FERNANDO CRUZ LOPES MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO NO CÁRCERE: UMA ANÁLISE POR INTERMÉDIO DA EDUCAÇÃO NAS PRISÕES Marília 2023 FERNANDO CRUZ LOPES MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO NO CÁRCERE: UMA ANÁLISE POR INTERMÉDIO DA EDUCAÇÃO NAS PRISÕES Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência da Informação – PPGCI da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília, vinculado a Linha de pesquisa “Gestão, Mediação e Uso da Informação”. Orientador: Professor Dr. Oswaldo Francisco de Almeida Júnior Marília 2023 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Esta tese com seus objetivos e resultados pretende promover um impacto na discussão de políticas públicas de qualidade para promoção de questões marginalizadas no âmbito da Ciência da Informação. O conteúdo da pesquisa promove uma temática de relevância social e possui potencial para promover a inclusão social e o desenvolvimento sustentável. Com o objetivo de analisar a mediação da informação no processo ensino-aprendizagem de professores da Programa de Educação nas Prisões a tese põe luz aos processos informacionais dentro de duas instituições e suas liminaridades, em que uma foca na Educação e outra em execução penal. Discutir essas a mediação da informação com foco no professor desse espaço específico é colocar em pauta como a educação e o acesso à informação é fundamental para o processo de construção de sujeitos críticos e politizados. A tese se relaciona diretamente com três dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) para a construção e implementação de políticas públicas que visam guiar os países até 2030. O primeiro ODS diretamente relacionado é o 4 - Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos, pois a educação no cárcere é uma modalidade educacional com marcos legais de implementação muito recentes, fazendo que seja muito frágil sua garantia. O segundo ODS relacionado é o 10 - Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles, principalmente o item 10.3 - Garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultados, inclusive por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e da promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito. A discussão apresentada na tese é conduzida analisando o viés da Educação como um direito básico nesse processo de redução das desigualdades. O último ODS que se relaciona é o 16 - Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis, pois na tese é entendido que apenas um sistema que cerceia os direitos do cidadão e pune com violência não será capaz de atingir seu objetivo de construção de uma sociedade igualitária. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This thesis, with its objectives and results, intends to promote an impact on the discussion of quality public policies for the promotion of marginalized issues within the scope of Information Science. The research content promotes a theme of social relevance and has the potential to promote social inclusion and sustainable development. With the objective of analyzing the mediation of information in the teaching-learning process of teachers of the Education in Prisons Program, the thesis sheds light on the informational processes within two institutions and their liminalities, in which one focuses on Education and the other on criminal execution. Discussing these mediation of information with a focus on the teacher in that specific space is to put on the agenda how education and access to information is fundamental for the process of building critical and politicized subjects. The thesis is directly related to three of the 17 Sustainable Development Goals (SDGs) of the United Nations (UN) for the construction and implementation of public policies that aim to guide countries by 2030. The first directly related SDG is 4 - Ensure inclusive, equitable and quality education, and promoting lifelong learning opportunities for all, as education in prison is an educational modality with very recent legal frameworks for implementation, making its guarantee very fragile. The second related SDG is 10 - Reduce inequality within and between countries, especially item 10.3 - Ensure equal opportunities and reduce inequalities in outcomes, including by eliminating discriminatory laws, policies and practices and promoting legislation, policies and appropriate actions in this regard. The discussion presented in the thesis is conducted by analyzing the bias of Education as a basic right in this process of reducing inequalities. The last related SDG is 16 - Promote peaceful and inclusive societies for sustainable development, provide access to justice for all and build effective, accountable and inclusive institutions at all levels, as the thesis understands that only a system that restricts citizens' rights and punishes with violence will not be able to achieve its goal of building an egalitarian society. FERNANDO CRUZ LOPES MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO NO CÁRCERE: UMA ANÁLISE POR INTERMÉDIO DA EDUCAÇÃO NAS PRISÕES Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), campus de Marília, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciência da Informação. Área de Concentração: Informação, Tecnologia e Conhecimento. Linha de Pesquisa: Gestão, Mediação e Uso da Informação. BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Oswaldo Francisco de Almeida Júnior (Orientador) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” PPGCI/UNESP/Marília ______________________________________ Profª. Drª. Tamara de Souza Brandão Guaraldo (membro) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” PPGCI/UNESP/Marília e UNESP/Bauru ______________________________________ Profª. Drª. Sueli Bortolin (membro) Universidade Estadual de Londrina PPGCI/UEL ______________________________________ Prof. Dr. Cláudio Marcondes de Castro Filho (membro) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” PPGCI/UNESP/Marília e USP/Ribeirão Preto ______________________________________ Profª. Drª. Carolina Bessa Ferreira de Oliveira (membro) Universidade Federal do Sul da Bahia Marília, 27 de março de 2023. AGRADECIMENTOS Agradeço a todas as pessoas que acompanharam minha trajetória durante o desenvolvimento desta tese, direta ou indiretamente. Ao meu marido Paulo, que sempre acreditou em minhas ideias e que me motiva a sempre buscar mais. Agradeço por todo suporte e pela crença de que podemos lutar juntos pelo que acreditamos. Aos meus pais, Cláudia e Fernando, e ao meu irmão, Felipe, por todo apoio incondicional e dedicação, sempre. Sem vocês eu nada seria. Ao Oswaldo Francisco de Almeida Júnior, meu orientador, pela paciência e pelas contribuições sempre pertinentes. A Sueli Bortolin, grande amiga que, desde o TCC, me aponta caminhos e me possibilita ótimas discussões. A Tamara de Souza Brandão Guaraldo e Cláudio Marcondes de Castro Filho por aceitarem compor a banca examinadora desta tese. A Carolina Bessa Ferreira de Oliveira, por também compor a banca examinadora, mas também por todas as conversas, trocas e por dividir comigo a crença em um Brasil mais humano. A Marineila Aparecida Marques, por estar sempre ao meu lado, por me apresentar à discussão sobre encarceramento e por topar todos os planos mirabolantes para uma educação mais inclusiva. Que venham todos os carnavais pelo resto de nossas vidas! A Cecília Elisabeth Barbosa Soares, por todas as leituras, comentários, observações, sensibilidade e trocas fundamentais. A Fabiana Vieira da Silva e Fernanda Casagrande dos Anjos, por sempre serem um exemplo de intelectualidade. Obrigado pelas conversas, risadas e leveza. A Tânia Brito, por encarar as noites geladas na rodoviária, pelos passeios de uber pela cidade de Marília e pelos artigos que surgiram no momento tão difícil da pandemia. A Fabiana Sala e Gisele Sanches pela companhia nas disciplinas em Marília e pela parceria. A Beatriz Andreotti pelas risadas e pelo nosso desajuste. A Luciane Pereira Collares, meu grande apoio. Sem você eu não conseguiria trabalhar e estudar. Por fim, agradeço ao pessoal da Diretoria de Ensino: Beatriz Santana, Edineide Chinaglia, Eduardo Pereira, Fabíola Lemos, Flávio Dalera, Giane Cruz, Jane Adami, Karla Cantanhede, Marciano Tadeu, Maria Helena Silveira, Nelci Martins, Nelise Abib, Ranieli Silva, Rita Pamplona, Roberto Shizuo, Rosinês Chiarantano, Tiago Genaro, Vera Fernandes, Vinicius Andreatta. Muito obrigado! [...] nós que estamos no presente somos todos, em potencial, mães e pais daqueles que virão depois. Reverenciar os ancestrais significa, realmente, reverenciar a vida, sua continuidade e mudança. Somos os filhos daqueles que aqui estiveram antes de nós mas não somos seus gêmeos idênticos, assim como não engendraremos seres idênticos a nós mesmos. [...] Desse modo, o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva. Ngugi wa Thiong’o (1997) RESUMO A tese analisa a mediação da informação pelo viés da Educação no sistema prisional. Para isso, observou o trabalho desenvolvido pelos professores da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo que atuam em um determinado presídio da capital. Apresenta uma discussão em relação ao encarceramento no Brasil. Tem como objetivo geral investigar as práticas pedagógicas com foco na mediação da informação de professores que atuam no Programa de Educação nas Prisões, para compreender como o Estado em suas formas de punição e vigilância exercem o controle do sujeito. Tem como objetivos específicos: diferenciar as diversas fases da Ciência da Informação com o intuito de relacionar as possibilidades interdisciplinares da mediação da informação; apresentar os diferentes discursos acerca do cárcere na literatura das Ciências Humanas e da Ciência da Informação; propor uma metodologia de trabalho pedagógico para os professores do EJA prisional com foco na mediação da informação. A tese contou com três métodos: como método de estruturação foi utilizada a Metodologia problematizadora com o Arco de Maguerez; para a coleta de dados foi realizada pesquisa etnográfica com os professores a fim de compreender as práticas e relações com as teorias, conceitos e áreas propostas adiante e fundamentalmente enquanto forma empírica de coleta de dados. Utiliza a Análise de discurso para a discussão de todas as práticas, teorias e discursos coletados. Constrói um referencial teórico com base na Ciência da Informação, colaborando para uma estruturação sócio-histórica de termos e práticas da área. Elabora uma delimitação temática sobre o cárcere para inserir a Ciência da Informação nas discussões. Discute como a Ciência da Informação pode se valer de seu caráter poliepistêmico para inserir novas discussões e abordagens. Utiliza o termo exuzilhar para transpor a discussão sobre poliepistemologia. Propõe analisar a mediação pelo viés da performance. Discutindo a liminaridade como uma possibilidade de construção do conhecimento. Entende que a liminaridade é o momento pós mediação, mas que o indivíduo ainda está no questionamento de suas práticas informacionais. Propõe a utilização do Arco de Maguerez em suas cinco etapas. Na primeira etapa de observação da realidade feita pelas visitas profissionais ao Programa de Educação nas Prisões. A etapa de pontos chave elencando as lacunas na formação continuada, diminuição na desigualdade existente entre os estudantes e a garantia do direito à educação. Na terceira etapa de teorização estudando o Currículo Paulista e bibliografia própria sobre encarceramento e Educação. Na quarta etapa é a criação de um Projeto Político Pedagógico nas Prisões, criado pelos próprios professores. Por fim, a última etapa que é a aplicação à realidade que foi o planejamento do ano de 2023 a partir do documento criado. Palavras-chave: Ciência da Informação. Mediação da informação. Arco de Maguerez. Educação nas prisões. ABSTRACT The thesis analyzes the mediation of information through Education in the prison system. For this, it observed the work developed by teachers of the Secretary of Education of the State of São Paulo who work in a certain prison in the capital. It presents a discussion regarding incarceration in Brazil. Its general objective is to investigate the pedagogical practices with a focus on the mediation of information from teachers who work in the Education in Prisons Program, to understand how the State, in its forms of punishment and surveillance, exercises control over the subject. Its specific objectives are: to differentiate the various phases of Information Science in order to relate the interdisciplinary possibilities of information mediation; present the different discourses about prison in the literature of Human Sciences and Information Science; propose a pedagogical work methodology for prison EJA teachers with a focus on information mediation. The thesis had three methods: as a structuring method, the problematizing methodology was used with the Maguerez Arch’s; for data collection, an ethnographic research was carried out with the teachers in order to understand the practices and relationships with the theories, concepts and areas proposed ahead and fundamentally as an empirical form of data collection. It uses Discourse Analysis to discuss all practices, theories and collected discourses. It builds a theoretical framework based on Information Science, collaborating for a socio-historical structuring of terms and practices in the area. It elaborates a thematic delimitation about the prison to insert the Information Science in the discussions. It discusses how Information Science can take advantage of its polyepistemic character to insert new discussions and approaches. He uses the term exuzilhar to transpose the discussion on polyepistemology. It proposes to analyze mediation from the perspective of performance. Discussing liminality as a possibility of knowledge construction. He understands that liminality is the post- mediation moment, but that the individual is still questioning his informational practices. It proposes the use of the Maguerez Arch’s in its five stages. In the first stage of observation of reality made by professional visits to the Education Program in Prisons. The key points stage listing the gaps in continuing education, the decrease in existing inequality among students and the warranty of the right to education. In the third stage of theorization, studying the Paulista Curriculum and its own bibliography on incarceration and Education. The fourth stage is the creation of a Pedagogical Political Project in Prisons, created by the teachers themselves. Finally, the last step is the application to the reality that was the planning for 2023 based on the document created. Keywords: Information Science. Mediation of Information. Maguerez Arch’s. Education in Prisons. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 – Evolução do total de pessoas privadas de liberdade no Brasil (1990-2017) .................................................................................................. 24 Gráfico 2 – Evolução da taxa de aprisionamento no Brasil (2000-2017) ..... 25 Gráfico 3 – Ranking de encarceramento no mundo (2023) ......................... 26 Gráfico 4 – Etnia/cor das pessoas privadas de liberdade e da população total no Brasil em % (2017) .................................................................................. 28 Gráfico 5 – Faixa etária das pessoas privadas de liberdade no Brasil, por faixa etária, em % (2017) ...................................................................................... 29 Gráfico 6 – Destinação dos estabelecimentos penais de acordo com o gênero em % ............................................................................................................ 32 Gráfico 7 – Total anual de mulheres privadas de Liberdade no Brasil (2000- 2017) ............................................................................................................ 32 Gráfico 8 – Taxa de participação na força de trabalho de pessoas com 15 anos ou mais de idade, no Brasil, em % (2021) .................................................... 34 Gráfico 9 – Escolaridade das pessoas privadas de liberdade no Brasil, em comparação com dados nacionais, em % (2017) ......................................... 34 Gráfico 10 – Escolaridade das mulheres privadas de liberdade no Brasil, em comparação com dados nacionais, em % (2017) ......................................... 35 Gráfico 11 – População prisional no Brasil (2017) ...................................... 42 Gráfico 12 – Evolução dos índices de pessoas presas envolvidas em atividades educacionais nos sistemas prisionais estaduais e sistema penitenciário federal ..................................................................................... 125 Gráfico 13 – Indicadores dos países com maior desigualdade social segundo o Pnud ............................................................................................................. 136 Gráfico 14 – Nível de escolarização da população ativa (%) ...................... 140 Gráfico 15 – Níveis de pobreza por escolarização da pessoa chefe de família, em % ............................................................................................................ 140 Gráfico 16 – Indicadores de pobreza no Brasil em % (2012-2020) ............. 141 Gráfico 17 – Indicadores de pobreza e pobreza extrema (1990-2022) (%) . 141 Gráfico 18 – Fechamento das Escolas em semanas .................................. 143 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Disposição dos Centros de Detenção Provisória (CDP) no Estado de São Paulo (2023) ................................................................................... 42 Figura 2 – Divisão administrativa das Diretorias de Ensino no Estado de São Paulo (2023) ................................................................................................ 44 Figura 3 – Organograma da Diretoria de Ensino ........................................ 45 Figura 4 – Representação em quatro fases do ciclo básico da investigação- ação ............................................................................................................ 50 Figura 5 – Esquema de progressão pedagógica de Maguerez .................. 52 Figura 6 – O Arco de Maguerez, tal como adaptado por Bordenave e Pereira (2015) .......................................................................................................... 53 Figura 7 – Arco de Maguerez desenvolvido por Berbel e Sánchez Gamboa, a partir de Bordenave e Pereira ..................................................................... 54 Figura 8 – Aplicação do Arco de Maguerez em uma disciplina do Curso de Mestrado em Enfermagem .......................................................................... 55 Figura 9 – Adaptação do modelo da Teoria Matemática da Comunicação proposto por Shannon e Weaver ................................................................. 74 Figura 10 – Dinâmica da apropriação ................................................. 96 Figura 11 – Quadro da videoinstalação Ilusões Vol. 1: Narciso e Eco ....... 99 Figura 12 – Mediação como rito de passagem ........................................... 108 Figura 13 – Porcentagem de pessoas em atividades educacionais por ano de referência .................................................................................................... 126 Figura 14 – Aplicação do Arco de Maguerez nos CDP .............................. 133 Figura 15 – Primeira página de um roteiro de atividades para estudantes do CDP, proposto por profissional da educação atuante no local .................... 144 Figura 16 – Planta da estrutura do Panóptico idealizado por Bentham (desenho do arquiteto inglês Willey Reveley, 1791) ................................................... 164 Figura 17 – Croqui de um CDP na Grande São Paulo ............................... 165 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Quando dois amigos se mataram por causa do chapéu de Exu ..................................................................................................................... 21 Quadro 2 – Número de crimes tentados/consumados pelos quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento no Brasil (2017) .......................................................................................................... 33 Quadro 3 – Tipologias unidades de privação de liberdade ......................... 43 Quadro 4 – Módulo de PEC conforme Resolução número 62, de 14 de junho de 2022 ....................................................................................................... 45 Quadro 5 – Conceitos da Ciência da Informação e suas referências por subárea ....................................................................................................... 69 Quadro 6 – Paradigmas da CI .................................................................... 70 Quadro 7 – Aspectos da informação segundo Buckland (1991) ................. 76 Quadro 8 – Alguns eventos significativos da Ciência da Informação ......... 82 Quadro 9 – Acontecimentos importantes para consolidação da mediação da informação no Brasil .................................................................................... 89 Quadro 10 – Produção científica sobre mediação da informação no ENANCIB - 1994-2021 ................................................................................................... 91 Quadro 11 – Exu põe Orunmilá em perigo e depois o salva ...................... 103 Quadro 12 – A boca que tudo come ........................................................... 112 Quadro 13 – Distribuição de matrículas na EJA prisional no Estado de São Paulo ........................................................................................................... 121 Quadro 14 – Organização das jornadas de trabalho dos professores categoria O ................................................................................................................. 135 Quadro 15 – Organização da semana A de ATPC ..................................... 136 Quadro 16 – Organização da semana B de ATPC ..................................... 136 Quadro 17 – Organização das ATPC nos dias da semana ........................ 137 Quadro 18 – Categorização das competências e habilidades educacionais para o século XXI ................................................................................................ 145 Quadro 19 – Descrição dos níveis de proficiência ...................................... 146 Quadro 20 – Indicadores de avaliação em matemática segundo aprendizagem dos estudantes (%) ..................................................................................... 147 Quadro 21 – Indicadores de avaliação em Língua Portuguesa segundo aprendizagem dos estudantes (%) .............................................................. 148 Quadro 22 – Cronograma de ATPC dos professores do CDP ................... 154 Quadro 23 – Exemplos de sondagem de hipótese de escrita .................... 172 Quadro 24 – Modelo de rubrica de avaliação baseada no componente curricular Tradições culturais do Novo Ensino Médio .................................. 176 LISTA DE SIGLAS AD Análise de discurso ATPC Aula de trabalho pedagógico coletivo BDTD Biblioteca Digital de Teses e Dissertações CATI Coordenadoria de Assistência Técnica Integral CBBP Comissão Brasileira de Bibliotecas Prisionais CCCS Centre for Contemporary Cultural Studies CDP Centro de detenção provisória CDU Classificação decimal universal CEP Comitês de ética em pesquisa CEEJA Centro de educação de jovens e adultos CI Ciência da Informação CGP Coordenador de gestão pedagógica CNCP Conselho nacional de política criminal e penitenciária CNE Conselho nacional de educação COECE Coordenação de educação, cultura e esporte Conep Comissão Nacional de Ética em Pesquisa em Seres Humanos CPAL Comissão econômica para América Latina e o Caribe CPP Centro de progressão penitenciária DER Diretoria de ensino DEPEN Departamento Penitenciário Nacional DNP Diretor técnico de núcleo pedagógico DS Discussão EC Estudos culturais EFAPE Escola de formação e aperfeiçoamento dos profissionais da educação do estado de São Paulo EJA Educação de jovens e adultos EM Execução na maquete EPI Equipamento de proteção individual ER Execução na realidade ESE Supervisão de Ensino FEBAB Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas de Informação e Instituições FUNAP Fundação Estadual de Amparo ao Trabalhador Preso - Professor Doutor Manuel Pedro Pimentel GT Grupo de trabalho HCTP Hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico IBICT Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia ICPR Institute for Crime & Justice Policy Research IDH Índice de desenvolvimento humano Inep Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Infopen Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias ISS Institute of Information Scientists LDB Lei de diretrizes e bases da educação LEP Lei de execuções penais LGBTQIAP+ Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, queer, intersexo, assexuados pansexuais e demais orientações sexuais e identidades de gênero MEC Ministério da Educação MP Metodologia problematizadora NASA Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço NEA National Education Association NPE Núcleo pedagógico OM Observação da maquete OMS Organização mundial da saúde OR Observação da realidade OT Orientações Técnicas PCC Primeiro partido da capital PEC Professor especialista em currículo PEESP Plano estratégico de educação no âmbito do sistema prisional PEP Programa de educação nas prisões Pnud Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento PPL Pessoa privada de liberdade PPPprisões Projeto político-pedagógico nas prisões RBU Repositório Bibliográfico Internacional RDD Regime disciplinar diferenciado SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica SAP Secretaria de administração penitenciária SARESP Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo SED Secretaria escolar digital SEDUC Secretaria da Educação TMC Teoria Matemática da Comunicação UE Unidade escolar UEL Universidade Estadual de Londrina UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UnB Universidade de Brasília Unesp Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Unesco Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas VINITI Vserossiisky Institut Nauchnoi i Tekhnicheskoi Informatsii (Instituto Estatal de Informação Científica e Técnica) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 21 2 METODOLOGIA ....................................................................................... 49 2.1 A METODOLOGIA PROBLEMATIZADORA E O ARCO DE MAGUEREZ ...................... 50 2.2 PESQUISA ETNOGRÁFICA ........................................................................... 56 2.3 ANÁLISE DE DISCURSO ............................................................................... 62 3 CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO COMO CAMPO DE ANÁLISE SOCIAL .... 68 3.1 MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO E PRÁTICAS INFORMACIONAIS ............................ 86 3.2 MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO E PERFORMANCE .............................................. 98 3.3 MEDIAÇÃO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA ..................................................... 115 4 EDUCAÇÃO NAS PRISÕES .................................................................... 121 4.1 UTILIZAÇÃO DO ARCO DE MAGUEREZ NO CDP ............................................ 132 4.1.1 Observação da Realidade e Pontos-chave ......................................... 133 4.1.2 Teorização ........................................................................................... 151 4.1.3 Hipótese de Solução ........................................................................... 157 4.1.3.1 Proposta de aulas de trabalho pedagógico coletivo ......................... 165 4.1.3.2 Escrita do Projeto Político Pedagógico nas Prisões ......................... 178 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 189 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 195 APÊNDICE ................................................................................................... 218 ANEXO ........................................................................................................ 221 21 1 INTRODUÇÃO1 No xirê, uma sequência estruturada de cantigas para os orixás cultuados por aquele grupo, o primeiro orixá a ser homenageado é Exu, e o padê é a cerimônia de homenagem a Exu que inicia todas as práticas das religiões de cultura afrocentrada. Essa introdução é um pouco xirê, um pouco padê. Afinal, ciência tem pouco de religião. Vou começar contando uma das histórias mais populares de Exu, que é sobre o chapéu de Exu que faz dois amigos brigarem até a morte (quadro 1). Quadro 1 - Quando dois amigos se mataram por causa do chapéu de Exu Dois amigos camponeses decidem ir para a roça muito cedo, mas deixaram de alimentar Exu. O orixá que tinha dado muitas chuvas e ótimas colheitas ficou enfurecido, decidiu ir para o roçado usando um chapéu pontiagudo, metade branco, metade vermelho. Passou na divisa das roças, tendo um amigo em seu lado direito, vendo só o lado branco, e o outro amigo no lado esquerdo, vendo só o vermelho. O orixá passou cumprimentando-os alvoroçadamente. Os amigos se entreolharam e um questionou: “quem é o estrangeiro de chapéu branco?” “Não era branco, era vermelho!” A discussão ficou por horas, a briga sobre a cor do chapéu, virou uma briga de enxada. Os dois se mataram mutuamente. Exu cantava e dançava. Exu estava vingado. Fonte: elaborado pelo pesquisador (2023), adaptado de Prandi (2001) e Silva (2022). Começo essa tese contando essa história, porque talvez essa tese seja um pouco chapéu de Exu. Uns dirão que ela não tem nada de Ciência da Informação (CI), que ela é sim da CI. Outros dirão que ela é da Educação. Mas acredito que o cerne da discussão não é esse, não está em descobrir o que ela representa, por que de fato ela pode ser tudo isso, vai depender do ponto de vista. Mas o foco de observação, tem que ser o que ela quer discutir, onde ela vai chegar, o que ela vai trazer para a área. 1 Esta introdução contém trechos adaptados de Lopes e Almeida Júnior (2020). 22 Os estudos sobre o cárcere têm se mostrado muito pertinentes na área da Ciência da Informação, aspecto pouco explorado até pouco tempo atrás, tendo a primeira tese sobre a temática sido defendida em 2019 (MONTEIRO, 2019)2. Enquanto Ciência pensada para uma prática ou para o produto, a CI, em seu início, pouco se relacionou com o social como uma possibilidade de arcabouço (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2000; CAPURRO, 2003; CAPURRO; HJORLAND, 2007; SANTOS JUNIOR; PINHEIRO, 2010; SILVA; FREIRE, 2012; PINHEIRO, 2013; ARAÚJO 2018). Assim, sua familiaridade para com questões voltadas a temas sociais normalmente está associada ao seu uso social. É de se estranhar que a CI precise reforçar a necessidade de discussão de seus aspectos sociais. Alguns pesquisadores tendem a utilizar o termo “Biblioteconomia social” (JATUF, 2013; TANUS, 2018), que pode ser considerado um truísmo. A adoção de tal termo também é um caminho sem volta no entendimento fluido que a CI tem em relação a Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia, por exemplo, já que estabelece limites entre as áreas. Para promover discussões que estivessem cada vez mais centradas em aspectos sociais e de garantia do direito e fortalecimento da biblioteca em espaços de privação de liberdade, a Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas de Informação e Instituições (FEBAB) criou, em 2017, a Comissão Brasileira de Bibliotecas Prisionais (CBBP), com a intenção de juntar os profissionais e os pesquisadores sobre o cárcere no Brasil. Dessa forma, a missão da CBBP é: [...] dar ao Brasil uma representatividade oficial no que tange as bibliotecas prisionais, por meio da disponibilização de fontes de informação concernentes a temática das bibliotecas de estabelecimentos penitenciários, alinhando as diretrizes já existentes no âmbito da biblioteconomia com a legislação vigente no país (CBBP, 2017, [n.p.]). Concomitantemente, vê-se, a nível nacional, o surgimento de alguns trabalhos abordando a temática do cárcere e propondo esse universo como um campo de discussão da CI, principalmente voltado para a mediação da informação, ou seja, Toda ação de interferência – realizada em um processo, por um profissional da informação e na ambiência de equipamentos 2 No mapeamento de Santos (2022), conta-se apenas nove trabalhos, ao longo da história da CI, que abordaram a temática sobre o cárcere, sendo o primeiro um Trabalho de Conclusão de Curso de 1966, de autoria de Carmen Carvalho. 23 informacionais –, direta ou indireta; consciente ou inconsciente; singular ou plural; individual ou coletiva; visando a apropriação de informação que satisfaça, parcialmente e de maneira momentânea, uma necessidade informacional, gerando conflitos e novas necessidades informacionais (ALMEIDA JÚNIOR, 2015a, p.25). Significativas para produção científica na área são duas teses que abordam, ambas, tal aspecto como uma forma de ruptura com a estrutura hegemônica. Ciro Monteiro (2019) fez, a partir de sua perspectiva de atuação como agente penitenciário, uma análise etnográfica da utilização de dispositivos de informação por presos que nasceram na “sociedade da informação” e que, durante a pesquisa, se encontravam num Centro de Detenção Provisória (CDP). Já Raquel Fernandes (2019) produziu uma pesquisa sobre mediação de dispositivos de leitura que não são usualmente consumidos pelas educandas do Sistema Prisional de Sergipe. Além dos dois pesquisadores citados, mais alguns trabalhos sobre a temática do cárcere estão sendo produzidos nas universidades brasileiras, dentre as quais a Universidade Federal de Santa Catarina, representada pela pesquisadora Amábile Costa (2020), a Universidade Federal do Ceará, onde Francisca Liliana Martins de Sousa (2021) defendeu sua dissertação, e a Universidade de São Paulo, com a dissertação de Léia Santos (2022). Todas essas pesquisas foram realizadas dentro do período anterior à redação desta tese. Esses trabalhos de fato abrem espaço para uma temática de muito potencial, dado o cenário atual do cárcere no Brasil e de suas questões. Tendo apresentado um primeiro panorama sobre a situação atual da pesquisa na CI acerca do cárcere no Brasil, passemos a uma abordagem sobre o cárcere em si. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)3, havia, no Brasil, em 2017, 726.354 pessoas privadas de liberdade (PPL). À época, o Sistema carcerário dispunha de 423.242 vagas, resultando, portanto, numa alocação de 303.112 pessoas além do estimado. Ou seja, o Brasil possui uma taxa de ocupação de 171,62% de suas vagas no cárcere (BRASIL, 2017a), 3 Órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil. 24 com 89% da população prisional alocada em unidades com déficit de vagas (BRASIL, 2016), independentemente do regime de cumprimento da pena de cada indivíduo. Além disso, em 2016, 78% dos estabelecimentos penais comportavam mais presos do que o número de vagas disponíveis (BRASIL, 2016). O Brasil é um dos países que mais possuem pessoas privadas de liberdade no mundo. No World Prison Brief (2020) ou Banco de Dados Mundial sobre Prisões, levantamento realizado pelo Institute for Crime & Justice Policy Research4 (ICPR), o Brasil aparece como terceiro colocado na lista de países com mais encarcerados no mundo. Fica atrás apenas dos Estados Unidos, com 2.121.600 detentos, e da China, com 1.700.000 PPL (gráfico 3). Um dos aspectos que mais impressionam nesse relatório é que, em dez anos, o número de detentos quase dobrou (gráficos 1 e 2). Em 2007, o Brasil contava com 422.400 pessoas privadas de liberdade (BRASIL, 2017a). Gráfico 1 – Evolução do total de pessoas privadas de liberdade no Brasil (1990-2017) Fonte: Brasil (2017a, p. 9). 4 Instituto de pesquisa em políticas criminais e jurídicas. Optou-se por manter a grafia em inglês pela representatividade da instituição. 25 Gráfico 2 – Evolução da taxa de aprisionamento no Brasil (2000-2017) Fonte: Brasil (2017a, p. 12). Gráfico 3 – Ranking de encarceramento no mundo (2023) Fonte: Elaboração própria, adaptado de ICPR (2023). Como explicar esses valores, sempre crescentes? Um ponto de elucidação é o da política criminal encarceradora, que atua desde o momento da abordagem policial até a decisão judicial (OLIVEIRA, 2017). Para uma comparação superficial desse processo de encarceramento em massa, podemos nos pautar nos dados do Infopen de 2014, e do ICPR em 2023. Se a proporção se mantiver, em 2075, um em cada dez brasileiros estará encarcerado (BORGES, 2019). Pode-se entender o comportamento de encarceramento em massa (GARLAND, 2008) como um caminho possível para a eliminação do indesejado, 26 considerando como expressão máxima de soberania o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer (FOUCAULT, 2019). Entende-se, portanto, que as relações de poder estabelecidas serviram como uma implementação do que Foucault chama de biopoder: [...] Conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana. (FOUCAULT, 2020). Quando um indivíduo se acha detentor dessa capacidade, torna-se um soberano: "Na biopolítica moderna, [...] aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal" (AGAMBEN, 2007, p. 149). Analisando a perspectiva de Foucault com tendências mais contemporâneas do exercício do biopoder, Mbembe diz: […] Na formulação de Foucault, o biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, tal poder se define em relação a um campo biológico – do qual toma o controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma censura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo (aparentemente familiar) [de] “racismo” (MBEMBE, 2018, p.17). Enquanto a biopolítica trata sobre a gestão da vida pelo Estado, na necropolítica (MBEMBE, 2018) o objetivo não é controlar corpos e vidas específicos, mas eliminar determinados grupos sociais. O intuito principal é matar o sujeito apontado como inimigo. Os dados apresentados pelo Infopen nos ajudam a traçar o perfil desse sujeito indesejado. Os valores oficiais, emitidos pelo Governo Federal, deixam transparecer que as estruturas sociais funcionam apenas para o bem-estar de uma parcela da população. À medida que a legislação não permite a pena de morte, o cárcere se tornou a opção mais próxima possível: […] A percepção da existência do Outro como um atentado contra minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria meu potencial de vida e segurança, é este, penso eu, um dos muitos imaginários de soberania, característico tanto da primeira quanto da última modernidade. O reconhecimento dessa percepção sustenta em 27 larga medida várias das críticas mais tradicionais da modernidade, seja quando se dirigem ao niilismo e a proclamação da vontade de como a essência do ser, seja a reificação, entendida como “devir-objeto” do ser humano; ou ainda à subordinação de tudo à lógica impessoal e ao reino da racionalidade instrumental. De um ponto de vista antropológico, o que essas críticas contestam implicitamente é uma definição do político como relação bélica por excelência. Também desafiam a ideia de que, necessariamente, a racionalidade da vida passe pela morte do outro; ou que a soberania consiste na vontade e capacidade de matar a fim de viver (MBEMBE, 2018, p. 19-20). Nesse sentido, é possível entender a raça como uma manifestação potente do biopoder, já que na história essa foi uma maneira de se dividir grupos sociais. Uma norma no entendimento e classificação do corpo do outro, a fim de prender, subjugar e eliminar o corpo diferente: Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “aquele velho direito soberano de morte”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para a aceitabilidade do fazer morrer” (MBEMBE, 2018, p.18). Ao analisar brevemente os grupos existentes no universo do cárcere, é possível distinguir claramente como o biopoder se estabelece no Brasil encarcerado. A população mais representada nesse espaço são jovens negros e com baixa escolaridade, evidenciada no gráfico 4. O cárcere não apenas se tornou uma forma de controle social racista, mas também, como uma política de hierarquização racial: Vivemos em uma sociedade marcada pela lógica hoje neoliberal, e, desde sua fundação, racista e com desigualdades de gênero. São opressões estruturais e estruturantes da constituição de uma sociedade que surge, para o mundo ocidental, pela exploração colonialista e ainda marca, em todos os seus processos, relações e instituições sociais, as características da violência, a usurpação, a repressão e o extermínio daquele período (BORGES, 2019, p.42). Tem-se, portanto, não apenas uma estrutura social marcada pela subjugação do corpo indesejado, mas também, como uma espécie de prática- fim do modelo econômico estabelecido. 28 Gráfico 4 - Etnia/cor das pessoas privadas de liberdade e da população total no Brasil em % (2017) Fonte: Elaboração própria, adaptado de Brasil (2017a, p. 32). Gráfico 5 - Faixa etária das pessoas privadas de liberdade no Brasil, por faixa etária, em % (2017) Fonte: Brasil (2017a, p. 30). Os gráficos 4 e 5 são muito elucidativos quando se pretende entender que o cárcere, hoje, no Brasil, é parte de uma política da marginalização de uma parte da população, e, em particular, de confinamento do corpo negro e jovem. Enquanto, no país, 55,4% das pessoas se identificam como negras, o sistema penitenciário conta com 63,64% de pessoas que assim se entendem. Ou seja, a população carcerária brasileira traz uma hiperrepresentação de indivíduos 29 negros em comparação com a população nacional, de onde podemos inferir um processo de encarceramento que visa tal categoria5: A escravidão, o linchamento e a segregação certamente são exemplos contundentes de instituições sociais que, como a prisão, um dia foram consideradas tão perenes quanto o sol. Ainda assim, em cada um dos três casos, podemos apontar movimentos que assumiram a postura radical de anunciar a obsolescência dessas instituições. Pode ser útil, para obtermos uma nova perspectiva em relação à prisão, tentarmos imaginar como os debates sobre a obsolescência da escravidão devem ter parecido estranhos e desconfortáveis para aqueles que consideravam a “instituição peculiar” algo natural — e especialmente para aqueles que obtinham benefícios diretos desse pavoroso sistema racista de exploração. E ainda que houvesse grande resistência entre os escravos negros, havia até mesmo alguns dentre eles que acreditavam que eles mesmos e seus descendentes estariam sempre sujeitos à tirania da escravidão (DAVIS, 2018, p.22). Entender o funcionamento desse processo político de criminalização da identidade de uma parcela da população, é, também, entender como mecanismos legais funcionam para a estratificação racial. A vulnerabilidade social não permite acesso a serviços básicos de justiça e defesa penal adequados, criando um alvo fácil para uma polícia treinada, que prende sempre o mesmo perfil: o jovem negro. Assim, As práticas policiais brasileiras são [...] um reflexo da nossa cultura jurídica, que concebe a estrutura social brasileira como sendo hierárquica, atribuindo diferentes graus de cidadania e civilização a diferentes segmentos da população, embora a Constituição brasileira atribuía direitos igualitários a todos os cidadãos, indiscriminadamente. À polícia cabe a difícil tarefa de selecionar quais indivíduos têm “direito” aos seus direitos constitucionais e ao processo acusatório, enquanto “pessoas civilizadas”, e quais não têm. [...] Ora, a sociedade brasileira tem, claramente, representações hierarquizadas de algumas de suas práticas sociais. Por isto, o sistema jurídico escolheu um sistema misto para resolver conflitos por adjudicação: à polícia, o processo preliminar, inquisitorial, que apura a veracidade das acusações e a situação social daqueles de quem se suspeita; então, à justiça, os verdadeiros culpados aqueles que não confessaram, ou aqueles que, por sua situação social, “merecem” o processo acusatório. 5 Vale notar que cada indivíduo, ao ser inserido no presídio, tem a sua ficha qualificativa preenchida pelos funcionários do local, e, além disso, fornece uma autodeclaração. Tais fichas funcionam como instrumentos de controle de acesso desses sujeitos e significam o subsídio para produção de políticas públicas. Vale mencionar também que, por serem aferidas por terceiros, as respostas para critérios como “cor de pele” e “sexualidade” não necessariamente refletem um entendimento do próprio encarcerado sobre o que representam. 30 A consequência desses procedimentos é a impossibilidade, na prática, de se elaborar critérios universais e mecanismos públicos de controle, pois as práticas de administração do controle estatal realizam-se sob dois pesos e duas medidas (LIMA, 1989, p.82-83). Para garantir o controle sobre essa população, estabelece-se uma relação de controle que remete à escravidão, com ritos de violência muito próximos aos vividos pelos corpos escravizados, num dos pilares que marcou a formação nacional. Na citação abaixo, pode-se substituir o termo “escravo” por “encarcerado”, “preso” ou “reeducando”, que o sentido continuará o mesmo: O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em “estado de injúria”, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos. O sentido violento da vida de um escravo se manifesta pela disposição de seu supervisor em se comportar de forma cruel e descontrolada, e no espetáculo de dor imposto ao corpo do escravo. Violência, aqui torna-se um elemento inserido na etiqueta, como chicotadas ou tirar a própria vida do escravo: um ato de capricho e pura destruição visando incutir o terror. A vida de um escravo, em muitos aspectos, é uma forma de morte-em-vida. Como sugere Susan Buck-Morss, a condição de escravo produz uma contradição entre a liberdade de propriedade e a liberdade da pessoa. Uma relação desigual é estabelecida junto com a desigualdade do poder sobre a vida. Esse poder sobre a vida do outro assume a forma de comércio: a humanidade de uma pessoa é dissolvida até o ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravo é propriedade de seu dominador. Dado que a vida do escravo é como uma “coisa” possuída por outra pessoa, sua existência é a figura perfeita de uma sombra personificada (MBEMBE, 2018, p.28-29). Ao estendermos a analogia, podemos substituir o “senhor de escravos” pelo Estado policialesco e pautado num racismo estruturado: O sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por essa estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial. Além da privação de liberdade, ser encarcerado significa a negação de uma série de direitos e uma situação de aprofundamento de vulnerabilidades. Tanto o cárcere quanto o pós-encarceramento significam a morte social desses indivíduos negros e negras que, dificilmente, por conta do estigma social, terão restituído o seu status, já maculado pela opressão racial em todos os campos da vida, de cidadania ou possibilidade de alcançá-la. Essa é uma das instituições mais fundamentais no processo de genocídio contra a população negra em curso no país (BORGES, 2019, p.21-22). 31 Ou seja, a opressão é, antes de tudo, um mecanismo de controle, não só social, mas também econômico: Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso (FOUCAULT, 2014, p. 28-29). A ênfase de Foucault na semelhança entre prisões, escolas, fábricas, quartéis e hospitais não ocorre à toa. A função dessas estruturas é manter a ordem social e econômica; manter organizada a população de classes mais baixas, seguindo, portanto, um controle social neoliberal: Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes 'incorretas', gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações (FOUCAULT, 2014, p.171-172). E a situação não incide apenas sobre os homens negros. Se o número massivo de homens nos presídios é um fator conhecido, houve um aumento absurdo nos números relativos às mulheres negras. O gráfico 6 apresenta os estabelecimentos penais de acordo com o gênero. O número de locais construídos especificamente para receber as mulheres não chega a 7% do total de estabelecimentos penais. Percebe-se, porém, na série histórica, o crescimento vertiginoso na população feminina: “[…] o aumento da população feminina foi de 567,4%, no período de 2000 a 2014, enquanto a média de crescimento da população masculina foi de 220,20%, refletindo assim, a curva ascendente do encarceramento em massa de mulheres” (OLIVEIRA, 2017, p.75). De fato, o Infopen de 2014 trazia, como números totais de pessoas privadas de liberdade, 578.440 homens para 36.495 mulheres. Já em 2017, o Relatório Infopen Mulheres apresenta 37.828 mulheres presas (BRASIL, 2017b), como é possível ler no gráfico 7. 32 Gráfico 6 – Destinação dos estabelecimentos penais de acordo com o gênero em % Fonte: Brasil (2017a, p. 20). Gráfico 7 – Total anual de mulheres privadas de Liberdade no Brasil (2000- 2017) Fonte: Brasil (2017b, p. 09). Apesar de baixo, em comparação ao caso masculino, é extremamente preocupante o crescimento exponencial da população carcerária feminina. 33 Contudo, as tipologias de crime são muito distintas entre os dois públicos, conforme o quadro 2. Quadro 2 – Número de crimes tentados/consumados pelos quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento no Brasil (2017) Categorias de crime Homens Mulheres Crime contra a pessoa 61.978 2.070 Crimes contra o patrimônio 228.075 6.791 Crimes contra a dignidade sexual 20.610 296 Crimes contra a paz pública 8.506 368 Crimes contra a fé pública 2.987 182 Crimes contra a administração pública 433 50 Crimes praticadas por particular contra a Administração Pública 647 33 Drogas 140.789 15.951 Estatuto do desarmamento 23.684 438 Crimes de trânsito 1.419 16 Legislação específica - outros6 4.522 397 Fonte: Elaboração própria (2023), adaptado de Brasil (2017a, p. 44-45). Enquanto os homens estão enquadrados, em sua maioria, por crimes contra o patrimônio, as mulheres têm seu maior foco em crimes do grupo de drogas. Além disso, as mulheres tendem a apresentar uma inserção menor no mercado de trabalho, conforme o gráfico 8. 6 Nesta categoria entram os crimes contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), genocídio, crimes de tortura e crimes contra o Meio Ambiente. 34 Gráfico 8 – Taxa de participação na força de trabalho de pessoas com 15 anos ou mais de idade, no Brasil, em % (2021) Fonte: Elaboração própria (2023), adaptado de Brasil, 2021. Se as mulheres estão dependendo da sua subsistência dos rendimentos com o tráfico de drogas, isso não é possível afirmar. Mas a análise histórica dos dados aponta que possuem mais dificuldades em arrumar empregos formais. Os salários entre mulheres negras e mulheres brancas tampouco são equiparados. A obviedade do comentário é para escancarar que a educação básica e os aperfeiçoamentos não chegam aos mais pobres, e, se não chegam aos homens, atingem muito menos as mulheres negras, como pode ser observado nos gráficos 9 e 10. Gráfico 9 – Escolaridade das pessoas privadas de liberdade no Brasil, em comparação com dados nacionais, em % (2017) Fonte: Elaboração própria (2023), adaptado de Brasil (2017a, p. 34). 35 Gráfico 10 – Escolaridade das mulheres privadas de liberdade no Brasil, em comparação com dados nacionais, em % (2017) Fonte: Elaboração própria (2023), adaptado de Brasil (2017b, p. 34). Embora o racismo seja um foco fundamental quando abordamos o cárcere, não é a única questão que se aplica em tal espaço. O cárcere e seus custodiados sofrem com o machismo, com a homofobia, com preconceito de classe, entre outras situações que permeiam essa realidade (LIMA, 1989; BIONDI, 2010; OTA, 2019; CINQUE; DORIGON, 2020). Pode-se, por assim dizer, pensar todas essas questões de forma interseccional: essas situações acontecem ao mesmo tempo, sem excluir ou diminuir suas práticas. O conceito de interseccionalidade foi desenvolvido por mulheres negras feministas no final da década de 1980, com destaque para o artigo Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics7 (AKOTIRENE, 2019), de Kimberlé Crenshaw8, publicado em 1989. A proposta faz referência à dificuldade encontrada em juntar as temáticas dos estudos feministas e antirracistas. Para Crenshaw, ambos deveriam ser vistos lado a lado, para poder estar em consonância da realidade vivida pela mulher negra (DAVIS, 2008). A discussão ganha importância porque muitas vezes as pessoas 7 Em tradução livre, “Desmarginalizando a intersecção entre raça e gênero: uma visão do feminismo negro como abordagem antidiscriminatória, de teoria feminista e de políticas antirracistas”. 8 Professora de Direito da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA). 36 são colocadas em categorias de estereotipagem, sendo vistas apenas como um "membro" de um grupo particular, como "mulher" ou "negro", sem levar em conta as diferenças individuais e as múltiplas camadas de sua identidade. Com a interseccionalidade, tem-se por objetivo compreender como as diferentes formas de opressão se relacionam e se sobrepõem. Tal abordagem reconhece que as pessoas podem ser oprimidas de várias maneiras diferentes, com base em sua raça, gênero, orientação sexual, classe social, capacidade, entre outros aspectos. Assim, o conceito “[…] se refere à interação entre gênero, raça e outras categorias de diferenças na vida pessoa, nas práticas sociais, mecanismos institucionais e ideologias culturais e suas relações de poder quando interagem entre si”9 (DAVIS, 2008, p.68, tradução nossa). Uma mulher negra, por exemplo, pode enfrentar opressão tanto por ser mulher quanto por ser negra, e essas duas formas de opressão podem se influenciar e se reforçar mutuamente. A interseccionalidade permite que sejam consideradas as diferenças e as nuances dentro dos grupos e como essas diferenças podem afetar a forma como as pessoas são tratadas e oprimidas socialmente. A nível de discurso hegemônico, produz-se, simultaneamente, várias formas de opressão. O pensamento de Crenshaw se baseia no Feminismo Negro, em autoras como Angela Davis, Patricia Hill Collins e Elsa Dorlin (HIRATA, 2014). Mas não é, necessariamente, uma abordagem exclusiva de mulheres para mulheres: […] a epistemologia feminista negra [...] recrimina argumentos de competição entre os mais excluídos, as hierarquias entre eixos de opressão e violações consideradas menos preponderantes. Juntos, racismo, capitalismo e heteropatriarcado devem ser tratados pela interseccionalidade, observando os contornos identitários da luta antirracista diaspórica […] (AKOTIRENE, 2019, p.38). Além disso, a interseccionalidade foi fundamental para a construção de movimentos sociais e políticos. O conceito reconhece que as lutas das pessoas oprimidas não são separadas, mas sim interconectadas, e que é necessário construir juntos e solidariamente para lutar contra todas as formas de opressão. Isso inclui reconhecer como pessoas privilegiadas em diferentes aspectos 9 No original, “[…] refers to the interaction between gender, race, and other categories of difference in individual lives, social practices, institutional arrangements, and cultural ideologies and the outcomes of these interactions in terms of power”. 37 podem apoiar e se beneficiar das causas das pessoas oprimidas, comprometendo-se com a luta por mudanças sistêmicas. Como coloca Dina Alves em seu artigo Rés negras, juízes brancos: Uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana: No momento em que o juiz a sentenciou como traficante de drogas e decretou a sentença de oito anos de reclusão, dona Joana, 49 anos de idade e mãe de seis filhos, carroceira, não pensou duas vezes e explodiu: “se eu fosse traficante não estaria banguela”. Pode a vida de uma mulher negra – pobre, carroceira e vendedora de drogas – nas mãos de um juiz homem – branco, classe média alta – nos ajudar a entender o regime de dominação racial presente no sistema de justiça penal no Brasil? (2017, p.101). Dessa forma, é necessário pensar a interseccionalidade como [...] uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009, p. 70 apud HIRATA, 2014). Nesse sentido, a mediação da informação pode consistir num processo de ruptura com os sistemas estabelecidos pelas políticas de encarceramento da população, criando, assim, uma forma de saída do abismo de desigualdades. A mediação é, portanto, entendida como uma análise da práxis do profissional da informação. Ela aparece, nesse âmbito, como preocupação sobre como uma pessoa tem acesso à informação, ou seja, trabalha na intervenção e no momento de sua aquisição, recepção e de apropriação. Partindo de um conceito comunicacional de interação entre indivíduos e percepção simbólica, obtemos um entendimento da mediação como uma prática intencional. Nessa condição, o mediador estabelece uma relação social: a de servir à ressocialização de quem está no cárcere. No entanto, engana-se quem imagina a mediação como algo que coloca o sujeito como passivo – trata-se de um processo de troca e produção contínua, não apenas como um ato de consumo dessa ação. Este processo só pode ser validado pelo mediado; apesar disso, 38 constitui-se de troca, alteração, transformação e modificação do conhecimento do sujeito em questão (ALMEIDA JÚNIOR, 2007). Paulo Freire, em Pedagogia da autonomia (2019), tem uma colocação muito objetiva de como não deve ser o comportamento do educador, entendido aqui como o comportamento do mediador. A pessoa que detém tal função precisa ter uma leitura de mundo que inclua a possibilidade da mudança, sem se ater a um pensamento determinista: [...] Um estado refinado de estranhezas, de autodemissão da mente, do corpo consciente, do conformismo do indivíduo, de acomodações de situações consideradas fatalisticamente como imutáveis. É a posição de quem encara os fatos como algo consumado, como algo que se deu como tinha que se dar da forma que se deu, é a posição, por isso mesmo, de quem entende e vive a história como determinismo e não como possibilidade. É a posição de quem se assume como fragilidade total diante do todo-poderosismo dos fatos que não apenas se deram porque tinham que se dar, mas que não podem ser “reorientados” ou alterados. Não há, nesta maneira mecanicista de compreender a história, lugar para a decisão humana (FREIRE, 2019, p.111-112). Freire constrói esse entendimento para todos os educadores, numa perspectiva que vai ao contrário da construção social geral que se faz do cárcere. É preciso considerar que esses atores sociais são marginalizados, pois respondem aos critérios sociais de ordem criminal, e, além disso, são hostilizados por sua raça, cor, gênero, sexualidade e classe social. Ademais, o padrão capitalista determina que o trabalho é a principal forma de controle social e esse grupo se torna marginal, exatamente por desconstruir a segurança e ordem criminal ao agir de forma paralela à lei10. Quando discutimos a ressocialização como política pública para a diminuição de reincidência e até como forma de execução penal libertária, adota- se o termo “reeducando”, ao invés de “marginal”, “bandido”, “encarcerado”, “preso”, “detento”, entre tantos outros. Este termo coloca o sujeito na posição de aprender de novo. Portanto, todos que estão no sistema prisional são 10 Todavia, apesar da clandestinidade envolvida, essa forma de trabalho coexiste com a formalidade capitalista, assim como a escravidão e a servidão coexistiram. Essa força de trabalho excedente será nomeada por Marx de exército industrial de reserva: “[...] a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção de sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se, desse modo, excedente” (2011, p. 731). 39 educadores; todos podem se valer da mediação da informação como processo de diminuição das barreiras da instituição e do preconceito estrutural. A história da CI brasileira com o cárcere poderia ser antiga. A Lei de Execuções Penais (LEP) 7.210 de 1984 determina que toda instituição Penitenciária precisa ter uma biblioteca (BRASIL, 1984). No entanto, este feito ainda não é uma realidade na maioria dos casos, nem era um assunto muito discutido na área. A CI, enquanto ciência, pouco tem se preocupado com a inclusão de sujeitos marginalizados em seu âmbito. O contexto de surgimento da CI no período pós-guerra é, também, um momento de consolidação do capitalismo. Nesse contexto, pensar a CI é determinar que as relações de poder, e, portanto, de análise, se davam de forma eurocêntrica e, por conseguinte, os indivíduos analisados estavam submetidos a padrões de conduta historicamente invariantes. Chega-se, portanto, ao questionamento: como a mediação da informação pode servir como um campo de discussão e de proposições pedagógicas que ajudem a construir discursos progressistas no âmbito da Ciência da Informação? A tese tem como objetivo geral investigar as práticas pedagógicas do Programa de Educação nas Prisões de uma Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo, com foco na mediação da informação como prática de seus professores. Os objetivos específicos são: ● Diferenciar as diversas fases da Ciência da Informação, com o intuito de relacionar as possibilidades interdisciplinares da mediação da informação; ● Apresentar os diferentes discursos acerca do cárcere na literatura das Ciências Humanas e da Ciência da Informação; ● Propor uma metodologia de trabalho pedagógico para os professores do EJA prisional, com foco na mediação da informação. Essa pesquisa é fruto, também, de anos de prática como bibliotecário, primeiramente, e, posteriormente, Diretor de Núcleo Pedagógico em uma Diretoria de Ensino que sempre se preocupou em oportunizar um Programa de 40 Educação nas Prisões (PEP) de excelência. São nove anos atuando em parceria com a Supervisora do Projeto na construção de uma política pública de qualidade para pessoas privadas de liberdade. Por se tratar de uma proposta de investigação-ação, a tese foi construída a partir da estrutura do Arco de Maguerez. Os três primeiros passos (Observação da realidade, pontos-chave e teorização) foram construídos com base na pesquisa bibliográfica e observação dos professores e estrutura a que pertencem. No quarto passo (Hipóteses de solução), desenvolvi um modelo de ação, com proposta de aplicação direta com esses professores. Por fim, o quinto passo (Aplicação à realidade) foi realizado diretamente com o grupo de Professores em momento de formação, que podem ser Orientações Técnicas (OT) e Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC). Ao longo da pesquisa, toda a metodologia do Arco de Maguerez foi pensada para que, no fim, o produto fosse um Projeto Político Pedagógico nas Prisões (PPPprisões). A utilização metodológica do Arco pelos próprios professores se faz importante para que eles possam perceber o caráter pedagógico de sua ação, e a centralidade do estudante neste processo. A proposta é compreender como, num cenário de punição, vigilância e controle do sujeito exercidos pelo Estado, os indivíduos constroem, através de trocas simbólicas e culturais, seus próprios discursos e aprendizagens como forma de transformação. A pesquisa de campo utilizando a etnografia como metodologia de observação se deu em uma Escola Estadual da cidade de São Paulo, de modalidade Vinculadora, onde estão alocadas as salas de aula do Programa de Educação nas Prisões de uma Diretoria de Ensino Regional (DER) da capital. As pessoas que fazem parte da pesquisa e foram entrevistadas com as alcunhas e nomes que aparecem na tese, são: ● Fernando - pesquisador-autor da tese e Diretor Técnico I do Núcleo Pedagógico; ● Supervisora do PEP - Supervisora de ensino que é responsável pela gestão do PEP na Diretoria de Ensino; ● PEC 1 - Professora Especialista em Currículo de Anos Iniciais; ● PEC 2 - Professor Especialista em Currículo de Projetos Especiais; 41 ● PEC 3 - Professor Especialista em Currículo de História11; ● Diretor da vinculadora - Diretor da Escola vinculadora e consequentemente das salas que pertencem a escola dentro dos CDP; ● CGP da escola vinculadora - Coordenadora de Gestão Pedagógica da Escola vinculadora; ● Professores 1, 2, 3, 4, 5 e 6 - São os professores que participaram de todas as atividades propostas pela equipe de formação da Diretoria de Ensino e terminaram o ano com a escrita do PPPprisões. O PEP é um programa da Secretaria da Educação que organiza todo o funcionamento das práticas escolares dentro do presídio, no quarto capítulo falarei mais dele. O PEP funciona em âmbito da SEcretaria, mas é gerido por uma Escola vinculadora, a escola em questão conta com classes dentro do sistema carcerário paulista, especificamente em um Centro de Detenção Provisória (CDP) masculino, que aqui chamarei de CDP A e CDP B. Distante aproximadamente 6,5 quilômetros do CDP, a Escola Vinculadora possui 845 estudantes, matriculados em 17 turmas que não pertencem ao PEP. Soma-se 105 estudantes, em três turmas, no CDP A, e 42 estudantes, em três turmas, no CDP B, segundo os dados abertos na Secretaria Escolar Digital (SED) (SÃO PAULO, 2022a). 11 O PEC 3 não esteve presente no dia da entrevista pois estava de licença médica devido uma torção no pé. 42 Figura 1 – Disposição dos Centros de Detenção Provisória (CDP) no Estado de São Paulo (2023) Fonte: São Paulo (2023). Em São Paulo, ainda segundo dados do último Infopen, haviam 229.031 homens e mulheres privados de liberdade, sendo, então, a Unidade da Federação de maior população carcerária do país, conforme gráfico 11. Em média, 40% dos encarcerados são formados por presos provisórios, isto é, que aguardam julgamento por parte do Judiciário (BRASIL, 2016). Gráfico 11 – População prisional no Brasil, por Unidade da Federação (2017) Fonte: Brasil (2017a, p. 13). 43 Os CDP são uma das tipologias existentes no sistema penitenciário paulista, conforme quadro 3. Quadro 3 – Tipologias unidades de privação de liberdade TIPOLOGIAS CARACTERÍSTICA Centro de Detenção Provisória (CDP) Locais onde ficam os presos que aguardam julgamento. São unidades com cerca de 760 vagas. Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Local específico para abrigar os detentos que cumprem o final da pena. Em regime semi-aberto, esta é a penúltima etapa da sentença. Depois, o preso tem liberdade condicional ou vai para o regime aberto. Centro de Ressocialização Unidades localizadas em cidades médias do Interior para abrigar presos primários e de baixa periculosidade. Esses Centros abrigam tanto detentos em regime semi- aberto como fechado. Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) É um instrumento do Estado que permite a imposição de um regime de cumprimento da pena de prisão muito mais rigoroso do que o comum. Inexistente na LEP, o RDD foi criado no Estado de São Paulo, em 2001, pela Resolução n. 26, da Secretaria de Administração Penitenciária, e transformado em lei federal, incorporado à LEP, em 2003 (Lei 10.792/03). Penitenciária Após o julgamento, de acordo com a pena, os condenados seguem para uma penitenciária de regime fechado ou semi-aberto. Hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP) Os pacientes psiquiátricos encontram-se internados por decisão judicial após serem considerados inimputáveis ou semi-imputáveis, após perícia médica. Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico são destinados ao cumprimento da Medida de Segurança e tratamento desses internos, em conformidade com a lei 10.216/01, que cuida da reforma psiquiátrica e humanização do atendimento. Fonte: Elaboração própria (2023), adaptado de Dias (2009, p.129) e SAP (2023). No Estado de São Paulo, o modelo de gestão escolar é exercido de maneira descentralizada. Portanto, algumas funções são atribuídas às Diretorias de Ensino Regional em relação a papéis pedagógicos e administrativos – aqui, foquei apenas no caráter pedagógico. Nos dias atuais, 91 DER abarcam todas as escolas públicas estaduais e algumas municipais, com programas específicos, como transporte escolar, material didático de anos iniciais do ensino 44 fundamental e alimentação. Além disso, atuam na fiscalização do funcionamento e cumprimento da legislação das escolas particulares. 13 DER estão localizadas na cidade de São Paulo, com a divisão administrativa indicada na figura 2. Figura 2 – Divisão administrativa das Diretorias de Ensino no Estado de São Paulo (2023) Fonte: São Paulo (2022c). Atualmente, a DER considerada possui 74 escolas estaduais, sendo a Escola estudada a única vinculadora; e as equipes pedagógicas do Núcleo Pedagógico (NPE)12 e de Supervisão de Ensino (ESE)13, que auxiliam na formação e gestão administrativa das Unidades Escolares. O organograma da instituição foi reproduzido na figura 3. 12 O NPE tem como principal função a formação pedagógica das equipes das Escolas estaduais. Muitas vezes a formação se concentra nos Coordenadores de Gestão Pedagógica (CGP) das UE, sendo eles os responsáveis pela formação de suas equipes de professores. 13 A ESE é um grupo da Secretaria da Educação (SEDUC), responsável por garantir a melhoria do processo ensino-aprendizagem nas Unidades Escolares (UE), dialogando com todos os profissionais presentes neste espaço. É importante entender que o papel do supervisor de ensino não é apenas de formação dessas equipes, mas garantir que o direito à educação aconteça em todas as instâncias (ZACCARO, 2006). A união das duas equipes, NPE e ESE, visa garantir a efetividade das práticas pedagógicas em espaços como o do cárcere. 45 Figura 3 – Organograma da Diretoria de Ensino Fonte: Elaboração própria (2023). Para melhor compreensão do sistema, a caracterização será primeiramente pelas equipes da Diretoria de Ensino, posteriormente passando para a equipe escolar. O NPE é composto pelos Professores Especialistas em Currículo (PEC), um Analista Sociocultural - Bibliotecário e um Diretor Técnico I de Núcleo Pedagógico (DNP). Formalmente, mantenho um cargo de Analista Sociocultural e ocupo, hoje, a função de Diretor Técnico I, estando envolvido no campo de modo direto. Os PEC representam todos os componentes curriculares do Currículo Paulista e o tamanho do módulo do NPE depende do número de escolas estaduais que possui a DER (quadro 4). Quadro 4 – Módulo de PEC conforme Resolução número 62, de 14 de junho de 2022 Componente Curricular Módulo de PEC conforme Resolução Módulo atual da DER Língua Portuguesa 2 2 Arte 1 1 46 Educação Física 1 1 Língua Estrangeira Moderna 1 1 Matemática 2 1 Biologia 1 1 Ciências 1 1 Química 1 0 Física 1 0 História 1 1 Geografia 1 1 Sociologia/Filosofia 1 1 Anos Iniciais do Ensino Fundamental 3 4 Tecnologia 2 2 Educação Especial 1 1 Projetos Especiais 1 1 CONVIVA 2 2 TOTAL 23 21 Fonte: Elaboração própria (2023) a partir de dados disponíveis em São Paulo (2022b). Para a construção teórica da pesquisa, utilizo o referencial da CI, junto com teorias da interseccionalidade, bem como outras que se fizerem pertinentes às questões acima levantadas. Essas referências dissertam tanto sobre os conceitos sobre relações raciais, gênero e classe, quanto sobre o panorama da mediação da informação na CI. Com isso, interpreta-se o ambiente em que o sujeito vive, aprende e produz conhecimento e também como a questão ideológica torna-se fundamental na criação de um status quo, questão pertinente aos Estudos Culturais (EC). Os estudos exploratórios-descritivos combinados visam descrever um fenômeno por completo onde são aplicadas análises teóricas e empíricas (MARCONI & LAKATOS, 2003). Assim, tem-se nesse caso, a mediação da 47 informação e a interseccionalidade como fenômenos de análise. Entende-se que a pesquisa exploratória é de natureza empírica e tem como finalidade desenvolver hipóteses para responder à falta de estudos práticos sobre a temática na área, além da possibilidade de realização de outra análise futura para responder a ideias e conceitos que possam surgir: Uma variedade de procedimentos de coleta de dados pode ser utilizada, como entrevista, observação participante, análise de conteúdo etc., para o estudo relativamente intensivo de um pequeno número de unidades, mas geralmente sem o emprego de técnicas probabilísticas de amostragem (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 188). A decisão quanto ao uso da Metodologia Problematizadora e do método etnográfico tomou como base os primeiros estudos realizados pelo Centre for Contemporary Cultural Studies14 (CCCS), que trouxeram essência estruturalista e empírica. As pesquisas fundadoras dos Estudos Culturais buscaram entender a cultura em todos os padrões e estruturas. Outro fator importante do trabalho do CCCS foi entender a relação entre a cultura contemporânea e a sociedade atual. Além disto, são anos de prática em formação de professores no cárcere e uma vontade enorme de entender como os processos formativos poderiam alcançar de maneira mais profunda os estudantes em privação de liberdade. Opto por um quadro referencial marxista, que, a meu ver, dialoga com o entendimento de “cultura”, que se baseia na identificação das relações sociais, políticas e econômicas estabelecidas na sociedade. Reforça-se que a pesquisa empírica também se mostra necessária para que ocorra a triangulação do conteúdo da tese. Já o constructo da CI poderá ser um contraponto de evidências ao se observar os discursos e vivências da população analisada. É importante destacar, como ponto de partida, que a triangulação como estratégia de validação na pesquisa qualitativa assume uma forma totalmente distinta da utilizada na pesquisa quantitativa. Nesta última, é preconizado que um determinado estudo se torna válido à medida que outro pesquisador, ao replicá-lo, utilizando-se dos mesmos métodos, alcance também os mesmos resultados. Nesse sentido, a pesquisa se torna válida à medida que pode ser mensurada, quantificada e generalizada. Na pesquisa qualitativa, a validação é entendida sob outra perspectiva, enquanto indicação de pesquisa planejada e executada de maneira criteriosa e 14 O CCCS foi criado pelo acadêmico inglês Richard Hoggart em 1964 como centro de pesquisa de pós-graduação do Departamento de Inglês da Universidade de Birmingham (ESCOSTEGUY, 2010). 48 confiável, na qual os procedimentos metodológicos utilizados e os resultados do estudo são condizentes e consistentes com os objetivos propostos. (SANTOS et al, 2020, p. 656). Uma hipótese aqui defendida é que a discussão sobre Cultura é um alicerce fundamental para a Ciência da Informação, e que esta última, em seu aspecto social, precisa se basear na teoria marxista para entender que a influência política define a produção, acesso e uso da informação. Portanto, questões como Estrutura, Superestrutura e Hegemonia afetam diretamente os sujeitos informacionais e precisam ser mais discutidas e utilizadas na CI. Que aspectos da mediação da informação causam uma ruptura dos sujeitos e permitem que esses questionem o status quo. O devir é uma constante, e a mediação é um momento possível para acelerar esse momento. Outro ponto defendido é a apropriação da responsabilidade do ato da mediação da informação pelo mediador. Esse agente de transformação precisa ser, e, entender-se como um agente político e institucionalizado nesse processo de ruptura dos sujeitos. Além do mais, os estudos em Cultura servem para corroborar nas questões de âmbito social da prática informacional, criando, assim, uma notável discussão da temática. A CI abriu espaço para discussão cognitiva e hoje precisa avançar para uma construção social de seu arcabouço teórico. Outro pressuposto é o da Ciência da Informação como um espaço de discussões decoloniais e interseccionais, pois é impossível analisar esses sujeitos sem entender como as questões de raça, sexualidade e gênero habitam nessa discussão. A tese procura representar toda uma possibilidade de discussão das teorias sociais, permitindo que essas temáticas possam figurar entre os assuntos mais estabelecidos de discussão na CI. Adoto um olhar do paradigma social com foco na fenomenologia, e trago a discussão científica a partir da realidade concreta do cotidiano dos sujeitos analisados. 49 2 METODOLOGIA Compreendo a metodologia de uma pesquisa como esta enquanto “caixa de ferramentas”, ideia expressada por Deleuze: Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas (DELEUZE, 1979, p.71). Esta tese parte, então, de uma pesquisa de natureza qualitativa, inspirada pelo conceito de investigação-ação, um [...] processo que siga um ciclo no qual se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da prática e investigar a respeito dela. Planeja-se, implementa-se, descreve- se e avalia-se uma mudança para a melhora de sua prática, aprendendo mais, no correr do processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação (TRIPP, 2005, p.445- 446). Nesse sentido, adoto três métodos principais: a estrutura geral do processo de pesquisa parte da Metodologia Problematizadora (MP), com o Arco de Maguerez (PRADO et al., 2012); em seguida, uma abordagem etnográfica, junto aos professores que atuam no CDP, visa compreender as práticas e relações desses agentes com as teorias, conceitos e áreas propostas, e, fundamentalmente, enquanto forma empírica de coleta de dados. Realizei uma observação participante, montei questionários para professores e os entrevistei; além disso, reuni parte da documentação produzida em sala de aula durante as atividades. Articulo a discussão de todo esse material a partir da linha de Pêcheux de Análise de discurso (MARCONI & LAKATOS, 2003). Meu intuito consistiu em observar como o sujeito-professor exercia sua função de agente do funcionalismo público, articulando suas ações e visões junto às práticas da estrutura penitenciária (Educação/Administração Penitenciária). Pretendi, ainda, compreender o espaço em que se encontram dentro de uma estrutura social que potencializa suas fragilidades em relação aos conflitos de interseccionalidade, e evidenciar as relações estabelecidas na sala de aula, bem como aspectos importantes no cotidiano do cárcere. A partir de tal foco, identifico 50 as relações hegemônicas e ideológicas da Cultura e, portanto, a necessidade desse sujeito de obter informação e conhecimento para qualquer finalidade. 2.1 A METODOLOGIA PROBLEMATIZADORA E O ARCO DE MAGUEREZ A MP é uma forma de investigação-ação15. Apesar de esta modalidade incluir muitos métodos, todos são muito parecidos em sua essência. Basicamente consistem em observar, planejar, agir, descrever e avaliar. Podemos observar as etapas da investigação-ação na figura 4. Figura 4 – Representação em quatro fases do ciclo básico da investigação- ação. Fonte: TRIPP (2005, p.446). Tripp (2005) elenca alguns pontos positivos na utilização de uma investigação-ação: ● O planejamento das ações pode ser executado de maneira mais consciente, se for observado por um método; ● Diminuição de hábitos que, às vezes, são encarados como práticas consolidadas e impedem experimentações; 15 Embora a investigação-ação reúna diversas formas, provavelmente a mais conhecida é a Pesquisa-ação. Temos, entre outros, “a aprendizagem-ação, a prática reflexiva, o projeto-ação, a aprendizagem experimental, o ciclo PDCA, PLA, PAR, PAD, PALM, PRA etc., a prática deliberativa, a pesquisa práxis, a investigação apreciativa, a prática diagnóstica (genérica em medicina, ensino corretivo etc.), a avaliação-ação, a metodologia de sistemas flexíveis e a aprendizagem transformacional” (TRIPP, 2005, p. 446). 51 ● Ter mais criticidade na análise dos resultados, possibilitando novas formas de devolutiva; ● Ter outras formas de registro de práticas de aprendizagem. A MP segue o esquema da figura 4, ou seja, parte de uma observação/planejamento para uma intervenção, que, por sua vez, gera um material para descrição e avaliação da pesquisa. Ela tem como característica principal servir como um método estratégico de ensino-aprendizagem, tendo sido criada com esse intuito por Charles Maguerez em 1970. Tal metodologia surge com base em duas práticas de campo do pesquisador francês: a primeira, baseada na formação de trabalhadores rurais e mineradores de países africanos e europeus, com suas experiências mostradas no livro La promotion technique du travailleur analphabète (1966). A segunda é o material criado para descrever a formação com trabalhadores rurais no interior de São Paulo, que resultou no relatório Análise do sistema paulista de assistência à agricultura para a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI, 1970; BERBEL; SÁNCHEZ GAMBOA, 2012). Por conta de seu uso extremamente específico, com trabalhadores rurais e mineradores, o método só se tornou mais conhecido em 1977, quando foi adotado no livro Estratégias de ensino-aprendizagem, de Bordenave e Pereira (2012). Contudo, foram necessários diversos anos de pesquisa e aplicação para que se desenhasse uma perspectiva de seu uso como metodologia científica. Dois pontos fundamentais para a sua aplicação metodológica no Brasil ocorreram na Universidade Estadual de Londrina: o primeiro, no Centro de Ciências da Saúde em 199216, e o segundo durante as pesquisas e aplicações da professora Neusi Aparecida Navas Berbel (COLOMBO; BERBEL, 2007), do curso de Pedagogia. Devido a essas temporalidades distintas entre a proposta do método e sua posterior utilização, é possível perceber algumas mudanças sutis, mas que indicam uma maturação da proposta. Da mesma forma, será possível perceber adaptações para utilização nesta tese. A proposta pioneira de Maguerez pode 16 Na ocasião, a professora Neusi Berbel aplicou a metodologia com turmas de estudantes do Centro de Ciências da Saúde em um projeto especial de ensino. A metodologia baseou o Centro na adoção de uma metodologia de aprendizagem baseada em problemas, que é utilizada até os dias de hoje (BERBEL, 2011). 52 ser encontrada em seu livro de 1966 e está resumida na figura 5. A leitura do esquema é feita da seguinte forma: o método começa com a Observação da Realidade (OR); depois, passa-se para a Observação da Maquete (OM); realiza- se uma Discussão (DS); em seguida há a Execução na Maquete (EM); e, por fim, a Execução na Realidade (ER). Figura 5 – Esquema de progressão pedagógica de Maguerez Fonte: Maguerez (1966 apud BERBEL; SÁNCHEZ GAMBOA, 2012, p.268). Na proposição inicial de Maguerez tende-se a observar pouco protagonismo dos sujeitos e mais uma obediência por parte de quem participa da metodologia. Para Berbel (2012), o arco atualmente tem uma questão mais reflexiva por parte dos aprendentes. As etapas de OR e OM, por exemplo, estariam a cargo apenas dos monitores, sem participação dos aprendentes. OR e OM seriam observar a realidade e esquematizar uma proposta de trabalho, para depois começar as discussões e montagem da possibilidade de aplicação. No esquema de progressão pedagógica de Maguerez, já é possível observar a figura da metodologia como um arco - algo que posteriormente seria propagado por Bordenave e Pereira (2012) - porém menos eloquente ou didático que a apresentação de 1981. Contudo, a principal questão trazida por esse esquema é a centralidade na transferência feita pelo elaborador da proposta, e o baixo protagonismo do aprendente. Berbel e Sánchez Gamboa (2012, p. 269) explicam: 53 Tal esquema se repetiria no documento de 1970, de cuja análise percebemos indicações de um trabalho muito mais centrado nos executores da proposta que em seus públicos-alvo, e as atividades propostas nos parecem muito mais informativas da parte dos monitores ou técnicos e reprodutivas da parte dos aprendizes que reflexivas da parte desses últimos, distanciando- se das aplicações que temos buscado realizar e orientar por meio da utilização do Arco, seja no ensino seja na pesquisa [...]. Mais difundida que a proposta do próprio Maguerez é a utilização do método feita por Bordenave e Pereira (2015), que pode ser observada na figura 6: Figura 6 – O Arco de Maguerez, tal como adaptado por Bordenave e Pereira (2015) Fonte: Bordenave e Pereira (2015, p. 53). Berbel e Sánchez Gamboa (2012) enfatizam que o entendimento do Arco de Bordenave e Pereira (2015) é feito com base em algumas teorias de aprendizagem, começando pela de Paulo Freire. Diferentemente de Maguerez, esta proposta enuncia o protagonismo no sujeito aprendente. É possível perceber, ainda, [...] algumas ideias de Jean Piaget [...]; a concepção sociointeracionista da aprendizagem sustentada nos estudos de Lev Vygotski e desenvolvida por Jerome Bruner; e a aprendizagem significativa de David Ausubel. Por último, por sua afirmação, o próprio autor constatou que a educação problematizadora encontrava fundamentação epistemológica no pensamento dialético (BORDENAVE, 1998 apud BERBEL; SÁNCHEZ GAMBOA, 2012, p.270). Percebemos, na segunda proposta, uma maturidade que talvez tenha faltado na primeira. Contudo, as adaptações não se encerram, e é possível 54 analisar uma proposta distinta, construída com base na práxis e que se distancia da proposta original. A proposta de Berbel pode ser observada na figura 7. Figura 7 – Arco de Maguerez desenvolvido por Berbel e Sánchez Gamboa, a partir de Bordenave e Pereira Fonte: Berbel e Sánchez Gamboa (2012, p. 271). A proposta de Berbel e Sánchez-Gamboa (2012) insere um ponto central no caminho para a centralidade do aprendente. Mesmo que iniciada por Bordenave e Pereira, é nela que vemos a junção da teoria com a prática - a práxis. Berbel e Sánchez-Gamboa constroem, nitidamente, um percurso pedagógico dialético: [...] a pedagogia dialética defende que a constituição do homem acontece pela ascensão da consciência coletiva efetivada de maneira concreta na ação continuada de trabalho, ou seja; interação, que dá existência ao próprio homem. A educação não é estática. É a transformação do homem futuro. (SMARGIASSI, 2018, p. 190). Com essa mudança do Arco de Maguerez, os autores propõem uma inclusão das dinâmicas políticas que formam o sujeito. A utilização do Arco como um método aplicado à CI pretende não apenas entendê-lo como uma prática pedagógica, mas experienciar os momentos dialógicos oportunizados por essa prática, colocando-os como ponto central da análise da tese. Assim, esta pesquisa considera a mediação da informação como um processo que ocorre na ordem política da interação entre os sujeitos, e também uma possibilidade de aprendizagem. 55 A utilização do Arco de Maguerez como forma de pensar a ação enquanto ela ocorre, finalizando com uma proposta de trabalho esquematizada e organizada, que atenda as necessidades daquela comunidade, é fundamental para questões mais dinâmicas da construção científica, inclusive como prática pedagógica. Um exemplo prático da aplicação da metodologia pode ser observado no relato de experiência de Prado e suas co-autoras (2012), conforme figura 8. A prática aconteceu na disciplina de Concepções Teórico-Metodológicas da Educação em Saúde e Enfermagem do curso de Mestrado em Enfermagem, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A ideia da utilização do Arco surgiu ao se discutir metodologias ativas, que privilegiassem o protagonismo dos estudantes. Figura 8 – Aplicação do Arco de Maguerez em uma disciplina do Curso de Mestrado em Enfermagem Fonte: Prado et al., 2012, p. 176. Como a prática surge de uma questão da realidade dos envolvidos, aplicou-se o Arco para solucionar o problema descrito. A primeira etapa foi de repensar a prática pedagógica e entender como seria possível aplicar uma aula utilizando uma metodologia ativa. Na etapa seguinte, enumerou-se os principais pontos para efetivação da prática. O terceiro ponto foi uma construção bibliográfica sobre metodologias ativas e sobre o Arco em si, principalmente com 56 base nos estudos da Berbel. Nas últimas duas etapas, as aulas foram reestruturadas e discutiu-se a temática, prevendo a aplicação do método (PRADO et al., 2012). Embora este relato surja de um caso muito específico em uma disciplina de Pós-graduação, ele ilustra uma das dificuldades durante a comunicação e o entendimento da mediação: o processo ex-post. Entender o caráter pedagógico da mediação da informação é parte da práxis da pesquisa - não apenas considerando a bibliografia da temática, mas também trazendo o efeito do processo no sujeito analisado. Será possível, portanto, perceber o caráter libertador que a mediação da informação produz no sujeito. Assim, a proposta de uma investigação-ação se coloca como oportunidade de observar e, também, interagir com o meio investigado. Ela surge de uma tradição de não começar a investigação pelas análises do pesquisador, mas a partir de questões geradoras dos participantes. Por ser muito utilizada na área da Educação, exerce uma característica de desenvolvimento profissional; como tal, “[...] às vezes é difícil distinguir entre a reflexão profissional (sobre a própria prática) e a investigação- ação. A distinção se encontra no grau de intencionalidade e sistematização da reflexão” (ANDERSON; HERR, 2016, p. 5). 2.2 PESQUISA ETNOGRÁFICA Na mesma toada, a etnografia abre possibilidades de estar junto do sujeito investigado, e, ainda, entender como alguns mecanismos estruturais regem a vida dentro da prisão. Esse método surgiu entre o final do século XIX e início do século XX, e se constituiu enquanto “[...] a arte e a ciência de descrever um grupo humano – suas instituições, seus comportamentos interpessoais, suas produções materiais e suas crenças” (ANGROSINO, 2009, p.30). Lévi-Strauss (2012) vê, nesse método, uma forma de expandir experiências particulares para dimensões de experiência geral, ou seja, tornar possível o acesso de pessoas àquela experiência em tempo/espaço diferentes. Vale dizer que a teoria levantada anteriormente serve como alicerce da pesquisa e funciona como organizador para a elaboração de uma visão mais ampla. Já as informações e conceitos acerca do sujeito estudado aprofundam a visão sobre o discurso recolhido. 57 A Inglaterra e os Estados Unidos foram os pioneiros na utilização do método etnográfico, com o pesquisador estadunidense Franz Boas em suas expedições de convívio com os inuítes. Já a escola francesa organizou-se na década de 1920, e um dos marcos teóricos da etnografia deu-se com o trabalho de Margaret Mead, de 1928; ela analisou a sociedade samoana e desvendou o processo de envelhecimento de mulheres adolescentes. A etnografia surgiu, então, no contexto de pessoas formadas em universidades, que escrevem sobre povos considerados “exóticos” e que se serviam de dados legítimos para interpretações acadêmicas (CLIFFORD, 2002). Havia, porém, uma divergência de entendimento acerca do espaço que esses métodos viriam a ocupar na Ciência. Para os britânicos, o trabalho de Boas era histórico e pouco científico, mas para os estadunidenses a interpretação era contrária. No juízo britânico, houve a problemática de o trabalho servir apenas como coleta de dados, classificando, assim, o trabalho de Boas como prática idiográfica17. Sendo assim, tanto a etnologia quanto a etnografia são modos específicos do método idiográfico, mas diferem da história e da arqueologia, por exemplo, sobretudo no que versa à observação direta de povos atuais, ao invés de práticas de registro escrito ou de restos materiais que atestam as atividades de povos no passado. Tais questões também diferem da antropologia, considerada um campo nomotético criado para entender as leis gerais que organizam a vida social (INGOLD, 2011). Podemos entender a etnografia como um método e a antropologia como um estudo analítico de comparação entre teoria e prática: [...] primeiro [...] [se faz a] pesquisa etnográfica e então – em um estágio subsequente – [...] [converte-se o] estudo em um caso para comparação, disposto ao lado de outros estudos similares, na esperança de que algumas generalizações viáveis possam emergir (INGOLD, 2017, p.224). A etnografia mobilizada no contexto em que Malinowski realizou sua pesquisa é extremamente distinta do momento contemporâneo. No começo do século XX, ela estava permeada por um pensamento colonizador e, portanto, não se preocupava com a alteridade: 17 Para Ingold (2011), a investigação idiográfica tem como função documentar fatos particulares no passado ou presente, diferentemente da investigação nomotética, que faz proposições gerais ou demonstrações teóricas. 58 O dilema atual está associado à desintegração e à redistribuição do poder colonial nas décadas posteriores a 1950, e às repercussões das teorias culturais radicais dos anos 60 e 70. Após a reversão do olhar europeu em decorrência