo do “culto delirante” em torno de Leminski, para usar a expressão de Wilson Martins (1996), o qual coincide com o início mais sistemático dos estudos de recepção crítica, sobretudo pela via acadêmica, e com a sequência de publicações de materiais inéditos. São eles: os livros de 29 Paulo Leminski faleceu em 7 de junho de 1989, em Curitiba, aos 44 anos. Sobre a idade e a causa da morte há um caso curioso: na carta 21 a Régis Bonvicino (1999), Leminski afirma: “meu fígado deu um stop [...] não quero acabar como Fernando Pessoa com hepatite etílica aos 44 anos”. Há, segundo as notas de Tarso de Melo às cartas, um “engano espantoso: o poeta Fernando Pessoa não morreu aos 44 anos, mas sim aos 47, ou seja, Leminski erra a idade do português, para adivinhar a idade que teria ao morrer – exatamente de complicações no fígado causadas pelo álcool” (MELO, 1999, In: LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p. 186). 30 Leminski publica cinco poemas na revista Invenção nº 4, de dezembro de 1964, e no nº 5, de dezembro de 1966 e janeiro de 1967. Antes, ainda em 1963, Leminski já havia publicado um pequeno poema e um ensaio no jornal Correio do Paraná. 31 Em 1989, Leminski é convidado a assumir uma coluna na Folha de Londrina. O primeiro ensaio, intitulado “Como era boa a nossa banda”, é publicado em abril do mesmo ano. O último ensaio, “O espelho retrovisor”, foi publicado em 2 de junho de 1989, cinco dias antes de falecer. Foram, no total, oito textos publicados, todos eles reunidos na bela edição intitulada A hora da lâmina (2017), publicada pela Associação Cultural Grafatório Edições, de Londrina-Pr. 32 Em Leminski: o poeta da diferença (2012), Elizabeth Rocha Leite sugere uma divisão geral de sua obra em apenas duas fases: a primeira, de 1960 a 1980, caracterizada pela influência do movimento concretista e pela preocupação com os planos da linguagem; e a segunda, a partir de 1980, com menor grau de influência concretista, além da mobilização de questões éticas e existenciais. Entende-se que essa divisão é válida e abrangente, porém pouco minuciosa para os objetivos aqui propostos, principalmente porque há, entre 1975 e 1983, um período que, embora curto, possui certa camada de antítese em relação à fase anterior – verificável sobretudo nos textos de caráter mais programático, incluindo-se aqui o epistolar organizado por Bonvicino (1999). 25 poesia La vie em close (Brasiliense, 1991), O ex-estranho (Iluminuras, 1996), e Winterinverno (Fundação Cultural de Curitiba, 1994). Também o ensaio Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego (Iluminuras, 1994), a reunião das correspondências em Uma carta uma brasa através – Cartas a Régis Bonvicino (Iluminuras, 1992), a segunda edição deste livro epistolar com o título de Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica (Editora 34, 1999), a reunião das biografias em Vida (Sulina, 1990; Companhia das Letras, 2013), a seleta de ensaios já publicados e de outros ainda inéditos em Ensaios e anseios crípticos (Pólo Editorial, 1997), a edição (que deveria ter saído em 1987) de Ensaios crípticos 2 (Criar, 2001), e a publicação da obra poética completa em Toda poesia (Companhia das Letras, 2013)33, edição que certamente fixa o lugar de Paulo Leminski no mercado editorial da poesia brasileira e, junto da exposição Múltiplo Leminski, passa a difundi-lo amplamente pelo território nacional e pontualmente no exterior – um exemplo é a recente publicação de Toda Poesia (Imprensa Nacional, 2020), em Portugal. Outra organização basilar realizada quase simultaneamente, embora com difusão muito mais restrita, é a de Anseios e ensaios crípticos, pela Editora da Unicamp, em duas edições, uma de 2011 e outra, em versão ampliada, em 2012. Nesse primeiro capítulo, estará em foco a fase formativa de Paulo Leminski, compreendida aqui de 1963 a 1975, tendo em vista o contato do paranaense com a poesia concretista paulista, cujos preceitos são assimilados e difundidos pelo poeta no circuito cultural curitibano, de modo a ser Catatau (1975) espécie de certidão forjada em cartório a fim não só de atestar o parentesco com o clã concreto, como também de testar as possibilidades de esgarçamento dos limites de tal programa. Simultaneamente à publicação do “porre verbal”, definição dada para Catatau por Affonso Romano de Sant’Anna (1976), no “lado b” do rigor, Leminski figura como um dos autores de duas canções da banda curitibana A chave34. 33 A Companhia das Letras reeditou, ainda, Caprichos & Relaxos (2016) para a coleção poesia de bolso. 34 Em 1975, A chave (1969-1979), nome fundamental do rock em Curitiba, lança o primeiro compacto de estúdio com duas canções, Buraco no coração e Me provoque pra ver. Nos créditos estão Orlando Azevedo, Ivo Rodrigues, Paulo Teixeira, Carlos Gaertner e Paulo Leminski. Em Me provoque aparece, curiosamente, a primeira imagem do poeta como aquele quem faz “chover no piquenique”: “se o dia é de sol / sou eu quem faço chover // sou de carne e osso / adoro uma tentação // me provoque pra ver”. Ao que indicam as cartas do poeta a Régis Bonvicino (1999), Leminski compôs um total de sete canções nessa época, sobretudo em parceria com o vocalista Ivo Rodrigues. Em 1978, Ivo Rodrigues passa a fazer parte da banda Blindagem, fundada em 1977, mantendo composições em parceria com Leminski, uma delas Verdura, regravada posteriormente por Caetano Veloso. No primeiro LP da Banda (1981), há oito composições de Leminski (MELO, 1999). Em palestra realizada no dia 24 de agosto de 2020, pelo VI Seminário do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da FFLCH (USP), Heloisa Buarque de Hollanda reafirma ser a relação entre a poesia e o rock’n’roll um dos traços mais distintivos da poesia produzida pela geração de 70, ao que Heloisa Buarque atribui o conceito de “práticas da palavra”. 26 O ano de 1975, portanto, seja pela publicação do prolixo Catatau, seja pelo tom inverso das canções de rock’n’roll, sugere ser o limiar para uma outra fase, cujo desbunde será integrado como princípio capaz de produzir uma antítese que seja síntese de sua própria geração. Em 1976, o poeta afirma que o “plano piloto” havia se tornado “plano pirata” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p. 36), o que não significa ter o planeta de Leminski deixado de sofrer, na fase seguinte, aquilo que Franchetti chama de “atração gravitacional da galáxia Campos” (FRANCHETTI, 2021, p. 19). Em entrevista de natureza curiosíssima35 sobre Catatau, publicada no Diário do Paraná, em setembro de 1975, três meses antes da publicação do livro, o poeta afirma que a obra é “[...], uma solução toda minha, pessoal, para minhas próprias angústias quanto à cultura letrada.”. Vistos juntos, os poemas concretos publicados em Invenção (1964, 1965), as palestras sobre poesia concreta difundidas em Curitiba (1963), Catatau (1975), as canções de rock (1975) e tais “angústias quanto à cultura letrada” podem, portanto, indicar uma transição para um segundo momento em que o poeta, após demorar-se algum tempo na assimilação e prática dos ensinamentos daqueles elencados por ele como seus antecessores e mestres, volta-se frente ao espelho a fim de reconhecer e dar a ver, afinal, a sua própria imagem. E o espelho, tomando Cartesius novamente de empréstimo, “reflete tanto a guerra como a festa, não tendo estilo.” (LEMINSKI, 2013, p. 52). No primeiro tópico, abordaremos o momento decisivo do encontro do jovem poeta paranaense com os poetas paulistas Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e o mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, na I Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, realizada em Belo Horizonte, ocasião em que Leminski insere-se no grupo e assina um manifesto resultante do encontro. A ressonância desse momento decisivo recairá no título de “primeiro poeta concreto do Paraná” dado a Paulo Leminski e na sua inserção imediata como colunista, tradutor e colaborador na imprensa curitibana. Além disso, ele participa ativamente como disseminador da “poesia de vanguarda”, conforme demonstram as palestras realizadas na Biblioteca Pública do Paraná, logo após o regresso do poeta de Belo Horizonte. É notória também, nesse período, a produção de ensaios programáticos. 35 Sem apresentar a autoria, a entrevista feita com Paulo Leminski, ao que tudo indica, foi elaborada inteiramente por ele próprio. O tom, o rumo e o aprofundamento das questões, predominantemente abordando assuntos teóricos sobre o próprio campo da poesia e da arte verbal citando desde Freud ao conceito de arte de Shoppenhauer, naquela altura e naquele periódico, não poderiam ter sido produzidos por outro jornalista curitibano senão pelo próprio Leminski. 27 No segundo tópico, apresentam-se as reflexões a respeito das tensões instauradas entre a necessidade de Paulo Leminski superar aquilo que ele próprio chama de “provincianismo curitibano” e a impossibilidade de negá-lo, movimento que tem como gestos fundamentais a mudança temporária do poeta para o Rio de Janeiro e a composição da prosa Catatau (1975). Por fim, no terceiro tópico, exploramos algumas dimensões relacionadas à obra Catatau (1975), entre elas o fracasso crítico e a recepção praticamente nula do livro à época do lançamento. Ambos os fatores são vistos como pontos decisivos para a formulação do poeta de uma perspectiva que afirma recusar o sistema literário. Isto é, trata-se de uma viragem para a segunda fase na medida em que os preceitos concretistas são percebidos como insuficientes e a preocupação passa a ser ajustar a equação entre uma linguagem literária de invenção e a necessidade de comunicação. 1.1 O PRIMEIRO POETA CONCRETO DO PARANÁ A primeira fase está relacionada sobretudo a uma espécie de “momento decisivo” – para usar um termo de Antonio Candido – do encontro do paranaense Leminski, aos 19 anos, com os poetas paulistas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari na I Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, realizada em 30 de setembro de 1963, na cidade de Belo Horizonte36. A Semana, patrocinada pela reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais (SANT’ANNA, 2014a), reuniu dois dos principais grupos de vanguarda brasileira da época: os concretistas da revista Invenção,37, de São Paulo, e o grupo de Minas, da revista Tendência, evento que contou com a presença do Ministro da Educação e da Cultura38, Paulo de Tarso, via mediação de Affonso Romano de Sant’Anna, demonstrando que, “Curiosamente, a vanguarda se institucionalizava. O sistema a abraçava.” (SANT’ANNA, 2014a, p. 11). 36Não sem “impasses teóricos e práticos” (SANT’ANNA, 2014a), uma espécie de manifesto-documento intitulado Comunicado e conclusões é redigido na ocasião, datado de 19 de agosto de 1963 e assinado por vinte e um poetas, dentre eles Paulo Leminski. Os poetas signatários são transcritos a seguir na ordem em que aparecem no documento: Roberto Pontual, Décio Pignatari, Augusto de Campos, Benedito Nunes, Haroldo de Campos, Affonso Ávila, Luiz Costa Lima, Laís Corrêa de Araújo, Affonso Romano de Sant’Anna, Frederico Morais, Pedro Xisto, Paulo Leminski, Márcio Sampaio, Olívio Tavares de Araújo, Henri Corrêa de Araújo, Ubirasçu Carneiro da Cunha, Haroldo Santiago, Luiz Adolfo Pinheiro, Fábio Lucas, Libério Neves, Célio César Paduani (ÁVILA, 2008). 37 Revista Invenção (1963-1964), periódico que sucede a revista Noigandres (1952-1962). 38 Paulo de Tarso foi o último Ministro da Educação e Cultura do governo João Goulart, de 18 de junho a 21 de outubro de 1963. Depois dele, assumiu o interino Júlio Furquim Sambaqui até a data de 6 de abril de 1964 quando assume, já no regime militar, Gama e Silva. 28 Sobre essa aproximação dos dois movimentos e a consequente institucionalização, vale a menção a respeito do momento decisivo que antecede a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda: o 2º Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, realizado em Assis/SP, em 196139. De acordo com Sant’Anna (2014a), é nessa ocasião que tem início o diálogo mais estreito entre os representantes de Invenção e Tendência, encontro que se materializa propriamente na Sétima Sessão Plenária, em que Décio Pignatari defende a tese do “salto participante” da Poesia Concreta através do relatório apresentado sob o título de “A situação atual da poesia no Brasil”40. Daí, portanto, parece emergir – não sem grandes debates – a aproximação decisiva que culminará na referida Semana Nacional de Poesia de Vanguarda. Sem pertencer a nenhum grupo de produção poética, jovem recém ingresso nos cursos de Direito (Universidade Federal do Paraná) e Letras (Pontifícia Universidade Católica), e ganhando a vida como professor em cursos pré-vestibular, Leminski participa da Semana de Poesia na condição de grande entusiasta do movimento41, ou, como ele próprio diz, como um “franco atirador” (ACERVO DIGITAL PAULO LEMINSKI, 2014, arquivo 37/310). Uma nota do jornal Hora H (Curitiba), de 1963, noticia a participação do “único representante do Paraná” na I Semana Nacional de Poesia e informa, ainda, que o “jovem professor paranaense – que traduz poemas de Maiakóvski (do original em russo) e faz poesia concreta [...]” pronunciará três das conferências mencionadas (ACERVO DIGITAL PAULO LEMINSKI, 2014, arquivo 1/12). 39 Fizeram parte do Congresso alguns dos mais importantes poetas e críticos literários em atividade à época, tais como Antonio Candido, Antônio Soares Amora, o português Jorge de Sena, Benedito Nunes, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Afonso Ávila, Affonso Romano de Sant’Anna, Roberto Schwarz. Também esteve presente Wilson Martins, único paranaense participante, tendo apresentado a conferência intitulada “A crítica como síntese”, na Terceira Sessão Plenária (ANAIS, 1963, p. 139-147). 40 Após a apresentação de Pignatari, Afonso Ávila, depois de reconhecer o trabalho “corajoso e honesto” do poeta paulista, afirma que, no entanto, Décio “[...] se perde a nosso ver no rigor doutrinário, deixando de considerar o panorama poético nacional na sua totalidade [...].” (ANAIS, 1963, p. 385). E prossegue: “Não sabemos até onde se pode considerar intencional no relatório de Décio Pignatari a omissão, entre outras, das experiências e sobretudo das reformulações críticas de “Tendência”. O fato se torna ainda mais estranhável quando, aqui mesmo em Assis, Haroldo de Campos, espírito dos mais lúcidos e honestos de nossa geração, manifestou-nos a convicção de que os mineiros de “Tendência” e os paulistas de “Invenção” se encontram, neste momento, identificados em muitos pontos e que seria proveitoso um contacto mais íntimo, mais constante entre os dois grupos.” (ANAIS, 1963, p. 395-396). 41 Leminski teve sua ida a Belo Horizonte financiada pelo Diretório Estudantil da Universidade Federal do Paraná, mais precisamente pelo presidente do Diretório, o professor de gramática Luiz Felipe Ribeiro, amigo de Leminski e já veterano do curso de Direito (LEMINSKI, 1982). Foi acolhido, na Semana, por Affonso Romano de Sant’Anna (2014a), fato que pode ser explicado mais pelas relações de política estudantil, da qual Affonso Romano era muito próximo, e menos pelas relações propriamente no campo literário. 29 O Rimbaud curitibano retorna de Belo Horizonte e, ao contrário das três conferências mencionadas, pronuncia duas palestras, nos dias 8 e 9 de outubro42, intituladas “Apresentação da poesia de vanguarda”, cujo objetivo, segundo o datiloscrito informa, é o de “colocar o problema da poesia no século XX e expor as soluções apresentadas por grupos brasileiros a essa problemática.” (ACERVO DIGITAL PAULO LEMINSKI, 2014, originais datilografados I, arquivo 37/310, grifo nosso). Desse fato, duas observações parecem fundamentais. A primeira delas é a constatação da simultaneidade entre a participação na Semana e o início da colaboração do jovem de 19 anos nos meios curitibanos de difusão cultural, atuando como uma espécie de “professor” a “ensinar” sobre o assunto mais contemporâneo em se tratando de poesia brasileira. A segunda observação está ligada ao próprio conteúdo da palestra. Se o objetivo indica a apresentação das soluções por parte de “grupos brasileiros”, o programa mostra a presença de um só grupo, o concretista: Quando disse poesia de vanguarda, fiquei a dever uma série de esclarecimentos a partir do próprio termo vanguarda. Por questão de afinidade e por razões de justiça, meu objeto é em particular a poesia concretista de S. Paulo. Que significa vanguarda? Ora, vanguarda quer dizer linha de frente, precedência no tempo ou no espaço. Em que pois a poesia concreta representa uma vanguarda, uma precedência, um passo à frente? Para responder a essa pergunta devemos apresentar a poesia concreta em suas exigências e realizações. (ACERVO DIGITAL PAULO LEMINSKI, 2014, arquivo 38/310, grifo nosso). Traçados os objetivos, o texto preparado para a palestra informa o panorama geral da poesia concreta paulista, ressaltando o trabalho de pesquisa de Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos a respeito de poetas e prosadores que, segundo eles próprios, haviam apresentado soluções estéticas originais e revolucionárias. Apresenta, então, um breve estudo do francês Mallarmé – especificamente da obra Un coup de dés – e do irlandês James Joyce, a partir de Ulysses e Finnegans Wake. A conclusão geral é a do caráter inovador de ambos estar ligado ao campo formal. Sobre Mallarmé, afirma que “[...] o novo, o revolucionário, porém estava na forma em que o poema se continha.” (ACERVO DIGITAL, 2014, arquivo 38/310). Sobre James Joyce, conclui: “[...] o espantoso é a estrutura de Ulysses.” (ACERVO DIGITAL, 2014, arquivo 38/310). A 42 Em nota, o jornal Correio do Paraná de 5 de outubro de 1963 anuncia as palestras de Leminski. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=171395&pagfis=24034. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=171395&pagfis=24034 30 eleição do conteúdo, o percurso traçado e as conclusões propostas indicam a existência de um jovem poeta que adere à cartilha programática do concretismo, mas não só. O gesto e o empenho na difusão desses conteúdos em seu próprio meio cultural indicam também o forte traço professoral de um Leminski também interessado em informar um público local interessado por questões que, para o poeta, estão na linha de frente do que há de mais contemporâneo em termos de poesia brasileira. Além das palestras, as reverberações da Semana Nacional de Poesia são sentidas com o início do trabalho de Leminski na imprensa curitibana, mais precisamente no jornal Correio do Paraná43. Em 13 de outubro de 1963, publica o ensaio “Um poeta mineiro”44, em que apresenta um “novo poeta”, o mesmo Affonso Romano de Sant’Anna, sobre o qual o autor afirma reservar “honrosa exceção”, tendo em vista que os “poetas que surgem atualmente no país” demonstram “certo descaso pelo labor poético” e consideram “a poesia como uma loucura divertida e passageira que merece a comemoração de ser editada” (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p. 7). Segundo Leminski, Affonso Romano de Sant’Anna, ao contrário, possui uma série de virtudes, dentre elas a de realizar, no plano dos poemas, uma “grande economia verbal” (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p. 7) aliada à eficácia da proximidade sonora e semântica de alguns versos. A perspectiva no supracitado ensaio também deixa ver o cerne da obsessão do poeta pelas reflexões acerca da função social da poesia. Ao colocar em causa, por exemplo, a poesia “puramente social”, Leminski indica (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p. 7), desde logo, a tendência pela defesa de uma poesia cujo rigor formal e apuro do conteúdo social sejam simultâneos – aprimoramento identificado por Leminski no poema Outubro, de Affonso Romano de Sant’Anna, poeta que, segundo ele, diferencia-se dos demais contemporâneos principalmente porque é “Profundo. Dono de técnica segura e poderosa”, de modo que “seria um dos poetas que poderiam com legitimidade suceder a Carlos Drummond, João Cabral de Melo Neto e algumas outras glórias de nossa poesia.” (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p. 7). Se o faro do jovem crítico, mesmo bem- informado, não é certeiro ao propor ser o poeta mineiro o sucessor legítimo de Drummond 43 Jornal designado como “órgão do Partido Liberal Paranaense”, publicado de 1932 até 1965. 44 No ensaio, Leminski analisa minuciosamente cinco poemas: Outubro, publicado no primeiro número da revista literária “Violão de Rua”; Bruxa, publicado em 23 de março 1963, no Correio da Manhã; O relógio, publicado no suplemento literário do Estado de S. Paulo, em 01 de junho de 1963; O homem e o objeto, publicado em 15 de junho de 1963 no mesmo suplemento literário; e Poema para Medgard Evers, publicado em 13 de julho de 1963. 31 e João Cabral é, entretanto, notória a inquietação latente acerca das tensões entre poesia engajada e engajamento poético. Embora o ensaio crítico e as reflexões a respeito da função social da poesia não apareçam nas publicações seguintes de Leminski para o Correio do Paraná, o alinhamento do jovem entusiasta do concretismo a tal movimento reverberará de modos diversos à medida que o poeta se consolida como colaborador do suplemento literário intitulado de Vanguarda, desse mesmo periódico. Um exemplo imediato é a tradução do poema Noite de lua paisagem45, de Maiakóvski, publicado em 19 de janeiro de 1964, cuja escolha não é de modo algum fortuita e segue, tal qual um bom aluno, os caminhos traçados pela cartilha concretista. Uma nota logo abaixo da tradução diz o seguinte: “Paulo Leminski, o primeiro poeta concretista do Paraná, iniciou hoje uma série de colaboração para VANGUARDA.” (CORREIO DO PARANÁ, 19 de janeiro de 1964, p. 7, grifo nosso). Dessa nota aparentemente desimportante, mostra-se relevante a tentativa de dar o título de “primeiro poeta concretista do Paraná” a Paulo Leminski, de modo a legitimar tanto o jovem colaborador quanto o próprio suplemento, cujo nome, Vanguarda, pressupõe a presença de conteúdos de mesma natureza. A escolha da tradução de um poema de Maiakóvski e a nota que o segue, portanto, reforçam mutuamente o esforço de atestar não apenas a certidão de nascimento concretista do jovem poeta, tido como um prodígio e uma promessa por uma gama significativa de poetas e críticos relevantes que o conheceram em Belo Horizonte, tais como Luiz Costa Lima, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari e o próprio Affonso Romano de Sant’Anna (KOSICKI, 2022). O gesto revela, também, o esforço de validar a inserção da imprensa curitibana, periférica em relação ao eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte, no espírito vanguardista da época. É Paulo Leminski, naquele momento, a ponte entre a capital paranaense e as capitais culturais brasileiras. Se no plano programático o representante do Paraná na Semana de Poesia de Vanguarda dava lições de vanguarda a um pequeno, mas considerável público curitibano, no plano prático, sua poesia ainda não parecia ter se alinhado aos preceitos concretistas. Em finais de 1964, Leminski publica, no suplemento Vanguarda o seguinte poema: 45Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=171395&pagfis=248 96. http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=171395&pagfis=24896 http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=171395&pagfis=24896 32 enquanto és apenas criança um direito te resta – o de ser não estando último que ninguém te tira numa noite de tormenta alguém virá montado no relâmpago convidar-te para ver - a gestão das águas - a luta nas nuvens - o voo dos raios que borrarão de azul teu rosto, flor de espanto – enquanto teu pai que se acredita sábio luta na cama para ter um sonho. (CORREIO DO PARANÁ, 15 nov., 1964, p. 8)46. A “noite de tormenta”, o “relâmpago” convidando o eu-lírico a ver a “luta nas nuvens”, o “voo dos raios”, a imagem do “borrão azul”, a presença do “tu” e a “flor de espanto”, se não podem atestar o parentesco com os poetas paulistas, indicam logo a proximidade com o paranaense e simbolista Dario Velozzo47. No mês seguinte, em dezembro de 1964, Leminski publica os primeiros cinco poemas da lavra concretista no n. 4 da Revista Invenção. Neles, ficam claros traços já bem distintos dos percebidos no poema anterior, tais como a distribuição gráfica dos signos, a valorização do espaço da página e a descontinuidade do discurso. Vejamos três deles, compilados sob o subtítulo de Invenções em Caprichos & relaxos (1983/2016): hai-cai: hi-fi i. chove na única qu’houve 46 Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=171395&pagfis=269 54. 47 Nascido no Rio de Janeiro, em 26 de novembro de 1869, muda-se para Curitiba em 1885, aos 16 anos, onde falece em 29 de setembro de 1937. Dário Vellozo foi um difusor da poesia simbolista no Paraná tendo fundado, em 1909, o Instituto Neo-Pitagórico, organização de livres-pensadores liderado por ele e composto por alunos e professores do Ginásio Paranaense, onde era professor de História Universal. Em 1918, é inaugurado o Templo das Musas, edificação construída pelo empenho de Dario Vellozo e intitulada como a “sede mundial do Instituto”, onde ocorriam reuniões, conferências e encontros. http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=171395&pagfis=26954 http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=171395&pagfis=26954 33 cavalo com guizos sigo com os olhos e me cavalizo de espanto espontânea oh espontânea. (LEMINSKI, 2016, p. 147) No primeiro, o uso da elipse nos três primeiros versos, o jogo tipográfico e não usual em “qu’houve”, a criação do termo “cavalizo” e o discurso descontínuo entre a segunda e a terceira estrofe, já indicam um Leminski compondo poemas tendo em vista o meio para o qual irá publicar, a revista concretista. Já no segundo poema (terceiro na ordem disposta no livro), sem título, a guinada à estética concreta é bem-sucedida. Faz uso de anagramas a partir do termo “metamorfose” e, com isso, contempla a dimensão verbi-voco-visual, instaurando estranhamentos nas três dimensões. O poema é transcrito a seguir: materesmofo temaserfomo termosfameo tremesfooma metrofasemo mortemesafo amorfotemes emarometesf eramosfetem fetomormesa mesamorfeto efatormesom maefortosem saotemorfem termosefoma faseortomem motormefase matermofeso metamorfose (LEMINSKI, 2016, p. 149). O jogo semântico e semiótico produzido pela combinação dos morfemas que formam a palavra “metamorfose” busca não só “traduzir a ideia dinâmica de mutação”, conforme afirma Régis Bonvicino (1994), em prefácio de Metaformose48, mas explora o 48 Em Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego (Iluminuras, 1994), publicado postumamente e utilizando o poema homônimo como espécie de nota introdutória, Leminski “alterna-se entre a prosa didática [...], a prosa de ficção [...] e a poesia em prosa” (BONVICINO, 1994, p. 9) colocando em jogo uma série de mitos com o claro intuito de fabular ao mesmo tempo em que introduz o leitor no mundo grego. 34 máximo e o múltiplo a partir de um só vocábulo, que se desdobra no próprio movimento sugerido por sua semântica. O resultado é o excesso mostrando a sua força de significação (CARDOZO, 2010) e a polissemia dos sentidos estruturada pela aparição, direta ou não, de palavras como mater/mãe, tema, treme, metro, morte, amor, feto, meta e metamorfose. Outro poema capaz de ilustrar a assimilação concretista é, talvez, o mais conhecido dessa safra leminskiana e aquele que alcança um ponto alto em termos de realização, sobretudo por sintetizar três fatores caros ao concretismo, o uso da disposição gráfica na página como recurso poético, a linguagem publicitária e a crítica cultural: PARKER TEXACO ESSO FORD ADAMS FABER MELHORAL SONRISAL RINSO LEVER GESSY RCE GE MOBILOIL KOLYNOS ELECTRIC COLGATE MOTORS GENERAL casas pernambucanas (LEMINSKI, 2016, p. 150). Aqui, menos do que realizar uma análise minuciosa do poema, cabe evidenciar o salto concreto em relação aos poemas publicados em Correio do Paraná. Não só a abolição do “tu” e a diferença em relação aos temas evidenciam uma alteração significativa, como também o uso da forma do cartaz publicitário e os sentidos instaurados pelo jogo tipográfico. As letras maiúsculas e minúsculas, por exemplo, trazem em si mesmas significações capazes de criar uma contraposição. As maiúsculas dos nomes das multinacionais e as minúsculas finais, que inserem o nome da loja varejista Isto é, parte da explicação de sua matéria prima, os mitos, para chegar a uma espécie de fabulação sobre a fabulação. Segundo Bonvicino (1994), “Metaformose pode ser visto, também, como um diálogo de Leminski com o poeta simbolista, radicado em Curitiba, Dario Vellozo.” (BONVICINO, 1994, p. 9). 35 brasileira “casas pernambucanas” precedida pelo termo “GENERAL”, na polissemia instaurada, liga-se tanto ao jogo interno do poema com o termo antecedente “motors”, formando o nome da multinacional de automóveis e fazendo alusão ao contexto sócio- político da ditadura militar recém instaurada pelos generais. Nos dois anos seguintes à participação na Semana, além dos poemas em Invenção (n. 4 e n. 5)49, Leminski publica dois ensaios de tom programático, exemplos sintomáticos daquilo que, mais tarde, Antonio Candido (1981) irá atestar como o estado atual da Literatura em 1972: a tendência de escritores significativos de vanguarda empenharem-se na exposição crítica de suas ideias. Não que Paulo Leminski gozasse, a essa época, do status de poeta significativo, mas a promessa de uma trajetória literária era já, de certo modo, conclamada por personagens importantes da empreitada vanguardista em curso. Assim, o anseio de Leminski mostrar também sua capacidade de crítica encontra no ensaio para jornal impresso o suporte e o meio ideais. São eles: o ensaio “Poética de vanguarda”, publicado no Diário da Tarde (PR), em 11 de julho de 1964 (FERRAZ, 2018), e “Anti-projeto à poesia no Brasil”50, publicado em 1965 numa edição especial da revista Convivium. Leminski tem, nessa ocasião, 21 anos. O que esses artigos deixam claro, portanto, não é somente a tentativa de rápida assimilação dos procedimentos da poesia “pop-creta” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 171). Trata-se, sobretudo em “Anti-projeto à poesia no Brasil”, de um poeta profundamente interessado em difundir sua própria interpretação sobre a poesia e, ainda que parta do arcabouço programático concretista, não deixa de ensejar tensões que o ultrapassam. Em sua estrutura, “Anti-projeto à poesia no Brasil” – título cuja troca do prefixo “ante” por “anti” demarca, segundo Kosicki (2022), a posição do poeta tanto em relação ao “Plano-piloto para poesia concreta” quanto ao “Anteprojeto do manifesto do Centro Popular de Cultura” – é composto por três tópicos numerados e intitulados da seguinte forma: “1. Tipo do mundo para o qual a poesia; 2. Tipo de poesia para tal mundo; 3 Senhores e ‘signores’” (neologismo criado pelo próprio Leminski para designar espécie 49 Os seis poemas publicados no n. 4 e nº. 5 da revista reaparecem, posteriormente, na coletânea Caprichos & Relaxos (1983), sob o subtítulo de Invenções. 50 Esse texto é reproduzido na íntegra e como anexo em: NUERNBERGER, Renan. Inquietudo. Uma poética possível no Brasil dos anos 1970. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dissertação, USP, 2014. p. 169-178. 36 de novo tipo de poeta: o senhor do signo). É interessante o dispositivo instaurado: o autor parte da explicação do mundo onde está inserida a poesia praticada naquele tempo, estreitando o foco até alcançar, por fim, o “senhor do signo” acompanhado do seguinte aviso: “Não me desculpo por falar de mim de vez que não houve alternativa: a coisa de que mais entendo sou eu mesmo. Só a partir de mim posso estabelecer posições. O inevitável é meio parente do legítimo.” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 171). Como um todo, o método presente nesse ensaio mostra-se fundamentalmente pautado por um esquema improvisado, isto é, com os recursos possíveis (e em Leminski há muitos em se tratando de conteúdo), desenvolve uma linha histórica enviesada cujo início se dá na constatação do lugar sagrado da escrita e o fim desemboca no próprio poeta, ou seja, na afirmação daquilo que entende como eixo norteador de sua própria poesia, conforme demonstra o seguinte trecho: “O que exijo de meus ‘poemas’ – textos – é que sejam blocos compactos e tensos. Indivíduos, como se de uma só pele. Tal monobloco é minha ‘mensagem.’” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 177). Operando com certa radicalidade sincrônica, abordagem histórica defendida por Haroldo de Campos em contraposição à diacrônica de Antonio Candido, Leminski anuncia dois tempos: um anterior à escrita, em que os signos eram escassos; e outro de excesso dos signos. A explicação para mundo anunciado é um tanto quanto improvisada, como demonstra, por exemplo, o uso de termos imprecisos como “Em épocas antepassadas”, ou, mais para frente, com “Nos tempos imemoriais”. Demonstra, assim, na própria forma do texto, o movimento de acumulação histórica que resulta, segundo Leminski, num mundo constituído pela “Avalanche de letras.” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 169), conforme o trecho a seguir retirado do primeiro tópico intitulado “Tipo do mundo para o qual a poesia”: Em épocas antepassadas, nosso mundo circundante era a “natureza” só. Os signos eram escassos. “Punti luminosi” no tohubohu dos fenômenos brutos. No mundo da pedra, árvore, céu, nuvens, vento, chuva, lua, rio, maré, pó, alimárias ferozes. A escrita, a letra, o ideograma, a runa, o alfa, os rebus eram raros de ver. Viam os sábios, os sacerdotes – em ocasiões. Sacralidade do signo. Na virada do século XIX para o nosso, e avançando, pouco a pouco, (MUNDO INDUSTRIAL, publicidade eleitoral, mercadorias, nomes de lojas, nomes de filmes, firmas, placas, cartazes, multas, livros, jornais, revistas, resenhas, tratados, teses, opúsculos, partituras, endereços, títulos, letras em papel, tinta, metal, madeira, acrílico, 37 borracha, plástico, gás neon, fogos de artifício, eucatex, zinco), o mundo da cidade (inevitável do homem) encharcou-se de letras, signos, siglas, nos rodeando, letras maiores que meu braço, maiores que você, uma letra é uma escada, um edifício – pedestal para a palavra GOODYEAR em vermelho. (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 169). Como se resumisse radicalmente uma longa história, a criação de tais atalhos no trecho supracitado serve para traçar um percurso a partir de um ponto impreciso da história universal, “Em épocas antepassadas”, para chegar a outro específico, o mundo industrial do século XIX. O procedimento é o de acúmulo de termos isolados que abarcam, por si só, sentidos e contextos diversos dando um salto abrupto do “mundo da pedra, árvore, céu, nuvens, vento, chuva, lua, rio, maré, pós, alimárias ferozes” para o “MUNDO INDUSTRIAL, publicidade eleitoral, mercadores, nomes de lojas, nomes de filmes [...].”. Os saltos históricos são demarcados por frases curtas, diretas e ausentes de conjunções ou conectivos, as quais alternam entre expressões imprecisas, tais como “Nos tempos imemoriais, havia deficit de signo. Deficit de signo!”, questões mais ou menos filosóficas, “Como viver numa página em branco?”, afirmações gerais, “Tudo eram signos, na Idade Média”, citações, “S. Paulo: ‘as coisas visíveis são espelhos das coisas invisíveis’, Sto. Agostinho: “Deus deu-nos dois livros: o revelado (as Escrituras) e o criado (a Natureza)”, e relações explicativas a partir de exemplos muito particulares, “É tanto signo que o signo não é mais signo: é fera, é escada, é coisa. Letras como escadas, casa (casa de JK no Paraguai formando as iniciais JK). Morar numa letra! Moramos.” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 169). Os atalhos criados, entretanto, não são gratuitos. Na visão total do texto, o que se apresenta como força motriz é o percurso, ainda que abrupto, que leva a um ponto muito específico: da “História da poesia moderna: do estático ao dinâmico” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 175), ao ponto final dessa cronologia improvisada, que é o próprio poeta. Uma dessas angústias, herdada dos poetas concretistas, resulta na reavaliação dos modos de leitura instituídos pela historiografia literária brasileira, afirmando se tratar de uma “tradição morna, amortecida e baça e bem-pensante”, cujo passado literário “é feito dessas bugigangas tilintantes chamadas Casimiro de Abreu, Castro Alves (revolucionário...e se não fosse?!), Bilac...” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 174). A tentativa de revisão histórica, por assim dizer, segue os trilhos críticos de Haroldo de Campos ao afirmar que, “O que há de vivo, agudo, jaz sob os escombros das medalhas dos medalhões: Sousândrade, Kilkerry, Marcelo Gama, Augusto dos Anjos e tantos simbolistas – eis a tradição com a qual urge entrar em contato, se é 38 que queremos ter um passado, fundamentos.” (LEMINSKI apud NUERNBERGER, 2014, p. 174). O poeta afirma, ainda, existir uma “linha viva da poesia brasileira”, cujo salto vai diretamente do “Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão, de Oswald de Andrade, a revista Noigandres”, conforme indica o trecho a seguir: E dizem que 22 é importante, que a Semana de Arte Moderna é isso e aquilo. 22 não interessa. O que interessa é Oswald de Andrade. Ah, mas 22 é importante, historicamente! Só se para professores de literatura e os autores de manuais. Hoje a obra poética de Mário de Andrade, Augusto Frederico Schmidt, Tasso da Silveira, Cassiano Ricardo, Ronald de Carvalho não lançam coisa alguma para o futuro, CRITICAMENTE FALANDO. Não são projeto. Não são pro-jetos. São ob-jetos. São ob-jetos da cultura, brônzeos bustos onde os basbaques penduram oferendas e ex-votos de acadêmica admiração. São ob-jetos que entulham a via. Coisas que embaraçam pelo