unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP HIANE VACCARO MALANDRIN DESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO: ANÁLISE DA AGENDA CEPALINA NO SÉCULO XXI ARARAQUARA – SP. 2023 HIANE VACCARO MALANDRIN DESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO: ANÁLISE DA AGENDA CEPALINA NO SÉCULO XXI Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Econômicas, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Econômicas. Orientador: Profa. Dra. Suzana Cristina Fernandes de Paiva ARARAQUARA – SP. 2023 M237d Malandrin, Hiane Vaccaro Desenvolvimento latino-americano: : análise da agenda cepalina no século XXI / Hiane Vaccaro Malandrin. -- Araraquara, 2023 113 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Ciências Econômicas) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Suzana Cristina Fernandes de Paiva 1. CEPAL. 2. Desenvolvimento econômico. 3. Estruturalismo. 4. Neoestruturalismo. 5. Política econômica. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. HIANE VACCARO MALANDRIN DESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO: ANÁLISE DA AGENDA CEPALINA NO SÉCULO XXI Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Econômicas, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Econômicas. Orientador: Profa. Dra. Suzana Cristina Fernandes de Paiva Data da defesa: 29/11/2023 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Suzana Cristina Fernandes de Paiva Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP Membro Titular: Prof. Dr. Raphael Guilherme Araujo Torrezan Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A todos que, de alguma forma, me ajudaram durante minha caminhada acadêmica e torceram para o meu sucesso. AGRADECIMENTOS A Deus, pelos planos que traçou para a minha vida. A jornada acadêmica ao longo desses cinco anos me proporcionou muito aprendizado e amadurecimento e, certamente, produzirá bons frutos. Obrigada pelos obstáculos que colocou em meu caminho e, principalmente, por ter me concedido força, sabedoria e determinação para seguir em frente e concluir mais uma etapa decisiva. À minha família, especialmente minha mãe Suzimeire Vaccaro, pelo amor e apoio incondicional. Apesar da distância, nossas conversas diárias, repletas de conselhos e palavras de encorajamento e conforto, me fizeram superar os momentos difíceis e avançar rumo às conquistas. Agradeço também aos meus avós maternos, Pedro Vaccaro e Mariliza Francisco Vaccaro, ao meu irmão Hiago Vaccaro Malandrin e à minha cunhada Thaissa Nascimento Feitoza, pois todos estiveram do meu lado durante essa trajetória. À Professora Doutora Suzana Cristina Fernandes de Paiva, por ter aceitado ser minha orientadora. Muito obrigada pela atenção, pelo tempo dispensado e por todo o suporte com suas correções que foram de suma importância para a elaboração desta monografia. À Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr), pela oportunidade de conhecer e conviver com muitas pessoas inspiradoras. Um agradecimento especial ao corpo docente do curso de Ciências Econômicas, cujos ensinamentos compartilhados de forma exemplar enriqueceram meu processo de formação. “Poucos de nós temos consciência do caráter profundamente anti- humano do subdesenvolvimento. Quando compreendemos isso, facilmente explicamos por que as massas estão dispostas a tudo fazer para superá-lo”. (Celso Furtado, 1962, p. 23) RESUMO Este trabalho de monografia tem como objeto de estudo um dos cinco organismos regionais das Nações Unidas (ONU), a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Reconhecida mundialmente como uma escola de pensamento econômico, a CEPAL se dedica à formulação de políticas e modelos de desenvolvimento apropriados à realidade latino-americana e caribenha. O objetivo deste trabalho consiste em analisar os novos elementos analíticos e as principais ênfases cepalinas contemporâneas, sistematizando- os de forma a verificar sua consonância com o ideário precedente. Para isso, foi reconstituída a trajetória teórica da instituição desde sua criação no pós-Segunda Guerra Mundial até o presente, no entanto, salientou-se o pensamento neoestruturalista de segunda fase (2000- atual). A pesquisa, caracterizada como documental-bibliográfica, foi realizada com base nos documentos oficiais elaborados pela própria comissão. Sendo assim, concluiu-se que as agendas cepalinas foram renovadas e enriquecidas frente aos fenômenos e aos problemas emergentes do século XXI, mas não provocaram rupturas com as proposições tradicionais. Palavras – chave: CEPAL; Desenvolvimento; Estruturalismo; Neoestruturalismo. ABSTRACT The subject of this monograph is one of the five regional organizations of the United Nations (UN), the Economic Commission for Latin America and the Caribbean (ECLAC). Recognized worldwide as a school of economic thought, ECLAC is dedicated to formulating development policies and models appropriate to the reality of Latin America and the Caribbean. The aim of this work is to analyze the new analytical elements and the main contemporary ECLAC emphases, systematizing them in order to verify their consistency with the preceding ideology. To this end, the institution's theoretical trajectory was reconstructed from its creation in the post-World War II period to the present, although the neo-structuralist thinking of the second phase (2000-present) was emphasized. The research, characterized as documentary-bibliographical, was carried out on the basis of official documents drawn up by the commission itself. As a result, it was concluded that Cepal's agendas have been renewed and enriched in the face of the phenomena and problems emerging in the 21st century, but have not led to a break with traditional propositions. Keywords: ECLAC; Development; Structuralism; Neo-structuralism. LISTA DE TABELAS Tabela 1 Índice multidimensional de pobreza 80 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ALCA Área de Livre Comércio das Américas BRIC Brasil, Rússia, Índia e China CEPAL Comissão Econômica para América Latina e o Caribe COP Conferência das Partes COVID-19 Coronavírus ECOSOC Conselho Econômico e Social das Nações Unidas EUA Estados Unidos da América F&A Fusões e Aquisições FMI Fundo Monetário Internacional IPCC Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática ISI Industrialização por Substituição de Importação MEPI Mudança Estrutural para a Igualdade MPMEs Micro, Pequenas e Médias Empresas OCDE Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico ODM Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODS Objetivos de Desenvolvimento Sustentável OIT Organização Internacional do Trabalho OMC Organização Mundial do Comércio ONG Organização Não Governamental ONU Organização das Nações Unidas P&D Pesquisa e Desenvolvimento PEA População Economicamente Ativa PIB Produto Interno Bruto TICs Tecnologias da Informação e Comunicação TPE Transformação Produtiva com Equidade SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 13 2. DO ESTRUTURALISMO AO NEOESTRUTURALISMO ................................ 17 2.1. ANOS 1950: INDUSTRIALIZAÇÃO ............................................................................ 18 2.2. ANOS 1960: REFORMAS PARA DESOBSTRUIR A INDUSTRIALIZAÇÃO ......... 21 2.3. ANOS 1970: REORIENTAÇÃO DOS "ESTILOS" DE DESENVOLVIMENTO PARA A HOMOGENEIZAÇÃO SOCIAL E A DIVERSIFICAÇÃO PRÓ-EXPORTADORA ....... 24 2.4. ANOS 1980: SUPERAÇÃO DO PROBLEMA DO ENDIVIDAMENTO EXTERNO MEDIANTE O "AJUSTE COM CRESCIMENTO" ............................................................... 26 2.5. ANOS 1990: TRANSFORMAÇÃO PRODUTIVA COM EQUIDADE (TPE) ............ 28 3. DÉCADA DE 2000: GLOBALIZAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E CIDADANIA ........................................................................................................................... 31 3.1. CONTEXTO HISTÓRICO ............................................................................................. 31 3.2. AVALIAÇÃO AMPLA DO DESEMPENHO DOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS NAS ESFERAS ECONÔMICA E SOCIAL APÓS AS REFORMAS NEOLIBERAIS ........................................................................................................................ 35 3.3. PERSPECTIVA DE UMA AGENDA PARA A ERA GLOBAL .................................. 38 3.3.1. Estratégias nacionais face à globalização .................................................................... 39 3.3.1.1. Estratégia macroeconômica ........................................................................................ 40 3.3.1.2. Desenvolvimento da competitividade sistêmica ........................................................ 41 3.3.1.3. Sustentabilidade ambiental ......................................................................................... 41 3.3.1.4. Políticas sociais ativas ................................................................................................ 42 3.3.2. O papel crítico do espaço regional ............................................................................... 43 3.3.3. A agenda global ............................................................................................................. 45 3.3.3.1. Suprimentos de bens públicos globais de caráter macroeconômico .......................... 45 3.3.3.2. Desenvolvimento sustentável como um bem público global ..................................... 46 3.3.3.3. Correção das assimetrias financeiras e macroeconômicas ......................................... 47 3.3.3.4. Superação das assimetrias produtivas e tecnológicas ................................................. 48 3.3.3.5. Plena incorporação da migração na agenda internacional .......................................... 49 3.3.3.6. Os direitos econômicos, sociais e culturais: aglutinadores da cidadania global ........ 50 3.4. OS CONCEITOS SOCIOPOLÍTICOS DE CIDADANIA E COESÃO SOCIAL ......... 50 3.4.1. O enfoque nos direitos, cidadania e coesão social ...................................................... 52 3.4.2. Os princípios da política social .................................................................................... 54 3.5. FUSÃO ENTRE O ESTRUTURALISMO E A INTERPRETAÇÃO SCHUMPETERIANA .............................................................................................................. 57 3.5.1. Mudança estrutural e progresso técnico ..................................................................... 58 3.5.2. Diversificação, comércio e crescimento em uma economia aberta ........................... 59 3.5.3. Crescimento e desequilíbrio externo na América Latina .......................................... 60 3.6. ÊNFASE NAS POLÍTICAS MACROECONÔMICAS ANTICÍCLICAS DIANTE DA VOLATILIDADE DE CAPITAIS ........................................................................................... 61 3.6.1. Gestão prudencial dos auges ........................................................................................ 62 3.6.2. O regime cambial .......................................................................................................... 63 3.6.3. Mecanismos de “auto seguro” ...................................................................................... 64 3.6.4. Regulamentação e supervisão prudencial dos sistemas financeiros ......................... 65 3.6.5. O desenvolvimento financeiro nacional ...................................................................... 65 4. DÉCADA 2010: O IMPERATIVO DA IGUALDADE ........................................ 67 4.1. CONTEXTO HISTÓRICO ............................................................................................. 67 4.2. TRÊS ELEMENTOS INTERDIMENSIONAIS BÁSICOS ........................................... 70 4.2.1. A centralidade da igualdade ......................................................................................... 70 4.2.2. Pactos para a igualdade ................................................................................................ 72 4.2.2.1. Pacto para uma fiscalidade com vocação de igualdade .............................................. 73 4.2.2.2. Pacto para o investimento, a política industrial e o financiamento inclusivo ............ 73 4.2.2.3. Pacto para a igualdade no mundo do trabalho ............................................................ 74 4.2.2.4. Pacto por maior bem-estar social e melhores serviços públicos ................................ 75 4.2.2.5. Pacto para a sustentabilidade ambiental ..................................................................... 75 4.2.2.6. Pacto para a governança dos recursos naturais .......................................................... 76 4.2.2.7. Pacto da comunidade internacional pelo desenvolvimento e a cooperação pós-201576 4.2.3. A economia política e a cultura do privilégio ............................................................. 77 4.3. DIMENSÃO SOCIAL .................................................................................................... 78 4.3.1. Análise multidimensional da pobreza ......................................................................... 79 4.3.2. Matriz de desigualdade social ...................................................................................... 82 4.3.3. Autonomia das mulheres e igualdade de gênero ........................................................ 84 4.3.4. Tendências demográficas ............................................................................................. 87 4.4. DIMENSÃO MACROECONÔMICA ............................................................................ 88 4.4.1. Macroeconomia para o desenvolvimento .................................................................... 88 4.4.1.1. Política fiscal anticíclica ............................................................................................. 89 4.4.1.2. Políticas monetária e cambial ..................................................................................... 90 4.4.1.3. Reforma do mercado de capitais ................................................................................ 91 4.4.2. Ciclo econômico e investimento ................................................................................... 92 4.5. DIMENSÃO PRODUTIVA............................................................................................ 94 4.5.1. Brechas de produtividade externa e interna ............................................................... 94 4.5.2. Mudança estrutural progressiva: eficiências schumpeteriana, keynesiana e ambiental ................................................................................................................................. 97 4.5.3. Revolução digital e conectividade de banda larga ..................................................... 98 4.5.4. Governança de recursos naturais ................................................................................ 99 4.6. DIMENSÃO AMBIENTAL ......................................................................................... 101 4.6.1. Economia da mudança climática ............................................................................... 102 4.6.2. Grande impulso ambiental ......................................................................................... 104 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 110 13 1. INTRODUÇÃO Com o término da Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento econômico ganhou notoriedade como objeto de estudo, afinal as disparidades entre os países ricos e pobres foram ampliadas significativamente. Destarte, a criação da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), por meio da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, permitiu que a periferia elaborasse uma teoria autônoma sobre a própria realidade. Os membros do organismo se dedicaram à investigação das causas do subdesenvolvimento regional e indicaram a industrialização e a equidade social como medidas para superar o problema. Sendo assim, os primeiros estudos inauguraram o método-histórico estruturalista, posteriormente reformulado em razão das transformações mundiais em direção à globalização e ao neoliberalismo, culminando na abordagem neoestruturalista (BÁRCENA, 2015). De um modo abrangente, a trajetória da CEPAL pode ser dividida em duas fases, como foi mencionado anteriormente: a primeira, estruturalista, perdurou entre 1948 e 1990, e a segunda, neoestruturalista, se iniciou na década de 1990 e se apresenta em pleno curso. O neoestruturalismo foi introduzido por Fernando Fajnzylber com a proposta de Transformação Produtiva com Equidade (TPE), se consolidando no começo do novo milênio através da atuação de José Antonio Ocampo, Secretário Executivo entre 1998 e 2002 (BIELSCHOWSKY, 2009). No quinquênio seguinte (2003-2008), a conjuntura internacional impulsionou o crescimento das economias latino-americanas e caribenhas. Neste período, a secretaria executiva foi dirigida por José Luis Machinea, de modo que o enfoque da agenda institucional consistiu em compatibilizar o processo de globalização à um desenvolvimento sustentável e equitativo, visando garantir a proteção social e a cidadania. As circunstâncias favoráveis da primeira década do século XXI foram comprometidas pela crise do subprime norte-americano em 2008, cujos efeitos foram comparados aos da Grande Depressão. O âmbito de recessão econômica agravou as vulnerabilidades socioeconômicas regionais, gerando questionamentos acerca da eficiência da globalização neoliberal. No mesmo ano, a bióloga e ex-Secretária-Geral Adjunta de Gestão nas Nações Unidas, Alicia Bárcena, foi eleita como Secretária Executiva da CEPAL, se tornando a primeira mulher a assumir o cargo. Os esforços de Alicia em conjunto com os demais membros da instituição culminaram em uma nova fase do neoestruturalismo, caracterizada por formulações que fomentaram a integração entre questões econômicas e político-sociais. Diante da fragilidade do modelo de desenvolvimento imperante, as publicações da década de 2010 deram origem à concepção de Mudança estrutural para a igualdade (MEPI) 14 (CEPAL, 2012). Considerado como um avanço da tese sobre equidade, o novo arranjo analítico se fundamentou no caráter multidimensional da desigualdade social para construir o imperativo da igualdade, ou seja, a visão da igualdade como o meio e o fim do desenvolvimento econômico. Além da esfera social, a escola de pensamento latino-americana reconheceu a existência de assimetrias ambientais entre centro e periferia, enfatizando o papel estatal na articulação entre as políticas de desenvolvimento. Com isso, o pensamento cepalino pós-crise de 2008 se mostrou coerente com as preocupações da comunidade internacional que foram expostas na Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Embora ainda esteja no início, a terceira década deste século já enfrentou uma severa crise social e econômica de ordem global, provocada pela pandemia de Coronavírus (COVID- 19). Nesse contexto, a organização se concentrou em reavaliar os estilos de desenvolvimento, sobretudo, a relação entre Estado, mercado, sociedade e meio ambiente, mantendo como foco a obtenção de inclusão, sustentabilidade e dinâmica produtiva (CEPAL, 2020). Apesar das melhorias alcançadas pela América Latina ao longo da história, o subdesenvolvimento persiste como um obstáculo a ser superado pelas governanças nacionais. Neste ano em que se comemora os 75 anos da CEPAL, observa-se que a temática do desenvolvimento permanece como uma pauta prioritária nos debates internacionais, corroborando a importância de a comissão realizar constantes autocríticas e renovar seus embasamentos analíticos. O presente trabalho analisa os desdobramentos do ideário cepalino no século XXI, com o intuito de revelar as novidades analíticas incorporadas pela instituição diante dos desafios contemporâneos. Como a maioria dos estudos retratam a origem da abordagem estruturalista e sua transição para o neoestruturalismo, a realização desta monografia se justifica pela necessidade de valorizar as produções recentes. De acordo com Bielschowsky (2020), os trabalhos cepalinos podem ser organizados e interpretados a partir da mensagem principal difundida em cada uma das décadas de sua existência. Nesse sentido, torna-se relevante sistematizar a visão institucional referente às décadas do século vigente, pois a integração global e os frequentes episódios de crise criaram uma complexidade conjuntural nunca constatada até então. Desta forma, tal sistematização pode contribuir para orientar os formuladores de políticas econômicas rumo à retomada do desenvolvimento regional. Consoante ao objetivo geral de identificar as novas formulações e as principais ênfases cepalinas, foram determinados os seguintes objetivos específicos: a. Apresentar as ideias fundamentais da tese estruturalista elaborada no final dos anos 1940. 15 b. Descrever as principais mudanças no pensamento da CEPAL com a inauguração do enfoque neoestruturalista na década de 1990. c. Analisar a segunda fase neoestruturalista que se iniciou nos anos 2000 e perdura até o presente. d. Apresentar os diagnósticos e as diretrizes referentes às duas primeiras décadas do século XXI. Ainda que alguns autores se refiram ao período pós-crise de 2008 como propulsor de uma nova fase da CEPAL, o trabalho considera a hipótese de que as diretrizes recentes representam um avanço reflexivo e não uma inflexão teórico-metodológica. Com base na evolução entre o estruturalismo e o neoestruturalismo, é possível constatar que a atuação da entidade foi motivada pela tentativa de compreender as especificidades de cada momento histórico, de forma que conceitos foram revistos e, ao mesmo tempo, componentes foram introduzidos em suas teorias. Deste modo, se pressupõe que as novas reconfigurações não tenham rompido com os pressupostos originais, assim como não afetaram o compromisso central de conduzir a América Latina e o Caribe ao processo de desenvolvimento. Em conformidade com o método qualitativo, esta monografia utilizou a pesquisa documental-bibliográfica a fim de compreender a evolução do pensamento da comissão econômica latino-americana e caribenha. Mediante a revisão de literaturas pertinentes, foram obtidas informações de fontes primária e secundária que serviram de base para produzir uma síntese das principais características das teses estruturalista e neoestruturalista. Posteriormente, foram explorados documentos recentes publicados pela própria CEPAL que descrevem as ideias-forças do neoestruturalismo em sua etapa de amadurecimento no século XXI, permitindo verificar as mudanças e as permanências em relação às orientações histórico- estruturalistas (1948-1990) e neoestruturalistas em sua primeira fase (1990-2000). Além desta introdução, o trabalho encontra-se estruturado em três capítulos. O primeiro capítulo contextualiza a formação da CEPAL no final dos anos 1940 e apresenta o desenvolvimento dos projetos estruturalistas e neoestruturalistas, resgatando as mensagens centrais construídas ao longo do período compreendido entre 1950 e 1990. Fundamentado nos relatórios Globalização e desenvolvimento (CEPAL, 2002a), Equidade, desenvolvimento e cidadania (CEPAL, 2002b) e Enfrentando o futuro da proteção social: acesso, financiamento e solidariedade (CEPAL, 2006), o segundo capítulo aborda os desdobramentos do neoestruturalismo na primeira década do século XXI. O terceiro capítulo discute as concepções cepalinas difundidas a partir de 2010 por meio da “trilogia da igualdade”, constituída pelos documentos A hora da igualdade: Brechas 16 por fechar, caminhos por abrir (CEPAL, 2010a), Mudança estrutural para a igualdade: uma visão integrada de desenvolvimento (CEPAL, 2012) e Pactos para a Igualdade: rumo a um futuro sustentável (CEPAL, 2014a). Complementando à bibliografia oficial, foram analisados os trabalhos de Ricardo Bielschowsky, Miguel Torres e Alicia Bárcena que retratam o sétimo decênio da instituição, objeto de estudo central do terceiro capítulo. Por fim, são expostas as considerações finais acerca do tema. 17 2. DO ESTRUTURALISMO AO NEOESTRUTURALISMO O surgimento da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) se sucedeu em um cenário de profunda crise econômica decorrente da Grande Depressão e, sobretudo, da Segunda Guerra Mundial. Antes dos anos 50, as discussões internacionais acerca do desenvolvimento econômico se concentraram na figura das nações industrializadas, constituindo um modelo universal de crescimento econômico. A teoria dominante interpretava o subdesenvolvimento como uma etapa pela qual todos os países passavam até atingir o desenvolvimento que, por sua vez, era abordado como sinônimo de crescimento econômico, tal como descreveu Rostow (1971). Segundo essa visão, o processo de acumulação de capital e de progresso técnico aumentaria a produtividade das economias atrasadas e, assim, o subdesenvolvimento seria superado. Os primeiros questionamentos em relação às limitações do pensamento econômico clássico e neoclássico foram realizados por John Maynard Keynes na década de 1930. Perante os efeitos da crise de 1929, o britânico identificou que a teoria convencional era ineficiente para interromper a trajetória de recessão econômica e impedir o aumento das assimetrias entre os países ricos e pobres, especialmente em termos de distribuição de renda. Nesse sentido, a teoria das vantagens comparativas relativa ao comércio internacional mostrou-se contestável, visto que o livre mercado não proporcionava benefícios mútuos para os países, logo, a intervenção estatal representava a principal alternativa para estimular a demanda agregada, recuperar a dinâmica da economia e promover bem-estar à sociedade. A partir da revolução keynesiana foi constatado o falso universalismo das formulações teóricas dos países de capitalismo industrial, pois não retratavam a realidade das nações periféricas. Ademais, notou-se que os países desenvolvidos apresentavam um comportamento contraditório ao propagar recomendações de cunho liberal, uma vez que adotaram práticas intervencionistas como estratégia de proteção e estímulo às suas indústrias nascentes, de modo que implementaram a liberalização comercial e financeira somente após a consolidação de suas lideranças (CHANG, 2003). Sendo assim, os diagnósticos e as propostas indicadas pelas economias avançadas eram inviáveis para conduzir o processo de desenvolvimento em regiões com características estruturais e históricas distintas. Dado o agravamento do subdesenvolvimento no contexto pós-guerra, tornou-se evidente a urgência de uma teorização autônoma, ou seja, uma economia do desenvolvimento baseada em teorias coerentes ao funcionamento e aos problemas das economias atrasadas. Nesse âmbito, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da Organização das Nações 18 Unidas (ONU) criou a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) em 1948 com sede em Santiago, no Chile (BIELSCHOWSKY, 2000). Renomeada como Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe em 1984 e considerada como uma das cinco comissões regionais atuais da ONU, o início da trajetória intelectual da instituição ficou marcada pelas contribuições do economista argentino Raúl Prebisch. 2.1. ANOS 1950: INDUSTRIALIZAÇÃO Ao elaborar um documento para a Conferência da CEPAL em Havana no ano de 1949, intitulado como O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus principais problemas, também conhecido como o Manifesto latino-americano, Prebisch rompeu com o vazio teórico da época e inaugurou o método histórico-estruturalista. Com base na ideia de um sistema mundial polarizado, compreendeu-se que o modo de inserção internacional e de industrialização da América Latina era determinado por suas especificidades estruturais socioeconômicas, logo, o subdesenvolvimento passou a ser interpretado como um produto da formação histórica. Com isso, o estruturalismo latino-americano se consolidou como uma linha de pensamento econômico regional e heterodoxa, cuja “riqueza [...] reside, pois, numa fértil interação entre o método indutivo e a abstração teórica formulada originalmente por Prebisch” (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 21). De acordo com o sistema centro-periferia estudado pelo argentino, a periferia apresentava uma estrutura produtiva heterogênea e especializada na exportação de produtos primários, enquanto o centro possuía uma estrutura homogênea e diversificada que exportava produtos manufaturados e importava matérias-primas. A teoria do comércio internacional, mais especificamente o princípio das vantagens comparativas, estimulava a especialização dos países nas atividades que já eram exercidas. Assim, as atividades primárias expressavam a vantagem relativa das economias latino-americanas, de forma que não precisariam se industrializar, afinal a divisão internacional do trabalho proporcionaria benefícios sob a forma da queda dos preços ou do aumento da renda (PREBISCH, 2000). Segundo a análise de Prebisch (2000), a aceleração no ritmo de inovação do centro acontecia desde a Revolução Industrial, se difundindo de maneira integrada e homogênea e culminando em uma melhora nos preços internos e um aumento generalizado da renda. Por outro lado, o modelo primário-exportador voltado para fora empregado pela periferia fez com que as técnicas produtivas avançassem de forma lenta e heterogênea, promovendo a desarticulação entre os setores econômicos e a alta concentração de renda agrária. A 19 explicação para essa divergência correspondia a menor incorporação de progresso técnico na exploração de recursos naturais quando comparada com as atividades industriais, condição que restringia a ampliação da capacidade produtiva, a absorção de mão de obra e o crescimento dos salários reais (RODRIGUEZ et al., 1995). A dicotomia centro e periferia evidenciou a disseminação desigual dos frutos do progresso técnico, pois os ganhos dos países desenvolvidos prevaleciam aos da América Latina através dos preços finais. Os economistas Prebisch e Hans Singer consideraram como pressuposto inicial que o crescimento da produtividade decorrente do progresso técnico implicaria em custos de produção menores, logo, os preços dos bens manufaturados tenderiam a sofrer uma queda. Em oposição a essa expectativa, se verificou uma redução nos preços dos produtos primários exportados pela periferia, sendo esclarecida pela concepção de deterioração dos termos de troca, também conhecida como “tese de Prebisch-Singer”. O fenômeno de deterioração dos termos de troca se relacionava aos movimentos cíclicos do capitalismo e seus impactos nas condições de oferta e demanda dos produtos primários, se manifestando através das variáveis preço, lucro e salário. A fase ascendente procedente dos países industrializados se caracterizava pelo aumento dos lucros e o respectivo aumento de salários. Além disso, promovia uma alta elasticidade-renda por produtos manufaturados em detrimento de uma baixa elasticidade da demanda por produtos primários, visto que a intensificação do progresso técnico reduzia a necessidade de matérias-primas no processo produtivo, assim como o incremento na renda diminuía a demanda por alimentos. Durante o período de expansão econômica, os preços dos produtos primários cresciam mais do que os preços industrializados e, assim, qualquer aumento na renda dos países subdesenvolvidos se transformava em um estímulo às importações de produtos manufaturados, indicando uma transferência de renda involuntária. Em contrapartida, a queda nos preços primários mostrava-se mais acentuada na fase descendente do ciclo econômico, afinal os agentes produtivos das indústrias reconheciam a imobilidade da força de trabalho entre centro e periferia, de modo que se organizavam em sindicados e exerciam forte resistência à redução dos salários. Nesse cenário, a abundante e heterogênea mão de obra da periferia possuía capacidade limitada em defender e aumentar sua renda, portanto, os lucros e os salários não se sustentavam, contraindo os preços relativos dos bens primários. Em suma, a deterioração dos termos de intercâmbio indicava que os custos da rigidez nos preços industriais eram transferidos para a periferia, isto é, o centro se apropriava dos frutos do progresso técnico das economias subdesenvolvidas (RODRIGUEZ, 2009). Com base nessa constatação, Prebisch expôs a natureza irrealista da teoria do comércio 20 internacional no que se refere aos ganhos de produtividade equivalentes no mundo polarizado. A crítica era direcionada à perspectiva liberal e ortodoxa do pensamento econômico tradicional, pois o atraso técnico na capacidade produtiva das economias primárias constituía uma desvantagem na inserção econômica externa, perpetuando o subdesenvolvimento. A tendência de deterioração dos termos de troca tem sido estabelecida desde a Primeira Guerra Mundial como consequência da hegemonia norte-americana. De maneira adversa à política britânica do livre comércio, o poder econômico dos EUA foi consolidado mediante políticas protecionistas, portanto, o aumento real na renda da nação não provocou simultâneo aumento dos seus índices de importação. Diante da sua incontestável influência no comércio internacional, o acúmulo de reservas pelos norte-americanos gerou efeitos diretos na dinamização da economia, incluindo os próprios mercados do centro, além de comprometer a estratégia de desenvolvimento para fora adotada pelas periferias (PREBISCH, 2000). Os adventos do século XX, em especial a depressão dos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial, implicaram em forte queda na receita de exportação dos países da América Latina, evidenciando o esgotamento do modelo primário exportador e conduzindo à uma industrialização espontânea (RODRIGUEZ, 2009). Deste modo, o início da industrialização na periferia consistiu em uma reação à contração do setor externo, dando origem ao modelo de desenvolvimento para dentro. Ao reconhecer as mudanças em curso, Prebisch entendeu que a industrialização representava a solução para o subdesenvolvimento. “Ela não constitui um fim em si, mas é o único meio que estes dispõem para ir captando uma parte do produto técnico e elevando progressivamente o padrão de vida das massas” (PREBISCH, 2000, p.72). A partir da influência do economista argentino, o pensamento cepalino dos anos 50 se baseou em um modelo de industrialização não espontâneo, denominado como substituição de importações (ISI). A ideia defendida pela instituição era um projeto de industrialização endógeno impulsionado e coordenado pelo Estado, figura responsável por implementar uma política de importações seletivas com foco em bens de capital, ou seja, máquinas e equipamentos. Nesse sentido, a exportação de produtos primários e o financiamento externo transitório foram utilizados como ferramentas para a aquisição de divisas que viabilizaram as importações. Isto posto, a periferia dependia da abertura comercial dos centros enquanto praticava medidas protecionistas em relação às suas indústrias em formação, bem como impedia padrões de consumo adversos ao processo de desenvolvimento econômico. 21 2.2. ANOS 1960: REFORMAS PARA DESOBSTRUIR A INDUSTRIALIZAÇÃO O processo de industrialização e crescimento das economias latino-americanas se sucedeu durante a segunda metade dos anos 1950, em um cenário de instabilidade macroeconômica e pressão inflacionária, cujos dilemas se manifestaram na década de 1960. Como desdobramento do atraso estrutural, a etapa inicial da industrialização, conhecida como substituição fácil de importações, se concentrou em setores de menor complexidade tecnológica, como os bens não-duráveis de consumo final. O modelo de desenvolvimento para dentro consistiu em reproduzir os produtos manufaturados importados dos países desenvolvidos, portanto, as inovações tecnológicas não foram aplicadas para a transformação da estrutura econômica de fato. A dinâmica substitutiva simbolizou apenas uma mudança na composição dos produtos importados e não uma diminuição em seu volume, afinal a produção de bens mais complexos, como bens de consumo duráveis e intermediários, exigia novas importações de equipamentos e insumos, caracterizando a fase de substituição difícil de importações. Diante da impossibilidade de satisfazer as importações para o avanço da industrialização, o problema da escassez de reservas era renovado continuamente, refletindo no balanço de pagamentos por meio de déficits (BIELSCHOWSKY, 1998). Logo, a lenta incorporação de progresso técnico conduziu a uma industrialização de caráter especializado incapaz de realocar a alta oferta de mão de obra, de modo que a urbanização descontrolada resultou em desemprego, na transição do subemprego rural para o ambiente urbano e na marginalização de grupos sociais. Durante os anos 1960, os cepalinos passaram a realizar uma análise crítica do processo de desenvolvimento em andamento, propondo uma interpretação mais que econômica, abrangendo os elementos do âmbito social (RODRIGUEZ, 2009). Com isso, a discussão da época se organizou em três pontos principais, conforme relatou Bielschowsky (2000, p. 39): Primeiro, a interpretação de que a industrialização havia seguido um curso que não conseguia incorporar na maioria da população os frutos da modernidade e do progresso técnico; segundo, a interpretação de que a industrialização não havia eliminado a vulnerabilidade externa e a dependência, pois só se havia modificado sua natureza; e terceiro, a ideia de que ambos os processos obstruíam o desenvolvimento. Com base na perspectiva dos sociólogos José Medina Echavarría, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, os diagnósticos da CEPAL se pautaram na teoria da dependência. A 22 nova metodologia analisava as estruturas sociais para compreender o subdesenvolvimento latino-americano, identificando a maneira que os grupos e classes sociais internos se formaram, adquiriram poder e se vincularam historicamente ao exterior. Essa teorização ganhou destaque com o economista chileno Osvaldo Sunkel e sua ideia de um sistema mundial único, no qual o desenvolvimento e o subdesenvolvimento não eram retratados como etapas de um processo evolutivo, mas sim como elementos interdependentes. Enquanto o centro desempenhava uma posição dominante, a periferia era dependente e apenas uma parcela da sua população se integrava ao mundo moderno (BIELSCHOWSKY, 2000). Além da tese dependentista, a década de 1960 ficou marcada pelo conceito de heterogeneidade estrutural, desenvolvido pelo chileno Aníbal Pinto para demonstrar a desproporcionalidade produtiva dentro da periferia (RODRIGUEZ, 2009). Apesar da industrialização em curso, os setores produtivos atrasados permaneceram predominantes em comparação aos setores modernos, concentrando os frutos do progresso técnico entre as camadas sociais e conservando a insuficiência dinâmica. Como resultado, os complexos latifúndios-minifúndios da América Latina revelaram desigualdades sociais mais expressivas, especialmente, em decorrência do elevado nível de renda detido pelos latifundiários rentistas, cujos interesses não favoreciam a difusão do progresso técnico, comprometendo o uso potencial dos recursos produtivos e a absorção da população economicamente ativa. Dado que a industrialização não promoveu os resultados esperados, principalmente em termos de homogeneidade dos setores econômicos e de crescimento da renda por habitante, os membros da CEPAL destacaram a necessidade de transformar a estrutura social dos países atrasados através da distribuição de renda e de reformas institucionais. Em síntese, a ideia era alterar o padrão de desenvolvimento econômico vigente, submetendo o sistema capitalista às reformas de natureza agrária, patrimonial, financeira, tributária, educacional e tecnológica (BIELSCHOWSKY, 2000). Acerca da questão agrária, os trabalhos do economista brasileiro Celso Furtado ressaltaram o papel do uso social do excedente de capital, representando uma forma de aumentar a produtividade das atividades agrícolas, melhorar a distribuição de renda e criar condições adequadas para a manutenção dos indivíduos no campo. Membro do corpo da CEPAL desde 1949, Furtado contribuiu decisivamente para a elaboração de uma teoria do subdesenvolvimento, principalmente, com a publicação da obra Desenvolvimento e subdesenvolvimento em 1961. O pensador adotou a expansão do capitalismo industrial europeu e seus efeitos sobre a economia mundial como premissa de sua argumentação. Assim, constatou que o início do modelo clássico do desenvolvimento industrial ficou marcado pelo lado da oferta, uma vez que a dinâmica econômica se 23 expressava na ação inovadora empresarial e na respectiva incorporação de novas técnicas produtivas, a fim de garantir baixos preços aos bens de consumo. Mediante o crescimento da produção e da lucratividade em detrimento da economia artesanal, os setores de bens de consumo e de bens de capital se articularam, absorvendo a ampla classe trabalhista e instaurando uma estrutura produtiva diversificada e homogênea. Durante a segunda fase do desenvolvimento industrial britânico, a oferta de mão de obra se tornou inelástica e, como reação à elevação dos salários reais, foram empregadas técnicas de produção intensivas em capital, visando substituir o capital humano. Por conseguinte, a evolução da tecnologia se mostrou substancial para a consolidação do capitalismo nos países industrializados, se configurando como uma das condições históricas próprias do seu processo de desenvolvimento. Após a Revolução Industrial, surgiram três linhas de desenvolvimento da economia mundial no século XVIII, sendo que a mais evidente foi descrita anteriormente, representada pela transição entre as atividades artesanais para as industriais dentro do próprio território europeu. A segunda linha, por sua vez, correspondia ao deslocamento populacional para terras desocupadas dotadas de características favoráveis economicamente, em razão da semelhança com a Europa. Por fim, a terceira linha se referia à ocupação de terras povoadas com sistemas produtivos pré-capitalistas estabelecidos que, inevitavelmente, eram integrados à estrutura capitalista proposta pelos europeus, dando origem a uma estrutura híbrida. Segundo Furtado (2000, p. 253), “esse tipo de economia dualista constitui, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento contemporâneo”. À medida que a lógica maximizadora de lucros era introduzida nas regiões arcaicas sem uma alteração absoluta das estruturas econômicas, somente uma parcela da força de trabalho era absorvida, porém com níveis salariais que refletiam as condições de vida e não a produtividade. Ademais, os lucros gerados pelos núcleos capitalistas não eram investidos nas economias locais. Ao compreender que as particularidades da periferia global procediam do deslocamento da fronteira econômica europeia, o brasileiro contestou a ideia do subdesenvolvimento como uma etapa necessária para atingir um grau superior de desenvolvimento econômico. “O subdesenvolvimento é, portanto, um processo histórico autônomo” (FURTADO, 2000, p. 253) que, embora variasse de região para região, apresentava a interdependência frente aos centros industriais como elemento em comum. A coexistência de distintos níveis de desenvolvimento em um dado momento histórico corroborava a teoria furtadiana do subdesenvolvimento baseada no conteúdo histórico. Destarte, para entender as estruturas subdesenvolvidas, sobretudo, a gênese das dificuldades 24 relativas à construção de um núcleo endógeno autossuficiente e sólido, era necessário aprofundar a análise nas variáveis não econômicas dos modelos macroeconômicos. Assim como Prebisch e os demais influentes intelectuais estruturalistas, Celso Furtado considerava a industrialização como a “mola” que impulsionaria o desenvolvimento periférico. Todavia, reconhecia que os principais obstáculos do crescimento econômico estavam concentrados na esfera social, em especial nas estruturas tradicionais agrárias, tidas como o elemento básico da sociedade latino-americana e caribenha (FURTADO, 1970). Perante a baixa eficácia da industrialização como agente transformador da ordem social, a reestruturação do campo promoveria a mobilidade dos estratos sociais e melhoraria a vida das massas rurais, influenciando o desempenho da economia regional. Para isso, era recomendado um planejamento estratégico de longo prazo organizado pelo Estado, pautado na redistribuição de renda, na mitigação das tensões sociais e na incorporação da mão de obra que ficava à margem do progresso técnico. 2.3. ANOS 1970: REORIENTAÇÃO DOS "ESTILOS" DE DESENVOLVIMENTO PARA A HOMOGENEIZAÇÃO SOCIAL E A DIVERSIFICAÇÃO PRÓ-EXPORTADORA O período compreendido entre a década de 1960 e o início dos anos 1970 ficou marcado pelo auge econômico mundial, responsável por favorecer o crescimento da América Latina através do estímulo às exportações e do amplo acesso às divisas internacionais. Contudo, o primeiro choque do petróleo em 1973 instaurou uma fase de recessão internacional, fazendo com que os países latino-americanos optassem pelo endividamento externo para manter a trajetória de crescimento e a estabilização macroeconômica. Além da crise econômica, o contexto histórico era constituído pela supremacia dos sistemas financeiros e pela ascensão das ditaduras militares que restringiram o poder de influência do pensamento cepalino. Enquanto Chile, Argentina e Uruguai implantaram a abertura econômica como modelo de desenvolvimento, os demais países priorizaram a industrialização com forte protecionismo e intervencionismo estatal (BIELSCHOWSKY, 2000). A partir das mudanças políticas, sociais e econômicas da época, os estruturalistas passaram a investigar a relação entre o processo de dinamismo vigente nas economias latino- americanas e a existência das injustiças sociais, culminando na concepção de estilos ou modalidades de desenvolvimento. A ideia de estilos foi introduzida pelo argentino Óscar Varsavsky em 1969, mediante um modelo matemático que expressava os efeitos de diferentes 25 estruturas de produto e demanda sobre as demais variáveis econômicas. Os trabalhos de Maria da Conceição Tavares e José Serra com foco no estilo de crescimento perverso do Brasil, assim como os estudos de Aníbal Pinto se tornaram referência nessa temática. De acordo com Pinto (1976, p. 104) “Entende-se por estilo a maneira como, em um determinado sistema, são organizados e alocados os recursos humanos e materiais com o propósito de resolver as questões sobre o que, para quem e como produzir os bens e serviços”. Rodriguez (2009) esclareceu que o estilo de desenvolvimento de uma determinada economia poderia ser considerado como fruto da conexão entre fatores estáticos e dinâmicos que correspondiam, respectivamente, à estrutura e aos movimentos do sistema econômico. Assim, a base estrutural ou estática era formada pela estrutura produtiva (o que produzir) e pela heterogeneidade estrutural (como produzir) que, por sua vez, refletia os diferentes níveis de produtividade da mão de obra. No que tange os aspectos dinâmicos, a distribuição de renda condicionava o comportamento da demanda (para quem produzir) e os padrões de consumo, promovendo a expansão ou alterações na estrutura produtiva. No caso da América Latina, o processo substitutivo se caracterizou por profundas diferenças de produtividade do trabalho entre os setores primitivo, intermediário e moderno. Dada a baixa absorção de mão de obra pelo setor moderno, a maior parcela da população continuou empregada na agricultura, enfrentando privações econômicas procedentes da distribuição regressiva de renda. Como consequência, a estratégia de desenvolvimento para dentro se pautava no consumo das classes médias e altas, visto que os elevados valores unitários dos bens duráveis de consumo dificultavam o acesso dos estratos sociais inferiores a esse tipo de produto. Desta forma, concluiu-se que a concentração de renda sustentava a estrutura produtiva existente e vice-versa (BIELSCHOWSKY, 2000). Em conformidade com a noção de desenvolvimento integral propagada pela ONU, a abordagem cepalina dos anos 1970 destacou a necessidade de buscar alternativas para os padrões de desenvolvimento do período. Nesse sentido, o sociólogo Marshall Wolfe se baseou na experiência das nações centrais para contestar a ideia de um único modelo de desenvolvimento, argumentando que a pluralidade de características da América Latina demandava estilos de desenvolvimento diferenciados e originais para cada sociedade (RODRIGUEZ, 2009). Ao reconhecer o caráter multidisciplinar dos estilos, a CEPAL defendia a distribuição de renda e a redemocratização política como elementos-chave para a obtenção de crescimento econômico com inclusão social. A reorientação das modalidades de desenvolvimento tinha como objetivo atingir a homogeneidade social e, ao mesmo tempo, superar as dificuldades presentes no processo 26 industrial. Considerando o cenário de instabilidade internacional, a instituição alertava sobre os perigos envolvidos no crescente endividamento externo da região, bem como na liberalização comercial e financeira adotada pelos países do Cone Sul. Por essa razão, os estudos da segunda metade da década de 1970 enfatizaram uma estratégia de industrialização que articulava o mercado interno à diversificação da pauta exportadora, visando reduzir a dependência externa e fortalecer as exportações industriais (BIELSCHOWSKY, 2000). 2.4. ANOS 1980: SUPERAÇÃO DO PROBLEMA DO ENDIVIDAMENTO EXTERNO MEDIANTE O "AJUSTE COM CRESCIMENTO" O segundo choque do petróleo seguido da elevação da taxa de juros estadunidense provocou a crise da dívida externa na América Latina e no Caribe, de forma que a expressão “década perdida” foi cunhada para designar o colapso econômico da região durante os anos 1980. Diante da escassez de divisas, do endividamento generalizado e da aceleração inflacionária, a maioria dos países praticaram ajustes recessivos como reação à estagnação da atividade econômica. Ainda que o interesse cepalino nas dimensões produtivas e distributivas do desenvolvimento econômico fosse inquestionável, as questões macroeconômicas de curto prazo assumiram o cerne das discussões da época, dando origem à trilogia dívida-inflação- ajuste (BIELSCHOWSKY, 2020). A CEPAL contestava a estratégia recessiva voltada para o pagamento das dívidas, dado que a contenção das importações acompanhada do aumento das exportações não seria suficiente para a recuperação econômica da periferia. Segundo o texto Políticas de ajuste e renegociação da dívida externa da América Latina (CEPAL, 2000), a principal sugestão era um ajuste com crescimento, isto é, investir em setores de bens comercializáveis para expandir a produção e a diversificação das exportações e, assim, superar as dificuldades externas. Por conseguinte, era fundamental uma revisão das condições ortodoxas estabelecidas pelos bancos credores e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) aos devedores latino-americanos, assim como uma redução do protecionismo industrial das economias centrais. Em consonância com os pressupostos básicos do método histórico-estruturalista, a entidade ressaltava a necessidade de os países periféricos fazerem uso adequado dos instrumentos de política econômica, visando alterar suas estruturas produtivas e ampliar a capacidade exportadora. A respeito das políticas de estabilização, estudos provenientes do Brasil e da Argentina permitiram compreender que o caráter inercial dos processos inflacionários não era ocasionado por políticas monetárias e fiscais expansionistas. Logo, a 27 recomendação cepalina era a implementação de políticas de renda em detrimento de políticas restritivas, cuja finalidade era amenizar os efeitos da inflação sobre os investimentos, a renda e o emprego (BIELSCHOWSKY, 2000). Apesar da preocupação com os problemas de ordem macroeconômica, a entrada de Fernando Fajnzylber na CEPAL contribuiu diretamente para a retomada do debate sobre as questões de longo prazo. A princípio, o economista chileno denominou a industrialização substitutiva da América Latina como truncada, pois o ideal de reproduzir os elevados padrões de vida de nações centrais levou a formação de uma estrutura comercial voltada para o mercado interno. A imitação passiva das técnicas usadas pelos grandes centros favorecia as atividades de baixo valor agregado e restringia o acúmulo de conhecimentos para o avanço do progresso técnico, gerando um desempenho deficitário nos setores intensivos em tecnologia. A partir do texto Industrialização da América Latina: da “caixa preta” ao “conjunto vazio” (1990), os desdobramentos dos estudos de Fajnzylber comprovaram a possibilidade de crescer economicamente e redistribuir renda, tal como o exemplo advindo da trajetória dos Tigres Asiáticos. Porém, nenhum país latino-americano apresentou esse tipo de comportamento entre os anos 1970 e 1984, indicando que a região não alcançava os objetivos centrais de uma estratégia de desenvolvimento, ou seja, crescimento econômico e equidade. Embora o precário padrão industrial da periferia fosse resultado de um conjunto de falhas, Fajnzylber argumentava que o cerne do problema estava no baixo coeficiente de investimento em intelecto associado a alocação ineficiente dos recursos naturais, de modo que poderia ser interpretado como a incapacidade de abrir a “caixa-preta” do progresso técnico. Em suma, as reflexões de Fajnzylber foram motivadas pela importância de resgatar as abordagens histórico-estruturalistas cepalinas e adequá-las à conjuntura dos anos 1980 que, por sua vez, indicava o esgotamento do modelo de industrialização vigente. Como alternativa à competitividade espúria da América Latina, caracterizada pela exploração demasiada de recursos naturais e pelos salários baixos, a proposta de uma “nova industrialização” consistia na criação de um núcleo endógeno de dinamização tecnológica. Com base na articulação entre a criatividade e o aprendizado, o propósito era aprimorar as técnicas existentes e gerar inovações para aumentar a produção e, simultaneamente, induzir uma inserção sólida no comércio internacional (FAJNZYLBER, 1983). Como desdobramento desse pensamento, a CEPAL da década de 1990 ficou marcada por uma nova fase, conhecida como neoestruturalista, na qual prevaleceram as concepções de progresso técnico e equidade. 28 2.5. ANOS 1990: TRANSFORMAÇÃO PRODUTIVA COM EQUIDADE (TPE) O colapso do desenvolvimento tradicional latino-americano nos anos 1980 levou as economias centrais e os organismos internacionais a se reunirem em novembro de 1989, na capital dos Estados Unidos, para elaborarem uma série de recomendações aos países periféricos. De acordo com o Consenso de Washington, a crise econômica enfrentada pela América Latina havia sido provocada pela exacerbada intervenção estatal e pelas políticas internas protecionistas. A partir dessa perspectiva, o receituário das nações desenvolvidas propunha reajustes estruturais de cunho neoliberal, como a disciplina fiscal, a reorientação dos gastos públicos, a liberalização financeira e comercial, a abertura para o investimento direto estrangeiro, a privatização e a desregulamentação. No início da década de 1990, a renegociação da dívida seguida da retomada do financiamento externo a taxas de juros reduzidas, proporcionaram a estabilização dos preços latino-americanos e uma modesta melhora econômica. Contudo, o controle inflacionário via entrada de capital estrangeiro implicava em valorização cambial e, respectivamente, em déficit na balança comercial, sustentando a vulnerabilidade externa regional (BIELSCHOWSKY, 2000). Neste período de ascensão neoliberal associada ao processo de globalização, a América Latina apresentou os primeiros movimentos de privatização e de abertura comercial e financeira. Ante a nova realidade internacional tornou-se indispensável a realização de uma autocrítica dos pensamentos clássicos cepalinos. A fase neoestruturalista foi inaugurada por meio do texto Transformação produtiva com equidade: a tarefa prioritária do desenvolvimento da América Latina e Caribe nos anos 1990, publicado pela Revista da CEPAL de 1990 como a nova ideia-força da instituição (CEPAL, 1990). Formulada por Fernando Fajnzylber, a nova estratégia de desenvolvimento para a região se fundamentou no conceito de competitividade autêntica que se referia à importância da incorporação contínua de progresso técnico nos âmbitos microeconômico e macroeconômico. No que tange o ambiente micro, o critério de competitividade era determinado pela eficiência no uso dos insumos produtivos e pela qualidade dos bens e serviços ofertados, se assemelhando aos padrões internacionais. Quanto às condições macroeconômicas, a competitividade de uma economia dependia da sua capacidade de inovar, expandindo sua participação nos mercados externos e garantindo um aumento no nível de renda da população (RODRIGUEZ, 1995). A TPE discutiu exaustivamente o caráter endógeno do progresso técnico e sua capacidade de gerar um mecanismo de competição global, no qual as empresas se esforçavam 29 para imitar e superar uma inovação inicial. “Origina-se desta forma um processo evolutivo de inovação e de difusão de técnicas e produtos melhores que dão lugar ao constante deslocamento da fronteira tecnológica” (CEPAL, 1990, p. 70). Nesse sentido, os neoestruturalistas abordaram o caráter desigual ou diferenciado do progresso técnico que se manifestava através dos setores, ramos ou sub-ramos, estabelecendo tendências no funcionamento do comércio internacional, incluindo a prática de medidas protecionistas nos ramos de ponta. Diante dessa dinâmica, a reinserção da América Latina nos mercados externos implicava em agregar conhecimento dentro da própria economia e nos produtos e serviços destinados às exportações. A difusão do progresso técnico viabilizava a vinculação entre os mercados interno e externo e promovia a articulação produtiva, atingindo os setores manufatureiro, de recursos naturais e de serviços. Dado que o cenário de globalização impulsionou o avanço das tecnologias da informação, as economias desenvolvidas passaram a utilizá-las nos processos produtivos e na organização empresarial, alterando a composição do trabalho e ampliando a integração interna de cada ramo e entre eles. A partir dessas constatações, a CEPAL dos anos 1990 propunha a incorporação de novas técnicas na indústria e na agricultura latino- americana, articulando ambos os setores à prestação de serviços. Em relação aos problemas do subemprego estrutural agrícola e da informalidade urbana, os cepalinos sugeriram o desenvolvimento de políticas assistenciais e de modificação da informalidade, a associando às atividades de produtividade normal ou elevada (RODRIGUEZ, 2009). Em conformidade com a interpretação de Fajnzylber acerca do investimento em intelecto e sua contribuição para o desenvolvimento econômico, os neoestruturalistas concluíram que o progresso técnico dependia do papel dos agentes no processo de criação, acúmulo e difusão de novos conhecimentos. Isto posto, a agregação de valor intelectual variava de acordo com o tipo de organização empresarial e com a infraestrutura tecnológica do país que, por sua vez, era formada por instituições públicas e privadas que se dedicavam à pesquisa e ao desenvolvimento de inovações que, possivelmente, seriam absorvidas pelas empresas. Essa noção de infraestrutura também englobava o sistema educativo público, bem como as experiências e as habilidades individuais obtidas pela população e pelas entidades. O conjunto de elementos mencionado anteriormente conferiu um sentido sistêmico ao progresso técnico, pois “[...] o desempenho tecnológico das economias depende da presença de um conjunto de sinergias e externalidades de diversos tipos, mais que das reações maximizadoras das empresas individuais frente às mudanças registradas no sistema de preços” (CEPAL, 1990, p. 73). Por esse motivo, Fajnzylber destacava que a incapacidade de 30 inovar da periferia poderia ser atenuada por meio de um planejamento estatal, caracterizado pela interação com os agentes privados e constituído por ações com alto potencial de aprimorar a infraestrutura física e educacional, fortalecendo a produção intelectual. As diretrizes da TPE resgataram temas que foram fragilizados na década anterior devido ao endividamento externo e a primazia atribuída à estabilização macroeconômica. A agenda cepalina do período apontava o progresso técnico como o elemento central para a construção da competitividade autêntica latino-americana, fomentando um círculo virtuoso de crescimento e equidade. Portanto, a ênfase neoestruturalista na industrialização e na distribuição de renda corroborou a visão histórico-estruturalista dos anos 1950, defendida principalmente pelos economistas Prebisch e Furtado. Em síntese, os pressupostos básicos da instituição foram preservados e, ao mesmo tempo, flexibilizados perante as novas e inevitáveis tendências liberalizantes do contexto histórico. Os neoestruturalistas revisaram criticamente as reformas ortodoxas em curso, redefinindo o modelo de industrialização e a estratégia de intervenção estatal. A retórica do Estado-gerencial em substituição a do Estado-empreendedor não indicava um aumento ou uma redução da iniciativa estatal, mas sim uma atuação estratégica e pontual de estímulo à produção intensiva em tecnologia e de enfrentamento das desigualdades sociais (MORAES; IBRAHIM; MORAIS, 2020). Segundo a TPE, a superação do subdesenvolvimento exigia um projeto de modernização e articulação dos setores produtivos, pois a livre concorrência favorecia a competitividade e a inserção no comércio mundial. Apesar do abandono do modelo de substituição de importações, o pensamento neoestruturalista priorizava uma abertura econômica gradual e seletiva, visando maximizar as oportunidades para a região. Além de Fernando Fajnzylber, a segunda fase da CEPAL contou com a participação de Gert Rosenthal, Osvaldo Sunkel, José Antonio Ocampo, José Luis Machinea, Joseph Ramos e Ricardo Ffrench-Davis. Alguns estudiosos definiram o neoestruturalismo como um ponto de inflexão na trajetória da comissão, sob a justificativa de uma aproximação ou uma “rendição” aos ideais neoliberais. Bielschowsky (2020) reconheceu que a teoria da transformação produtiva com equidade não se tratava de uma contestação às reformas ortodoxas, porém a considerava como uma formulação alternativa ao neoliberalismo, cuja originalidade foi responsável por reorientar os marcos regulatórios dos países latino- americanos em direção a políticas e estratégias desenvolvimentistas atualizadas para a época. 31 3. DÉCADA DE 2000: GLOBALIZAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E CIDADANIA 3.1. CONTEXTO HISTÓRICO O começo do século XXI ficou marcado pela consolidação da globalização e do neoliberalismo, ambos os fenômenos foram impulsionados pelos adventos das últimas décadas do século passado. A globalização consiste em um processo histórico e gradual de integração multidimensional entre países do mundo todo, viabilizado pelo avanço das tecnologias de transporte e comunicação (CEPAL, 2002b). Trata-se de um processo antigo que foi periodizado em fases de acordo com fatos históricos relevantes, de tal modo que a fase atual possui como marco inaugural a queda do Muro de Berlim em 1989, símbolo do fim da Guerra Fria. Com o fracasso da União Soviética, a nova ordem mundial foi construída com base no capitalismo, um sistema econômico pautado na expansão e na acumulação de capitais. Em conformidade com a lógica capitalista, o neoliberalismo surgiu como uma ideologia que enaltecia a propriedade privada e o livre mercado em detrimento do Estado de bem-estar social. Durante a crise dos anos 1980, líderes de nações industrializadas, como Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos EUA, defenderam o neoliberalismo como um projeto político-econômico, inclusive para as regiões subdesenvolvidas. Destarte, em 1989, o governo norte-americano em conjunto com organismos financeiros internacionais elaborou o Consenso de Washington, um receituário de caráter ortodoxo destinado a América Latina e o Caribe, no qual argumentava-se que a estabilização macroeconômica e a economia de mercado eram condições necessárias para o desenvolvimento socioeconômico da periferia (BÁRCENA; BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018). A configuração da globalização nos anos 1990 favoreceu diretamente a expansão do paradigma neoliberal, afinal barreiras temporais e geográficas foram eliminadas pela evolução das tecnologias da informação e da comunicação, ampliando a articulação dos mercados internacionais. Sendo assim, a implementação das reformas neoliberais culminou em modelos de desenvolvimento homogêneos, caracterizados pela abertura comercial, a desregulamentação econômica, a privatização de empresas estatais, a disciplina fiscal e a redução dos gastos públicos. Ao reconhecer a inevitabilidade de tais mudanças, a CEPAL optou por adaptar suas formulações à nova realidade, mas sem abandonar os pressupostos originais relacionados ao método estruturalista. A partir de análises críticas à agenda 32 neoliberal, o neoestruturalismo propôs políticas de desenvolvimento baseadas na transformação produtiva com equidade social. A princípio, a tendência à liberalização promoveu crescimento da atividade econômica, porém a intensa volatilidade de capitais e a interdependência financeira entre os países evidenciou um problema intrínseco do capitalismo: o fenômeno das crises. As crises asiática e russa no final da década de 1990 geraram instabilidades generalizadas, de forma que o novo milênio foi instaurado com uma grave recessão econômica global. No caso da América Latina, a estabilização monetária pautada na apreciação cambial e, respectivamente, no endividamento externo constituiu um quadro de vulnerabilidade financeira. Como consequência, a região passou a enfrentar crises internas nos anos 2000, como por exemplo a crise da Argentina em 2001. Dado que o quinquênio de 1997 a 2002 ficou caracterizado por sucessivas crises internacionais e regionais, a hegemonia neoliberal se mostrou passível de questionamentos. Conforme os resultados dos indicadores econômicos, os ajustes neoliberais adotados após a crise da dívida não foram capazes de recuperar a tendência do PIB latino-americano e caribenho, uma vez que revelaram taxas de crescimento inferiores às do período de 1960 a 1980. Ademais, a região manifestou um aumento na taxa média de desemprego, fruto do lento crescimento econômico e das assimetrias na relação capital-trabalho. Por outro lado, as políticas implementadas pelos países asiáticos asseguraram uma trajetória crescente do PIB, inclusive diante dos efeitos da crise de 1997 (BÁRCENA; PRADO, 2015). Além das questões econômicas, as práticas neoliberais ampliaram a degradação do meio ambiente, tornando-se notórias as externalidades negativas produzidas pelos centros industriais, bem como a desintegração entre as instituições internacionais responsáveis pela gestão da sustentabilidade ambiental. No plano social, a dinâmica da globalização contribuiu para o reconhecimento dos direitos humanos, contudo, também se configurou como uma ameaça às culturas e às identidades múltiplas devido ao processo de homogeneização cultural, no qual culturas locais sofrem a influência de uma cultura externa dominante, padronizando valores, ideias e costumes (CEPAL, 2002a). No campo político, apesar da preponderância democrática, havia os governos de centro-esquerda que apoiavam programas redistributivos e desenvolvimentistas enquanto os governos de direita priorizavam a eficiência do mercado, portanto, não atendiam plenamente aos interesses da população menos favorecida. Em síntese, os desafios econômicos, ambientais e sociopolíticos decorrentes do funcionamento das economias abertas indicavam o surgimento de profundas desigualdades e, por essa razão, movimentos antiglobalização foram organizados na transição dos séculos. A 33 fragilidade do Consenso de Washington criou um espaço de discussão entre o pensamento neoliberal e as perspectivas alternativas, com destaque para o neoestruturalismo cepalino. Diante desse cenário ideológico oportuno, o então Secretário Executivo José Antonio Ocampo buscou compreender a posição da região na nova conjuntura global a fim de promover equidade, desenvolvimento e cidadania. De acordo com Bielschowsky (2009), o colombiano contribuiu para fortalecer o viés heterodoxo da comissão, se tornando uma figura importante no processo de consolidação do ideário neoestruturalista. Dando continuidade aos temas abordados na fase inaugural do neoestruturalismo, os estudos orientados por Ocampo enquanto presidiu a CEPAL (1998-2003) conferiram amadurecimento e refinamento à proposta de Transformação Produtiva com Equidade (TPE). Ao analisar os efeitos multidimensionais da globalização, os trabalhos da década de 2000 resgataram pressupostos estruturalistas para descrever as lacunas socioeconômicas entre os polos desenvolvido e subdesenvolvido, arranjo que dificultava a inserção internacional e o desenvolvimento produtivo periférico. Com isso, aprofundou-se as discussões referentes às esferas sociais e ambientais, atribuindo ênfase às ideias de equidade, cidadania e coesão social, bem como à preservação do meio ambiente. No que tange os aspectos macroeconômicos, recomendou-se a formação de políticas nacionais anticíclicas, visando proteger a região do comportamento volátil do capital financeiro internacional. As crises regionais se enfraqueceram a partir de 2003, em virtude da coincidência de fatores conjunturais que fomentaram a aceleração do crescimento econômico mundial, fato que não era observado desde a década de 1970. Entre as condições externas favoráveis, vale ressaltar a expansão monetária e fiscal empregada pelos norte-americanos após os atentados de 11 de setembro de 2001, considerada como uma estratégia para recuperar a credibilidade no mercado estrangeiro. Assim como os EUA, as demais nações centrais retomaram a trajetória de crescimento, constituindo um novo ciclo de liquidez internacional e ampliando a atuação das empresas transnacionais. Superada a crise de 1997, o desempenho econômico dos países asiáticos, especialmente da China, instaurou uma demanda crescente por matérias- primas, elevando os preços e as quantidades transacionadas desse tipo de produto. As mudanças nas circunstâncias internacionais, sobretudo o boom de commodities, beneficiaram diretamente a América Latina e o Caribe, originando um ciclo de crescimento histórico que perdurou aproximadamente cinco anos (2003-2007). A forte inserção externa, tanto comercial quanto financeira, garantiu uma expansão da renda per capita regional acima da média registrada pelas economias desenvolvidas. Como reflexo do ritmo célere do comércio mundial, as exportações cresceram em volume e valor, proporcionando uma 34 melhora nos termos de troca da periferia. Apesar do aumento nas importações, a intensa entrada de capitais via setor externo conferiu um saldo superavitário na conta de transações correntes do balanço de pagamentos (BÁRCENA; PRADO, 2015). O boom comercial global foi acompanhado pelo boom financeiro, de modo que uma parcela significativa da liquidez externa foi destinada aos países subdesenvolvidos sob a forma de investimentos diretos estrangeiros e fluxos de capitais. Além de amenizar a restrição externa da região, o acúmulo de reservas internacionais promoveu a valorização da taxa de câmbio, viabilizando o expansionismo fiscal sem gerar descontrole inflacionário. Logo, a maioria dos governos latino-americanos e caribenhos consolidaram os processos democráticos e ampliaram os gastos sociais, reduzindo significativamente os níveis de pobreza, miséria e desigualdade. Nesse sentido, os avanços no âmbito social foram obtidos por meio da combinação de fatores políticos e econômicos, tal como exemplificam os programas de transferência condicionada de renda e as políticas de reajuste do salário mínimo. Segundo os economistas ortodoxos, o episódio de estabilidade e crescimento econômico regional procedeu da aplicação das diretrizes difundidas pelo Consenso de Washington, corroborando a eficácia da lógica neoliberal. Os cepalinos, por sua vez, argumentavam que os resultados positivos atingidos pela periferia foram motivados pela alta dos preços dos recursos naturais, circunstância apropriada para países com estrutura exportadora intensiva em bens primários. Nessa perspectiva, a comissão interpretava a melhora nos termos de troca das matérias-primas como uma oportunidade para superar o atraso tecnológico, afinal os excedentes financeiros poderiam ser investidos na mudança da estrutura produtiva. Consoante à ideia formulada pelo neoestruturalista Fajnzylber, a orientação era agregar valor à produção mediante o acúmulo de conhecimentos e a incorporação gradual de inovação tecnológica. Durante a fase de otimismo, entre 2003 e 2008, a Secretaria Executiva da CEPAL foi dirigida por José Luis Machinea, responsável por enriquecer os projetos desenvolvidos no quinquênio anterior. Deste modo, foram elaboradas proposições coerentes ao novo quadro expansivo, sobretudo, questões relacionadas ao longo prazo, como a tendência de reprimarização ou desindustrialização, isto é, especializar a pauta exportadora em recursos naturais em detrimento de produtos manufaturados ou semimanufaturados. Uma matriz produtiva pouco diversificada implicava em padrões comerciais assimétricos, caracterizados por exportações de baixa complexidade tecnológica e, simultaneamente, por importações de média e alta intensidade tecnológica. No caso da América Latina e do Caribe, o boom de 35 preços das exportações estimulava o consumo, principalmente de bens importados, enquanto a estrutura produtiva permanecia dependente de produtos básicos. Com base nos trabalhos anteriores conduzidos por Ocampo, o diagnóstico institucional continuou alertando sobre os riscos relativos às flutuações dos ciclos econômicos no curto prazo, em especial, o caráter temporário dos períodos de expansão. Preocupados com a possibilidade de uma recessão futura decorrente da queda ou estagnação na demanda e nos preços das commodities, os cepalinos enfatizaram a necessidade de a região desenvolver estratégias econômicas sustentáveis a médio e longo prazo, como por exemplo as medidas macroeconômicas anticíclicas (BIELSCHOWSKY, 2009). Em suma, a ideia era aproveitar as vantagens momentâneas provenientes do ambiente externo para promover transformações produtivas, sociais e ambientais internas, visando avançar rumo ao desenvolvimento. À vista disso, as produções intelectuais referentes à primeira década do século XXI culminaram em cinco novas formulações analíticas que foram analisadas nas subseções seguintes. 3.2. AVALIAÇÃO AMPLA DO DESEMPENHO DOS PAÍSES LATINO- AMERICANOS E CARIBENHOS NAS ESFERAS ECONÔMICA E SOCIAL APÓS AS REFORMAS NEOLIBERAIS As ideias-forças das obras cepalinas publicadas nos anos 2000 foram desenvolvidas a partir de um balanço crítico acerca da década de 1990, em particular, sobre os impactos das reformas neoliberais na América Latina e no Caribe. Apesar das características intrínsecas dos países, como o tamanho, a estrutura e o grau de desenvolvimento, se verificou um comportamento generalizado marcado pela implementação de reformas estruturais e programas de estabilização macroeconômica, cuja finalidade era a inserção econômica nos mercados globais e a superação da crise da dívida, respectivamente (CEPAL, 2002b). No começo da década, a região apresentou crescimento do produto interno bruto e estabilização inflacionária, de modo que alguns analistas associaram tais avanços à consolidação da hegemonia neoliberal e da globalização. Em contrapartida, os neoestruturalistas contestaram esse pensamento, sob o argumento de que a melhoria no desempenho macroeconômico não havia excedido os resultados obtidos antes de 1980. Considerada como um indicador de vulnerabilidade, a crise do México em 1994 evidenciou a dependência do crescimento econômico latino-americano e caribenho em relação aos fluxos internacionais de capitais. Sendo assim, as crises financeiras e cambiais ocorridas durante a segunda metade da década reduziram a transferência líquida de recursos, 36 comprometendo o ritmo acelerado de crescimento. Nesse contexto de instabilidades, a crise asiática foi responsável por instaurar uma severa recessão no biênio 1998-1999, destacando a fragilidade das políticas econômicas pró-cíclicas adotadas pela periferia, em especial, a estabilização monetária baseada na ancoragem cambial. Essa estratégia se revelou insustentável durante a fase de estagnação econômica, visto que a desvalorização da taxa de câmbio real afetou diretamente a taxa de inflação e o equilíbrio fiscal. No que tange a integração dos países da América Latina e do Caribe à economia internacional, foram constatadas entradas significativas de investimentos estrangeiros diretos entre 1990 e 1994, atingindo o ápice em 1999 (CEPAL, 2002a). As reformas estruturais implementadas ao longo da década, como as desregulamentações, as privatizações e os acordos de livre comércio indicaram a adesão regional ao processo de abertura econômica, atraindo um novo ciclo de investimentos, sobretudo, de origem europeia. Cerca de 40% dos investimentos entre 1997 e 1999 foram do tipo brownfield, portanto, as fusões e aquisições (F&A) não geraram capacidade produtiva nova, apenas ampliaram a capacidade dos ativos já instalados. Nesse sentido, as expectativas de reestruturação industrial por parte dos governos nacionais não se materializaram, pois, a maioria das empresas transnacionais não possuíam a intenção de dinamizar os setores de baixo valor agregado das economias subdesenvolvidas. A inserção internacional da região também foi motivada pelo boom de exportações, mas a expansão das atividades exportadoras não foi acompanhada por padrões homogêneos de especialização. Alguns países avançaram na comercialização de bens manufaturados produzidos com insumos importados, com destaque para o México, enquanto outros permaneceram concentrados em commodities ou produtos manufaturados intensivos em recursos naturais, como o Brasil e, ainda, havia aqueles que exportavam serviços, como por exemplo o Panamá. Isto posto, os sistemas de produção integrada, característicos da dinâmica globalizada, estimularam a utilização de bens intermediários e de capital importados, enfraquecendo o encadeamento produtivo e a capacidade de inovação dos mercados locais. A diversificação insuficiente das exportações latino-americanas e caribenhas culminou em um desempenho insatisfatório da balança comercial, exigindo constantes financiamentos externos. Diante desse cenário, os setores nacionais passaram por processos divergentes de reestruturação produtiva, de forma que os setores produtores de bens e serviços não comercializáveis apresentaram um desempenho mais expressivo. Acerca dessa temática, vale ressaltar a modernização introduzida nos serviços de energia e telecomunicações, fruto dos investimentos privados e da crescente atuação das empresas transnacionais. Por outro lado, a reestruturação dos setores produtores de bens comercializáveis, especialmente da indústria 37 manufatureira, se sucedeu de maneira heterogênea. Por essa razão, os níveis de produtividade e competitividade registrados pelo México, América Central e Caribe nos anos 1990 prevaleceram sobre os da América do Sul, estabelecendo uma defasagem tecnológica dentro da própria região, denominada como “brecha digital interna” (CEPAL, 2002a). Como reflexo da heterogeneidade nas estruturas de produção, os indicadores relativos ao mercado de trabalho apontaram para o aumento do desemprego e a deterioração na qualidade dos empregos, fatores que explicam a expansão da informalidade na década de 1990. Os países sul-americanos demonstraram fraco potencial de criação de empregos em relação aos países que se especializaram na produção e comercialização de produtos manufaturados, afinal as atividades intensivas em recursos naturais demandavam menos mão de obra. O lento crescimento do emprego e a baixa produtividade dos trabalhadores retrataram a incapacidade da região em explorar adequadamente o bônus demográfico, fenômeno marcado pelo aumento expressivo da população economicamente ativa. Ademais, a flexibilidade dos sistemas trabalhistas no contexto globalizado acentuou a precariedade do emprego, ampliando as disparidades de renda entre a mão de obra especializada com ensino superior e a não especializada e enfraquecendo os regimes de previdência e assistência social. Na esfera social, ampliou-se a aplicação dos recursos públicos em áreas estratégicas, como educação, saúde e alimentação, a fim de atenuar os atrasos regionais e viabilizar sua inserção internacional (BIELSCHOWSKY, 2010). À vista disto, foram incorporados critérios mais seletivos e mudanças nos procedimentos de alocação dos gastos sociais, assim como os serviços sociais foram reestruturados, possibilitando a participação do setor privado. Contudo, os gastos sociais crescentes não garantiram melhorias suficientes na qualidade dos serviços prestados, uma vez que se manifestaram de maneira desigual entre os segmentos da sociedade, comprometendo o princípio da universalidade dos esquemas de seguridade social. A respeito dos níveis de pobreza, se verificou uma redução gradual ao longo dos anos 1990, porém permaneceram acima dos resultados obtidos no final da década de 1980. De acordo com a tendência, governos que associaram programas de transferência de renda ao controle inflacionário obtiveram progressos mais relevantes no combate à pobreza. Fundamentado no índice de Gini, a maioria dos países da região não alcançaram uma distribuição de renda mais igualitária na última década do século XX. Ainda que a crise da dívida e o processo de globalização tenham dificultado a superação das desigualdades, essa situação remetia à trajetória de desenvolvimento das nações subdesenvolvidas, na qual a qualidade da educação e dos empregos, o padrão de distribuição de renda e as condições demográficas consistiam em fatores determinantes (CEPAL, 2002b). Em termos de igualdade 38 entre os sexos, foram observados avanços parciais acerca dessa questão, pois as políticas e programas públicos ofertaram maior grau de instrução às mulheres, todavia não asseguraram a inserção feminina no mercado de trabalho e na vida política, conservando as discrepâncias de renda e a separação desigual das tarefas domésticas entre os gêneros. Em conformidade com as discussões internacionais da época, uma das conquistas mais relevantes da América Latina e do Caribe durante os anos 1990 foi a inclusão da pauta ambiental nas agendas públicas. Diante das pressões exercidas pelos mercados externos, o modelo produtivo da região, caracterizado pela exploração de recursos naturais com foco nas exportações, passou a ser reestruturado para atender às crescentes exigências ambientais. Com isso, os governos nacionais fundaram instituições e elaboraram um conjunto de políticas para promover o desenvolvimento sustentável. No entanto, a gestão ambiental mostrou-se limitada em decorrência do enfoque atribuído na recuperação do meio ambiente e não na prevenção, bem como devido à carência de instrumentos de monitoramento e regulamentação. Embora alguns agentes econômicos tenham adotado iniciativas sustentáveis, especialmente as grandes corporações, determinados setores produtivos conservaram uma visão tradicional pautada no trade-off entre proteção ambiental e crescimento econômico. No campo político, o explícito processo de redemocratização se fundamentou no reconhecimento dos direitos políticos e civis, na valorização do pluralismo cultural e étnico e na definição de representantes públicos por meio de eleições (CEPAL, 2002b). Não obstante essas circunstâncias tenham criado oportunidades importantes em direção a inclusão cidadã, certos obstáculos persistiram e novos desafios surgiram em razão da globalização e das tecnologias da informação e comunicação. Portanto, a manutenção dos sistemas democráticos se configurou como uma tarefa difícil para o mundo todo, mas foram exigidos maiores esforços por parte das periferias em virtude de aspectos estruturais intrínsecos que as diferiam profundamente das nações centrais, como por exemplo a presença de desigualdades sociais. 3.3. PERSPECTIVA DE UMA AGENDA PARA A ERA GLOBAL Com base em experiências anteriores, tornou-se indiscutível a necessidade de a América Latina e o Caribe estabelecerem uma agenda positiva em relação às mudanças em curso, afinal não era possível conter a globalização ou se opor a esse processo. Assim sendo, a proposta da CEPAL para o século XXI consistiu na formulação de políticas de desenvolvimento pautadas em objetivos sociais, visando superar os desafios e as tensões 39 impostas pela própria internacionalização. Com isso, foram identificados três princípios básicos para a construção de uma ordem mundial mais sólida e equitativa (CEPAL, 2002a): a. Suprimento adequado de bens públicos globais, como a democracia, a paz, a segurança, a justiça internacional, a sustentabilidade ambiental e a estabilidade financeira e macroeconômica; b. Correção das assimetrias internacionais em três frentes: comércio internacional, macroeconômica-financeira e mobilidade internacional de capital e trabalho; c. Incorporação de uma agenda social global baseada em direitos, como civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, étnicos, trabalhistas, das mulheres, das crianças e o direito ao desenvolvimento. Para atingir os propósitos mencionados, os cepalinos sugeriram o desenvolvimento de regras e instituições globais que respeitassem a diversidade, isto é, a formação de um arranjo democrático internacional com capacidade de reconhecer a interdependência entre os países e, ao mesmo tempo, respeitar as responsabilidades e as políticas nacionais. De acordo com essa visão, os organismos internacionais deveriam considerar as particularidades históricas políticas e institucionais de cada nação para definir os planos de desenvolvimento econômico e social, gerando um sentimento de inclusão (CEPAL, 2002a). Portanto, era essencial substituir o frágil quadro institucional vigente na época por um sistema fundamentado na complementaridade virtuosa entre o desenvolvimento institucional global, regional e nacional. Ao assumir uma posição intermediária entre as ordens global e nacional, as organizações regionais e sub-regionais constituiriam uma rede institucional mais equilibrada e eficiente em termos de relações de poder e de solidariedade internacional, respectivamente (CEPAL, 2002a). Diante da notória heterogeneidade mundial, a comissão latino-americana e caribenha defendeu a importância de garantir uma participação equitativa dos países em desenvolvimento nos processos de reformas institucionais da era global, sugerindo a seleção e implementação de procedimentos favoráveis à atuação ativa de todos os agentes envolvidos. Com a finalidade de aperfeiçoar a governança da globalização, também foram recomendadas regras adequadas, baseadas em princípios comuns, que concedessem oportunidades para os países menores contribuírem na institucionalidade global. 3.3.1. Estratégias nacionais face à globalização Considerando o cenário globalizado da década de 1990 e seus possíveis efeitos sobre os anos 2000, os neoestruturalistas orientaram a periferia a adotar estratégias nacionais de 40 desenvolvimento mais estáveis, dinâmicas, integradoras e sustentáveis. Para isso, era necessário que apresentassem três pilares: pactos sociais sólidos e democráticos que assegurassem a estabilidade política; sistemas locais não arbitrários e formas de comportamento dos agentes que conferissem segurança aos contratos; e a constituição de uma burocracia estatal imparcial e relativamente eficiente. Ademais, os modelos de desenvolvimento demandavam outros quatro elementos: políticas macroeconômicas destinadas a reduzir a vulnerabilidade macroeconômica e facilitar o investimento produtivo; estratégias voltadas para o desenvolvimento da competitividade sistêmica; reconhecimento das prioridades da agenda ambiental; e políticas sociais muito ativas, especialmente na educação, emprego e proteção social (CEPAL, 2002a). 3.3.1.1. Estratégia macroeconômica Dado que não existia um sistema de gestão macroeconômica com validade universal, sobretudo em um contexto financeiro altamente volátil como o da era global, o êxito das decisões políticas dependia da flexibilidade e da consistência. Nesse sentido, a administração macroeconômica deveria evitar déficits públicos e privados insustentáveis; acompanhar os desequilíbrios financeiros, tanto nos fluxos como nas estruturas dos balanços, e controlar a inflação e a instabilidade das variáveis econômicas reais, como crescimento econômico e emprego (CEPAL, 2002b). Para amenizar as vulnerabilidades latino-americanas e caribenhas decorrentes da tendência pró-cíclica, o ideal era ampliar o horizonte de tempo das políticas macroeconômicas através de medidas anticíclicas. Com foco no crescimento dinâmico de longo prazo, os países em desenvolvimento precisavam criar instituições e instrumentos financeiros adequados nos períodos expansivos, de modo a prevenir crises futuras. Na medida em que uma gestão macroeconômica englobava as esferas fiscal, monetária e cambial, o arranjo básico para promover o crescimento econômico regional deveria ser constituído por sistemas fiscais sólidos, taxas de juros reais moderadas e taxas de câmbio competitivas (CEPAL, 2002a). Essa combinação permitiria atenuar os desequilíbrios entre os setores produtivos e os riscos relativos aos investimentos, contribuindo para um desenvolvimento financeiro sólido. Em síntese, o sistema financeiro nacional possuía como função viabilizar o financiamento dos investimentos através de prazos e custos apropriados, condições que reduziriam a realização de financiamentos externos. Para tal, era fundamental que a América Latina e o Caribe ampliassem os níveis de poupança pública para favorecer os 41 investimentos produtivos. Por fim, toda política macroeconômica precisaria aplicar regulações e supervisões prudenciais em relação à volatilidade dos fluxos de capitais. 3.3.1.2. Desenvolvimento da competitividade sistêmica De maneira complementar às políticas macroeconômicas, toda estratégia de desenvolvimento requeria políticas ativas em direção à transformação das estruturas produtivas para criar competitividade sistêmica, conceito elaborado por Fajnzylber nos anos 1990. Desta forma, três pilares integrariam tais políticas: o desenvolvimento de sistemas de inovação que acelerassem a acumulação de capacidades tecnológicas; o apoio à diversificação e à formação de cadeias produtivas; e a prestação de serviços de infraestrutura de qualidade (CEPAL, 2002a). A respeito dos sistemas de inovação dinâmicos, tornava-se indispensável investir em áreas que permitissem agregar conhecimentos para o avanço do progresso técnico, como educação, formação laboral e empresarial, ciência e tecnologia. Apesar do papel estratégico assumido pelo Estado, esse processo de investimentos poderia ser fortalecido com a participação da iniciativa privada, contribuindo para a difusão das novas tecnologias de informação e comunicação em todo o sistema econômico, social e político. Com base na trajetória bem-sucedida dos países industrializados, o crescimento econômico poderia ser considerado como produto da diversificação produtiva. Por esse motivo, as prioridades regionais diante do fenômeno da globalização deveriam ser as seguintes: diversificação da base de exportação e dos mercados de destino, execução de programas voltados para a articulação dos setores produtivos domésticos com destino ao mercado internacional e apoio à formação de conglomerados produtivos. Acerca dos serviços de infraestrutura, as parcerias público-privadas ampliaram a competitividade dos serviços portuários, marítimos, energéticos e de telecomunicações, porém falhas regulatórias e deficiências nas infraestruturas rodoviárias ainda persistiam, exigindo novos esforços para atender a essas demandas, bem como para aumentar a eficiência das empresas estatais. Em suma, alianças público-privadas acompanhadas de novas instituições consolidariam os três pilares mencionados, garantindo a eficácia das políticas de competitividade (CEPAL, 2002a). 3.3.1.3. Sustentabilidade ambiental Ainda que as agendas ambientais dos países em desenvolvimento tenham avançado em alguns aspectos, antigas lacunas de ordem institucional e financeira precisavam ser 42 corrigidas, como também era substancial difundir entre os agentes econômicos a interpretação da sustentabilidade como uma oportunidade e não como um custo. Dado que o desenvolvimento integral de uma nação dependia da gestão ambiental, era primordial fortalecer as instituições nacionais, locais e sub-regionais responsáveis pela proteção do meio ambiente. A melhora da institucionalidade implicaria na criação de mecanismos regulatórios adequados e de instrumentos com caráter preventivo e reativo, complementando os novos instrumentos econômicos, como por exemplo os impostos verdes (CEPAL, 2002b). Segundo essa perspectiva, a combinação entre recursos públicos, financiamentos internacionais e investimentos privados promoveria a integração entre as dimensões econômica e ambiental, rompendo o trade-off entre desenvolvimento sustentável e crescimento econômico. Durante a transição dos séculos XX e XXI, tornaram-se recorrentes conferências internacionais sobre o meio ambiente, culminando em objetivos globais de desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, os mercados externos passaram a exercer pressões em face do padrão produtivo latino-americano e caribenho, em virtude das atividades intensivas em recursos naturais. No entanto, as crescentes exigências ambientais internacionais representaram uma oportunidade para reorientação do estilo de competitividade, uma vez que fomentaram o desenvolvimento de inovações tecnológicas voltadas para a produção limpa. A partir da ampla biodiversidade disponível, a região possuía a responsabilidade de buscar métodos produtivos mais sustentáveis baseados no conhecimento, possibilitando agregar valor às exportações, expandir as atividades industrializadas e, inclusive, ofertar serviços ambientais, como o ecoturismo (CEPAL, 2002b). Portanto, o desenvolvimento sustentável na periferia carecia de um pacto social fundamentado na participação pública, privada e cívica, no qual a conscientização impulsionaria o exercício da cidadania. 3.3.1.4. Políticas sociais ativas Uma das características centrais da dinâmica da globalização era o aumento da competitividade econômica entre as nações, cuja consequência direta era a geração de novos desafios à esfera social. Por essa razão, tornou-se ainda mais relevante concentrar esforços nas áreas da educação, emprego e proteção social, chaves-mestras do desenvolvimento. A educação poderia romper com a pobreza e a desigualdade, bem como auxiliava na capacitação dos recursos humanos frente aos avanços tecnológicos e produtivos contemporâneos. Além das dificuldades tradicionais, referentes à cobertura educacional e ao acesso à educação de qualidade entre diferentes estratos sociais, surgiram novos obstáculos oriundos do progresso 43 tecnológico. A canalização de recursos públicos em patamares equivalentes aos da OCDE viabilizaria a implementação de uma gama de políticas educacionais nos países em desenvolvimento. As ações prioritárias envolviam a elevação do nível de escolaridade até a educação universitária